Artigos Científicos

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 302p., n.2, 2012

Pensar a Revolução, nos Comportamentos e Práticas Culturais Associadas ao Teatro de São Carlos entre o Fim do Estado Novo e os Primeiros Anos da Democracia em Portugal

Paula Gomes Ribeiro (Universidade Nova Lisboa, Lisboa, Portugal)

pgr@fcsh.unl.pt

Resumo: Neste artigo problematizo aspectos da negociação simbólica manifestada nas práticas culturais e nos comportamentos associadas ao Teatro de São Carlos entre o final do Estado Novo e o período que sucede a Revolução de 25 de Abril de 1974; visando dimensões estéticas e ideológicas de revolução e reação, submissão e transgressão, fidelidade e desobediência aos cânones. Inquire-se, neste contexto, o modo como esta negociação participa na reconfiguração das sociabilidades e na renovação dos paradigmas da administração do conhecimento e da cultura num quadro revolucionário. Palavras-chave: Teatro de São Carlos; Revolução nos comportamentos e práticas culturais; Ideologia e políticas culturais.

Discussing the Revolution, in the Behaviors and Cultural Practices Associated with the Teatro de São Carlos, between the End of the New State and the First Years of Democracy in Portugal

Abstract: In this article, I discuss the symbolic negotiation established in the cultural practices and behaviors associated with the Teatro de S. Carlos – between the end of the Portuguese New State and the period which succeeds the Revolution of April 25, 1974, addressing aesthetic and ideological dimensions of revolution and reaction, transgression and conformity, fidelity or disobedience to the canons. I examine how this negotiation participates in the reconfiguration of sociabilities and in the renewal of paradigms of knowledge and culture management, in a revolutionary context. Keywords: Teatro de São Carlos; Revolution in behaviours and cultural practices; Ideology and cultural politics.

O presente artigo discute aspectos ideológicos e sociais inscritos nas progressivas alterações de comportamentos e práticas que marcam as vivências culturais do Teatro de S. Carlos, como autoridade cultural da capital portuguesa, índice fiel do poder do Estado e dos discursos que sobre ele se estabelece, no decorrer da decisiva mudança de paradigma político e sociocultural que se desenvolve entre a crise do regime fascista (no fim do período marcelista) e a instalação do processo revolucionário, em 1974 e 1975, na sequência do golpe militar de 25 de Abril. Para se poder compreender mais profundamente o complexo processo de reconfiguração cultural e artística em curso no início da democracia em Portugal, é indispensável observar o modo como instituições centrais na cultura portuguesa, como é o caso do Teatro de S. Carlos,1 reconhecem as transformações da realidade social e procuram agir nas práticas sociais quotidianas e nas vivências da cultura e da arte. Como espaço de intersecção de sistemas simbólicos (cf. BOURDIEU, 2011), esta instituição e as suas práticas reconfiguram-se na intersecção com os debates ideológicos e políticos que a envolvem, exibindo os índices de uma complexa negociação simbólica entre revolução e reação, submissão e transgressão da ordem, fidelidade e desobediência aos cânones. Proponho-me, assim, pensar as estratégias de comunicação e a produção e reprodução de formas de dominação atuantes no processo de revisão das diretrizes de programação e das práticas de frequência aos espetáculos do S. Carlos, à luz das ideologias atuantes no processo revolucionário.

Depois de 41 anos de vivência de diversas formas de condicionamento da liberdade, em uma ditadura que obrigava a que uma grande parte da atividade artística e cultural decorresse de forma clandestina; o golpe militar de 25 de Abril de 1974 iniciou um processo revolucionário no qual a liberdade seria celebrada e experimentada em todos os espaços, artes e práticas.2 O historiador António Reis recorda a densidade e complexidade de aconte-

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 302p., n.2, 2012 Recebido em: 28/02/2012 - Aprovado em: 31/03/2012

cimentos sociais que marca o período que se segue ao golpe militar, no qual se ensaia uma nova ordem social:

[não] foi fácil nem linear, porém, a implantação do regime democrático num país vítima de quase meio século de anestesia cívica, a braços com uma descolonização tardia e obrigado a enfrentar em simultâneo os efeitos da crise económica internacional que acabara de irromper no ano anterior. Circunstâncias estas que explicam as peculiares características que entre nós assumiu a transição para a democracia, por comparação com outros países europeus da época envolvidos em processos semelhantes. Uma transição em que sintomaticamente se concentram em escasso ano e meio décadas de história contemporânea vividas agora nos balões de ensaio dos díspares modelos revolucionários que partidos políticos e militares manipulavam em ingénua euforia (REIS, 1992a, p. 7).

Numa disposição revolucionária de franca intervenção discursiva, incentivadora e questionadora da democratização de expressões e comportamentos culturais (ROSAS, 2006), debate-se a estratificação de classes e a ordem social a partir da reconfiguração simbólica das medidas praticadas no teatro lírico lisboeta, como espaço de representação do mundo, das sociabilidades, do conhecimento. Segundo Bourdieu:

[as] diferentes classes e fracções de classes estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social mais conforme aos seus interesses, e imporem o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais (BOURDIEU, 2011, p. 8).

A nomeação de João Freitas Branco para a direção do Teatro de São Carlos em 1970,3 figura reconhecidamente conotada com a oposição ao regime, configura-se como um marco simbólico, não só das inconsistências internas do regime e da sua manifestação nas políticas culturais após a morte de Salazar, como o início de um percurso em que se procura repensar a identidade e o funcionamento de uma estrutura autocrática assente na exibição do prestígio social das elites, no sentido de se integrarem medidas que possam favorecer uma lógica democrática.

Nos objetivos do programa de Freitas Branco para o Teatro de São Carlos distingue-se, por um lado, o desejo de promover o acesso aos espetáculos a uma audiência mais vasta e diversificada, e por outro, a vontade de proporcionar através de uma mudança dos paradigmas de produção, uma participação intelectualmente mais ativa e crítica por parte do espectador. Será um período fortemente marcado pelas tensões entre a necessidade de restruturação das normas que regem esta instituição e as forças que atuam no sentido de manter uma conformidade com o que são considerados os padrões de conduta convencionais. Se, na prática, como refere Mário Vieira de Carvalho no seu estudo de referência sobre este teatro, as medidas da sua reforma foram quase todas interditadas pelo governo vigente (CARVALHO, 1992, p. 257), várias das metas estipuladas viriam a ser observáveis ao longo da década de 1970, nomeadamente durante a direção artística de João Paes, assumida em finais de 1974, depois de Freitas Branco ter aceite o cargo de diretor-geral dos Assuntos Culturais no novo governo.4

Na primeira temporada do S. Carlos após a revolução, que se inicia a 10 de Janeiro de 1975, optou-se “por uma política de preços populares”, como está mencionado no jornal República (1975). Os bilhetes para as récitas líricas passaram a custar entre 20 e 100$00, preços igualmente aplicados no Coliseu dos Recreios, o que revela numa baixa significativa dos valores anteriormente praticados, tornando-se equivalentes aos da maioria dos teatros, como se refere no Diário de Notícias da referida data. Recorde-se que ainda no ano anterior, os bilhetes mais dispendiosos de plateia atingiam os 350$00. O regime de assinaturas é igualmente abolido, e os lugares de frisas, camarotes e torrinhas5 começam a ser adquiridos individualmente (República, idem). Com a mesma finalidade de garantir o acesso a novos públicos, deixam de poder adquirir-se em simultâneo bilhetes para toda a temporada, passando estes a disponibilizar-se de modo faseado. O traje de cerimónia, que era ainda obrigatório em todas as récitas noturnas, deixa igualmente de ser requerido.

Recorde-se que a distinção de classes era ainda vigorosamente estabelecida, em inícios da década de 1970, pela associação entre o custo do bilhete e o acesso, ou interdição, a determinados espaços do Teatro. Este sistema simbólico garantia a distribuição de diferentes segmentos socioeconômicos pelos espaços de um dispositivo arquitetônico desenhado precisamente, na sua gênese, com a finalidade de garantir a exibição da diferenciação dos espectadores (BOURDIEU, 2010). Associavam-se às normas de gestão e delimitação espacial, as regras sobre a indumentária que reforçavam a identificação visual das desejadas diferenças. Assim, apesar da obrigatoriedade do uso do traje de cerimônia, os espectadores com bilhetes de varandas, torrinhas e camarotes de 4a ordem, estavam dispensados de o envergar, sendo, além disso, convidados a aceder ao seu lugar pela escada de serviço (pelo Largo do Picadeiro), e não pela porta principal do teatro. Dois anos antes da revolução, em 1 de Abril de 1972, Júlio de Magalhães comentava estas regras, no Diário de Lisboa, num texto intitulado “Ter ou não ter ‘smoking’” que passo a citar:

Uma récita de gala para abertura da temporada, admite-se; récitas de gala para todos os espectáculos nocturnos é um exagero inexplicável para qualquer pessoa de bom senso, a menos que seja motivo para uma parada de elegâncias ou pretexto para impedir a entrada na casa de Euterpe daqueles que não possuem o “fato6 adequado” (...). (grifo no original) (MAGALHAES, 1972, p. 6).

Quanto às regras de acesso aos espaços, Magalhães relata: “para evitar as misturas, as pessoas ‘mal vestidas’, que entram pela escada de serviço, não têm ordem dos empregados de descer da sua 4a ordem (dos camarotes) até ao salão ou ao ‘foyer’, mesmo que seja para contactar com pessoa amiga que se encontre nos pisos inferiores” (grifo no original) (p. 6).

A necessidade de contestar a ideologia fascista e as suas políticas culturais, irá favorecer uma grande liberdade no vestuário escolhido para assistir aos espetáculos apresentados em S. Carlos após o golpe militar. O uso de guarda-roupa casual torna-se um índice do processo revolucionário. Sobre esta mudança de costumes, Mário Moreau afirma, não sem denunciar certa nostalgia,

Daí resultou que, de uma tradição de muitos anos, por certo esteticamente bonita, mas convenhamos que incómoda e já a desajustar-se das realidades da vida actual, se caiu no extremo oposto, passando a ver-se inúmeros novos espectadores que, ostensivamente, entravam no S. Carlos com trajes próprios para andar por casa, pelas docas, ou pelas vielas da Mouraria (MOREAU, 1999, p. 210-211).

O autor concluirá que este período de ruptura com a tradição dará rapidamente lugar a um meio-termo, para ele, mais adequado: “felizmente que, após alguns meses, passou a “fúria operática” a tais espectadores e reencontrou-se o equilíbrio e o bom senso” (MOREAU, 1999, p. 211).

À abertura dos espaços do Teatro a novos públicos, associa-se uma missão pedagógica que se traduz na organização de ações de sensibilização e divulgação, compreendendo designadamente a abertura dos ensaios gerais e a realização de sessões comentadas, contando esta iniciativa com a colaboração da Juventude Musical Portuguesa, sob a direção de João Paes, no contexto dos “ciclos de música viva”.

João Paes argumenta: “O que pretendemos é chamar o público jovem a concertos, óperas ou, seja ao que for, a tudo aquilo que represente uma cultura musical viva” (1973,

p. 3). José Atalaya subscreve este projeto, considerando que “A curiosidade da juventude está hoje orientada no sentido do ‘como’ e do ‘porquê’, contrariamente ao que sucedia no tempo dos nossos avós, quando havia aquele gosto pelos ‘mistérios da arte’... Essa mentalidade está ultrapassada” (PAES, 1973, p. 5). Nestas afirmações observa-se a necessidade de se proceder a uma dessacralização dos rituais da escuta do repertório lírico, e dinamizar a sua fruição num espaço vivo e não hierarquizado. Por entre aquele que fora apelidado por Tomaz Ribas de “admirável novo público do Teatro de S. Carlos” (RIBAS, 1974, p. 3), encontram-se, segundo o mesmo, jovens estudantes, trabalhadores e artistas, intelectuais e escritores.

Assume-se como uma crítica à própria ditadura, aquela recorrente a um sistema de comunicação que constrói a ideia de prestígio a partir da capacidade econômica e política de consumo cultural. Tomaz Ribas, em Outubro de 1974, reporta-se a este público “tradicional”, dizendo:

[bem] merece ser criticado e ridicularizado: pessoalmente nunca deixei de o fazer na minha atividade de crítico, o que me valeu ser várias vezes chamado à atenção por ‘gente muito bem’ que me perguntava se seria legítimo e ‘elegante’ um funcionário do

S. Carlos referir-se em termos menos formais ao público do mesmo teatro (...). (grifos no original) (RIBAS, 1974, p. 3).

Ribas conclui, “pobre gente que pensava que ser-se pago para trabalhar significa ser-se pago para encobrir a verdade e lisonjear, e que confundia a posição do funcionário com a do crítico!” (RIBAS, 1974, p. 3). Observe-se o modo como o autor caracteriza o público do S. Carlos antes do golpe militar do 25 de Abril:

[gente] endinheirada, bem fornecida de joias, ‘snobe’ e fria (...), gente que se utilizava dos lugares oficiais, esta, ignorada, mas igualmente ‘snobe’ e fria que caracterizava a assistência da noite, [...] gente que verdadeiramente ama a música e o ‘ballet’ e que, com grande sacrifício das próprias bolsas, frequenta (utilizando os lugares mais baratos) os espetáculos da noite e esgota as lotações dos espetáculos das tardes (grifos no original) (RIBAS, 1974, p. 3).

Condena-se a frequência do ritual operístico que depende da construção de um prestígio social através de uma negociação com dimensões simbólicas deste espetáculo elitista, e identifica-se o surgimento de novos segmentos de público no início do processo revolucionário. No entanto, apesar desta expectativa de renovação, diversificação e ampliação do público, passados seis anos, Vieira de Carvalho declara que “o modelo salazarista dos anos quarenta continua vivo, praticamente inalterável, no Teatro de S. Carlos” (CARVALHO, 1980, p. 16). Ele reclama, precisamente, para a ópera portuguesa “um público novo ou rejuvenescido que passe a ir à opera em busca do teatro total e não do timbre ou dos requebros vocais de meia dúzia de cantores de nomeada” (CARVALHO, 1980, p. 16). Pode afirmar-se que, apesar das medidas tomadas no sentido de se incentivar uma democratização da frequência ao Teatro de S. Carlos, os modelos de programação e sobretudo, os cânones de representação ali praticados, não acompanham esta mudança. Transmite-se a necessidade de uma transformação da ordem social, constatando-se que o processo democrático está ainda numa fase experimental, pelo questionamento das práticas das instituições culturais, denotadoras das ideologias do exercício de poder. Contudo, ao desejo de mudança associa-se uma necessidade de estabilidade e de nova ordem. Será mais fácil remodelarem-se as dimensões práticas de acesso ao teatro do que reinventar, no sentido de se reconhecerem os novos paradigmas internacionais, os rituais estéticos e ideológicos da comunicação lírica.

A importância da imprensa escrita, e especialmente dos diários, nos anos que se seguem ao 25 de Abril, é decisiva, constatando-se que a informação e a crítica cultural são particularmente reativas aos acontecimentos, que procuram prever, acompanhar e recensear, de modo imediato e investido. A liberdade de expressão confere a possibilidade de uma ação mais enérgica e radical. É frequente um discurso imediato, imbuído de ideia de revolução cultural na qual a arte e a vida encontram-se unidas, sem fronteiras.7 Reiterados debates ocorrem na imprensa, sejam eles relacionados com o Teatro de S. Carlos, ou com a cessante Companhia Portuguesa de Ópera, afiliada ao Teatro da Trindade,8 que incidem sobre as politicas e ideologias da programação cultural.

O cantor Gonçalo das Neves ao Diário Popular (1974, p. 12) afirma: “É uma injusta arbitrariedade o facto de serem os cantores nacionais a pagar os impostos à Nação e os estrangeiros a levar o dinheiro”. Enquanto isso, Serra Formigal, Diretor da Companhia Portuguesa de Ópera, em reação às invectivas feitas pelo tenor Vasco Gil em 10 de outubro de 1974, numa entrevista publicada no mesmo jornal, afirma ter sido preterido por colegas estrangeiros:

A direcção deste Teatro faz votos para que o tenor Vasco Gil, em vez de fazer entrevistas como a presente, em que abundam declarações menos verdadeiras a que me vejo obrigado a responder, intensifique antes os seus estudos musicais e cénicos para suprir as dificuldades que ainda o afligem, pois que a voz, a matéria prima, é de óptima qualidade e já conseguiu uma forma técnica apreciável após o trabalho feito a expensas deste Teatro (GIL, 1974, p. 14).9

Se a temporada de 1975 do Teatro de S. Carlos encontra, nos críticos musicais, jornalistas e intelectuais que sobre ela se manifestam, uma generalizada satisfação com as alterações das práticas de frequência; isso não impede a demonstração de preocupações pelas consequências na conjuntura cultural e educativa do que João Caldas e António Wagner designam, no jornal Sempre Fixe, como as suas “incoerências” (CALDAS; WAGNER, 1975, p. 8).

É interessante observar como se debatem os conceitos e as práticas de democracia e de liberdade, sem deixar de se temer a desordem, através dos discursos e análises sobre as políticas culturais da principal casa de ópera do país. Projetam-se sobre o espetáculo lírico e os seus hábitos, os desejos de revisão e alteração profunda das políticas culturais do Estado Novo. Interroga-se, deste modo, como é possível reencontrar ou construir os símbolos de uma problemática identidade sociocultural nacional. No momento em que se estreava Elegy for Young Lovers, de Hans Werner Henze, primeira ópera da temporada, decorria uma manifestação de estudantes e professores do ensino artístico, constituída, sobretudo por representantes do Conservatório Nacional, que se insurgiam contra a política de subsídios do Ministério da Educação e Cultura. No comunicado que distribuem à entrada do teatro, e que irão arremessar a partir da torrinha após o primeiro ato da récita, os referidos agentes alegam que se retira dinheiro das escolas; gastando uma fortuna na vinda de artistas estrangeiros, o que sucede em detrimento do desenvolvimento cultural do país. Caldas e Wagner relatam, no artigo acima mencionado do jornal Sempre Fixe: “Será por se dizer que os espetáculos do São Carlos são para o Povo, que o são realmente? Será por se dizer que já não é preciso usar ‘smoking’ que se está a fazer uma política cultural em proveito das largas camadas da população?” (CALDAS; WAGNER, 1975, p. 8).

Não deixa de ser igualmente revelador dos diversos planos de tensão e mesmo de ambivalência entre as dimensões estéticas e ideológicas nos discursos sobre a cultura em geral e a música em particular no período pós-25 de Abril, o fato destas contestações ocorrerem precisamente na estreia portuguesa de uma ópera que se propõe desmistificar a figura romanticamente construída do artista como herói, numa denuncia da instrumentalização das narrativas sobre o passado, e sendo a filiação de esquerda do autor bem reconhecida. Os novos paradigmas da liberdade de expressão constroem-se no meio de um questionamento da própria noção de processo revolucionário, numa época de intensa instabilidade política, social, econômica, na qual o discurso ideológico reveste-se frequentemente de uma postura estética. Vieira de Carvalho, no Diário de Lisboa (1975, p. 6) considera que esta contestação é uma atitude primária que não faz mais do que distrair, daquilo que considera ser o “verdadeiro cerne dos problemas”. O crítico declara que o processo de democratização da cultura ou da educação não poderá se concretizar se o processo revolucionário iniciado pelo golpe militar em 25 de Abril não for adiante. É essa a principal preocupação que expressa, num cenário em que identifica sinais de faltas de esclarecimento acalentadas por reiteradas invocações de valores abstratos, resgatados ao passado.

Apesar de não ser minha intenção aferir, neste contexto, a eficácia da desejada renovação do repertório das temporadas líricas, na sequência das medidas projetadas por Freitas Branco, ou questionar com maior profundidade se o seu programa terá de facto conduzido a uma mudança de paradigma no sistema de produção-recepção deste teatro, não deixarei, no entanto, de mencionar a necessidade de revisão das narrativas que, desde essa data, ratificam o êxito destas ações. Já defendi anteriormente que, em minha opinião, as transformações que se operam ao longo da década de 1970 refletem mais uma expansão das regras democráticas no acesso e organização dos espectadores no teatro, do que uma remodelação dos rituais comunicativos e das práticas de representação. Apesar das novas preocupações manifestadas na programação e na gestão de repertório, não se atinge um relacionamento integrado da parte da instituição, do seu público, e até de uma parte da crítica, com a plenitude de dimensões dramatúrgicas, estéticas e políticas do ato lírico; reiterando-se o enaltecimento das dimensões ‘decorativas’ dos espetáculos bem como o repertório, as práticas e os modelos comunicativos em grande medida associados a paradigmas oitocentistas.

Observe-se que durante as direções artísticas de João de Freitas Branco e de João Paes, foram estreadas em S. Carlos dezessete óperas do século XX que, apesar de introduzirem obras tão determinantes e esteticamente tão diversas como Lulu, de Alban Berg, o manifesto anti-guerra de Dallapicola Il Prigionero, Erwartung de Schoenberg, The Rake’s Progress de Stravinsky, Porgy and Bess de Gershwin, The Turn of the Screw de Britten, ou ainda Os Diabos de Loudun de Penderecky e a já mencionada Elegy for Young Lovers, de Hans Werner Henze, não confirmam a ideia de um incremento significativo de estreias de repertório ‘recente’. Com efeito, constata-se que na década anterior, em pleno Estado Novo, foram estreadas 27 óperas do século XX, ou seja, dez mais do que na década em que se dá a revolução.

No que concerne especificamente ao repertório português, após a simbólica apresentação de D. Duardos e Flérida de Fernando Lopes-Graça10 e durante toda a década de 1970, só se conhecerão duas outras estreias no contexto das temporadas oficiais do teatro em epígrafe: a de Canto da Ocidental Praia, de António Victorino de Almeida (10 de Junho de 1975), e Em Nome da Paz, de Álvaro Cassuto (26 de Fevereiro de 1978). A proporção das estreias de obras líricas portuguesas não irá aumentar desde então, podendo observar-se que, entre 1974 e 2010 foram apresentadas nas temporadas líricas do Teatro de S. Carlos apenas dez estreias absolutas de óperas de compositores portugueses, número que fica certamente aquém das grandes expectativas desenhadas pelos ideólogos das reformas de S. Carlos em inícios dos anos 1970.

Para concluir, refiro que se há, ao longo dos primeiros anos do processo revolucionário, por um lado, uma intensa necessidade de transformação e de contestação da ideologia fascista através de um investimento numa dinâmica de democratização cultural, por outro, receia-se o descontrole social. Esta preocupação é, em minha opinião, evidenciada pela necessidade de se encarar o gênero operístico e os seus modelos de comunicação, no seu centenário exercício de representação do poder e do estado, como um alicerce simbólico cuja reprodução deve conferir segurança e estabilidade numa ordem social em definição. Alteram-se aspectos formais, mas mantêm-se a grande parte das normas de comunicação do gênero ou, se quisermos, da ideologia da ópera burguesa, e com isso, espera-se assegurar, através do conforto do reconhecimento, uma ideia de estabilidade social.

Notas

1 O Teatro de S. Carlos, principal teatro lírico português, situado no centro da cidade de Lisboa, foi inaugurado em 1793, pela Rainha D. Maria I, na sequência da destruição da Ópera do Tejo pelo grande terramoto de 1755. O projeto arquitetónico foi inspirado nos grandes teatros de ópera italianos da época, sobretudo pelo Teatro di San Carlo, de Nápoles e pelo Teatro alla Scala de Milão. Para o aprofundamento de aspectos da história deste teatro durante o século XX ver nomeadamente (CYMBRON, 2009) e (CARVALHO, 1992).

2 Para o aprofundamento do contexto social e político do golpe militar do 25 de Abril de 1974, e do processo revolucionário que aí se inicia, ver nomeadamente (ROSAS, 2006); (REIS, 1985); (REIS, 1992a); (REIS, 1992b); (FERREIRA, 1993); AGUIAR (1985).

3 João de Freitas Branco assumirá esta posição na sequência da morte do anterior diretor vitalício do Teatro de São Carlos, José Duarte de Figueiredo. 4 João Paes é proposto por João de Freitas Branco para o substituir na direção do Teatro de S. Carlos em Agosto de 1974, quando este é nomeado diretor-geral dos Assuntos Culturais (cf. CARVALHO, 1992, p. 259). 5 Torrinha é a designação atribuída, no Teatro de S. Carlos, como em vários outros teatros, aos camarotes de

última ordem. 6 ‘Fato’ deverá ser entendido, em português brasileiro, como ‘terno’. 7 Para aprofundar aspectos relacionados com a situação da imprensa, em Portugal, na sequência do golpe militar

do 25 de Abril de 1974, ver nomeadamente Mesquita (1996) e Palla (1990). 8 Sobre o Teatro da Trindade e as suas práticas durante o Estado Novo veja-se Domingos (2007). 9 Vasco Gil conclui assim o debate publicado neste jornal, com Serra Formigal: “se realmente, como diz o sr.

Director da Companhia Portuguesa de Ópera, tenho uma voz de óptima qualidade que não abunda no nosso meio e que seria pena perder-se, porque tenta destruir-me?” (14 out. 1974, p. 14).

10 Refira-se que entre 1970 e 1974, sob a tutela de João de Freitas Branco, estrearam-se em S. Carlos duas óperas portuguesas, respectivamente de Fernando Lopes Graça (1970-71) e Auto da barca da glória Rui Coelho (na mesma época mas fora da temporada oficial). Nesse mesmo ano foi ainda estreado no 14º Festival Gulbenkian, a 8 de Maio de 1970, Trilogia das Barcas, de Joly Braga Santos. óperas portuguesas, respectivamente de Fernando Lopes Graça (1970-71) e Auto da barca da glória Rui Coelho (na mesma época mas fora da temporada oficial). Nesse mesmo ano foi ainda estreado no 14º Festival Gulbenkian, a 8 de Maio de 1970, Trilogia das Barcas, de Joly Braga Santos.

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Paula Gomes Ribeiro - Doutora e Mestre em Musicologia pela Université de Paris 8. Investigadora e Membro da Direção do CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical), UNL. Leciona no Departamento de Ciências Musicais da FCSH, Universidade Nova de Lisboa, desde 2005. Entre suas publicações inclui-se o livro “Le drame lyrique au début du XXe siècle – Hystérie et Mise-en-abîme” (Paris, Harmattan, 2002). Como encenadora, assinou diversas produções de ópera e teatro musical.