Artigos Científicos

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 302p., n.2, 2012

Agrupamentos Sonoros Plenos na Música de Simultaneidades Acústicas e Estruturais

Marcos Fernandes Pupo Nogueira (UNESP, São Paulo, SP, Brasil)

mpuponogueira@uol.com.br

Resumo: O presente artigo reflete sobre os conceitos de linearidade, espacialização e complexidade acústica na definição dos agrupamentos sonoros como crítica ao conceito linear da fraseologia, principalmente quando aplicado à música de textura imitativa ou de simultaneidades complexas. Toma como exemplos as obras de Bach, de Josquin des Prèz e um fragmento de “Lontano”, de Ligeti, para estudá-los em duas dimensões distintas, simultâneas e inter-relacionadas: a dimensão acústica, com toda a sua complexidade espectral, e a dimensão relacional, que estabelece a interação entre as figuras em vozes e camadas de texturas com algum tipo de simultaneidade acústica e estrutural. Palavras-chave: Complexidade acústica; Linearidade e agrupamentos sonoros; Contraponto imitativo e texturas complexas.

Full Sound Groupings in Acoustic and Structural Simultaneity Music

Abstract: The present article reflects about the concepts of linearity, space and acoustic complexity in the definition of sound grouping as a criticism to the linear concept of phraseology mainly when applied to the music of imitative texture or of complex simultaneities. It takes as examples works by Bach, Josquin des Prèz and a fragment of “Lontano” by Ligeti, to study them in two distinct dimensions, simultaneous and interconnected: the acoustic dimension with its entire spectral complexity and the relational dimension which establishes the interaction among the figures in voices and texture layers with some kind of acoustic and structural simultaneity. Keywords: Acoustic complexity; Linearity and sounding grouping; Imitative counterpoint and textural complexity.

O presente artigo refere-se ao estabelecimento das bases de uma reflexão teórica quanto à formação e definição de agrupamentos sonoros em texturas com vários componentes ou camadas. Para tais agrupamentos, entendidos como unidades básicas de uma estrutura musical, propõe-se não apenas a análise linear e temporal, mas estudá-los em duas dimensões distintas, simultâneas e inter-relacionadas: a dimensão acústica, representada pelos componentes sonoros sobrepostos com toda a complexidade espectral que implicam, e a dimensão relacional, que estabelece a identidade e interação entre as figuras presentes em vozes e camadas de texturas em que predomine algum tipo de simultaneidade acústica e estrutural. Nesta perspectiva teórica os agrupamentos são denominados ‘Agrupamentos Sonoros Plenos’.

A expressão Agrupamento Sonoro Pleno é usado para nomear estruturas musicais com algum grau de integridade entre todos os seus componentes acústicos, texturais e estruturais, e não somente os elementos melódicos e temáticos. Com esta terminologia procura-se evitar a conotação de linearidade, em geral relacionada aos termos tradicionais da fraseologia, tais como motivo, frase, período ou figura. O conceito de Agrupamento Sonoro Pleno põe em evidência toda a complexidade acústico-espectral dos sons que compõem qualquer agrupamento, assim como a espacialidade criada pela inter-relação oblíqua, vertical e de profundidade de seus componentes. O termo profundidade é usado aqui, em princípio, como sugerido em Berry: “uma dimensão adicional definida pelos níveis hierárquicos dos elementos-estrutura do primeiro plano das sucessões mais imediatas e detalhadas, ao plano de fundo mais remoto – o nível estrutural em que são discerníveis as linhas de sucessão mais amplas e genéricas” (BERRY, 1987, p. 249). O presente artigo apresenta alguns dos fundamentos da reflexão teórica e analítica que objetiva a conciliação de elementos acústicos e estruturais como fundamento dos agrupamentos.

Nos tratados tradicionais da fraseologia e morfologia, como os de Goetchius, Bas, Riemann, Leichtentritt, Reti e Schoenberg e, mesmo em alguns mais recentes, como os de

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 302p., n.2, 2012 Recebido em: 09/04/2012 - Aprovado em: 23/05/2012

Cooper e Meyer, Lerdahl e Jackendorff, e Temperley; constata-se a reduzida abrangência e a limitação estilística e histórica dos conceitos de fraseologia e morfologia musicais, especialmente quando aplicados à música composta por simultaneidades sonoras mais complexas texturalmente. Nestes estudos tradicionais, os elementos chamados fraseológicos definem-se fundamentalmente como linearidade, o que dificulta aplicá-los a texturas polifônicas, em especial a imitativa, ou que apresentem texturas complexas. A definição linear do agrupamento parece reducionista por desconsiderar que os agrupamentos estejam intrinsecamente associados à perspectiva harmônica, contrapontística e outras possibilidades texturais, e destas sejam inseparáveis. A importância que o conceito analítico e teórico da linearidade alcançou em música deve-se, provavelmente, a limitações do desenvolvimento da grafia musical da Europa ocidental. Neste sentido, cabe aqui um comentário de Trevor Wishart sobre o tipo de limitação que a grafia musical se impôs historicamente, por ter surgido quando a escrita estava há muito tempo consolidada e atuando extensivamente como controladora e normatizadora de quase todos os setores. Wishart defende como “tese fundamental deste sistema” o fato de a música ser, “em última instância, redutível a um número finito de constituintes elementares e com um número finito de ‘parâmetros’” (WISHART, 1996, p. 22). A forte proeminência dos fatores altura e duração, como os fundamentos da grafia, pode ter levado a uma restrição do conceito música aos elementos melódicos, harmônicos, duracionais e métricos. O provável motivo desta restrição, como sugere Wishart, se devia ao fato de a grafia musical ser destinada a servir de ferramenta da práxis, ou seja, como indicações práticas de execução musical, ficando à margem toda a complexidade textural, espectral e espacial, entre outros aspectos.

Agrupamentos Sonoros Plenos têm a missão mais abrangente de delimitar a periodicidade com a qualificação dos espaços, massas e linhas, de modo a possibilitar o convívio, mesmo que efêmero e virtual, com a concretude sonora da música. O conceito de periodicidade citado refere-se principalmente ao desenvolvido no estudo de Henry Pousseur, em que

o autor toma como base o fundamento físico acústico do som como elemento estético e estrutural da música, e que o movimento enquanto percepção do tempo é “fundamentalmente alternado” (POUSSEUR, 2008, p. 114). Na perspectiva fraseológica presente nos tratados tradicionais citados, a periodicidade na música homofônica está representada quase sempre pelo elemento melódico temático a progredir no espaço criado pelas harmonias. A sucessão linear melódica, assim entendida, resume a essência narrativa e em geral desconsidera os demais componentes texturais, mas o complexo musical como um todo, mesmo na música predominantemente homofônica, pode apresentar configurações mais diferenciadas e sutis.

No fragmento musical a seguir tomam-se os oito primeiros compassos da primeira parte e os cinco iniciais da segunda do Minueto da “Suíte Francesa nº 1”, de J. S. Bach:

Exemplo 1: Trecho do Minueto da Suite Francesa n. 1 de J. S. Bach

Pode-se notar a tendência de autonomia dos três componentes texturais, embora estes acabem convergindo métrica e harmonicamente a cada quatro compassos, configurando uma periodicidade tipicamente homofônica. No entanto, a autonomia citada indica uma clara tensão polifônica enclausurada na quadratura e que pode ser melhor observada quando se deixa um pouco de lado o condicionamento linear da grafia musical. Assim, nos dois primeiros compassos, a voz mais aguda contrapõe-se à do meio ao desenhar com suas seis colcheias, figuras ritmicamente divididas em dois grupos de três sons. A voz intermediária progride metricamente enquadrada no ternário proposto e, deste modo, pelo viés da simultaneidade, cria-se, na divergência dos acentos, uma poliritmia apoiada por um pedal de Ré na voz mais grave, definindo três velocidades sobrepostas no início do Minueto. Ao mesmo tempo, quando se observa as duas linhas mais agudas pelo ângulo da combinação de frequências simultâneas, nota-se a predominância acústica dos intervalos de sexta e terça entre as duas vozes que, somadas ao pedal, configuram uma textura acordal um tanto oculta, mas revelada na redução reproduzida no próximo exemplo:

Exemplo 2: Redução do compasso n. 1 e 2 do trecho da figura n. 1 (Suite Francesa n. 1 de J. S. Bach).

A redução apenas coloca em evidência, homofonicamente, a ressonância acústica de terças e sextas não tão evidente quando articulada na forma da rica simultaneidade rítmica da composição original. No entanto, é preciso cuidado com reduções, pois, enquanto esclarecem uma coesão que pode estar um tanto oculta pela conformação exterior, podem apagar ou desconsiderar a complexidade e diversidade dos elementos aparentes da superfície, empobrecendo a compreensão da música. A redução transcrita na Figura 2 desconsiderou temporariamente a bela angulosidade das rápidas mudanças do agudo para o grave por meio de uma sequência de figuras separadas por intervalos de quinta diminuta, sétima maior e quinta diminuta respectivamente – sequência melódica esta inteiramente combinada à conformação métrica já citada:

Exemplo 3: Sequência extraída do compasso n. 1 e 2 do trecho da figura n. 1 (Suite Francesa n. 1 de J. S. Bach).

A partir do compasso 9 a aplicação do procedimento do contraponto inversível não deixa dúvida quanto à presença de textura polifônica e as vozes trocam de função. A tensão polifônica latente do trecho manifesta-se pela simultaneidade de vozes, rítmica e metricamente contrastantes. O Minueto da “Suíte Francesa nº 1”, de Bach, é um bom exemplo do quanto os limites entre diferentes configurações texturais podem não ser tão definidos. Um dos objetivos da reflexão teórica e analítica que se propõe neste artigo é considerar sem prejulgamentos o espaço textural como um definidor de periodicidades na formação de agrupamentos.

Assim como os agrupamentos lineares, os Agrupamentos Sonoros Plenos também representam um fator essencial enquanto estruturas de discurso, mas, ao contrário dos agrupamentos fraseológicos, além de definição de contornos de frequência e ritmo, passam a demandar de seus componentes texturas mais complexas, interação temática entre as figuras nas vozes da polifonia e correspondências acústico-estruturais entre diferentes linhas ou camadas, para que possam ser captados pela inteligência. Tais agrupamentos não são, portanto, apenas redutíveis a linhas e abarcam uma simultaneidade sonora de alta complexidade acústica e estrutural.

As possibilidades que resultam desta espacialização apresentam-se a partir de uma mudança do enfoque tradicional fraseológico, na qual se abandona a perspectiva linear de progressão, mais ou menos articulada de segmentos melódicos, para considerar em detalhe

    1. o tecido contrapontístico, ou de texturas complexas, como um gerador de simultaneidades a produzir defasagens rítmicas e a diversidade da combinação de frequências e complexos espectrais.
    2. A base do estudo teórico dos Agrupamentos Sonoros Plenos aplica-se mais diretamente a texturas polifônicas ou complexas. No entanto, outro desafio teórico é determinar
  1. o quanto a textura acordal (contrapontística ou por blocos) pode apresentar também as duas dimensões referidas: a dimensão relacional e a dimensão acústica. Num fragmento musical homofônico acordal (por definição uma textura com grau baixo de diferenciação rítmica e melódica entre seus componentes) a dimensão relacional pode ser definida e representada pelas funções dos acordes; estes progridem dentro de um determinado quadro de referências (tonalidade, modo, conjuntos escalares, séries) para criar a lógica linear de seu desenvolvimento. Já a dimensão acústica define-se pela verticalidade, configurada por relações físico-acústicas e espectrais cujo resultado costuma ser chamado vagamente de ‘sonoridade’. Ao contrário da textura acordal, nas texturas imitativas por pontos de imitação e nas texturas fugais1, a dimensão relacional torna-se mais oblíqua ao gerar formas mais complexas de espacialidade, favorecendo relações entre figuras. Neste caso, a dimensão relacional ainda pode permitir, como na acordal, a análise harmônica do quadro de referências já mencionado, mas a dimensão acústico/espectral ganha complexidade e maior grau de mobilidade causada pelas defasagens duracionais e pela variedade de configurações dos sons das linhas em simultaneidade.

O exemplo seguinte (Exemplo 4) indica os compassos finais do moteto “Abasalon, fili mi”, em que Josquin des Prèz emprega um procedimento imitativo estrito. O texto do moteto se refere à passagem bíblica (Samuel, 2) em que David recebe a notícia da morte do filho, e inimigo, Absalon. O trecho base do moteto de Josquin corresponde ao lamento trágico de David; manifesta a intensa relação entre o significado das palavras descendam e infernum e o tratamento musical do texto na forma de arpejos que partem da quinta para a fundamental, tomando como referência as convenções da grafia musical numa progressão de ‘cima para baixo’. Texto e música estão aqui em perfeita fusão, cujo ponto de partida se dá no momento em que se instaura a contiguidade entre palavra e sua conformação musical a favorecer um tipo de metamorfose. Inicialmente, o elemento sonoro justifica-se a partir do sentido literário da palavra; em seguida a configuração musical assumida pelo agrupamento sonoro adquire uma projeção diversa da palavra falada e assume uma proporção métrica e duracional não necessariamente redutível à métrica verbal e se manifesta numa perspectiva textural ou tímbrica ausente nos fonemas.

A nova dimensão referida é fundamentalmente musical e se define por vários aspectos que se remetem diretamente às bases do objeto de estudo descrito neste artigo. No fragmento musical do moteto de Josquin (Exemplo 4), a utilização do procedimento imitativo cria naturalmente um fator relacional entre figuras distribuídas equilibradamente pelas quatro vozes. Pode-se avaliar este processo como um direcionamento à integração temática, como entendido por Rudolf Reti quando associa as técnicas de desenvolvimento da integração temática na música européia do século XIX à linearização do processo imitativo do Renascimento (RETI, 1951, p. 57-8). Também Irving Godt, teórico americano de linha schenkeriana, entende como integração motívica o contraponto de motetos de Josquin ao afirmar que alguns deles, aqueles compostos sem cantus firmus: “podem ter usado a técnica da integração temática ou motívica de forma não fundamentalmente diversa dos processos temáticos posteriores” (GODT, 1977, p. 264). De modo geral, estas apreciações analíticas estão mais interessadas em localizar as origens dos procedimentos de integração temática de períodos históricos e estilísticos relacionados à música tonal. Aqui, no entanto, trata-se da própria essência do pensamento polifônico imitativo em seus próprios termos, aspecto fundamental que não deve ser desconsiderado na análise dos agrupamentos. A textura contrapontística por pontos de imitação abre um espaço virtualmente tridimensional e pleno de relações intervalares e duracionais entre as vozes originadas pela simultaneidade. Nesse tipo de textura ocorrem conformações verticais e oblíquas definidas pela incidência de intervalos ou formações de acordes cuja ressonância é ampliada pelas defasagens rítmicas das imitações à oitava, à quinta e outros intervalos, resultando quase sempre numa variedade de níveis de densidade multivocais e rítmicas que definem a periodicidade dos agrupamentos de modo muito mais abrangente e musical do que os critérios sintáticos lineares.

Na Figura 4, que corresponde a uma transcrição moderna (GREENBERG, N. E MAYNARD, P. 1975), observa-se que do ponto de vista estritamente fraseológico a música acompanha a frase correspondente a sed descendam in infernum plorans, dividindo-a em três agrupamentos menores. Os dois primeiros correspondem ao padrão melódico reiterado dos arpejos já citados e aplicados respectivamente às expressões sed descendam e in infernum. O terceiro corresponde a uma nova configuração textural, melódica e harmônica para

o verbo plorans.

Acusticamente o procedimento imitativo cria, por sua própria natureza relacional entre as vozes, ao menos dois tipos de resultantes: a primeira, de reforço de ressonância, quando da imitação à oitava e com resposta imediata como um stretto (com as duplas Superius e Tenor e Bassus e Altus); a segunda, quando as quatro vozes imbricam seus acordes arpejados (sibM-mibM-labM-rebM).

Nos dois fragmentos transcritos em seguida (Exemplos 5 e 6), as barras de compasso presentes na edição utilizada foram retiradas não apenas por um procedimento historicamente mais adequado quanto à grafia da época da composição, mas, para evidenciar com maior clareza a ideia da defasagem com função de ressonância, no primeiro caso, e quanto ao imbricamento dos arpejos, no segundo:

A imitação à oitava destacada na Figura 5 não causa somente ressonância como se fosse um eco artificial, mas também pelos intervalos harmônicos que esta defasagem vai produzindo (quatro décimas, quatro oitavas e uma quinta) com tempos diferentes de permanência real (sem contar o tempo variável da ressonância natural do local). Numa livre apropriação conceitual de fundamentos da acústica pode-se observar que cada voz representa um processo ondulatório em que a primeira voz (tenor) corresponde a 1f e a que imita à oitava, 2f. Em razão da defasagem temporal ocorre também uma interferência relacionada à diferença de ângulo de fase, que tem como consequência o reforço harmônico de alguns intervalos já citados.

No Exemplo 6 a transcrição reduzida destaca a imitação à quinta, em que os acordes formados pelos arpejos se imbricam criando a progressão que percorre uma parte do ciclo de quintas e prepara a cadência final.

Considerando o fragmento na sua integridade polifônica, somam-se as ressonâncias das imitações à oitava e à quinta, e o resultado é uma textura rica de acordes sobrepostos e defasados a progredir lentamente.

Quando as vozes cantam a expressão correspondente à sed descendam in infernum, cada linha isoladamente apresenta dois pequenos agrupamentos: um para sed descendam e outro para in infernum. Isto se dá porque musicalmente ocorre uma repetição transposta, separada por pausa, mas quando todo o complexo textural entra em ação, há um só agrupamento em que até a pausa que separa os dois elementos sintáticos do texto desaparece em função dos imbricamentos. O resultado é uma progressão harmônica que se desenvolve sem interrupção. Na música para a última palavra do texto, plorans, ocorre uma diminuição da complexidade polifônica e relacional. Apenas o superius e o altus trabalham em contraponto, agora não mais imitativo, enquanto as demais vozes em notas longas pontuam a cadência final. Toda a passagem musical correspondente ao texto sed descendam in infernum define-se pelo lento deslizar contínuo, que parte de uma organização de frequências progredindo do agudo para o grave. Inicialmente o movimento é homogêneo, causado por um esquema relacional de figuras em perfeita simetria, mas para o plorans final, Josquin muda a densidade textural e a música arrefece até desaparecer.

Há pontos de contato da música de Ligeti com a de Josquin e sua época, e surgem as mesmas dificuldades quanto à análise de elementos morfológicos. Certos procedimentos advindos da polifonia imitativa sacra retornam numa dimensão que o compositor denominou de micropolifonia, na qual o elemento imitativo surge como uma referência a elementos fundamentais da polifonia sacra dos séculos XV e XVI. No fragmento da composição orquestral de Ligeti, “Lontano”, transcrito no Exemplo 7, as figuras possuem, comparadas à música sacra dos séculos XV e XVI, a mesma austeridade. Sua configuração rítmico-melódica (tetracordes descendentes) também é desprovida de individualidade e sem definição temática, como a que se observa no contraponto clássico presente em motetos, como o de Josquin.

Exemplo 7: Fragmento da Composição orquestral “Lontano” de Ligeti.

A micropolifonia privilegia uma textura definida por grande número de linhas horizontais (componentes) que se entretecem e formam um complexo textural aparentemente homogêneo e de altíssima densidade. As linhas individuais, em geral de pequena extensão intervalar, são compostas por figurações rítmico-melódicas repetitivas e neutras, ou seja, sem muita diferenciação. Segundo Paulo Zuben (2005), a textura resultante é um “aglomerado harmônico específico ouvido com uma constante movimentação interna”. Mesmo no moteto de construção imitativa do século XVI, como o de Josquin, pode-se notar que a presença de vozes em pequenas defasagens de tempo causa o surgimento de uma grande variedade de combinações verticais e oblíquas de intervalos. É exatamente esta variedade de intervalos e durações que produz uma velocidade interna maior do que a percebida no geral. Quanto ao “Lontano”, é na qualificação e delimitação da movimentação interna de seus componentes que reside a possibilidade de se encontrar periodicidade nas massas aparentemente informes presentes em várias obras do final do século XX e início do XXI, especialmente nas de Ligeti. As massas sonoras formam-se pela sobreposição de pequenas figuras descendentes, que progridem umas sobre as outras, defasadas por um tipo de serialização duracional – um cromatismo rítmico em que as figuras surgem com mínimas, mas constantes alterações rítmicas. O processo composicional de Ligeti em “Lontano” faz uso de linhas quase canônicas muito simples quanto às frequências, mas complexas e diferenciadas do ponto de vista rítmico, e extraordinariamente múltiplas. A individualidade de cada linha nunca é, como nota Reiprich: “muito pronunciada a ponto de perturbar o caráter homogêneo da massa” (1978, p. 168).

No exemplo anterior – apenas um minúsculo fragmento de “Lontano” – nota-se que há uma intensa movimentação de intervalos sobrepostos (uníssonos, segundas e terças). Esta movimentação rítmica, originada da combinatória dos intervalos da figura melódica, contrapostos entre si no processo micropolifônico, ocorre contra um tempo altamente distendido da massa textural. No moteto “Absalon” já se observa algumas dessas características, de fato propriedades da música de textura imitativa. No entanto, na composição de Ligeti as figuras tratadas de modo quase canônico possuem uma variedade duracional inimaginável no início do século XVI.

O processo gera um fluxo muito lento de transformações, que só alcança uma definição quando se analisam as variações de complexidade acústica causadas pelas modificações de densidade e também os movimentos em fase e defasagem, que organizam o trânsito das dissonâncias e consonâncias. Os agrupamentos só podem ser considerados como espacializações que se distendem e se contraem numa lenta velocidade de progressões de configurações espectrais. A aparente homogeneidade mencionada anteriormente mostra-se, numa audição ou análise mais atenta, rica em volumes de grande variedade de modelagens (agrupamentos) que desfilam por um universo de estimulante complexidade acústica.

Os fragmentos musicais analisados neste artigo possuem em comum algum tipo de simultaneidade de linhas polifônicas, independentemente da obvia disparidade cronológica e de estilos que apresentam, mas é exatamente a complexidade na sobreposição de suas linhas que em geral é desconsiderada quando da análise dos agrupamentos. Ao separar cada voz para analisá-las fraseologicamente, desaparecem todas as relações que a simultaneidade produz. Empobrecida, a simultaneidade fica reduzida, na maioria dos casos, à identidade e encadeamento linear dos acordes formados, e se distancia da complexidade textural da composição como um todo. Neste sentido, pode-se lembrar uma diferenciação sugerida por Walker, que considera a prática medieval do cânone como “um modo linear de pensar o contraponto imitativo”, pois conduz sem diferenciações o procedimento imitativo do início ao fim e frequentemente o apresenta somente em algumas vozes. Para Walker, o compositor do Renascimento, diversamente do medieval, aproxima-se de um procedimento fugal “ao conceber todas as vozes de uma só vez” e ao exercer “maior controle, tanto sobre a textura em qualquer ponto, quanto sobre a forma geral e o rumo da peça” (2000, p. 1 e 2).

Neste artigo tratou-se de alguns princípios de base para uma análise da integridade e complexidade textural de cada um dos fragmentos musicais indicados. Há, evidentemente, um desafio científico quanto à aplicação dos conceitos indicados, como o de adaptar ferramentas analíticas que combinem espectro sonoro e os elementos estruturais temáticos. É importante também associar às ferramentas analíticas tradicionais, elementos da física acústica aplicáveis à simultaneidade sonora que sejam eficientes para a compreensão do sentido acústico-musical da sobreposição de componentes. Essa perspectiva analítica, principalmente desde Helmholtz, vem estimulando reflexões que conciliem conteúdos técnico-estéticos da música com a ciência da acústica. As possibilidades sugeridas neste trabalho querem avançar na aplicação de conceitos da física acústica, tanto de modo metafórico quanto de modo físico-acústico no sentido de um diálogo sempre difícil, mas estimulante, entre estética, teoria musical e ciência.

Surgiram ao longo do século XX e continuam surgindo compositores com formação em física e matemática, como Xenakis e Boulez, e ainda – ou principalmente – desenvolvem-se fortemente tecnologias para análise e síntese num contexto de extraordinário desenvolvimento de laboratórios de acústica, estúdios de gravação e de música eletroacústica. Com alguma frequência se tem acesso a estudos de músicos com sólida formação em acústica, física e matemática; caso do livro Acústica Musical, de Luís Henrique, com uma importante e cientificamente bem fundamentada síntese do conhecimento do som em toda a sua complexidade.

O conceito de Agrupamento Sonoro Pleno, para o qual este artigo indica as primeiras bases, busca a inclusão de todos os elementos composicionais na análise que se costuma chamar de morfológica; tem como pressuposto que a coesão de uma obra musical não é apenas temática ou linear, mas leva em consideração toda a riqueza de possibilidades auditivas e teóricas que a simultaneidade produz. Acima de tudo é fundamental ir além do sentido harmônico e contrapontístico, ou seja, avançar na direção do complexo acústico da simultaneidade formado por sons enquanto espectralidade e configurações rítmicas.

Notas

O termo ‘fugal’ é empregado aqui não apenas diretamente relacionado à forma da fuga como entendida a partir do século XVIII; mas como uma referência à história da teoria musical, na qual há intensa reflexão em tratados dos séculos XV e XVI, notadamente em Jacques de Liège, Tinctoris, Zarlino e Vicentino, acerca da diferenciação entre fuga e imitação canônica, também referida e comentada no clássico estudo de Alfred Mann, “The Study of Fugue.” Mais recentemente, Paul Mark Walker, no tratado “Theories of Fugue from the Age of Josquin to the Age of Bach”, publicado em 2000, afirma: “Certamente nós podemos reconhecer no ponto de imitação do Renascimento as bases da fuga do Barroco tardio, e as diferenças entre eles estão longe de exceder em peso suas semelhanças”. Mais à frente, referindo-se a compositores dos séculos XVI e XVII, complementa: “há vários compositores que escreveram muitas obras primas em gêneros diversos, cada uma delas facilmente reconhecível como fugal, ou de algum modo importantes para o desenvolvimento da fuga: ricercare, fantasia imitativa, canzona, capricho, tocata, verset, e ocasionalmente, a própria fuga” (WALKER, 2000, p. 1 e 2).

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Marcos Pupo Nogueira - Regente de orquestra, professor e pesquisador. Desde 2004 é docente efetivo da Universidade Estadual Paulista (UNESP) e atua como docente na área de Teoria da Música e no Programa de Pós-graduação em Música. É Mestre em música pelo Instituto de Artes da UNESP, Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Também tem colaborado em periódicos nacionais com artigos sobre as formas sinfônicas na ópera, especialmente as de Carlos Gomes e Teoria Musical referente aos agrupamentos sonoros, tema central de suas pesquisas atualmente.