Artigos Científicos

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 302p., n.2, 2012

A Obra Uma Didática da Invenção: aspectos composicionais e interpretativos da tríade música-literatura-teatro

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil)

fborem@ufmg.br

Resumo: Ensaio sobre Uma didática da invenção, para soprano, contrabaixo e piano de Fausto Borém sobre texto homônimo de Manoel de Barros. A análise desta obra, premiada com o Terceiro Lugar no III Concurso Nacional de Composição para Contrabaixo, reflete, nos seus processos composicional e interpretativo, uma íntima relação entre três áreas artísticas – a música (composição e performance musical), a literatura (poesia e declamação) e o teatro (encenação e iluminação). Esta relação múltipla busca, na complementariedade auditivo-visual, a expressão e comunicação de seu conteúdo, que não seria possível sem a integração destas três artes. Observa-se uma transposição dos limites dos papéis tradicionais dos músicos tanto na disposição dos instrumentos e movimentação no palco, quanto na utilização de técnicas instrumentais estendidas e, especialmente, no papel do(a) cantor(a), que requer elementos de encenação e interferência na performance dos instrumentos dos dois outros músicos. Palavras-chave: Música, literatura e teatro; Música de câmara brasileira; Poesia de Manoel de Barros.

The Work A Didactics of the Invention: compositional and interpretive aspects of the music-literature-theater triad

Abstract: Essay about A Didactics of the Invention for soprano, double bass and piano by Brazilian composer Fausto Borém after the homonymous text by Brazilian poet Manoel de Barros. The analysis of this work, which received the Third Prize in the Third National Double Bass Composition Contest reflects, in its compositional and performance processes, a close relation among three artistic fields – music (composition and performance), literature (poetry and declaiming) and theater (staging and lights). The aural-visual complementarily nature of the work yields multiple relationsand aims at the expression and communication of a content that would only be possible with the integration of these three arts. The transposition of the usual limits of the musician’s role, not only in the disposition of the instruments and movements around the stage, but also in the employment of expanded instrumental techniques and, especially, the role of the singer, which requires theatrical performance and interference in the performance of the two other musicians. Keywords: Music, literature and theater; Brazilian chamber music; Poetry by Manoel de Barros.

1. Introdução

Os Concursos Nacionais de Composição para Contrabaixo (CNCC) surgiram a partir de 1992, numa iniciativa da Associação Brasileira de Contrabaixistas (ABC), entidade fundada em 1990 que busca, não só divulgar e ampliar o repertório musical brasileiro do contrabaixo (RAY, 1996, p. 13-14; RAY, 1998), mas também desenvolver e divulgar, entre os compositores, uma linguagem composicional mais apropriada ao potencial e avanços técnico-musicais atingidos pelo instrumento, especialmente a partir da segunda metade do século XX.

No III CNCC (UFG), realizado durante o V Encontro Internacional de Contrabaixistas (21 a 25 de agosto de 2000), foram privilegiadas duas formações instrumentais: voz, contrabaixo e piano ou voz, contrabaixo e violão. O compositor e multi-instrumentista Ernst Mahle (2005), considerado um dos mais importantes compositores para o contrabaixo no Brasil, recebeu o primeiro prêmio com Balada do Rei das Sereias (para contrabaixo, piano e barítono). Larena Franco de Araújo (2005) recebeu o segundo prêmio com Surdina (para contrabaixo, piano e voz feminina) e eu recebi o terceiro lugar com Uma didática da invenção (BORÉM, 2005), obra que pode ser realizada em português ou inglês.

O mato-grossense Manoel de Barros, que poderia ser considerado o Guimarães Rosa da poesia brasileira, foi o autor escolhido para esta música não só pela estatura de sua obra, mas também por ter nascido, e compreendido como poucos, a cultura do centro-oeste bra-

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 302p., n.2, 2012 Recebido em: 15/04/2012 - Aprovado em: 01/08/2012

sileiro, onde o concurso se realizou. Seu poema Uma didática da invenção, que empresta o título à obra musical em questão, pertence ao livro de poesias O livro das ignorãnças. Nele, Barros (1994, p. 11) nos diz:

Uma Didática da Invenção

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:

a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca

b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer

c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação

e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui en

tre 2 lagartos

f) Como pegar na voz de um peixe

g) Qual o lado da noite que umedece primeiro

etc, etc, etc. Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

Para facilitar a realização musical de Uma Didática da Invenção, que envolve iluminação, encenação do(a) cantor(a) e interação com os outros dois músicos, há uma bula relacionando cada ação, descritas a seguir, aos números de compasso na partitura:

O(a) contrabaixista e o(a) pianista, com roupas pretas, ficam distanciados de maneira que haja espaço para o(a) cantor(a) se mover entre eles. Inicia-se a obra no escuro ou na penumbra.

O(a) cantor(a), vestido de preto:

  1. Se posiciona no meio do palco, em pé, de costas para o público, braços ao lado do corpo, imóvel, com o apito de madeira na boca;
  2. No compasso 11, o cantor começa a levantar os braços lentamente na frente e rente ao corpo, alongando-os acima da cabeça;
  3. No c.20, desce os braços suavemente ao lado do corpo, descrevendo um arco, ao mesmo tempo em que imita um pássaro com o apito de madeira (veja partitura). Depois, sem que o público note, tira o apito da boca e o esconde na mão;
  4. No c.23, gira a cabeça para um lado lentamente, olhando para o chão e declama “Para apalpar...”;
  5. No c.28, vira subitamente e encara o público, inspira fortemente, declama “é preciso saber...” e se aproxima do contrabaixo para tocar as cordas soltas III e IV em pizzicato (veja partitura);
  6. No c.33, acaricia o contrabaixo e declama “saber” e volta ao centro do palco cantando “Que o esplendor...”;
  7. No c.42, apagam-se as luzes subitamente ao se ouvir “com faca”. Depois, no c.44, as luzes acendem-se gradualmente (com dimmer);
  8. No c.46, o(a) cantor(a) vai ao contrabaixo e toca as cordas soltas III e IV em pizzicato;
  9. No c.47, vai para um canto do palco e agacha-se cantando “O modo com as violetas...”;
  10. No c.59, abaixa a cabeça lentamente;
  11. No c.65, levanta-se subitamente, alegre, olhando para diversos pontos no alto, enquanto canta “Porque que é que as borboletas...”;
  12. No c.74, olhando para o chão, canta “por túmulos”;
  13. No c.82, rodeando o contrabaixo, aprecia o solo do contrabaixista;
  14. No c.99, toca as cordas soltas III e IV em pizzicato e volta ao centro do palco;
  15. No c.100, levantando os braços para os lados e mostrando o contrabaixista e o pianista para o público, canta “Que o rio que flui entre dois jacintos...”;
  16. No c.107, abaixa um braço e aponta com o outro para o fundo do palco cantando “entre dois lagartos”;
  17. Nos c.112-124, alternando o olhar para o contrabaixista e o pianista, canta “Saber como pegar... peixe”;
  18. No c.129, como quem “faz pouco caso” com as mãos e ombros, declama “etcétera, etcétera, etcétera”;
  19. No c.132, gira o corpo lentamente, dando as costas para o púbico e como no início, coloca o apito de madeira na boca discretamente, levanta os braços em frente e rente ao corpo, alongando-os acima da cabeça;
  20. No c.140, como no início, desce os braços suavemente ao lado do corpo, ao mesmo tempo em que imita um pássaro com o apito de madeira. Depois, sem que o público note, tira o apito da boca e o esconde na mão;
  21. No c.142, vira-se de frente para o público e declama “Desaprender...”;
  22. No c.149, abaixa a cabeça e permanece agachado até o final, quando as luzes gradualmente se apagam.

2. A relação texto-música, a escrita idiomática, a iluminação de palco e o gestual do(a) cantor(a) em Uma didática da invenção

Atendendo ao regulamento do concurso, procurei dar ênfase a diversos recursos composicionais (técnicos e expressivos) do contrabaixo (ROBERT, 1995; TURETZKY, 1989) na escrita de Uma didática da invenção, os quais incluem a reverberação característica das cordas soltas e dos harmônicos naturais em laissez vibrer, as possibilidades dos harmônicos naturais duplos, dos harmônicos artificiais com glissando e em ponticello, das cordas duplas com arco, do cantabile nos diversos registros do instrumento (com algumas opções de ossia oitava abaixo, para deixar a parte do contrabaixo mais acessível) e da variedade de tipos de pizzicato (com a mão esquerda, duplo com as duas mãos, pull off, slide e secco). Não só os recursos do contrabaixo, mas do piano (como as cordas pinçadas e em glissando dentro da caixa do piano) e da voz (como a declamação teatral, e quandoo cantor faz as vezes de instrumentista, tocando um apito ou interferindo nos instrumentos, tocando pizzicati no contrabaixo e glissandi nas cordas do piano, com as diversas atmosferas que podem sugerir, foram utilizados em coordenação com o texto de Manoel de Barros. Assim, a utilização de uma escrita esparsa e de timbres contrastantes (pizz. grave e harmônicos naturais e artificiais agudos no contrabaixo e pizz. nas cordas do piano) busca evocar a atmosfera distante e evasiva do início da obra (Figura 1), que é enfatizada pela penumbra no palco, pelas roupas pretas dos músicos e pelo fato de a cantora, de costas, se movimentar e tocar um assobio de madeira (ou imitá-lo), emulando um canto de pássaro.

Figura 1: Atmosfera distante e evasiva no início de Uma didática da invenção.

Manoel de Barros estrutura o poema de uma maneira sistematicamente prescritiva, e irônica, pois para falar do inusitado e do não palpável da natureza, ele dita uma fórmula, e mesmo, dispõe graficamente o poema em frases itemizadas com letras (a, b, c, d...) como numa lista de afazeres. Esta contradição entre o mundo poético e o mundo prático foi observada na música, na qual uma rítmica quase aleatória e lírica convive com longas redundâncias do intervalo de segunda menor (Figura 2; um dos motivos musicais básicos da obra), uníssonos e oitavas (Figura 3) dentro de diferentes atmosferas: ora reflexivo, ora obstinado, ora agressivo.

Figura 2: Redundâncias do intervalo de segunda menor em Uma didática da invenção.

Figura 3: Redundâncias de uníssonos e oitavas em Uma didática da invenção.

Além da escrita instrumental, a iluminação e o gestual prescrito para o(a) cantor(a) procuram sublinhar o conteúdo do poema. Os graduais acender e apagar das luzes no início e no final da obra preparam as afirmações do poeta, que faz alusão a processos (construtivo e de-compositivo, respectivamente) também graduais: “Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:...” e “...Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.” O(a) cantor(a), para conhecer “as intimidades do mundo” de fato “apalpa” o contrabaixo e o piano, tocando-os. Primeiro e literalmente, toca as cordas soltas Lá1 e Mi1 no grave do contrabaixo (simultaneamente ao contrabaixista, que toca na região aguda da corda mais aguda; c.30, 34, 48 e 101). No piano, o cantor adentra o espaço do pianista e glissa as cordas dentro da sua caixa de ressonância (c.45 e 130). Para a intimidade sugerida por “O modo como as violetas preparam o dia para morrer...”, o(a) cantor(a) dirige-se para um canto do palco, agacha-se

(c.49) e, para dizer “...devoção por túmulos”, olha para o chão (c.76). No c.84, o cantor anda ao redor do contrabaixo, apreciando o instrumentista “...que toca de tarde sua existência num fagote...”. No c.102, o(a) cantor(a) levanta os braços ao lado do corpo, mostrando, para o público, o contrabaixista e o pianista, enquanto canta “Que o rio que flui entre dois jacintos...”.

Embora não houvesse a busca sistemática de uma representação musical direta do farto manancial de imagens que caracteriza a poesia de Manoel de Barros, houve, no processo de musicar Uma didática da invenção, uma preocupação com as sensações e atmosferas dos “estímulos sinestésicos” sugeridos no poema. Como quem denuncia a pressa ou a insensibilidade das pessoas diante da natureza, o poeta diz “...que o esplendor da manhã não se abre com faca”. O clima de protesto e indignação implícito nessa afirmativa ganha realce com as seguintes mudanças súbitas de dinâmica, timbre e textura e o apagar das luzes que ocorrem concomitantemente com a palavra “faca” (Figura 4): (a) de mf para ff subito; (b) de expressivo para marcato quase gritando na voz, martelato no piano e pizzicato Bartók secco no contrabaixo; (c) de um contraponto melódico com diversidade rítmica (c.35-41) para um uníssono rítmico em colcheias bem declamadas (c.42); (d) de uma tessitura mais centrada no registro médio para o grave (contrabaixo e mão esquerda do piano). A tensão gerada prolonga-se com a suspensão súbita de todos os sons (representada pela vírgula no c.42), seguida de uma volate marcando oitavas duplas no piano que, como um gatilho, dispara a insistente e áspera figura em fusas do contrabaixo no agudo em ponticello, sobre as quais o(a) cantor(a), num movimento do braço em arco, toca um enérgico glissando nas cordas do piano, comunicando ao público um ar de rebeldia (c.43-44).

Figura 4: Mudanças súbitas de dinâmica, timbre e textura e apagar das luzes no trecho “...que o esplendor da manhã não se abre com faca” em Uma didática da invenção.

O registro mais grave da voz é reservado para o início de cada frase. É também para as notas mais graves da voz – o Fá3 seguido do Mi3 – que são reservadas as palavras “...para morrer” (c.59-60) (Figura 5) e “...por túmulos” (c.76-77) (Figura 6). Por outro lado, harmônicos naturais duplos superagudos no contrabaixo, de timbre celestial, sublinham as palavras “... têm devoção” (c.74-75).

Figura 5: Voz na região mais grave: “...para morrer” em Uma didática da invenção.

Figura 6: Bicordes no registro superagudo do contrabaixo sublinham as palavras “tem devoção” no registro agudo, seguidos do registro grave da voz em “...por túmulos” em Uma didática da invenção com pizz. no contrabaixo.

Quando se ouve no texto o improvável “...saber como pegar na voz de um peixe”, se ouve também, na música, um contraponto fugidio, fragmentário e complementar entre a voz, o contrabaixo e o piano à maneira do hocket medieval (c.115-120) (Figura 7).

Figura 7: Fragmentação melódica e complementaridade do contraponto: “...como pegar na voz de um peixe” em Uma didática da invenção.

À afirmação de Barros de que “...é preciso saber... o lado da noite que umedece primeiro...”, o canto e o contrabaixo respondem oscilando por graus conjuntos entre os “dois lados” da nota Mi: a nota Fá no “lado de cima” e o Ré# no “lado de baixo” (c.121-127), o que lembra o estilo eye-music (música para os olhos) dos madrigalistas renascentistas (Figura 8).

Figura 8: Oscilação em graus conjuntos acima e abaixo do Mi (nota central da obra) no trecho: “...é preciso saber... o lado da noite que umedece primeiro...” em Uma didática da invenção.

Ao final da enumeração da sua “lista de princípios”, o poeta utiliza a palavra etcétera três vezes seguidas, como frequentemente o fazemos na linguagem oral, para demonstrar o óbvio e banal, como se já soubéssemos do que se trata. Na música, isto aparece em sprechstimme em três alturas descendentes, sublinhado pelo gesto do(a) cantor(a) que, com movimento de mãos e ombros como um muxoxo, age como se fosse algo conhecido e corriqueiro (c.131-133) (Figura 9).

Figura 9: “Muxoxo” do cantor em Uma didática da invenção, acompanhado de bicordes dissonantes (segundas maiores e menores) no contrabaixo.

O “caráter predominantemente metalinguístico” do poema Uma didática da invenção (BYLAARDT, 2000, p. 2) reflete-se na sua instrumentação, como se os instrumentos falassem de si mesmos ou de outros instrumentos, como na emulação de diversos timbres. Quando começa a perguntar “Se o homem que toca sua existência num fagote, tem salvação...” o contrabaixo está terminando seu solo espressivo “fagotístico” na região aguda e média (c.85-89) e passa a pontuar a frase do canto com uma figura rítmica (fusa + semínima) que poderia facilmente ter saído tanto de uma parte de fagote de uma obra sinfônica quanto de um berrante do centro-oeste brasileiro (c.90-95) (Figura 10).

A poesia de Manoel de Barros é constantemente permeada por uma “transgressão” do significado dos verbos e substantivos, geralmente ao nível da percepção sensorial ou dos sentimentos, como observa Bylaardt (2000, p. 1):

“...por meio da mutilação da realidade, de expressões e significados insólitos, retirados do mundo mágico das coisas banais, dos sons que as palavras produzem, a completar sua busca do estado primitivo. O próprio poeta acha que a palavra ´transfigurismo´ lhe cabe melhor que ´regionalismo”.

Muitas vezes, com esse procedimento, Barros simplifica e sintetiza o discurso, ao mesmo tempo em que multiplica o significado do significante, criando novos conteúdos para as ações e as coisas. Assim, é possível existir um “...lado da noite que umedece primeiro” e pode tornar-se possível “...pegar na voz de um peixe”. Essa ampliação do valor afetivo das palavras e o livre trânsito entre elas se reflete na música, como o caminhar que o(a) cantor(a) deve realizar em volta dos instrumentos e a “transgressão” de sua função enquanto musicista: além de utilizar sua voz cantada e em sprechstimme, deve tocar um apito de madeira esporadicamente (ou imitá-lo, c.20-21, 40-41), deve tocar as cordas graves do contrabaixo e deve tocar as cordas do piano dentro de sua caixa de ressonância (como descrito anteriormente). Da mesma forma, o pianista não se “resigna” a sua função tradicional de tocar o piano apenas sobre o teclado, mas também aborda o instrumento ao longo da peça dentro de sua caixa, como se fosse uma harpa, tocando pizzicatos nas suas cordas (que são previamente marcadas para facilitar a localização das notas e a coordenação motora na sua realização).

Bylaardt (2000, p. 2) diz ainda que “fazer poesia é fazer conviverem os opostos, em situações insólitas, o abstrato com o concreto, o primitivo com o erudito, o solene com o vulgar...”. Dentre os instrumentos da orquestra, o contrabaixo é um dos melhores exemplos dessa dicotomia na música, entre o “popular” e o “erudito”, entre um pizzicato “vulgar” no samba e uma frase “solene” com arco em uma sinfonia, por exemplo. A dialética entre esses opostos, no caso do contrabaixo, caminha hoje para uma integração e diminuição da distância entre “como se toca” e “como se escreve” para o instrumento. Por outro lado, a dialética entre as tradições “eruditas” e “populares” entre os intérpretes (o chamado crossover) tem permitido o desenvolvimento de linguagens idiomáticas em que se pode observar o rigor e sofisticação conviverem com maior liberdade criativa na performance. É o próprio poeta, Manoel de Barros, quem prega: “as antíteses congraçam” (BARROS, 1996, p. 49) e propõe que “ao lado de um primal deixe um termo erudito” (BARROS, 1994, p. 23). Da mesma forma, em Uma didática da invenção, o “contrabaixo erudito” (representado pelo contraponto, pelas técnicas estendidas, pelas melodias atonais, pelos timbres e ritmos mais sofisticados) convive com o “contrabaixo popular” (representado pelos pizzicatos em pedais de corda solta, e efeitos como pull off e slides). Por outro lado, na voz do cantor/ator erudito seria permitido o canto tradicional conviver com a declamação em tom de deboche ou desleixo. Já o pianista elegante e confortavelmente sentado sobre sua banqueta de recitalista deve levantar para buscar, de pé, poucas notas dentro da caixa de seu instrumento, como um artesão popular, que experimenta.

Com seu estilo de linguagem único, Barros condensa atmosferas muito contrastantes em pequenos espaços de tempo, ao que, na música, o contrabaixo procura responder com materiais temáticos curtos e com grandes contrastes de registro, timbre e articulação. Por exemplo, nos primeiros compassos de Uma Didática da Invenção (c.1-4), um pizzicato laissez vibrer no extremo grave sobe repentinamente para ásperos harmônicos artificiais em arco ponticello na região aguda para, em seguida, despencar para mais pizzicatos no grave e, finalmente, saltar de novo para suaves harmônicos naturais no agudo. A própria scordatura do contrabaixo Mi1, Si1, Mi2, Lá2, que equivale à afinação de solista com a quarta corda afinada um tom abaixo (de Fá#1 para Mi1), enfatiza a reverberação das quintas (Mi-Si) e oitavas justas (Mi-Mi) em cordas soltas e harmônicos naturais, que coincide com inícios e finais das frases na música, respondendo à estrutura poética do texto, cujas frases são afirmações sucintas – ou “princípios”, listadas didaticamente (o que faz jus ao título do poema) como se fossem itens a serem cumpridos (a, b, c, etc.). Harmonicamente, a obra gravita em torno da nota focal Mi (Mi frígio, Mi dórico, Mi maior e Mi menor). Assim, a partida e a chegada a esta nota é também emparelhada com as respirações no texto, atuando como elemento de unificação entre música e poesia.

Conclusão

Objetivou-se com esta obra, uma integração das linguagens idiomáticas do contra-baixo, do piano e da voz à poesia e à teatralidade (do cantor/ator e da iluminação) propiciada por sua conjunção com o poema Uma didática da invenção de Manoel de Barros. As “antíteses” do mensurável e do não mensurável que “congraçam” no texto do poeta permitem leituras múltiplas (nos processos de composição e de interpretação), mas permitem também a busca de uma unidade e interdependência entre a música, a poesia e as possibilidades teatrais na sua realização. No seu Livro sobre nada (1994), Manoel de Barros revela o lugar que imagina para as artes ao nos dizer que “A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá, mas não pode medir seus encantos” (BARROS, 1996, p. 53).

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Larena Franco de. Surdina, para soprano, contrabaixo e piano. In: Música Brasileira para Contrabaixo. Ed. Sonia Ray. Goiânia: Editora da UFG, 2005.

BARROS, Manoel de. Livro sobre Nada. Ilustr. Wega Nery. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.

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BORÉM, Fausto. Uma didática da invenção, para soprano (ou tenor), contrabaixo e piano. In: Música Brasileira para Contrabaixo. Ed. Sonia Ray. Goiânia: Editora da UFG, 2005.

BYLAARDT, Cid Ottoni. O Barro do Desconhecer. Estado de Minas, Belo Horizonte, 23 out. Suplemento Gabarito, 2000, p. 1-4.

MAHLE, Ernst. Balada do Rei das Sereias, para barítono, contrabaixo e piano. In: Música Brasileira para Contrabaixo. Ed. Sonia Ray. Goiânia: Editora da UFG, 2005.

RAY, Sonia. Catálogo de Obras Brasileiras Eruditas para Contrabaixo. São Paulo: Anna Blume / FAPESP, 1996.

. Brazilian Classical Music for the Double Bass: an overview of the instrument, the major popular music influences within its repertoire and a thematic catologue. Iowa City: University of Iowa, 1998 (Tese de Doutorado).

ROBERT, Jean-Pierre. Modes de Jeu de La Contrebasse. Paris: Musica Guiad, 1995.

TURETZKY, Bertram. The Contemporary Contrabass. 2. ed. rev. Berkeley: University of California, 1989.

Fausto Borém - Professor Titular da Escola de Música da UFMG, onde criou o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces, dezenas de edições de partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor.