ASCENDêNCIA RETóRICA DAS FORMAS MUSICAIS

ASCENDANT RHETORIC OF THE MUSICAL FORMS

Sérgio Eduardo Martineli de Assumpção - Universidade Federal de São João Del Rei assumpcaosergio@usp.br

Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo investigar as influências e traços da retórica na gênese das formas musicais. Parte-se do pressuposto de que, a partir do desenvolvimento de uma música instrumental autônoma, emancipada da palavra, a herança retórica contribuiu para a disposição formal do material sonoro, bem como para harmonizar coerentemente as relações entre forma e conteúdo. O estudo propõe uma visão da retórica grega e latina contraposta à abordagem tradicionalmente sistemática das formas musicais. Ambas são, então, relacionadas por meio dos conceitos retórico-musicais, estabelecidos e codificados preponderantemente no século XVIII, em consonância com a fundamentação aristotélica. Esta intersecção permite uma reavaliação das práticas analíticas, enriquecendo-as a partir da introdução da metáfora da oração e da função persuasiva que integram o processo composicional. Vislumbra-se, por tais procedimentos, a reavaliação das possibilidades semânticas ocultas pela codificação sintática. Palavras-chave: Música; Retórica; Formas musicais; Análise musical; Filosofia.

Abstract: This research aims to investigate the influences and traces of rhetoric in the genesis of the musical forms. It is based on the assumption that, starting from the development of an autonomous instrumental music, emancipated from the word, the rhetoric inheritance contributed for the formal disposition of sonorous material, as well to harmonize coherently the relation between structure and content. The study proposes a vision of Greek and Latin rhetoric as compared to the traditionally systematic approach of the musical forms. Both are, then, related through rhetoricmusical concepts, established and codified predominantly in the eighteenth century, in consonance with the Aristotelic bases. This intersection permits a re-evaluation of the analytical practices, enriching them with the introduction of the metaphor of the oration and by the persuasive function that integrates the compositional process. One gains a glimpse, that through such procedures, of the re-evaluation of the semantical possibilities hidden by the syntactic codification. Keywords: Music; Rhetoric; Musical forms; Musical analysis; Philosophy.

1. Retórica

Definição

Do grego rhetoriké e de seu correspondente latino rhetorica, é a arte da eloqüência e do bem dizer, arte da oratória e, por extensão, também o conjunto de regras que constituem e organizam essa arte (HOUAISS, 2001).

Correntes

-verossímil: racional e probatório, lógico e razoável

-psicagogia: sedução irracional, persuasão operada pela paixão,

influência pitagórica

Para o pitagorismo, tudo são números: geometria é o número espacialmente proporcionado, música é o número acusticamente manifestado, cálculo é o número em sua abstração pura. O número, portanto, não se reduzia a mero símbolo gráfico a representar as quantidades, mas era portador de um aspecto qualitativo, de uma essência onipresente mas oculta, de uma permanência que a tudo permeia desde dentro e desde sempre. Ao número é intrínseco um valor ontológico.

O poder mágico do número encontra ressonância junto ao poder mítico da palavra. E se, ao fundamentar as matérias quantitativas, o número haveria de abandonar sua prerrogativa ontológica para cumprir uma função didática, mesmo caminho descensional seria traçado pela palavra, ao abdicar de sua força transcendente e, dobrando-se à lógica, procurar fazer-se razoável, para que persuasiva.

-a ressalva platônica: uma crítica sobre a natureza ética da retórica; duas possíveis argumentações a favor da retórica (o exemplo socrático)

-a organização aristotélica: os entimemas (silogismos convincentes mas não irrefutáveis), os gêneros, os estilos, os tópoi, as paixões, as divisões do discurso

-retórica latina: Quintiliano (fontes medievais) e Cícero (conteúdo e forma em equilíbrio):

“De fato, a abundância dos assuntos gera a abundância das palavras; e se existe nobreza nos próprios assuntos de que se fala, surge da natureza do assunto um certo esplendor natural das palavras (...) Assim, facilmente, na abundância dos assuntos, da própria natureza fluirão os ornamentos da oração, sem guia algum, desde que seja ela exercitada.” (CÍCERO apud PLEBE, 1978, p. 68)

-ocaso da retórica grega e latina

2. Retórica Musical

-união entre retórica e música: com os gregos pela função pedagógica mais do que artística -durante a Idade Média: graças às septem artes liberales:

-quadrivium: aritmética, música, geometria e astronomia -trivium: gramática, retórica, dialética (ou lógica) -música teórica (teórica, especulativa, contemplativa): ars musica

-música prática, que por sua vez se dividia em outras duas: -música modulatória: ars cantus, ars executionis -música poética: ars compositionis

-tratados sobre música poética, séculos XVII e XVIII -processo criativo e figuras retóricas -divisões da disciplina retórica:

-Inventio

-Dispositio -Exordium -Narratio -Propositio -Confutatio -Confirmatio -Conclusio

-Elocutio (figuras retóricas) -Memória -Pronunciatio

2.1 Dispositio

Dispositio é a parte do processo na qual as idéias geradas na inventio serão dispostas. Para que essa disposição seja orientada e organizada, há uma subdivisão tradicional da dispositio em seções. Esta subdivisão sofreu pequenas variações desde a Antigüidade, sendo hoje aceita como padronizada a divisão já por nós enunciada no capítulo primeiro, que agora retomamos para aplicá-la à música. A dispositio equivale, ressaltemos, ao início do processo de escrita da partitura no processo composicional, são suas linhas gerais, esboços fundamentais.

2.2 Exordium

O exordium, funcionando como uma espécie de introdução ao tema, silencia o auditório e prepara os ânimos dos ouvintes, solicitando sua atenção para o que virá. É da alçada do exordium conquistar a atenção da platéia. Musicalmente falando, equivale, no século XVIII, ao prelúdio que antecede as fugas ou outras composições do gênero. Por ser o início efetivo do discurso (musical), o exordium deve possuir um caráter convidativo, seja por ousar quebrar o silêncio que o antecede ou por silenciar o que, de outra maneira, obscureceria o início do discurso.

2.3 Narratio

Na narratio temos a clara definição do tema ou assunto principal, demonstrando a intenção do orador ou a natureza de uma composição musical. Equivale à entrada da voz numa ária, ou à primeira frase do instrumento solista num concerto.

2.4 Propositio

A propositio tinha vez na oratória logo após a narratio, pois era comum que após a narração de fatos se propusesse um juízo acerca destes fatos (discursos dos gêneros deliberativo e judiciário). Em música tal divisão não se faz necessária. Assim sendo, por vezes o termo propositio acaba abarcando também as funções da narratio (nas fugas, por exemplo, é costume designar-se propositio à seção inicial na qual o número de partes da composição é revelado pela entrada sucessiva das vozes).

Quando ambas existem, entretanto, a narratio toma o aspecto de uma construção por etapas da idéia central, enquanto a propositio é a enunciação direta desta idéia. Assim entendida, a propositio é o núcleo do discurso retórico, mais fundamental do que a narratio.

2.5 Confutatio

Na confutatio ou refutatio têm lugar os argumentos que se opõem ao tema principal, num enfrentamento que gera tensão e instabilidade. Na música equivale aos momentos modulatórios e às visitas a outras regiões tonais, normalmente acompanhadas por variações do material temático. É

o momento preferencial para a utilização dos cromatismos e das passagens contrastantes (presentes, por exemplo, nas fugas). O melhor exemplo, entretanto (e que escapa aos domínios da música do século XVIII, corroborando a tese por nós apresentada neste estudo), nos parecem ser os desenvolvimentos presentes na forma sonata.

Na oratória, a exposição, já pelo próprio orador, das idéias e objeções que pudessem ser utilizadas por seus opositores para combater seus pontos de vista consistia em rebuscada técnica, admirada e valorizada, por permitir ao ouvinte perceber a amplitude e profundidade com que o orador discernia o assunto que ora expunha. Além disso, contribuía para a avaliação ética do orador na medida em que este, ao não silenciar sobre contradições que se opusessem a sua argumentação, expunha a honestidade e lisura de seus propósitos, bem como a altivez e a honra de seu caráter.

2.6 Confirmatio

Como o próprio nome indica, temos aqui a confirmação das idéias principais, sendo superadas as objeções apresentadas na confutatio. Em música, é caracterizada pelo retorno à estabilidade da tonalidade principal, pelo apaziguamento dos materiais temáticos propostos, ao mesmo tempo em que, por reiterar, sugere uma reexposição do que fora enunciado na narratio (ou propositio).

2.7 Conclusio

A conclusio (ou peroratio) é a conclusão do discurso ou da composição musical. Em música pode significar uma cadência final cuidadosamente preparada ou ainda conter uma repetição literal ou ligeiramente mo-dificada do exordium. Nas fugas, corresponde ao pedal sobre a dominante ou tônica que anuncia o término das imitações, podendo ser toda a coda final de composições outras.

3. Forma Musical e Retórica

-o termo “forma” como um conceito paradoxal: ora uma estrutu

ra geral, cujas características abarcam grande número de obras,

ora como a estrutura particular de uma única peça

-duas abordagens: visão conformacional e generativa (por M. E.

Bonds)

-sonata como forma e como procedimento

Forma sonata não é estrutura pré-moldada, inflexível (embora seja um padrão básico recorrente, não podemos nem queremos negá-lo), mas aproxima-se de uma escritura generativa, à maneira de um procedimento, no qual a coerência e a fluência das idéias são talhadas sob a lembrança do molde. A recorrência de um padrão, estereotipado, é produto da atuação de forças internas, dos conteúdos. O compositor, “inventor” do material, sabe dar aos materiais os contornos que eles mesmos parecem exigir. Reconhecer o que podem os materiais dar de si para a expressão desejada é reconhecer o que neles é persuasivo. E isto é, como já estudamos, procedimento retórico.

É preciso precavermo-nos, entretanto, contra os extremismos aos quais a abordagem generativa pode nos levar; toda perspectiva, por mais rica que se apresente, tem suas limitações. Nem o mais ordenado e cuidadoso desenvolvimento ou crescimento de um material pode resolver uma inadequação deste à finalidade proposta.

O que a aceitação da influência dos processos retóricos na análise formal reclama é a devida atenção que se deva permitir aos conteúdos. Não é a exclusão do conceito abstrato de forma que está em jogo, mas como ele se construiu. Deseja–se corrigir uma eventual tendência analítica que sobrepõe o tipo formal ao material desmesuradamente, desprezando as características de seu conteúdo.

-planos harmônico e temático na forma sonata: as inadequações da análise de parte do repertório quanto comparadas às definições formais podem ser assim respondidas

Historicamente, parece haver na gênese da forma sonata, a priori, a definição de um plano harmônico, não de um plano temático. A segunda metade do século XVIII, momento desta gênese, enfatiza a realização deste plano harmônico. Apenas no século XIX é que cresceria a ênfase dada ao plano temático, e a recorrência dos temas principal e secundário passaria a sobrepujar então o cumprimento do plano harmônico original:

“A disputa sobre se a forma sonata é uma construção harmônica ou temática ilustra os limites da definição [de forma]. A maioria dos estudiosos hoje concordaria que a resposta depende, em grande parte, se alguém está se referindo às teorias formais do século XVIII ou do século XIX. Por quase todo o século XIX e até o século XX, os escritores geralmente vislumbraram a forma sonata como uma construção temática.” (BONDS, 1991, p. 32)

E a justificativa para esta variação formal é, curiosamente, harmônica:

“Como o idioma harmônico tornou-se crescentemente cromático no curso do século XIX, a tradicional polaridade entre dominante e tônica começou a perder seu papel central na estrutura dos movimentos em forma sonata: os compositores começaram a modular em direção às mais diferentes tonalidades, tanto na exposição quanto na recapitulação. Assim, o conceito novecentista de forma sonata colocou especial ênfase na presença de um contrastante ‘segundo tema’ na exposição.” (BONDS, 1991, p. 33)

-bipartição e tripartição na forma sonata: o incremento da harmonia subsidia o crescimento do desenvolvimento, transformando uma estrutura bipartida em tripartida

Nossas conclusões sugerem que o século XVIII conheceu uma forma sonata organizada mais sobre um plano harmônico do que temático, no qual a região harmônica determina a função do material na estrutura mais do que seu perfil melódico (especialmente quanto ao tema secundário), e que se apresentava bipartida. (...) Tal estrutura evoluiu paulatinamente para uma priorização melódico-temática durante o século XIX, com maior atenção dada ao caráter contrastante dos temas, alargamento das relações harmônicas e das proporções do desenvolvimento, que culminaram numa estrutura tripartida, cujo caráter geral é mais emotivo, porque melódico. A prioridade harmônica é mais indicada para superar outras discrepâncias que se apresentem, e assenta-se em sua precedência sobre os planos temáticos.

-orientações pragmática e expressiva:

-orientação pragmática: composições instrumentais como orações sem palavras, que buscam comunicar um afeto específico, portanto dirigidas ao ouvinte, do qual se espera uma resposta emocional específica (à maneira da persuasão retórica)

-orientação expressiva: ideais românticos de expressão individual reduzem o papel da audiência; esses são os pressupostos analíticos que herdamos

-música instrumental: oração sem palavras

-mimese em música -música vocal e música instrumental -a natureza imitada -a (in)capacidade descritiva da música -o discurso musical como proposição sintática -o sistema tonal como referência psíquica para tensão e re

laxamento -o sistema tonal como um dado cultural comum -proposições sintáticas auto-referenciais e respostas emo

cionais: a memória da espécie

-gramática musical e retórica: a gramática é requisito essencial à composição, mas é necessária a construção de uma rede de conexões, intrínseca à linguagem musical, que una os elementos gramaticais de maneira que se façam convincentes; isto é função da retórica

É, pois, pelos pressupostos da retórica que os discursos se fazem persuasivos, pois ela orienta os elementos da linguagem na direção correta, segundo a finalidade que se busca atingir. Ao valorizar as conexões entre elementos a partir de uma idéia final, perseguindo obstinadamente a persuasão do ouvinte, a retórica acaba por determinar a hierarquia das idéias e de seus entrelaçamentos. E, na evolução da linguagem musical, cronologicamente observada, tais pressupostos retóricos precedem o nascimento dos tipos formais, permeando perspicazmente sua gênese. Claro está, portanto, que esta constatação ratifica a ascendência retórica das formas musicais.

-tema como elemento retórico-formal: o páthos pretendido determina a feição geral da composição e organiza o acúmulo das frases e períodos; este páthos é comunicado primordialmente pela enunciação do tema

A forma é, sob este prisma, essencialmente, temática. É o caráter do tema que determina suas possíveis elaborações, e essas elaborações “abrem caminho” por entre as partes do dispositio, cuja maleabilidade já consta, inclusive, como preceito da retórica. O conteúdo temático preenche a forma, soprando-a desde dentro, de maneira a moldá-la segundo suas necessidades (as do conteúdo). Do conteúdo parte-se em direção à forma. Entretanto, como há uma premeditada e providencial convergência entre o conteúdo utilizado e a forma pretendida, uma certa adequação formal nunca pressupõe a desfiguração completa do padrão, mas antes um enriquecimento eventual de suas premissas.

-melodia e Hauptsatz: a partir da função formal do tema, reconhece-se a importância do fluxo melódico, tomado em amplos termos, que perpassa as composições; Hauptsatz é a idéia principal que esta generosa melodia contém, e que subsidia a adequação aos gêneros

-o conceito abstrato de forma: é oriundo da sobreposição da orientação expressiva à pragmática, e da anteposição da visão conformacional à generativa; está na raiz do declínio da retórica como diretriz da composição musical; a metáfora da oração é substituída pela metáfora do organismo

Não se tratava mais de reunir os espíritos de toda a audiência e encaminhá-los a uma expressão desejada, mas de fazer desejada a expressão única do compositor. No primeiro caso é função do compositor fazer-se persuasivo para que convincente; no segundo, é função da platéia desvendar os segredos comunicados, bem como é de sua responsabilidade ser capaz de fazê-lo.

Conclusões

Com a lenta emancipação da música da palavra no século XVIII, a autonomia da música instrumental exigiu que formas musicais específicas se erigissem, para abarcar o material musical em franco desenvolvimento. Neste ponto, divisor de águas, situam-se os cruciais desafios que a retórica enfrentou e logrou superar.

Em primeira instância, permitir que uma semântica permanecesse veladamente atrelada à sintaxe musical, sem desautorizar a especificidade musical que essa sintaxe reclamava, mas subjazendo na ancestralidade psíquica que a ligação entre música e palavra houvera construído. Esta ancestralidade é simbólica e emocionalmente erigida, mas as origens dessa conjugação simbólica estão enraizadas em conceitos pitagóricos, traduzidos pela intrínseca dimensão ontológica da qual número e palavra são portadores, segundo reivindicamos.

Em segunda instância, e esta é a tese por nós defendida neste estudo, admitir que a retórica tenha alicerçado a emergência dos tipos formais musicais, pela aplicação da estrutura do processo de criação retórico à música (inventio, dispositio, elocutio, memoria e pronunciatio), e pela utilização de um modelo discursivo básico, apoiado nas divisões da dispositio (exordium, narratio, propositio, confutatio, confirmatio e conclusio).

Entretanto, a ascendência retórica das formas musicais não limita-se à aplicação das divisões acima expostas, mas também remete-se à análise das relações entre forma e conteúdo que norteiam toda nossa investigação.

Referências:

BONDS, Mark Evan. Wordless rhetoric: musical form and the metaphor of the oration. Cambridge, Massachussetts and London: Harvard University Press, 1991.

PLEBE, Armando. Breve história da retórica antiga. Trad. Gilda Naécia Maciel de Barros. São Paulo: Edusp, 1978.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Sérgio Assumpção - Professor de regência e teoria da música na Universidade Federal de São João Del Rei, é também professor conferencista da Universidade de São Paulo (regência orquestral). Doutorando em música pela USP, sob a orientação do Prof. Dr. Eduardo Monteiro, é mestre e bacharel em música por esta mesma universidade, além de ser formado pela Fundação das Artes de São Caetano do Sul. Estudou harmonia e contraponto com Orlando Marcos Mancini, composição com Willy Correia de Oliveira e regência com o Maestro Aylton Escobar. Foi professor da Fundação das Artes de São Caetano do Sul por 13 anos, atuando nas áreas de harmonia, contraponto, análise e percepção musical. É regente titular da Orquestra Sinfônica de Rio Claro e do Coro do Colégio Visconde de Porto Seguro.