CONSIDERAÇÕES SOBRE AVALIAÇÃO COMPOSICIONAL

Silvio Ferraz

silvio.ferraz@terra.com.br

Resumo: O artigo trata da questão da avaliação composicional, sobretudo no ofício do compositor-professor. Questiona os modos de avaliação pautados em julgamento, sejam aqueles de foro tradicionalista ou aqueles aparentemente de vanguarda. A discussão tem por base a idéia da composição musical como um plano de imanência, como proposto por Gilles Deleuze, no qual a incidência de um plano anexo de explicação e justificativa não tem lugar. Comenta também uma bibliografia recente concernente a avaliação em composição musical.

Palavras-chave: Música; Composição; Música contemporânea; Plano de imanência; Avaliação; julgamento.

Considerations on compositional evaluation

Abstract: This paper discusses the question of compositional evaluation mainly in composerprofessor activities. It questions how evaluation is judged by either traditionalists or vanguards. The former basis for this discussion is a plan of immanence, as proposed by Gilles Deleuze in his philosophy in which a compositional plan without an annex justification or explanation isn’t acceptable. It also comments some references concerning the evaluation in musical composition.

keywords: Music; Composition; Contemporary music; Plan of immanence; Musical evaluation; Musical judgement.

Como avaliar um trabalho de composição? Este é um problema com o qual nos deparamos a cada vez que damos aulas de composição ou, mesmo, somos chamados a participar em bancas de concurso de composição. É claro que tais bancas, tais avaliações trazem sempre um pouco do ranço do julgamento. Julga-se a partir de um ponto de vista já estratificado, de uma escolástica antiga ou atual, ou julga-se a partir de um senso comum qualquer, dependendo do lugar em que se está. Como fazer então para, ainda chamados ao julgamento, fugir-se de tais métodos de aprovação ou reprovação? Ou ainda, como, depois de todas as amarras rompidas nas práticas artísticas libertárias do século XX, exercer a função, se não de julgar, de acompanhar um trabalho de composição?

Ao se questionar a idéia de avaliação duas vertentes vêm à mente do compositor contemporâneo. De um lado todas as heranças dos movimentos libertários na arte, por outro a herança do rigor das novas e velhas escolásticas, que geralmente favoreceram o florescimento de mecanismos de julgamento bastante impessoais e com vocação universalista. E ainda neste sentido, é sabido que até mesmo as práticas mais libertárias – a arte dos surrealistas, dos dadaístas, conceptualistas, letristas, situacionistas, a música aleatória, etc – tornaram presente uma certa relativização que fez do próprio de jogo de julgar impróprio. E mesmo no seio de tais movimentos artísticos não é raro o surgimento de sistemas de juízo, mesmo que juízo às avessas: são bastante conhecidas as práticas de censura entre os artistas do círculo surrealista de Breton e de Cocteau, por exemplo1.

Não se trata, aqui neste texto, de retomar ou de rejustificar os mecanismos de julgamento, ou de encontrar razões mais precisas para se continuar um juízo mais brando, senão justamente o reverso desta moeda, o de se buscar um viés em que, não mais na condição de juiz, o trabalho de professor mude de posição e ao mesmo tempo não sucumba ao valetudismo. O ponto de partida não é a saudade do juiz, mas o convívio atual com o apagamento de parâmetros de leitura e análise musical fora dos sistemas estratificados pelo serialismo e herdeiros, ou pelas práticas mais passadistas que ainda têm nas regras da tradição modal-tonal seus métodos de julgamento. A questão se faz presente, pois disfarçado no apagamento dos mecanismos de leitura sobrevêm o passadismo travestido de permissão.

Lembrando o trabalho de um compositor como Olivier Messiaen, a quem nunca faltou rigor, como se manter a prática saudável de desfazer

o borrão de situações de “permissionismo” e fornecer parâmetros para que um estudante saiba em que ponto está no desenvolvimento de ferramentas para aquele que escolheu como campo de atuação?

No que diz respeito à avaliação composicional, não é distante o interesse e nem o processo de reciclar ou reinventar modos de julgamento, cabendo mesmo a uma revista como a Analyse Musicale, ter lançado nos idos do ano de 1990, um número especial intitulado “Évaluation et analyse”, trazendo artigos de compositores, professores, musicólogos, sobre a questão. Constantemente é citado o artigo de Carl Dalhaus “Analyse und Werturteil” – análise e julgamento de valor – como uma busca de justificativas estéticas para compreender e avaliar a produção musical. Não é em um terreno diferente que o IRCAM publicou em 1998 um pequeno livro sobre o ensino da composição – Enseigner la Composition – organizado por Peter Szendy. E poder-se-ia acrescentar que não respondem a uma razão diversa as inúmeras publicações de compositores justificando seus métodos de trabalho desde a querela Artusi-Monteverdi na virada do XVII para o XVIII até as obras mais recentes sobre a música espectral, sobre sistemas de difusão de audio-digital etc.

De ponta a ponta, cada um desses trabalhos elenca suas estratégias de defesa ou ataque, seus modos de criar modos transcendentes de avaliação e juízo de valor. Um exemplo interessante deste mecanismo de qualificação e desqualificação traz a rubrica da ciência, não muito diferente do trabalho de Artusi em Delle imperfettioni della moderna musica no ido1600, quando, e por trás de apanhados sobre cognição humana justifica-se o por quê de uma música ser bem ou mal recebida por um público2. “Ah! O público, este ser amorfo que nos persegue” (como quase clama Tarkovsky em “o autor em busca de um público” no seu livro Esculpir o tempo) 3.

Ora o público, ora o especialista, ora a cognição humana, e ainda há quem diga que os cães ouvem melhor a música serial de Webern do que os humanos; o que tal questão esconde? Talvez a presença do que Nietzsche reformulou como sendo o niilismo: primeiro substituir a vida por uma idéia essencial, depois por um deus, depois por um valor moral, e no fim, por uma razão científica. Na música do século XX tal forma de niilismo emaranhado ganhou sobretudo a fórmula do serialismo como método e prova4. Passar pelos quadros numéricos do serialismo para muitos foi a garantia de um novo instrumento de validação e avaliação de trabalhos visto que sem um método não há o que corrigir e este é o problema do padre, do juiz, e por conseqüência do professor. Mas o avesso desta moeda, abolir toda medida, não garante livrar-se da medida como julgamento; mergulhar no sem medida nenhuma, no grade devaneio, no retorno do mesmo disfarçado de diferente, não nos levaria a grande termo por simplesmente afirmar uma nova forma de poder e não a fabulação de uma potência5.

Para escapar à mecânica do juízo talvez tenhamos que mudar algumas perguntas. Não bastou apenas suprimir o juízo antigo para restaurar um juízo às avessas, embora mudar a pergunta passe sem dúvida por este momento anterior de inverter as normas. É a partir das barreiras rompidas, das portas abertas para trabalhos criativos – slogan constante de uma lista infindável de textos, manifestos, entrevistas relativas ao experimentalismo artístico no séc. XX – que se dá a pensar uma outra forma de colocar a questão e reencontrar um modo de discernimento das qualidades em um trabalho e outro. E tal passo não se dá sem ter em mente as conquistas, os passos andados da arte de experimentação.

Localizando a matriz do julgamento estético, ele de uma maneira geral está no “o que é isto?”, “o que é o certo e o errado nisto?”. O ser da música. Um ser antes de qualquer coisa funcional: a música é analisada sempre em função de uma época, de uma escola e do “momento histórico”. Ou seja, a questão “o que é” apenas serve a armar mais e mais os mecanismos de julgamento, facilitar o trabalho do juiz localizando sempre a adequação do que julga.

Uma nova pergunta se faz necessária. Nos auxilia bastante aqui para pensar esta relação do homem com a chamada música, a proposta que

o filósofo francés Gabriel Tarde se propôs ao pensar sua microsociologia. Com base na ciência do final do século XIX, Tarde se desfaz da idéia de Ser para colocar a de Ter uma propriedade e a partir daí não se perguntar mais “o que é” mas sim “qual a propriedade disto”, “o que isto pode”. No mundo físico químico os elementos têm propriedades: forças de atração, repulsa, transformação, deformação, decomposição. Um objeto tem ou não tem a propriedade de causar a sensação de frio ou calor. Um átomo pode ou não pode juntar-se a outro.

Com isto, não se trata de encontrar parâmetros para o julgamento, mas de pensar a avaliação como: avaliação das forças contidas em um trabalho. Quais as forças de um determinado trabalho? E dentro do campo que desenha tais forças, quais aqueles elementos que diminuem, diluem e quais aqueles que poderiam contribuir a manter ou aumentar tais forças? O que uma música pode?Quais sua propriedades composicionais? Não mais “sua qualidade”, no singular, mas “suas qualidades”, no plural que relaciona suas partes internas6.

É neste sentido que não se trata apenas de suspender o julgamento ou de buscar um novo mecanismo de julgamento, longe de qualquer juízo estético, e sim de se exigir uma outra forma de rigor e presença daquele que não mais avalia, mas analisa e acompanha. Não é fácil para um professor de composição observar e destacar na leitura de uma partitura o que o aluno pretende realizar, em que estética, a que escola pretende ou está se filiando, e notar também se, dentro desta escola, se ele está realmente encarando problemas ou simplesmente deixando as coisas de lado, de modo “blasé”; destacar em uma análise quais são, dentro deste campo bem delimitado que é o campo de composição, as forças em jogo e o que as potencializa. Trata-se de toda uma outra forma de leitura. Não que nunca tenha existido. Não são poucos os relatos de artistas que realizaram e enfatizaram os pontos fortes na criação de seus alunos ou de colegas. Cito aqui a lembrança de algumas cartas de Louise Bourgeois para uma de suas colegas no início de sua carreira ou ainda o depoimento de Brian Ferneyhough e György Ligeti no livro de P. Szendy.

Por mais paradoxal que se pareça não se trata de se desfazer de um rigor, de se desfazer dos parâmetros de leitura, mas de fazer com que eles advenham da partitura, como se ali estivessem pela primeira vez. Uma leitura imanente, que se dá dentro da partitura naquilo que ela espelha do embate de sua escritura7. É neste sentido que parâmetros comumente empregados pelos juízes como história, momentos históricos, curso da história, pertinência estilística, adequação a uma técnica (aparentemente imanente), são noções que apenas afastam da imanência do plano de composição. O objeto é o plano de composição, o que está na partitura, na bula de explicação, na gravação, no plano eletroacústico, no desenho de patches, no título. E não a explicação e adequação de seu papel que lhe vem anexa. Se o trabalho é, por exemplo, conceitual, é claro, tal explicação faz parte do plano e deve vir escrita em algum lugar, mas ela não vem anexa como dando sua adequação. O “silêncio” de Cage não nos interessa assim por sua adequabilidade a um certo momento – por mais que tal papel lhe seja sempre imputado. Vale sim pela força que ainda possa trazer de questionar o lugar da música e esta força não lhe é anexa, está alí no acoplamento “silêncio-sala de concerto-ruído”. No avesso do conceito, o plano de composição dodecafônico, ele não pede uma explicação, pede uma escuta e isto deveria ser o suficiente. Com isto, uma análise de obra dodecafônica não deveria bastar-se na observação à série. O que é imanente não é a idéia de série, esta é apenas uma régua que garante provisoriamente alguma consistência, algum amálgama no plano das alturas. Poderíamos pensar aqui o imanente através de uma redução à objetos indefinidos (por mais contraditório que este jogo pareça). Reduzir a elementos extremamente simples: ritmo, ressonâncias, contrações e expansões…jogos de reiteração. Afinal de contas é isto que está por traz do que chamamos de sistemas; tonal, modal, atonal, atonal livre, serial, hiperserial, espectral, minimal etc.

Desta redução-não-redutiva vale deduzir alguns pontos que poderiam ajudar na leitura de uma partitura limitando-nos ao plano de composição – encontro do plano operacional do trabalho do compositor, do trabalho da escuta e do trabalho de uma época:

o conceito como problema de criação e não como resolução mágica.

O que fazer então com tais pontos? A primeira questão a se observar é o quanto os problemas são enfocados. Ora, cada vez que se começa a escrever uma música uma série de problemas vem se estabelecer, como já anunciava A.Schoenberg na introdução de seu Harmonia8. Cada nova nota ou timbre, ou objeto sonoro, lançado no papel ou no suporte analógico-digital, traz consigo pequenos problemas: problemas que de certa maneira dizem respeito à noção de consistência. Ou seja, questões relativas não apenas ao amálgama dos elementos, ao modo como se fundem, se separam, se chocam, se complementam mas também ao universo com o qual dialogam e que, sendo da ordem da leitura, muitas vezes passa desapercebido ao compositor. O que quero dizer com isto é que ao encarar-se uma composição, emergem problemas de textura, de figura, de gesto, de tempo e de conceito. É aqui que encontramos um ponto no qual o analista pode talvez contribuir com o trabalho em andamento, visto que o compositor tem aí dois caminhos; enfrentar o problema e resolvê-lo, ou passar ao largo sem notá-lo, ou simplesmente notá-lo, mas contornálo. E a principal questão aqui é: o compositor, ele notou o emergir de tais problemas?

Quando Leonardo da Vinci se propõe a fazer uma estátua do Duque Sforzza, o que ele enfrenta? Problemas técnicos: falta-lhe cobre suficiente, é necessário pensar como o cavalo pode parar empinado sem que o corpo todo se apóie na cauda (prática até então bastante empregada), como fazer para que ele flutue apenas apoiado nas duas patas traseiras e não caia. É todo um problema de engenharia, de desenho, de cálculo de forças, para levantar o trabalho. Quando Messiaen se propõe a cantar com os pássaros: como retomar o canto dos pássaros atravessado pelo ouvido humano, como trazer para a orquestra, ou para o piano, a força do canto dos pássaros em um bosque. Messiaen cria a partir deste ponto uma verdadeira engenhoca de transformar cantos de pássaros, esgarçando os micro-intervalos melódicos dos pássaros para nosso sistema temperado. O mesmo acontece com Villa Lobos, com Varése, com Ligeti. Uma idéia composicional não é uma solução, mas um caldeirão de problemas que pedem para ser resolvidos. É o que acontece com Schoenberg, com Stravinsky, com Dukas, ao ter de enfrentar o atonalismo.

Esta noção de problema se distingue daquela que diz que todo problema já anuncia em si sua resposta. Ela não traz resposta, mas abre problemas na composição. Diferentemente do exercício de estilo9. Este sim, o exercício de estilo traz um problema que tem uma solução, e espera-se daquele que se exercita que consiga um bom resultado, a boa resposta para seu problema. Vale distinguir, por tal razão, a idéia de campo problemático da noção de problema a ser solucionado. O que vinha relatando anteriormente sobre o problema aberto pela nota lançada na partitura (ou na improvisação) diz respeito a campos problemáticos, um campo em que se abrem uma infinidade de “soluções”, muitas vezes inusitadas e apresentando-se em uma primeira vez, e não ao problema que pede um tipo específico de resposta, como no exercício. Exercício estilístico e composição, dois campos bastante distintos, embora se toquem em alguns pontos técnicos. Uma interessante imagem para se pensar este campo problemático e o modo como se dá é a de jogo ideal. O que vem a ser este jogo imaginado por Gilles Deleuze em Lógica do sentido? Um jogo sem regras preexistentes, em que cada lance inventa suas regras diferentemente do jogo predeterminado. Jogo do deus Aion, infinitamente subdivisível. Não o acaso absoluto, a lama pura e simples, mas um acaso insuflado, pois nele persiste sempre a potência de continuar jogando, a potência de criar um plano. Não se trata de um jogo benevolente em que todos são vencedores, mas um jogo sem vencedores e vencidos. E esta idéia de jogo ideal talvez seja justamente aquela que se aplique à arte10.

Falemos então mais diretamente da leitura da partitura, desta partitura que é a primeira vez que vem à leitura. Se um primeiro passo na leitura de um trabalho composicional é a leitura daquilo que chamamos de material, os elementos um a um de uma composição, outro ponto importante é aquele que se localiza na articulação desses elementos. Ora, tanto em um momento quanto noutro encontramos o ato de composição, pois no corpo do material também sobrevêm articulações, micro-articulações. Os rascunhos mostram isto: as diversas pequenas versões de um tema, a fabulação de frases, de seqüências rítmicas.

E vale aqui distinguir que um trabalho que envolve um só elemento traz todo um quadro de problemas particulares, bastante distinto daquele em que figuram dois ou mais elementos e assim por diante. As questões que nascem do jogo de variações são de ordem totalmente distintas daquelas provenientes de um desenvolvimento do tipo genético encontrável em Debussy11, e ainda distintas daquelas de um jogo de alternâncias e entrelaçamentos como temos no Stravinsky da Sagração. Citaria aqui como exemplo, não apenas a Sagração, mas em Debussy os primeiros prelúdios do livro I de Prelúdios onde

o compositor trabalha constantemente com elementos-personagens que são expostos passo a passo em um jogo de expansão lenta.

Eis então um ponto interessante a ser localizado em uma partitura: onde nascem os problemas, como eles são encarados e resolvidos pelo compositor? E aqui o professor de composição não é mais um juiz, mas alguém que enfrentou problemas e que pode simplesmente apontar alguns caminhos, situações, oportunidades; trazer à baila suas tentativas. Citaria aqui um aluno de composição que mostra um trabalho decorrente de improvisação livre a um professor, e a visão necessária deste segundo para o observar os primeiros compassos e observar o quanto uma estratégia totalmente diversa daquela empregada pelo aluno – como deduzir um algoritmo a partir da improvisação – poderia contribuir para uma maior agilidade e fluência de escrita (ou vice-versa).

Mas existe um ponto em que a posição do professor, ou do avaliador, aparentemente não funciona. Quando a coisa não funciona? Quando o aluno é um “Gênio” e apresenta um desses trabalhos que o próprio autor diz que “tanto-faz”; uma página em branco como protesto contra a matança das baleias; uma música breve, dessas que têm apenas um acorde de três notas (“referência à tríade tonal”); uma outra que traz apenas um dó 20 para ser tocado por trompetes imaginários; uma música sem sons. Que leitura elas pedem? Não se trata de ler o material, os elementos, os rascunhos, mas até mesmo tais situações têm seu lugar. Situações como esta têm sua matriz na arte conceitual e nos colocam a seguinte questão: em uma obra conceitual, que contesta sua existência no mundo, como realçar suas forças e como notar suas potências? Como se localizar neste campo que muitas vezes é o do “achado”, da “grande sacada”, que muitas vezes beira o senso comum (a música sem som, sem partitura, sem palco; o regente sem orquestra, a cantora sem voz; versões musicais da pintura sem imagem, do branco sobre

o branco etc.etc.etc.)? Volto aqui à idéia da composição como um campo de problematizações. Não coube apenas a Cage propor 4:33’’ de silêncio; havia alí um problema composicional, onde estaria o problema composicional de Cage? O silêncio é um conceito totalmente incerto em música, não se define o silêncio. Mesmo partindo da idéia de uma quadro em branco de Robert Raushenberg, Cage teve de pensar a situação de concerto, os três movimentos, a performance de David Tudor em Woodstock, ou seja “como tal campo foi encarado, foi trabalhado?” O do acoplamento de um conceito com outro conceito e não mais a idéia de se criar uma casa de sons ou uma casa de imagens, mas uma casa de sons feita a partir de conceitos – não é sempre que se consegue tal junção.

Uma composição que se proponha um campo de improvisação12 se inscreve em um campo de problematizações distinto daquele da partitura ou do conceitual. E é claro que neste campo do conceito podemos pensar um pouco na pertinência das questões que levanta e de suas situação como grande “sacada”, ou como mero dejá-vu. Trabalhos deste gênero que pedem pela originalidade geralmente pedem também o julgamento: pois precisam rapidamente de um juiz que diga se ele é original ou não? Mas como evitar este julgamento mesmo quando o trabalho pede? Sobretudo porque parece estarmos diante de um paradoxo: trabalhos que clamam pela originalidade pedem justamente um juízo. Mas não é tão paradoxal como parece se estiver claro o modo de acoplamento que elaboram e a vitalidade das forças que agenciam. Mas de um modo geral sucumbem ao tentar sobreviver apenas de sua contextualização, são como as opiniões de época que têm momento e lugar específicos que lhes são anexos, o senso comum de cada época. Domínios anexos e transcendentais, que pretendem sobreviver mesmo que fora do plano de composição. Ou seja, como qualquer obra de opinião, dialogam no campo da opinião não constituindo um plano de composição e sim uma estratégia de comunicação. É neste sentido que Maurice Blanchot distinguia o livro não literário e o livro literário: o primeiro é aquele que já vem sempre lido, como em um manual, o leitor apenas realiza a possibilidade de compreender corretamente ou não, enquanto o segundo, este é sempre lido por uma primeira vez, são sempre novos problemas e eles não tem solução, eles abrem-se para relações13.

Nesta linha de pensamento poderia dizer que a Sagração da Primavera, ou o Uirapuru, são fatos de época. Sim, são fatos de época, porém contém, digamos duas metades: o fato de época e o plano de composição e é este segundo o lugar em que os problemas nascem e tentam ser resolvidos sem o auxílio de um domínio transcendental que os explique ou os contextualizem. Mesmo que salientemos nos cursos de música a importância da história, o momento da escuta, este não é apenas conduzido pelos valores anexos às obras. O momento da escuta é um momento de embate e é com este embate que se lida quando se lê uma partitura por uma primeira vez. Recolocar a questão: ao invés de “o que quer o compositor?” Perguntar-se “como o compositor resolveu os pequenos problemas que se anunciaram em sua escrita?”. Neste sentido o jogo de avaliar uma composição deixa de ser o de notar a sua adequabilidade, ou a adequabilidade de seu material a uma época, uma escola, uma tendência, mas de observar um modo de trabalho e o quanto este modo frutificou ou pode frutificar, quais os dedobramentos que aponta, quais os que segue, quais os que abandona. Explico-me melhor, não se trata de ver se uma composição segue ou não os preceitos de uma teoria (como todas sempre rançosa, pois sempre pertence a um passado e implica sempre a idéia de cópia), mas se uma composição se dispõe ao trabalho e enfrenta seus problemas como modo de operacionalizar descobertas. Interessante notar como os domínios anexos, as explicações como razões de época, valor histórico, articulam-se sempre com alguma espécie de fascismo.

Mas mesmo aqui vale mais uma questão àquele que se depara com a leitura da partitura, com a tarefa de acompanhar um trabalho de composição. Durante um longo tempo no campo da criação artística o peso da leitura e da avaliação esteve em observar os mecanismos para criar unidade empregados em uma obra. Tem ou não tem unidade? Tal discurso é de longe conhecido pelos brasileiros em uma série de escritos que tiveram por objetivo desfazer a força da música de Heitor Villa-Lobos,sobretudo na escuta bastante defasada de um Oscar Guanabarino em seus artigos no Jornal do Comércio14 na década de 30, e por que não citar também as críticas de Mário de Andrade ao falar em “certas faltas de lógica”, publicadas posteriormente em Música, doce música ambas conduzidas de um lado por alguma escolástica e de outro pela defesa de algum território de ação15. A questão da unidade é quase que um artifício obscuro de tão claro que parece ser. Elementos reiterados, elementos variados, seqüências de lógica numérica, muitas vezes garantem a unidade. No entanto, a unidade também deve ser vista como um problema específico. Quando um campo problemático, um plano de composição chama a atuar a questão da unidade? Após a série de proposições composicionais do século XX não é mais possível ter a unidade como uma obrigatoriedade. E o mesmo vale para noções como clareza, comunicabilidade, atualidade. Uma obra ser clara ou comunicável, tudo isto são valores de julgamento estético-musical, e se colocam sempre sob o olhar de alguma tendência musical. E a situação de sala de aula coloca aí um problema: os alunos nem sempre tem a mesma tendência composicional que o professor…e quando têm são epígonos, más cópias.

Vem então ao debate um outro modo de se pensar, distante da noção de unidade: a idéia de consistência. A consistência é simples e não se restringe a uma ou outra tendência composicional ou criativa. Há consistência em Bach ou em Cage, em La Monte Young ou em Schoenberg. O que vem a ser a consistência? Pensemos na idéia simples da construção de uma casa. Não a casa do arquiteto, do projeto, mas a do aconchego. Nela as partes entre si são construídas como vibrações, movimentos de vai e vem. Nascem daí os objetos que ressoam de algum modo uns nos outros; ressonância que não pede explicação teórica para acontecer, ela é, digamos, quase que direta no modo como acopla seus personagens, ritmos, lugares – se bem que para cada um, em cada lugar, em cada época, sobrevivem alguns modos provisórios de maior ou menor certeza, e não se trata aqui de reinventar uma forma ideal de acoplamento. Uma nota ré ressoa em outra nota ré ou em um acorde que não tenha a nota ré16; é simples. Uma seqüência rítmica ressoa em uma que se assemelhe a ela, um som em outro som, e assim vai. Ação e reação na forma de ressonância. Porém as músicas não são feitas só de elos, existem também os cortes. Os cortes; eles também jogam com ressonâncias mas fazem nascer um outro tipo de movimento. Um corte põe em ressonância objetos totalmente inusitados. E fazer um corte em uma música é toda uma arte específica. Basta seguirmos a história da sonata no barroco italiano para ver

o problema do tempo versus atenção do ouvinte servindo como lugar para se pensar a seqüência entre as partes, para se pensar a justaposição entre movimentos lentos e rápidos, campo problemático este bastante distinto daquele da música na igreja, lugar em que não se fala em um público, mas em fiéis, ou mesmo do tempo nos mantras budistas.

Para finalizar então este curto artigo, à guisa de uma conclusão, cabe realçar que existe um grande salto entre ler uma obra terminada, em um concurso, por exemplo – se bem que concursos sejam sempre o lugar do julgamento, lugar que dificilmente deixa de ser o de vencedores e perdedores–, daquela situação enfrentada por um compositor que acompanha o trabalho de seus alunos, que acompanha o processo de criação. Os dois campos podem, no entanto se cruzar, quando se busca um processo na leitura de uma partitura já acabada.

Ainda no sentido de finalizar, salientamos diversas vezes que na idéia de campo de composição, ou campo problemático imanente, não é fácil a leitura, pois não existe aí a muleta de um sistema a ser imposto. Nem o sistema rigoroso de uma obra tonal ou atonal serial, nem o sistema aparentemente sem rigor da música aleatória. Levar em conta o campo problemático, o plano de composição, não é tarefa simples, com isto, é possível ao menos simplificar um pouco as coisas propondo uma temática comum ao se trabalhar com um grupo de alunos, como relata György Ligeti em seu artigo no livro de Szendy17. No seu artigo Ligeti fala de alguns problemas estímulos para que os alunos trabalhem suas composições. Não são exercícios no sentido do exercício de estilo, e sim ensaios, tentativas de enfrentar problemas, de enxergar os problemas, de circundá-los e extrair pequenas e transientes soluções (aliás, Schoenberg também falava em soluções transientes na introdução de seu tratado de harmonia). Se

o quadro colocado por Ligeti é aquele que favorece o acompanhamento dos alunos de composição pela temática comum, objetivo comum, outro fator relevante é o de se acompanhar o processo de composição como um todo e não apenas como um resultado, visto que esta última situação acaba sempre favorecendo julgamentos.

Por fim, é importante dizer que tais estratégias, tais colocações de mergulhar-se no plano de composição e não mais de valer-se de muletas ditadas por uma ou outra tendência composicional seja das velhas, seja das novas escolásticas, pede um tipo de professor um tanto quanto complexo. O compositor-professor deve estar munido de um tanto de técnicas, de um tanto de conhecimento analítico de partituras, de um repertório musical de amplo espectro, âmbito este que só pode ser parcialmente coberto com passeios constantes pelas áreas as mais diversas como a etnomusicologia, a harmonia (do canto gregoriano à música mais recente das ruas e das salas de concerto), a filosofia, a literatura, música e tecnologia, cinema e a mais recente produção musical. E aqui, talvez o nome que nos venha mais imediatamente à cabeça seja o de Olivier Messiaen.

Notas

1 A respeito dos movimentos libertários no século XX ver: Home, Stewart. Assalto à cultura. São Paulo: Conrad Livros. 1999; Duplessis, Yves. Le Surréalisme. Paris: PUF. 1954. 2 Lerdhal, Fred. “Constraintes Cognitives” In: Contrechamps, nº 10. Lausanne: L’Age d’Homme 1989. 3 Tarkovski, Andrei. Esculpir o tempo. trad.bras. Jefferson Camargo. São Paulo: Martins Fontes. 1998.

4 Beaulieu,Alain -“L’art figural de Francis Bacon et Brian Ferneyhough comme antidote aux pensées nihilistes” in: Canadian Aesthetic Journal, vol. 9. disponível em: http://www.uqtr. ca/ae/vol_9/nihil/beaul.htm.Acessado em 20/02/2005.

5 Nietzsche, F. Além do bem e do mal. Trad.bras. Paulo C. Souza. S.Paulo: Cia das Letras, 1992. 6 Tarde, Gabriel. Monadologia e sociologia. Trad. Bras. Tiago Themudo. São Paulo: Vozes. 2003.

7 Embora fale aqui de partitura, não há nenhum privilégio quanto à música notada e aquela de tradição oral ou eletroacústica ou improvisação livre. A noção de notação, de partitura é empregada aqui em um sentido bastante amplo, que envolve desde a partitura mesmo (o papel) até aquela partitura oculta em uma improvisação de jazz (espécie de hiperpartitura que

está por traz dasmais infindáveis possibilidadesde variação e improviso).

8 Schoenberg, Arnold. Armonia. Trad. esp. Ramon Barce. Madrid: Real Musical. 1974. 9 Não confundir o exercitar-se de um compositor, todos seus cadernos de ensaios, tentativas,

esboços, estudos com o exercício de estilo que tem um objetivo de adquirir uma técnica específica: exercícios de harmonia, de música serial, de espectralismo, etc.

10 Deleuze, Gilles. Lógica do sentido. trad.bras. Luis Roberto Salinas. São Paulo: Perspectiva. 2000. p. 60-68.

11 Ferraz, Silvio. “Composição por personagens: a escrita de Casa Tomada e Casa Vazia”, In: Em Pauta. Porto Alegre: UFRGS. 2004. Observe-se em Debussy o modo como cada componente (que podemos associar a personagens) ganha uma espécie diferente de desenvolvimento que chamamos aqui como “genético”, ou seja, um desenvolvimento em que cada nova situação é um novo desdobramento da anterior, seja num objeto totalmente distinto, seja no objeto primeiro acrescido de novas coplas ( a este respeito ver também a noção de forma comentário em: Messiaen, Olivier Techniques de mon langage musicale. Paris: Leduc. 1940.

12 A improvisação implica a questão do solfejo. Não estando mais diante de uma partitura, mas diante de uma amostra sonora gravada ou ao vivo, mesmo assim sobrevém uma “partitura”, ou seja, um solfejo de objetos. Sobre tal questão ver: Costa, Rogério M.. O músico enquanto meio e os territórios da livre improvisação. Doutorado. PUCSP. 2003. Ver também: Costa, Rogério M. “O ambiente da livre improvisação: referências para um campo de consistência” in Anais XIV Anppom. Porto Alegre: Anppom. CDROM. 2003.

13 Blanchot, Maurice. L’ espace litteraire. Paris: Gallimard. 1955. p. 256.

14 Cf. Mariz, Vasco. Heitor Villa-Lobos Compositor Brasileiro. Editora Itatiaia Ltda, 11. ed. Belo Horizonte: 1989.

15 Andrade, Mário de. Música, doce música. S.Paulo: Martins Editora. 1976. p. 154.

16 Na Sequenza IV para piano solo de Luciano Berio, o compositor sustenta acordes com o Pedal de sustentação (ped.III) elhe contrapõe sequências rápidas de notas que não contém as notas do acorde. O mesmo recurso é empregado pelo compositor na parte de piano de O King.

17 Ligeti, G. “Des nouvelles voies das l’enseignement de la composition”. In: Szendy, P.

Enseigner la composition. “Les Cahier de l’IRCAM”. Paris: L’Harmattan/IRCAM. 1998.

Referências Bibliográficas:

ANDRADE, Mário de. Música, doce música. S.Paulo: Martins Editora, 1976.

p. 154.

BEAULIEU, Alain. L’art figural de Francis Bacon et Brian Ferneyhough comme antidote aux pensées nihilists. In: Canadian Aesthetic Journal, vol.

9. Disponível em: http://www.uqtr.ca/ae/vol_9/nihil/beaul.htm. Acessado em 20/02/2005.

BLANCHOT, Maurice. L’ espace litteraire. Paris: Gallimard, 1955.

COSTA, Rogério M. O ambiente da livre improvisação: referências para um campo de consistência. In: ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 14. CDROM, 2003. Anais do... Porto Alegre: UFRGS, 2003.

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Silvio Ferraz – Compositor e pesquisador. Professor de composição e harmonia no depto. de música do Instituto de Artes da UNICAMP e do Programa de Comunicação e Semiótica da PUCSP. Autor de Música e Repetição: a diferença na composição contemporânea (S.Paulo: EDUC. 1998) e Livro das Sonoridades (Rio: 7 Letras. 2005).