Artigos Científicos

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 302p., n.2, 2012

Figuras Retóricas no Ofertório da Missa de Quarta-Feira de Cinzas de André da Silva Gomes

Eliel Almeida Soares (USP, São Paulo, SP, Brasil)

eliel.soares@usp.br

Ronaldo Novaes (USP, São Paulo, SP, Brasil)

ronaldo.novaes@usp.br

Diósnio Machado Neto (USP, São Paulo, SP, Brasil)

dmneto@usp.br

Resumo: Este artigo propõe-se a expor o emprego de elementos retóricos no Ofertório da Missa de Quarta-feira de Cinzas de André da Silva Gomes. Partindo de investigações acerca da Retórica como área do conhecimento humano, em seguida procuraremos esclarecer o interesse da musicologia atual em compreender como é disposto o discurso musical, da mesma forma relatar a fase inicial na qual estão as investigações sobre a retórica na música colonial brasileira. Como conclusão, apresentaremos por meio de análises fundamentadas no estudo dos tratados retórico-musicais que, nesse Ofertório, existem diversos recursos retóricos contextualizados de maneira a estabelecer relação direta entre afeto e figura, as quais são trabalhadas conscientemente pelo compositor. Palavras-chave: Análise retórica; Ofertórios; André da Silva Gomes; Música colonial brasileira.

Rhetorical Figures in the Offertory of the Ash Wednesday Mass of André da Silva Gomes

Abstract: This article aims to show the use of rhetorical elements in the Offertory of the Ash Wednesday Mass of André da Silva Gomes. Starting from investigations of the Rhetoric as an area of human knowledge, and then we are going to try to clarify the current musicology interest to understand how musical discourse is used. Similarly, we want to report the initial stage in which the investigations on the Brazilian Colonial Music are. As a conclusion we are going to present through analysis based on the study of musical-rhetorical treaties that, in this Offertory, there are several rhetorical resources contextualized in order to establish a direct relationship between affect and figure, which are worked by the composer consciously. Keywords: Rhetorical analysis; Offertories; André da Silva Gomes; Brazilian colonial music.

1. Introdução

Retórica é a área do conhecimento humano que tem por objetivo o estudo, a produção e análise do discurso, pelo viés da eloquência e persuasão, através do qual o orador busca convencer uma audiência sobre a verdade de algo. Como tekhné, tem sua origem na Grécia Antiga, fundamentada não apenas na lógica e no conhecimento, mas na habilidade de aplicar a linguagem de forma a impressionar favoravelmente os ouvintes, ou seja, mover seus afetos. Desde sua origem, diversos foram os pensadores que contribuíram para sua sistematização, passando por Aristóteles (394-322 a. C.), Cícero (106-43 a.C.), Quintiliano (ca. 35- ca. 96), assim como pela Idade Média, com Santo Agostinho (354-430), Santo Isidoro de Sevilha (570-636), pela Renascença, com Desidério Erasmo de Rotterdam (1469-1536), Philipp Melanchthon (1497-1560), culminando no Barroco, com Cipriano Soares (15241593), Emanuele Tesauro (1592-1675) e Padre Antônio Vieira (1608-1697), influenciando, também, o pensamento de diversos tratadistas retórico-musicais, além do gramático e compositor André da Silva Gomes, objeto deste trabalho.

Nesse sentido, a música concebida não apenas na Alemanha, a partir da segunda metade do século XVI, mas em toda a Europa, se baseava em uma relação, cujos processos de estruturação empregados contextualizavam-se na formação de um cabedal idealizado em constructos literários, permeados sob a égide da linguagem e seus recursos; sejam as figuras e elementos retóricos, fundamentando a disposição do discurso musical. Por essa razão, desde o último quartel do século XX, a musicologia tem dado sinais evidentes de seu

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 302p., n.2, 2012 Recebido em: 15/04/2012 - Aprovado em: 04/05/2012

interesse às questões relativas ao significado das constituições retóricas. Como fruto de tais pesquisas, são publicadas, anualmente, inúmeras teses, dissertações, trabalhos e artigos sobre o assunto, fato esse inexorável por ser a retórica o instrumento ideal e basilar para o conhecimento analítico do período investigado. Todavia, a maioria dessas produções acadêmicas, tem por objetivo de estudo as obras de compositores europeus. Nessa conjuntura, o presente trabalho se diferencia pela observação da aplicação retórica no processo composicional de André da Silva Gomes (1752-1844). Tal fato é plenamente possível uma vez que o referido autor teve sua formação no Seminário Patriarcal de Lisboa1, obtendo toda a sapiência necessária a respeito da Retórica, como se pode observar em suas composições e em seu tratado A Arte Explicada de Contraponto.

Pretende-se aqui, apresentar a possiblidade da utilização desses elementos em uma das obras de Silva Gomes, o Ofertório da Missa de Quarta-feira de Cinzas, mostrando que o compositor luso-brasileiro, mesmo longínquo dos principais centros musicais europeus, era um artista com considerável erudição, acompanhando atentamente os progressos da ciência e da música. Era um compositor, mestre de capela e gramático que tinha consciência do anacronismo da linguagem adotada para modelar suas composições (GIRON, 2004, p. 50). É notório que as investigações sobre a retórica na música brasileira são incipientes, o que, por si só, já justifica a inserção deste trabalho dentro das pesquisas existentes.

2. O modelo discursivo de Mattheson

Johann Mattheson (1681-1764) esboçou em seu Der Vollkommene Capellmeister (1739), um modelo composicional fundamentado no sistema retórico, de forma a imbuir o discurso musical com a mesma força persuasiva da arte da oratória. Balizado nos cânones clássicos, utiliza-se das Cinco Fases da Retórica, fortalecendo a relação entre a música e o discurso, mostrado a seguir.

  • Inventio – trata-se de uma fase inicial do discurso – sua gestação na mente do orador, a invenção ou busca de ideias, abrangendo o ato de criação e de recolha fundamentos de expostos, ideias musicais, etc.
  • Dispositio – distribuição ou arranjo das ideias e argumentos encontrados na Inventio, de forma apropriada e eficaz.
  • Decoratio – diz respeito ao estilo. Trata da elaboração ou decoração de cada ideia, para o desenvolvimento de cada item e da sua ornamentação, também chamado Elaboratio ou Elocutio por outros autores.
  • Memória – são os mecanismos e processos utilizados para memorizar o discurso e, por extensão, o modo operativo de cada uma das fases retóricas.
  • Pronuntatio – pronunciação do discurso. É a última fase do sistema retórico, também conhecida como Actio ou ação (atuação). Diz respeito à performance, ou seja, à interpretação frente ao público.

Em relação à Dispositio, alguns autores como Gallus Dressler (1533-1589), elaboraram uma versão simplificada em três partes (Exordium, Medium e Finis). No entanto, em consonância com os cânones clássicos, Mattheson dispõe desta maneira:

  • Exordium – inicio do discurso;
  • Narratio – declaração dos fatos ou dados;
  • Divisio ou Propositio– exemplificação e defesa sob a perspectiva do orador;
  • Confutatio – refutação contra as provas contrárias;
  • Confirmatio – provas para confirmar o que querem defender;
  • Perotatio – conclusão (BUELOW, 2001, p. 261-262).

3. Análise Retórica do Ofertório da Missa de Quarta-feira de Cinzas

3.1 Inventio

O texto deste ofertório foi extraído do Salmo (Ps.29,1-3/ 30,1-3)2, cujo tema é: Ação de Graças pela Libertação da Morte.

Exaltabo te Domine, quoniam suscepiste me, et nec [non] dilectasti Inimicos meos super me/ Domine clamavi ad te sanasti me.

Exalto-te, Senhor, por que me livrou/ e não permitiu que se alegrassem a Minha custa meus inimigos/ Senhor, meu Deus, a ti clamei e me sarou. (SOARES, 2000, p. 25).

Esse excerto descrito acima, expressa uma fé autêntica não só do autor do salmo, mas igualmente dos fiéis no Senhor. Davi, nesta passagem, louva a Deus por tê-lo livrado de três coisas terríveis:

  1. de seus inimigos;
  2. de uma doença;
  3. da morte.

Tal sentimento manifesta uma aclamação à figura do Criador pelo fato Deste ter concedido as graças rogadas e alcançadas sob Sua influência. A mesma devoção e gratidão são partilhadas no ofertório, onde o cristão faz uma reflexão sobre a fragilidade da vida humana, a qual é sujeita à morte. De sorte que esse profundo pensar é destacado pela conversão e mudança de vida, necessária para quem professa a Cristo como salvador e responsável pela remissão dos pecados.

Essa obra, portanto, é composta por trinta e três (33) compassos na tonalidade Sol Maior, em andamento Moderato, proporcionando ao ouvinte audição clara e perspicaz. Em suma, a intenção nos tópicos seguintes, é revelar a existência de aspectos relevantes da linguagem adotada pelo autor, observando a aplicação de figuras e elementos retóricos, além dos materiais e das funções harmônicas.

3.2 Locus3 observados na Inventio do Ofertório

Tabela 1: Locus Topici encontrados no Ofertório da Missa De Quarta-feira de Cinzas de André da Silva Gomes.

Inventio Descrição Utilização na obra Compasso/ Voz
Locus Notationis (MATTHESON, [1739] 1954, Parte II, Cap.4, § 23, p. 123). Aspecto externo e desenho das notas (Duração das notas, alteração, repetição e procedimentos canônicos). Vários motivos rítmicos e diferentes durações de notas (mínimas, mínimas pontuadas, semínimas, semínima pontuadas, colcheias, colcheias pontuadas, semicolcheias, repetições, ligaduras, pausas, fermata entre outros). 1-5 S-A-T-B 6-8 S-A-T-B 17-26 S-A-T-B 27-33 S-A-T-B
Locus Oppositorum (MATTHESON, [1739] 1954, Parte II, Cap.4, § 80, p. 131). Contraste de compassos, movimentos contrários, agudos e graves, lento e rápido, calmo e agitado. Movimento contrário entre contralto e baixo. Também entre soprano e baixo e tenor. 21 A-B 28 S-B 29-S-T
Locus Descriptionis (MATTHESON, [1739] 1954, Parte II, Cap.4, § 43, p. 127). Disposições da alma Louvor, Júbilo, Alegria, Celebração (Exalto-te, Senhor, por que me livrou). Expectativa, Resposta (A ti clamei e me sarou). 1-21 S-A-T-B 24-31 S-A-T-B

3.2.1 Dispositio

3.2.1.1 Exordium

O Exordium é apresentado nos três primeiros compassos da peça, tendo como figura central a Anabasis, a qual é trabalhada por Silva Gomes tanto na ordenação quanto na preparação dos argumentos iniciais, dos quais se fundamentará o discurso. Por meio dessa figura, observa-se a caracterização de louvor e agradecimento por parte do salmista a um ser superior, que está num lugar elevado: Exaltabo te Domine (Exalto-te, Senhor), evidenciado pelas notas que se movimentam de forma ascendente. No terceiro compasso o autor emprega a figura da Synaeresis, destacando esse efusivo momento, igualmente, o mesmo aplicativo se dá para destacar o repouso da frase na Tônica, como das notas cantadas na mesma silaba.

Exemplo 1: Ofertório da Missa de Quarta-feira de Cinzas de André da Silva Gomes - comp. 1-3 Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p. 175).

3.2.1.2 Narratio

Na segunda fase da Dispositio continua a serem empregadas pelo compositor as figuras da Anabasis e da Synaeresis, mantendo a mesma relação de exaltação e louvor estabelecida anteriormente no Exordium, entretanto, no compasso 5, na voz do tenor, pode-se observar o uso da Anticipatio, antecipando a entrada das outras vozes na reiteração do encômio dado. A junção desses elementos procura despertar a atenção do ouvinte para o estabelecimento entre elevação e reflexão. A Narratio termina no terceiro tempo do compasso 8, ou seja, bem na passagem da primeira para a segunda seção da obra, delimitada pelo efeito suspensivo da Cadência na Dominante (Semicadência)4.

Exemplo 2: Synaeresis, Anabasis e Anticipatio comp. 4-6 -Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p. 175).

3.2.1.3 Propositio

No momento em que se encerra, tanto a primeira seção como a Narratio, inicia-se a Propositio, no final do compasso 8, na voz da soprano. Da mesma forma, Silva Gomes utiliza a figura da Pausa com o intuito de obter repouso após uma suspensão no final da seção anterior na Dominante de Mi Menor.

Exemplo 3: Pausa nas vozes do contralto, tenor e baixo comp. 8-9 - Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p. 175).

Como peculiar dessa parte do discurso, o autor novamente faz menção às palavras: Exaltabo te Domine (Exalto-te, Senhor), destacando-as de maneira enfática. Auxiliando essas aplicações no texto, estão as figuras retóricas inseridas por Silva Gomes como a Noema, trazendo equilíbrio nas vozes e também valorizando a Cadência Autêntica Imperfeita, concretizada no compasso 11, em condução homofônica e a Anaphora, repetindo tanto as frases e motivos dessa passagem, como a palavra Suscepiste (amparo, ajuda, livramento).

Exemplo 4: Noema e Anaphora em todas as vozes comp. 10-12 -Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p. 175).

3.2.1.4 Confutatio

A Confutatio é empregada na transição da modulação de Mi Menor para Sol Maior. Já a terceira fase da disposição é concluída no compasso 14, ainda na terceira seção da obra, em sua tonalidade principal. Semelhantemente, o compositor continua a empregar a Anaphora, ressaltando a importância do livramento concedido por Deus para seu servo.

Exemplo 5: Anaphora comp. 13-15 - Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p. 176).

Apesar de conservar o uso da figura supracitada (Anaphora), nessa parte da Dispositio, o autor preocupa-se em cumprir o objetivo e plano estabelecidos para a execução da mesma, inserindo novos elementos de ordem textual e motívica. Por exemplo, a partir do compasso 19, na terceira seção, é empregada uma fermata pela primeira vez na peça, valorizando tanto a repetição da exposição melódica como a valoração das vozes da soprano e contralto, entoando duas notas em uma sílaba, realizadas pela Anaphora e Synaeresis, igualmente antecedendo a figura da Aposiopesis, descrita por uma pausa geral em todas as vozes, aplicada posteriormente no compasso 20. Também é observável o contraste alcançado com êxito através da intersecção desses mecanismos, sem se esquecer das dinâmicas forte e piano entre a Aposiopesis. De forma idêntica, segue o texto que retrata a questão da não permissão da alegria dos inimigos à custa do sofrimento anterior, por parte de Deus (Et nec [non] dilectasti inimicos meos super me).

Exemplo 6: Anaphora, Aposiopesis e Synaeresis comp. 15-20 - Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p. 176).

Em síntese, todo esse sentido converge para a organização das contestações às quais são expostas a partir desse trecho do ofertório, ou seja, a oposição das ideias musicais; porém, é mantida a coesão do discurso.

3.2.1.5 Confirmatio

A reafirmação do discurso inicial ocorre pela repetição imediata e enfática das notas, como da palavra Domine (Senhor), efetuada pela figura da Epizeuxis. Igualmente pode-se destacar o emprego da pausa como elemento de transição da terceira para a quarta seção e a modulação obtida no compasso 22 de Sol Maior para Mi Menor, respaldada anteriormente pela Cadência Autêntica Imperfeita.

Exemplo 7: Pausa e Epizeuxis comp. 21-23 -Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999,

p. 177).

No exemplo a baixo podem ser observadas as mesmas figuras empregadas anteriormente pelo autor, no entanto, ele insere uma nova: Palilogia que, por sua vez, repete as mesmas notas e palavras temáticas do texto.

Exemplo 8: Palilogia, Epizeuxis e Pausa comp. 24-26 - Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p. 177).

A Confirmatio termina coincidentemente com a quarta seção no compasso 27.

Exemplo 9: Pausa nas três vozes e no instrumento comp. 27 - Catalogação e Organização Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p. 178).

3.2.1.6 Perotatio

Tanto a Perotatio quanto a quinta e última seção iniciam-se a partir no final do compasso 27. Como característica dessa parte do discurso, é trabalhado pelo autor tanto o texto quanto as figuras de maneira enfática; ou seja, repetindo e destacando a palavra Et sanasti (Me sarou), através da Epizeuxis e Anaphora.

p. 178).

Silva Gomes conclui o discurso desse ofertório na tonalidade de Sol Maior, utilizando a Aposiopesis e Anaphora, empregadas desde a Propositio na segunda seção, ou seja, ele reúne partes integrantes da fundamentação da tese. Entretanto, entre os compassos 32 e 33, pode-se notar a aplicação, além da Synaeresis, de outra figura: a Syncope na voz da soprano. Em um primeiro momento ela é consonante ao acorde da Subdominante e, posteriormente, resulta em uma dissonância da Subdominante Paralela. Isto é, a nota Sol que, no compasso anterior era a quinta, passa a ser a sétima, criando uma tensão para a função que virá com a Dominante. Enfim, é finalizada a peça com uma dinâmica contrastante semelhante à que fora apresentada na Confutatio, no entanto, com uma diferença de forte para pianíssimo e com uma frase bem definida, reflexiva e suave para, em seguida, acabar na Cadência Autêntica Imperfeita.

3.3 Figuras observadas no Ofertório (Elocutio/Decoratio)

O quadro, a seguir, traz a descrição das figuras utilizadas pelo compositor luso-brasileiro, assim como sua definição pelos tratadistas, dentre os quais são destacados abaixo.

Joachim Burmeister (1564-1629), compositor e teórico, preocupou-se em relacionar teoria, poética e prática, estabelecendo analogia com as figuras de retórica em seus tratados Hypomnematum Musicae Poeticae (1599), Musica Autoschediastike (1601) e Musica Poetica (1606) (CANO, 2000, 251). Igualmente, sistematizou as figuras, dispondo-as de maneira ordenada, com a intenção de tornar mais acessíveis a identificação dos dispositivos musicais e retóricos (BARTEL, 1997, p. 94).
Athanasisus Kircher (1601-1680), matemático, historiador, teólogo e teórico musical. Contribuiu com seu tratado Mursugia Universalis (1650), onde aborda diversos assuntos relacionados à ciência, filosofia e música, como as funções das figuras retóricas (BARTEL, 1997, p. 106-107). Semelhantemente, estabelece síntese sobre as músicas alemãs e italianas do século XVII, introduzindo o termo Musica Phatetica, ao descobrir a natureza afetiva da música com os princípios da disciplina retórica (CANO, 2000, p. 261).
Mauritius Johann Vogt (1669-1730), compositor e teórico, publicou em 1719, seu tratado Conclave Thesauri Magnae Artis Musicae, dividido em três partes, a primeira lida com questões especulativas da música, a segunda retrata a preocupação com o Canto Gregoriano e a última aborda a composição e música polifônica, relacionando-as às figuras retóricas (BARTEL, 1997, p. 127).
Meinrad Spiess (1683-1761), compositor e teórico, em 1745 publicou o tratado Tratactus Musicus, onde faz uma reflexão sobre os fundamentos da composição musical e a

importância do emprego da retórica no discurso musical, com base nos autores anteriores e contemporâneos, reunindo-os e comparando-os (BARTEL, 1997, p. 144).

Johann Gottfried Walther (1684-1748), organista, compositor, teorizador e lexicógrafo, estudou os tratados de Athanasius Kircher e Johann Theile (1646-1724), buscando maior aprimoramento na teoria musical, além da compreensão dos afetos representados pelas figuras retóricas. Suas pesquisas resultaram na publicação de dois tratados Praecepta der Musicalischen Composition (1708) e Musicalisches Lexicon order Musicaische Bibliotec, Leipzg (1732), sendo que o termo figura-retórico-musical é encontrado pela primeira vez em seu Lexico (BARTEL, 1997, p. 131-135).

Tabela 2: Figuras Retóricas encontradas no Ofertório da Missa da Quarta-feira de Cinzas de André da Silva Gomes.

Figuras Tipo Descrição Tratadista
ANABASIS Representação Uma passagem musical ascendente, Walther: Anabasis, de anabaino, ascendo é uma passagem
(BARTEL, 1997, e Descrição que expressa exaltação ou imagens musical por meio do qual algo subindo às alturas é expres
p. 179-180). positivas dos afetos. sa. Por exemplo, nas palavras: Ele é ressuscitado, Deus subiu, e textos similares. Kircher: A Anabasis ou Ascentio é uma passagem musical através do qual expressamos sentimentos de exaltação, as-censo ou pensamentos elevados e eminentes, exemplificado na ascensão de Cristo.
ANAPHORA (BARTEL, 1997, p. 184-190). Repetição Melódica (1) É uma linha do baixo repetida em forma de solo. (2) A repetição de uma exposição melódica sobre notas e partes diferentes. Também pode ocorrer no inicio das repetições de frases e motivos em uma série de passagens sucessivas; (3) Uma repetição em geral. Vogt: Ocorre quando nós frequentemente repetimos um seguimento ou determinada figura por causa da intensidade. A Anaphora é a repetição que acontece não apenas em parte de uma passagem, mas também nas figurae símplices.
ANTICIPATIO Ornamentação Uma nota vizinha superior ou inferior, Spiess: A Anticipatio é a antecipação ou reprodução prema
(BARTEL, 1997, Melódica e adicionada após a nota principal, in tura de uma nota. Ela é uma figura muito comum e ocorre
p. 192-195). Harmônica troduzida prematuramente de uma nota pertencente à harmonia ou de acordes posteriores. quando uma voz entra mais cedo, com as notas superiores ou inferiores e é ouvida antes da criação real ou sem ornamentos indicariam.
APOSIOPESIS (BARTEL, 1997, p. 202-206). Interrupção e Silêncio Descanso em uma ou todas as vozes de uma composição: pausa geral. Walther: A Aposiopesis se refere a uma Pausa generalis ou um completo silêncio em todas as vozes e nas partes da composição simultaneamente.
EPIZEUXIS (BARTEL, 1997, p. 263-265). Repetição Melódica Repetição imediata e enfática de uma palavra, nota, motivo ou frase. Walther: A Epizeuxis é uma figura de retórica pela qual uma ou mais palavras são imediatamente e enfaticamente repetidas.
NOEMA Representação Passagem homofônica em uma Burmeister: A Noema representa o afeto harmônico, onde as vo
(BARTEL, 1997, e Descrição textura contrapontística e polifô zes combinadas têm valores e números de notas semelhantes.
p. 339-342). nica. Quando introduzida adequadamente, isto é, no momento certo, ela afeta docemente os ouvidos do ouvinte, produzindo uma sensação de calma e serenidade.
(BUELOW, Seção homofônica, dentro da polifonia utilizada para
2001, p. 268). enfatizar o texto.
PALILOGIA Repetição Repetição de um tema no mesmo ní- Burmeister: A Palilogia é a repetição de uma inteiração ou
(BARTEL, 1997, Melódica vel de altura, também pode ocorrer apenas o começo da estrutura dos meios e temas sobre a
p. 342-344). em alturas diferentes na mesma ou em várias vozes. mesma altura com a mesma voz, ocorrendo com ou sem intermédio de pausas em todos os eventos em uma voz. Walther: A Palilogia refere-se a uma repetição por demais frequente das mesmas palavras.
PAUSA (BARTEL, 1997, p. 362-365). Interrupção e Silêncio Uma pausa ou descanso na composição musical. Walther: Uma figura ou figuras de silêncio. Estas se referem à Pausa. Pausa refere-se a um período de repouso ou o silêncio na música, que é indicado por um determinado sinal.
SYNCOPE. (BARTEL, 1997, p. 396-405). Dissonância e Deslocamento A suspensão, com ou sem dissonância resultante. Walther: Consonâncias que são alteradas para dissonâncias.
SYNAERESIS (BARTEL, 1997, p. 394-396). Dissonância e Deslocamento (1) Uma suspensão ou síncope, (2) a colocação de duas sílabas por nota ou duas notas por sílaba. Vogt: A Synaeresis ocorre quando duas notas são colocadas em uma sílaba ou duas sílabas são colocadas em uma nota.

Considerações finais

Como parte integrante da liturgia cristã, o ofertório, inserido na missa, mostra-se um momento em que o cristão reflete sua condição de servo, procurando estabelecer com Deus um relacionamento mais íntimo, por meio de sua fé e devoção. Essa ocasião também propicia ao fiel uma espécie de partilha, analogamente representada no sacrifício de Cristo que se entrega, oferecendo sua vida pela humanidade, ou seja, esse sentimento de repartir se dá em forma de louvor e gratidão. Tal intenção e consagração são plenamente expressas através dos afetos elaborados pelo compositor nas cinco seções dessa peça. Semelhantemente, os recursos retóricos utilizados na Inventio, Dispositio e Elocutio (Decoratio) foram constituídos de forma ordenada e coerente, isto é, contextualizados conforme a peculiaridade circunstancial do discurso, de modo a confirmar o cabedal de Silva Gomes.

Ao analisar, portanto, o Ofertório da Missa de Quarta-feira de Cinzas, observa-se o uso de figuras e elementos retóricos pelo quarto mestre de capela da Sé de São Paulo, dentre os quais se destacam a Anabasis, que busca expressar o afeto de louvor e devoção, Anaphora, que enfatiza por meio da repetição as passagens bíblicas proferidas pelo salmista acerca de seu livramento e auxílio, Aposiopesis – pausa geral encerrando a Confutatio, ajudando a realçar a Cadência na Dominante (Semicadência); Epizeuxis, enfatizando a expressão Domine (Senhor), repetindo-a três vezes – tal como é utilizada na própria liturgia, confirmando a tese inicial manifestada no Exordium pela Anabasis, já que o salmista foi livre da doença, dos inimigos e da morte.

Destarte, a compreensão acerca do emprego de elementos e figuras retóricas no processo composicional de André da Silva Gomes é imprescindível tanto para o bom entendimento da obra, como para cada item persuasivo, tornando evidente sua consciência na aplicação ordenada da retórica na música, como ele mesmo ressalta categoricamente em seu tratado: “mas também pode observar como Retórico a analogia da Faculdade Harmônica com Faculdade Retórica; aqui se observa o Contraponto relativo à parte da Invenção e a Composição relativa à Disposição e à Elocução” (SILVA GOMES, lição nº 1 f. 2, apud DUPRAT et al., 1998, p. 17-18).

Notas

1 Régis Duprat destaca que Silva Gomes foi aluno de José Joaquim dos Santos (1748-1801). É observável que o mestre de capela da Sé de São Paulo estava inserido em uma época onde o ambiente musical português tinha como principal influência a figura do napolitano Davi Perez (1711-1778) que, além de compor obras líricas e religiosas, tinha interesse nas edições didáticas no ensino da teoria musical. Não obstante, influenciou vários compositores portugueses dentre os quais João Cordeiro da Silva, João de Souza Carvalho, José Joaquim dos Santos, Luciano Xavier dos Santos dentre outros (DUPRAT, 1995, p. 62).

2 Salmos 29:1-3 seria o número e versículo na bíblia católica, já na bíblia protestante o texto está escrito no número 30 do versículo 1 ao 3.

3 É o emprego de artifícios adequados em cada afeto de um texto, em outras palavras, onde se procura clarificar qual afeto deverá ser representado. Lausberg complementa afirmando que no Locus estão as diferentes divisões e pensamentos distribuídos às quais podem descrever conceitos de comparação similar e de contrariedade. (LAUSBERG, 2004, p. 91).

4 O termo Semicadência, outro nome dado à Cadência que termina na Dominante, pode ser localizada em vários autores tais como Arnold Schoenberg (Fundamentos da Composição Musical, 2008, p. 68-73), Diether da la Motte (Armonía, 2006, p. 28), Walter Piston (Armonía, 1998, p. 168-170), William Earl Caplin (Classical Form, 2001, p. 128-130), entre outros.

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LAUSBERG Heinrich. Elementos de Retórica Literária. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbernkian, 2004.

MATTHESON, Johann. Der Vollkommene Capellmeister. (Hamburgo, 1739) Kassel: Bärenreiter/ Verlag, 1954.

SOARES, Paulo Augusto. Os Ofertórios de André da Silva Gomes. Dissertação de mestrado. Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 2000. São Paulo: UNESP, 2000.183p.

Eliel Almeida Soares - Graduado com Licenciatura em Música pelo Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo- USP (2008). Faz parte do grupo de pesquisa sobre estruturas discursivas na música colonial brasileira, também possui trabalhos publicados sobre retórica musical. Atualmente é Mestrando em Musicologia pela mesma instituição, sob a orientação do Prof. Dr. Diósnio Machado Neto.

Ronaldo Novaes - Graduado com Licenciatura em Música pelo Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo-USP (2011). Participa do grupo de pesquisa sobre retórica musical na obra de André da Silva Gomes, sob orientação do Prof. Dr. Diósnio Machado Neto.

Diósnio Machado Neto - Bacharel em Instrumento no Instituto de Música da Universidad Católica de Chile. Mestre (2001), Doutor (2008) em Musicologia e Livre-Docente (2011), pela Universidade de São Paulo. É coordenador do grupo de pesquisa sobre os processos e padrões retóricos da música colonial brasileira. Atualmente é Professor Associado (Livre-Docente) no Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto e na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo-USP.