A MÚSICA POETICA E A IMPORTâNCIA DA RETóRICA NAS ARIAS DAS CANTATAS SACRAS DE JOHANN SEBASTIAN BACH

THE MUSICA pOETICA AND THE IMpORTANCE OF THE RHETORIC IN THE ARIAS FROM THE SACRED CANTATAS BY JOHANN SEBASTIAN BACH

Katia Regina Kato Justi - Unicamp pkjusti@uol.com.br

Resumo: Este trabalho propõe a investigação, do ponto de vista da retórica, da utilização do oboé, oboé d’Amore e oboé da Caccia, nas árias sacras das cantatas de Johann Sebastian Bach, com especial ênfase nas árias compostas para um instrumento obbligato. Avaliamos a grande importância das doutrinas da Musica Poetica e da retórica na vida e no pensamento musical alemão e como essas doutrinas influenciaram as composições de Bach. Finalmente buscamos traçar relações entre os aspectos retórico-musicais e a utilização do oboé obbligato nas árias sacras com os afetos da confiança e do temor. Palavras-chave: J. S. Bach; Cantatas; Árias; Oboé; Retórica; afetos.

Abstract: This work aims at investigating, from a rhetoric point of view, the use of the oboe, oboe d’Amore and oboe da Caccia, with special emphasis in the arias composed for an obbligato instrument, in the sacred arias of Johann Sebastian Bach cantatas. We evaluated the great importance of the doctrines of Musica Poetica and of life rhetorics to the musical German thought. We also evaluated how these doctrines influenced Bach’s compositions. Finally, we tried to trace the relationships between the rhetorical musical aspects and the use of the obbligato oboe in the sacred arias with the affects of trust and fear. Keywords: J. S. Bach; Cantatas; Arias; Oboe; Rhetoric; Affects.

Introdução

Johann Sebastian Bach foi fortemente influenciado pela herança retórica clássica que surge com os gregos, passa pelos latinos, pelo Humanismo e se torna elemento essencial no Movimento da Reforma Luterana, movimento este que especificamente através de seu criador Lutero, passa a valorizar a música tanto como obra divina quanto como elemento doutrinador e encontra em Bach o seu mais legítimo representante. Bach aperfeiçoa o sermão sonoro luterano em suas cantatas, aproximando-o ainda mais ao análogo sermão falado, cujas intenções específicas podem, contemporaneamente, passar despercebidas pelo ouvinte, apreciador apenas da beleza sonora.

A grande influência da Musica Poetica, bem como sua importância, poderá também ser percebida na obra de Bach. Através dela houve uma mudança de status dos músicos do período, transformando-os em verdadeiros pensadores que sob esta influência, agregariam às suas obras musicais elementos da filosofia, da religião, da retórica, da simbologia, etc..

Este estudo dos elementos históricos e filosóficos que influenciaram os compositores nos permite não só ampliar nossos conhecimentos, quase sempre restritos às impressões imediatas, mas acima de tudo nos possibilitam olhar e ouvir a música de maneira mais profunda. As árias de Bach ouvidas sob os enfoques dos afetos, vistas sob a retórica em sua construção, entendidas como sermão sonoro, de certa forma eliminam a distância temporal que existe entre nós e os contemporâneos de Bach.

1. A Musica Poetica

A constatação do homem de que é um “permanente” pecador, carrega consigo uma angústia apavorante que fez com que os Reformadores do séc. XVI e, depois deles, todos os mestres pensadores do Protestantismo, vissem na doutrina da justificação pela fé1 a única teologia capaz de tranqüilizá-lo. Esta angústia se materializava pelo medo do castigo e das penas eternas. Além da justificação pela fé, outra característica da doutrina Protestante era a pregação do medo feita através dos sermões, que visava fazer com que os fiéis abandonassem seus pecados e buscassem a salvação. A Alemanha luterana muito cedo viu aparecerem modelos de sermões, de início muito esquemáticos, depois cada vez mais desenvolvidos, que sufocaram progressivamente a espontaneidade e o profetismo que marcavam as palavras de Lutero. A homilética luterana espalhou-se dentro de um molde retórico esboçado por P. Melanchton (De Officio concionatoris, 1537) e mais tarde aperfeiçoado por Andreas Hyperius (De Formandis concionibus sacris..., 1533), onde afirmava que: “os sermões visam instruir, exortar, repreender e consolar”. Destes moldes retóricos surge então a divisão clássica dos sermões luteranos divididos em: 1) Lehre (doctrina) seguida, às vezes, de uma refutação (Widerlegung) das posições adversas; 2) Mahnung (exortatio) visava o convencimento; 3) Strafe (objurgatio) parte do discurso em que ocorriam as censuras e ameaças de castigo; 4) Trost (consolatio) onde ocorria o consolo (DELUMEAU, 2003, p. 316). Em semelhante esquema, o par castigo-consolação (Strafe-Trost) aparecia como inseparável. Pedia-se ao orador, a partir de uma exposição doutrinal, para inspirar nos ouvintes quatro sentimentos agrupados em dois conjuntos: o amor de Deus e

o ódio do pecado; o medo do castigo e a confiança no Salvador. Semelhante molde retórico ocorria na cantata luterana, que tinha como base o texto sacro e exercia enorme influência sobre a música a ser composta. O texto ou era de um tema bíblico retirado dos sermões ou ainda de um tema bíblico retrabalhado. A natureza da influência do texto, assim como a maneira desta influência se exercer estava diretamente ligada a uma nova doutrina de composição musical surgida na Alemanha entre os séculos XV e XVI denominada Musica Poetica. Para o compositor Johann Gottfried Walther em seu manuscrito de 1708, Praecepta der musikalischen Composition (BARTEL, 1997, p. 22) a definição de Musica Poetica era:

Musica Poetica ou Composição musical é uma ciência matemática através da qual uma harmonia agradável e correta dos sons é trazida ao papel para que seja, posteriormente, cantada ou tocada, movendo apropriadamente o ouvinte à devoção a Deus, e portanto também deleitando e agradando o ouvido e o ânimo.(...) É chamada assim porque

o compositor não deve entender apenas de prosódia como um poeta para não violar a métrica do texto, mas porque ele também escreve melodia, merecendo, assim, ser chamado de Melopoeta ou Melopoeus.”

Joachim Burmeister (BARTEL, 1997, p. 10), definiu Musica Poetica como “aquela disciplina de música que ensina como compor uma composição musical (...) de maneira a influenciar os corações e espíritos dos indivíduos em várias disposições”.

A Musica Poetica, portanto, foi uma doutrina composicional (Composicionslehre) criada pelos teóricos luteranos2, então influenciados pelos conceitos retóricos, éticos, políticos e poéticos do Renascimento humanista e por um reavivamento das disciplinas de lingüística e retórica, que buscava unir a racionalidade e a proporcionalidade matemática da teoria da música aos conceitos e fundamentos da retórica, visando, através e pelo texto, atingir, persuadir e afetar os ouvintes pela música executada. Ela estabelecia-se como um conceito único de composição, que procurava um equilíbrio entre ciência e arte, ratio (razão) e sensus (sensibilidade), especulação e habilidade.

A partir do desenvolvimento da Musica Poetica, a música passa a assumir um caráter menos especulativo e mais prático, e como conseqüência, a música instrumental e seus compositores assumem um novo status, passando assim a ser mais valorizados. O compositor teoricamente informado tinha agora uma elevada importância como musicus poeticus, assumindo o lugar do teórico musicus medieval. Esta importância se dava ao fato de que, enquanto os teóricos medievais apenas conheciam as regras, não sabendo na prática como aplicá-las, e por sua vez os executantes podiam compor e tocar de acordo com as regras, mas não podiam entendê-las ou explicá-las, o músico ideal deveria ser um especialista em ambas as áreas, aquele que sabia compor e executar de acordo com as regras.

A influência luterana sobre os compositores alemães deste período era clara e seguindo os preceitos luteranos de composição, as duas dádivas divinas, a música e o evangelho, deveriam se transformar no “Sermão sonoro” (Sonora praedicatio) que seria executado durante as funções religiosas. O sermão sonoro tinha, além da função pedagógica, também a responsabilidade de persuadir e mover afetivamente os ouvintes, levando-os a uma grande devoção divina, convencidos intelectualmente pelo texto e movidos em suas paixões pela música. Este sermão musical seria feito de acordo com a antiga e distinta disciplina da retórica3, que durante o período da Reforma Luterana era ensinada pelo Kantor, juntamente com a disciplina de música, na Lateinschule.

Johann Mattheson4 (1999, 146-147 p. 236) em seu tratado Der vollkommene Capellmeister de 1739, sintetiza o pensamento do período sobre a importância do uso dos afetos, quando diz que: “em suma, tudo o que ocorre sem afecção nada significa, nada faz e é pior que nada”. O gênero barroco mais importante para retratar e provocar os afetos do texto, segundo Bartel (1997, p. 53), foi a ária. Ela surge como pontos climáticos de óperas, oratórios e cantatas para comentar ou refletir sobre os procedimentos do libretto. Erdmann Neumeister, que forneceu numerosos libretti para as cantatas sacras de Bach, definia as árias como sendo “a alma de uma ópera”.

Bach, talvez o maior compositor da linhagem da Musica Poetica, tinha muita familiaridade com a arte da retórica e em suas cantatas utiliza-va-se com grande competência de estruturas, métodos e artifícios retóricos análogos aos dos sermões. Do mesmo modo que o sermão, a composição musical também era considerada a “voz viva do Evangelho” (viva vox evangelii) e os compositores, assim como os pastores, deveriam usar os artifícios artísticos necessários para convencer os ouvintes, afetando-os e levando-os à virtude. Fazia parte das funções de um mestre-de-capela, conforme indica Mattheson (1999, 15-16, p. 66): “(...) saber representar em suas composições as virtudes e os vícios, instilando amor por estas e repulsa àqueles na alma do ouvinte”.

2. A Virtude e o justo meio aristotélico

Aristóteles (1991, p. 9) inicia a Ética a Nicômaco afirmando: “Admite-se geralmente que toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda escolha, têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem.”

Chauí (2005, p. 440) explica esta afirmação dizendo que a ética, por definição, é uma ciência prática, ou seja, um saber que tem por objeto a ação. Como tudo na natureza, o homem age tendo em vista um fim ou uma finalidade e todas as atividades humanas têm como finalidade um bem. O bem ético do indivíduo, o fim ao qual todo indivíduo aspira é a felicidade, felicidade esta que é alcançada através da virtude. O próprio Aristóteles (1998, 1360b, p. 61) reforça esta idéia quando na Retórica afirma: “Seja, pois, a felicidade o viver bem combinado com a virtude.

Milch (1966, p. 43) ao comentar Aristóteles, corrobora estes pensamentos ao dizer que o objeto do desejo (isto é, o fim a que os homens aspiram) é sempre o bem no sentido absoluto, e este bem é conseguido através das virtudes. Segundo ele, a virtude é uma disposição da alma segundo a qual, quando ela tem de escolher entre ações e sentimentos5(afetos), conserva o meio termo relativo a si própria. A virtude opera sempre em duplicidade: com o sentir e com o agir, e a virtude no homem é a característica que faz dele um bom homem e o faz desempenhar bem a sua função.

Este interligado sentir e agir, matérias-primas da virtude, pode ou não ser dividido em partes de maneira proporcional. O equilíbrio encontrado entre as partes pode ser definido como a justa medida, meio-termo ou justo meio. O justo meio, portanto, pode ser sempre determinado por referência aos dois vícios, ao do excesso e da falta, sendo o ponto médio dos sentimentos (afetos) e ações. Este meio termo, ou justo-meio, é determina-do por um princípio racional, que seria formulado por uma pessoa dotada de bom senso e de sabedoria prática. Milch (1966, p. 43) afirma que todos os vícios excedem em emoção e ação, ou ainda, não alcançam aquilo que a virtude requer, mas a virtude moral é sempre capaz de descobrir e escolher o justo meio.

Mattheson (1999, 15-16, p. 67) faz uma conexão de virtude com afetos e explica que: “todo homem sábio (Weltweisen) deve saber o que são os afetos, como incitá-los e controlá-los. Eles são a matéria verdadeira da Virtude, que não é outra coisa senão a inclinação de uma alma bem-disposta e prudentemente moderada.” E conclui: “Onde não se encontra nenhuma Paixão, nenhum Afeto, também não se encontra nenhuma Virtude.”

Ainda a respeito das virtudes, Lucas (2005, p. 11) afirma que:

“para autores do começo do século XVIII, a virtude aristotélica é confundida com ideais cristãos, o que permitiu que os fins da arte aparecessem como plenamente adequados para a edificação religiosa. Esta idéia, em voga desde o aparecimento da Poética no século XVI, foi amplamente defendida por autores contra-reformados e também por autores que escreveram na Alemanha protestante.”

O que podemos concluir a respeito da virtude aristotélica nas cantatas de Bach é que ela era a finalidade do compositor, e seria alcançada através dos afetos suscitados no sermão sonoro, ou seja, no conjunto texto-música das árias.

3. Aspectos retóricos nas Árias das Cantatas Sacras

Por ser a arte da retórica, por definição, a arte do bem falar e a arte de persuadir, foi natural que durante a era cristã o uso dela ocorresse nos meios religiosos. Segundo Chauí (2005, p. 482) a teoria retórica de Aristóteles, que se tornou nuclear em todos os tratados de arte retórica, sobretudo nos dos latinos Cícero e Quintiliano, ensina que a ação primordial da retórica é tocar as paixões, despertá-las, provocá-las, pois o orador não se dirige ao intelecto do ouvinte e sim age no seu ânimo. É neste ponto que a ética, que é práxis, se une com a retórica, que é poiesis. Para Chaui, Aristóteles jamais poderia imaginar que isso pudesse ocorrer, porém ele próprio admitia que o mestre da ética deveria começar pela persuasão para conseguir formar os hábitos virtuosos e, com isto, criou as condições para que retórica e ética se tornassem inseparáveis. O retórico imita sentimentos e paixões e por essa imitação é capaz de suscitar no ouvinte paixões e sentimentos.

A Retórica de Aristóteles ocupa-se da arte da comunicação, do discurso feito em público com fins persuasivos, para tanto ele prevê três meios artísticos de persuasão: os derivados do caráter do orador (ethos); os derivados da emoção despertada pelo orador nos ouvintes (pathos); e os derivados de argumentos verdadeiros ou prováveis (logos). O ethos, portanto, é o caráter que o orador deve assumir para inspirar confiança no auditório, pois, sejam quais forem seus argumentos lógicos, eles nada obtêm sem essa confiança. O pathos é o conjunto de emoções, paixões e sentimentos que o orador deve suscitar no auditório com seu discurso. O logos diz respeito à argumentação propriamente dita do discurso (REBOUL, 2000, pp. 48-49).

Aristóteles (1998, 1358a, p. 56) dividiu os gêneros do discurso em três: judiciário (ou forense), deliberativo (ou político) e epidíctico (ou demonstrativo) e argumenta dizendo na Retórica que a divisão se deve às classes dos ouvintes a que se destina. No caso das cantatas de Bach, pelos temas tratados e pela intenção deliberada de convencer os fiéis, o gênero literário de discurso utilizado é o epidíctico, que é um gênero essencialmente pedagógico, muito adequado às pregações religiosas, mais apropriado ao texto escrito e cuja principal função é ser lido (ARISTÓTELES, 1998, 114a, p. 207).

Já na música os gêneros retórico-musicais, também chamados segundo Mattheson (1999, 69-69, p. 137) de estilos ou Schreib-Arten, são três:

o estilo de igreja; teatral e de câmara, cada um com gêneros subordinados, sendo que a subdivisão de estilos6 alto, médio e baixo encontra-se em todos os tipos de escrita. Mattheson acrescenta ainda que o estilo de igreja, que se refere às funções espirituais, não deve ser restrito apenas ao lugar e ao momento, mas sim às ocasiões espirituais (geistlich), às coisas referentes à meditação (Andacht) e de edificação (erbauen). E afirma que, especialmente neste estilo, o intuito geral da música é causar o temor a Deus de maneira razoável (vernünftig), nobre e séria.

Bach tomara ciência da arte da retórica ainda enquanto aluno em seu período em Ohrdruf, estudando entre outros autores Cícero e Aristóte-

les. Eggebrecht (1991, p. 421) diz que Bach “(...) estudava na aula de retórica, além de Cícero, a Rhetorica Gottingensis de 1680, que muito se assemelhava à doutrina aristotélica da arte de falar.”

Sendo a cantata luterana o sermão sonoro por excelência, e sabendo que como dito anteriormente, o Kantor tinha grande familiaridade com a arte da retórica, procuramos identificar nas árias escolhidas alguns aspectos retóricos, sobretudo aqueles que no discurso falado denominam-se Invenção (Inventio) e Disposição (Dispositio), esta última com suas respectivas fases.

A invenção (heurésis, em grego) é a primeira das quatro fases de composição do discurso retórico, que é quando o orador busca compreender o assunto relativo ao tema do seu discurso e reúne todos os argumentos e outros meios de persuasão, que possam servir ao seu propósito (REBOUL, 2000, p. 43).

Mattheson (1999, 120-21, pp. 203-205) diz a respeito da Invenção:

“é facilmente descrita como o ensinar e o aprender. O entendido Donius a denomina: a Invenção ou Imaginação é uma tal maneira de cantar que cai agradavelmente aos ouvidos. (...) Primeiramente o que deve ser considerado na Invenção musical, diz respeito a estas três coisas:frase principal, tonalidade e medida de tempo (thema, modus e tactus), que precisam especialmente ser escolhidos e previamente fixados, antes de se poder pensar em algo posterior, para que a intenção não nos escape.

No processo da invenção musical, Bach procurava identificar o afeto predominante do texto sacro da cantata a ser composta, adequando-o aos materiais que tinha à disposição, tais como tonalidade, fórmula de compasso, escolha de instrumento, etc. Todas essas ferramentas poderiam ser usadas em combinações para produzir uma variedade de afetos, os quais o executante deveria ser capaz de interpretar e dessa maneira atingir a audiência, tentando leva-la a ações moralmente virtuosas e edificantes, unindo assim, o resultado sonoro à ética.

A segunda fase do discurso retórico é a Disposição (Dispositio) que trata da construção do plano do discurso. É dividida classicamente em quatro partes: exórdio (exordium), narração (narratio), confirmação (confutatio) e peroração (peroratio). Na música, Mattheson (1999, 235, p. 348) a divide em seis partes: exordium, narratio, propositio, confutatio, confirma-tio e peroratio.

Aristóteles (1998, 1414B, p 208-211) define o exordium, também chamado de proêmio, e fala da sua função no gênero epidíctico:

Exordium é o início do discurso, que corresponde na poesia ao prólogo e na música de aulo ao prelúdio. Todos eles são inícios e como que preparações do caminho para que se segue. O prelúdio é, por conseguinte, idêntico ao proêmio do gênero epidíctico. Na realidade, os tocadores de aulo, ao executarem um prelúdio que sejam capazes de tocar bem, ligam-no à nota de base. Ora, é deste modo que é preciso compor os discursos epidícticos: tendo-se dito abertamente o que se quer, introduzir o tom de base e conjugá-lo com o assunto principal (...) É por conseguinte, destes elementos que provêm os proêmios dos discursos epidícticos: do louvor, da censura, do conselho, da dissuasão, dos apelos ao auditório. As seções iniciais devem ser ou estranhas ou familiares ao assunto do discurso. (...) A função mais necessária e específica do proêmio é por conseguinte, pôr em evidência qual a finalidade daquilo sobre o qual se desenvolve o discurso. (...) Os elementos que se relacionam com o auditório, consistem em obter a sua benevolência, suscitar a sua cólera, e, por vezes, atrair sua atenção ou

o contrário.”

Mattheson (1999, 236-237, pp. 349-350) define as partes da dispo-

sitio da seguinte maneira: 1) o exordium é a entrada de uma melodia em que, ao mesmo tempo, toda a intenção e objetivo do discurso devam ser mostradas com o propósito de preparar e tornar os ouvintes estimulados; 2) o narratio é uma notícia, um conto, no qual a opinião e a natureza do relato se tornam claros. Ela encontra-se no canto, ou no início do canto, principalmente na voz concertante e relaciona-se ao exordium que o antecede, mantendo com ele estreita conexão; 3) o propositio ou na verdade o relato, contém resumidamente o conteúdo ou objetivo do discurso sonoro; 4) o confutatio é o desenlace da abertura e pode ser expressa na melodia, ou através de combinações, ou através de conduções e refutações; 5) o confirmatio é um fortalecimento artístico do relato. É encontrado geralmente no que a melodia tem de brilhante e é supostamente trazido pelas repetições dentro da estrutura da música e não pelas reprises;

6) o peroratio é o encerramento do sermão sonoro, o qual, entre todas as outras partes, precisa produzir um especial movimento enfático. Costumeiramente nas árias caracteriza-se pela repetição dos mesmos caminhos e sons que foram utilizados no início, ou seja, no exordium.

Nem todas as árias apresentam todas as seis fases do discurso proposta por Mattheson. É preciso lembrar que a ária já é um mini-discurso dentro de um grande discurso que é a cantata. Em nosso trabalho, trataremos apenas das fases do discurso que eventualmente ocorrerem nas árias estudadas.

4. O afeto da confiança e seu contrário, o terror, nas árias sacras

com oboé obbligato de Bach

A definição aristotélica para a confiança é a de ser o justo meio entre o medo7 a e a temeridade. Aristóteles, na Retórica (1998, 1383a, p. 120), define a confiança8 como sendo o “contrário do medo, e o que inspira confiança é o contrário do que inspira medo, de modo que a esperança é acompanhada pela representação de que as coisas que estão próximas podem nos salvar, enquanto as que causam temor ou não existem, ou estão distantes.” E continua afirmando que “infundem, pois, confiança as desgraças que estão longe e os meios de salvação que estão perto, e igualmente se há meios de reparação e de proteção numerosos ou importantes, ou as duas coisas ao mesmo tempo (...)”.

Escolhemos árias nas quais o texto sugere o afeto9 “confiança”, pois este ocorre em maior número de vezes10 dentre as árias sacras selecionadas.

Nas árias, o afeto da “confiança” pode aparecer sozinho ou associado a outro afeto como por exemplo, “compaixão”, “amor” e “favor”, além de estar associado a “consolo” e “fé” que não são afetos previstos por Aristóteles. É preciso ressaltar que nas árias, o afeto “confiança” em algumas vezes aparece “velado”, ou seja, não é apresentado de maneira explícita no texto, mas sim de maneira subentendida. A palavra “vertrauen” (confiar) não aparece explicitada com muita freqüência no texto das árias, mas a ausência da palavra não descaracteriza o afeto da “confiança” que o compositor queria demonstrar, uma vez que deve-se levar em consideração toda a letra do texto. Como um exemplo desta situação, vemos que a palavra “vertrauen” (confiar) não aparece com a mesma freqüência da palavra “trost” (consolo), no entanto, elas possuem a mesma raiz “treu” (ter segurança interna) (BROCKHAUS, 2001, p. 867).

Mattheson (1999, 18-19, p. 71) nos indica a maneira musical de representar a confiança dizendo:

“A esperança é coisa agradável e lisonjeira, que consiste em um ansiar alegre, que move a alma com determinado ímpeto. Sua representação requer a mais suave condução da voz e a mais doce mistura de sons, e para ela um forte ansiar serve como estímulo. Apesar de sua alegria ser apenas moderada, este ímpeto a anima, constituindo a melhor disposição e conferindo unidade aos sons na composição”. E continua afirmando: “o que em certa medida é contrário à esperança, proporciona igualmente uma mesma direção contrária dos sons e denomina-se: o temor (Furcht), a pusilanimidade (Kleinmüthigkeit), o desânimo (verzagtes Wesen), etc”.”

O terror é o contrário da confiança e Aristóteles na Retórica (1998, 1382b, p. 118) diz que as coisas temíveis são as que parecem ter um enorme poder de destruir ou de provocar danos que levem a grandes tristezas. O medo, que acompanha o terror, consiste numa situação aflitiva ou numa perturbação causada pela representação de um mal iminente, ruinoso ou penoso.

Em nossos estudos avaliaremos duas árias de afetos extremos, ou seja, uma de confiança e outra de terror e tentaremos, a partir das diferenças entre elas, estabelecer quais mecanismos Bach utilizou para demonstrar e caracterizar o afeto da confiança.

5. Árias com oboé11

Johann Sebastian Bach compôs ao longo de sua carreira cerca de 5 ciclos anuais completos de cantatas sacras, das quais apenas 200 chegaram até nós. Deste número total de cantatas, Bach não utiliza o oboé em apenas oito delas. Depois dos instrumentos da família das cordas, o oboé foi o instrumento mais utilizado por ele em suas cantatas. Como era praxe no período, o oboé reforça e dobra a linha melódica dos violinos, criando assim uma combinação timbrística única. Além disto, também assumia a função de instrumento solista nas árias das cantatas. Bach compôs ao longo da carreira cerca de 152 árias, entre sacras e profanas, para um ou mais oboé(s), destas, 52 árias de cantatas sacras são para um instrumento solo divididas em: 21 árias para oboé; 23 árias para oboé d’Amore e 8 árias para oboé da Caccia. Curiosamente, se levarmos em conta as árias sacras e profanas, o número de árias escritas para oboé d’Amore é ligeiramente maior que para oboé, e isto provavelmente pode ser explicado pelo fato de o auge do período produtivo de Bach, atingido em Leipzig entre os anos de 1723-25, coincidir com o período, também em Leipzig, do surgimento do instrumento e da disponibilidade de fabricantes e de instrumentistas.

Para tentarmos caracterizar o uso do afeto “confiança”, escolhemos uma dentre um grupo de 16 árias que nos pareceu mais significativa e representativa deste afeto. Tentamos verificar as relações entre o afeto apresentado no texto e as escolhas feitas pelo compositor, tais como; o tipo de oboé, tonalidade, fórmula de compasso, intervalos, etc. Procuramos fazer uma relação entre a composição musical e um discurso retórico, identificando as fases do discurso de acordo com a música.

Os dados históricos permitem crer que Bach, na composição das árias, considerou vários fatores: em primeiro lugar a escolha do texto, de acordo com o período litúrgico em que a cantata seria apresentada com a identificação do afeto predominante; a escolha dos instrumentos adequados ao afeto e isso dependeria de outro fator que era a disponibilidade de instrumentistas e cantores para a execução da cantata no final de semana; a escolha da tonalidade compatível ao instrumento disponível e que mais se adequasse ao afeto proposto e finalmente o uso de elementos simbólicos, tais como fórmula de compasso, intervalos, figuras retóricas, etc.

Afeto da Confiança Cantata -Es wartet alles auf dich (BWV 187) Ano: 1726, retrabalhada em 1740 Período Litúrgico: Sétimo Domingo de Trinitatis Leituras: Epístola: Romanos 6, 19-23 Evangelho: Marcos 8, 1-9

Ária 5 – Gott versorget alles Leben

Autor do texto: Desconhecido Texto:

Deus cuida de todos os seres, De tudo o que aqui respira. Ele não me deixará só, O que ele afirmou a todos? Abandonem as preocupações! A confiança Nele está também em meu pensamento E será renovada diariamente Através de tantos presentes de Amor do Pai.

Gott versorget alles Leben, Was hienieden Odem hegt. Sollt er mir allein nicht geben, Was er allen zugesagt? Weicht, ihr Sorgen! Seine Treue Ist auch meiner eigedenk Und wird ob mir täglich neue Durch manch Vaterliebs-Geschenk

As leituras do dia, sobretudo a do Evangelho, já indicam que a cantata deveria ser composta tendo como afeto a confiança, uma vez que

o tema trata da multiplicação dos pães e dos peixes, ocasião em que Jesus demonstra que o povo escolhido pode nele confiar. Musicalmente a canta-ta, e especialmente a ária, deveriam acompanhar e realçar o tema e o afeto propostos.

6. Partes do discurso musical

Inventio

Instrumento solista: Oboé Voz: Soprano Andamento: Adagio, Un poco allegro, Adagio Fórmula de compasso: C, 3/8, C Tonalidade: EbM. Segundo Mattheson no parágrafro 19 do seu tra

tado de 1713, Das Neu Eröffnete Orchestre, “esta é uma tonalidade que tem muito de patético; não pretende ter a ver com outra coisa senão a seriedade e assuntos tristes, tem ódio figadal a toda e qualquer exuberância.”

Dispositio

Exordium (c.1-5). Visava preparar os fiéis para a instrução que viria a seguir. Nesta ária caracteriza-se pela introdução instrumental, com o oboé apresentando e antecipando o tema que será cantado. Inicia-se com caráter majestoso, de grande sobriedade e seriedade. Se tomarmos a melodia somente com suas notas fundamentais, sem nenhuma ornamentação, temos um pé rítmico12 espondaico (Figura 1), que segundo Mattheson (1999, 164-165; pp. 257-258): “se caracteriza por ter pelo menos duas notas de mesma duração, com ritmo mais simples entre todos os possíveis para a melodia (Ober-Stelle), possui características sérias e respeitosas e de fácil apreensão. Esta observação daria já motivo para uma boa Invenção, se quiséssemos colocar algo religioso, sério, honrado e ainda de fácil compreensão”. Mattheson afirma ainda que: “atualmente, até uma ária toda é realizada desta maneira, de preferência com a voz do canto e o baixo parando e avançando sobre este pé rítmico; com os violinos e outros instrumentos acompanhantes, apresentando muitos ornamentos e figuras em semi-colcheias ou colcheias.”

Figura1: Tema com notas fundamentais – pé rítmico espondaico.

A ocorrência destas observações de Mattheson é confirmada na ária estudada, uma vez que o baixo apresenta num primeiro momento um ritmo majestoso, típico da abertura francesa, sem cromatismos e depois passa a apresentar um ritmo fluente e condutor. Assim, essa movimentação ora majestosa, ora fluente, será alternada na seqüência no narratio com a voz. Enquanto esta movimentação ocorre, o oboé acompanhador, tal como ondas, ornamenta a melodia com muitas fusas e ritmos também condutores, dando muita fluência e complementando a frase musical. No compasso 5 o oboé apresenta uma célula rítmica própria, uma célula que não aparece na linha da voz, composta por tercinas, o que transforma a prolação de imperfeita para perfeita. Tal célula pode anunciar a mudança de compasso que ocorrerá no confirmatio (compasso 21). Simbolicamente o no. 3 representa a Trindade, que se expressa nesta ária tanto no 3/8 quanto nas tercinas. Portanto, desta maneira, o oboé na melodia antecipa a presença do Pai.

Narratio (c.6-20). O narratio tem como função instruir a audiência. Inicia-se com a apresentação do texto cantado pelo soprano. O salto de oitava e o ritmo pontuado, já anunciado pelo oboé no exordium, podem simbolicamente representar Deus. Esta afirmação é corroborada pela letra do texto que diz: “Deus cuida” (Gott versorget). Em seguida, as muitas notas compostas pelas fusas, simbolicamente poderiam representar as vidas, ou os fiéis, de que Deus cuidará. A letra neste trecho aponta: “(Deus cuida) de todas as vidas” (alles Leben).

O oboé tem uma dupla função, acompanha a voz principal em contraponto semelhante à linha melódica principal e estabelece a ponte entre esta parte e a próxima. No compasso 11 novamente há a repetição das tercinas, anunciando o que virá.

Confirmatio (c.21-57). Visava a confirmação das propostas anteriores. Aqui estabelece-se com uma mudança métrica e rítmica da composição. Esta mudança ocorre no compasso 21, com a indicação de tempo Un poco allegro, e métrica 3/8. Esta segunda parte da ária indica francamente uma alegre dança. Neste momento o texto diz: “Abandonem suas preocupações! A confiança Nele está também em meu pensamento e será renovada diariamente através de tantos presentes de Amor do Pai.” (Weicht, ihr Sorgen, seine Treue Ist auch meiner eigedenk/ Und wird ob mir täglich neue/ Durch manch Vater-Liebsgeschenk.). Esta ruptura da métrica do compasso, passando a ter um tempo perfeito, deixa a estrutura leve, explicitando o texto, que assume um caráter mais afirmativo da confiança que os fiéis deveriam ter no Pai.

Peroratio (c.58-62). Tem como função remeter a audiência para as emoções suscitadas na primeira parte. Caracteriza-se pela repetição do andamento Adagio, volta ao compasso quaternário (C) e reapresentação do tema inicial tocado pelo oboé.

Se fizermos uma analogia com as leituras do dia, o exordium e o narratio com seus ritmos majestosos, muitas notas por compasso e melodia fluente, podem conter a caminhada dos fiéis que seguem Jesus pelo deserto, confiantes que Ele iria provê-los. A confirmatio com o 3/8 poderia simbolicamente representar a alegria causada pela multiplicação dos pães e peixes e a peroratio, por sua vez, reforça o afeto da confiança com o retorno ao C e repetição dos ritmos e melodias do exordium.

Musicalmente, a confiança é representada na ária, além do ritmo, também pelos saltos harmônicos, pois a ária não apresenta dissonâncias “duras” nem cromatismos. De um modo geral é muito melódica e a linha do oboé fica definida numa boa tessitura, proporcionando uma sonoridade acolhedora, doce e agradável. Para o instrumentista não apresenta saltos de difícil execução, nem passagens ritmicamente complicadas, fatores estes que corroboram com a idéia de fluência da melodia.

A escolha da voz de soprano, que é uma voz jovem13, também pode ter uma função persuasiva. Para Aristóteles na Retórica (1998, 1389a, p. 136) em termos de caráter os jovens são: passionais, confiantes, otimistas, vivem da esperança e são corajosos. Tais características combinariam perfeitamente com a intenção da demonstração dos afetos na ária. É necessário salientar que, dentre as 16 árias sacras para um oboé que apresentam o afeto da confiança, o soprano é a voz mais ocorrente, aparecendo 6 vezes.

Afeto do Terror Cantata – Du Friedfürst, Herr Jesu Christ (BWV 116)

Ano: 1724 Período Litúrgico: Vigésimo quinto Domingo de Trinitatis Leituras: Epístola: 1 Tessalonicenses 4, 13-18 Evangelho: Mateus 24, 15-28

Ária 2 -Ach unaussprechlich is die Not

Autor do texto: Desconhecido Texto:

Ah, indizíveis são os sofrimentos e as ameaças do temível Juiz encolerizado! Mal podemos, em meio a tanto medo, Como Tu, ó Jesus desejaste, Clamar a Deus em Teu nome.

Ach, unaussprechlich ist die Not Und des erzürnten Richters Dräuen! Kaum, dass wir noch in dieser Angst, Wie du, o Jesu, selbst verlangst, Zu Gott in deinem Namen schreien.

Uma vez mais as leituras do dia, sobretudo a do Evangelho, indicam que a cantata deveria ser composta tendo como afeto o terror, já que o tema da leitura trata da desolação da Judéia predita pelo profeta Daniel.

Partes do discurso musical

Inventio

Instrumento solista: Oboé d’Amore

Voz: Contralto

Fórmula de compasso: 3/4

Tonalidade: Fa#m. Mattheson14 afirma que, apesar de levar a uma grande tristeza e aflição, é mais apaixonada do que letal; tem também algo de abandonado, singular e misantrópico em si.

Dispositio

Exordium (c.1-12). Inicia-se com a apresentação do tema pelo oboé d’Amore, com linha melódica truncada, com grande instabilidade melódica causada por movimentos ascendentes e descendentes, pausas, saltos de 7ª menor. O baixo segue as mesmas características, apresentando uma certa movimentação cromática, como por exemplo no compasso 3. Este quadro, por si só, já daria indicação de que o tema tratado é de grande tensão. No compasso 5, existe uma mudança da célula rítmica. O pé rítmico passa de dactílico, o ritmo por excelência da epopéia, de certas formas da poesia religiosa e dos oráculos, para anapéstico, ritmo empregado tanto para cantos militares como eventualmente para marcha fúnebre.

Figura 2: Pé rítmico dactílico.

Figura 3: Pé rítmico anapéstico.

Narratio (c.13-38). Inicia-se com o canto realizando uma figura rítmica de três notas ascendentes (fá, sol, lá) que grita “Ach” seguida por pausas. Na segunda vez o grito é realizado num tom acima (sol, lá, si) ainda seguido por pausas que reforçam a idéia de que, por ser tão terrível o fato tratado é indizível. O grito retorna uma terceira vez, desta vez realizado com uma única nota (dó) e afirma na seqüência: “Ah, indizíveis são os sofrimentos” (Ach, unausprechlich ist die Not). A figura retórica aqui utilizada, que segundo Bartel (1997, pp.392-393) quando se repete, pode ser vista como um clímax, é o suspiratio ou stenasmus, definida por Kircher como a figura: “...através da qual pode-se expressar gemidos ou suspiros com pausas (...) que, aqui, chamamos de suspirai”.

Neste momento ele faz uso do trítono na linha do canto, realçando ainda mais o que é “indizível”. Repete-se o trítono, com freqüência nesta seqüência. No compasso 21, o contralto mantém dois compassos de mesma nota sustentada com a palavra “Sofrimento”(Not). É um momento estático, agravado pelos arpejos descendente e ascendente do oboé d’Amore. Em seguida, no compasso 24, o contínuo apresenta a figura que, segundo Mattheson e Spiess (BARTEL, 1997, p. 251) se chama Emphasis, composta por uma linha descendente de semi-colcheias em escala truncada de terças, de grande dramaticidade e que voltará a se repetir no compasso 69. Neste momento, o texto fala sobre: “as ameaças do temível Juiz encolerizado” (des erzürnten Richters Dräuen!). O ponto central do narratio acontece no texto na palavra “Medo” (Angst). Aqui o compositor movimenta cromaticamente a linha de colcheias no oboé d’Amore. Na voz, em notas em tremulato e sustentadas, com duração de dois compassos, faz, para uma maior tensão, um movimento cromático ascendente entre um compasso e outro. A palavra medo aparece esta única vez na ária.

Confirmatio (c.39-73).O caráter geral é o mesmo do narratio. Uma pequena mudança em relação ao narratio acontece na linha do baixo, que aqui movimenta-se inicialmente cromaticamente em semínimas, com uma figura que lembra passos (passus duriusculus). Esta movimentação continuará com saltos, apresentando com uma certa freqüência uma idéia geral descendente.

Peroratio (c.74-85). Reapresenta o tema inicial executado pelo oboé d’Amore no exordium.

Esta ária é de difícil execução, tanto para o cantor, quanto para o instrumentista. A linha do oboé d’ Amore apresenta saltos de dificuldade técnica considerável, abrange uma grande tessitura e, como conseqüência, soa aflitiva. A melodia truncada, com grande número de pausas, o uso de cromatismo e saltos dissonantes salientam e reforçam as principais diferenças com a ária da confiança. É interessante notar que existe uma analogia desta ária com a ária “Ach, mein Sinn” (“Ah, meu espírito”) da Paixão Segundo São João (BWV 245). O texto trata do desespero de Pedro após ter negado Cristo, suas aflições e amarguras. As duas árias têm o mesmo contexto de desespero, aflição e medo e musicalmente elas são representadas semelhantemente. Ambas são em compasso 3/4, estão na tonalidade de F#m e representam o grito “Ach”, com a figura do suspiratio, de forma análoga.

Notas

1 Justificação é súmula para dizer o agir salvífico de Deus por Jesus Cristo enquanto ele, inesperada e imerecidamente, elimina o pecado do homem. Deus convence o homem do seu pecado, transferindo o pecado para nova e “justa”, ou seja, correta relação consigo, renovando-o precisamente com isso no seu ser e conduzindo-o à liberdade, fazendo valer a sua vontade criadora sobre o homem, graciosamente, contra a resistência que o homem lhe opõe. (EICHER, 1993, p. 441)

2 Nicolaus Listenius introduziu o termo Musica poetica como um gênero de composição musical no tratado Rudimenta musicae planae (Wittenberg, 1553). Em 1563 o termo foi usado pela primeira vez como título para o tratado de composição Praecepta musicae poeticae (Magdeburg) de Gallus Dressler. A partir de 1600 Joachim Burmeister (1564-1629) estabelece, através de seus escritos, o uso de princípios retóricos na disciplina Musica Poetica (BARTEL, 1999, p. 20).

3 Segundo o autor O. Reboul (2000, p. XIV) uma definição possível para retórica é a arte de persuadir pelo discurso. Ela surge na Grécia no séc. V a.C. e foi usada inicialmente para a defesa dos cidadãos gregos em conflitos judiciários. Retóricos e filósofos atenienses gradualmente produziram sistemas de regras e regulamentos que eram ensinados em várias escolas e academias. Com o surgimento do Cristianismo, catedráticos e escritores da Igreja de Roma adotaram a clássica disciplina da retórica baseada na teoria e prática gregas.

4 Johann Mattheson (1681-1764) compositor, crítico e teórico alemão. Como teórico, seus muitos textos cobrem praticamente todos os aspectos da música da época e refletem tanto sua experiência prática como seus profundos conhecimentos. O mais importante, Der vollkommene Capellmeister (1739), é uma enciclopédia de informações para diretores musicais. Entre as outras obras destaca-se Das neu-eröffnete Orchestre (1713), com uma abordagem progressista da instrução musical, e Critica musica (1722-5), considerado como o primeiro periódico musical alemão (SADIE, 1994, p. 587).

5 Segundo Aristóteles (1998, 1378a, p. 106), sentimentos ou emoções são as causas que fazem alterar os seres humanos e introduzem mudanças nos seus juízos, na medida em que elas comportam dor e prazer.

6 Os estilos alto, médio e baixo têm por objetivo comover (movere), explicar (docere) e agradar (delectare).

7 Milch (1966, p. 58) comentando Aristóteles, afirma que todos os objetos do medo são coisas temíveis e geralmente são igualmente más, de maneira que o medo é definido como a expectativa do mal.

8 A palavra confiança no idioma grego também significa “coragem”, “valor”, mas Aristóteles aqui se refere ao afeto ou disposições passionais, que opõem a confiança ao medo assim como a “coragem” é uma virtude por oposição à covardia, que é um vício. Aristóteles entende por vício tudo o que é excessivo no comportamento humano. (Alexandre Jr., M; Alberto, P.

F. e Pena, A. N. In: ARISTÓTELES, Op. Cit., nota de rodapé 32, p. 120).

9 Na Retórica de Aristóteles os sentimentos humanos estão divididos em 14 afetos que são: cólera, calma, amor, ódio, temor, confiança, vergonha, impudência, favor, compaixão, indignação, inveja, emulação e desprezo.

10 16 árias dentre as 52 árias sacras para um instrumento (oboé, oboé d’Amore ou oboé da Caccia) obbligato.

11 O termo oboé utilizado no trabalho refere-se tanto ao oboé, quanto ao oboé d’Amore ou oboé da Caccia.

12 Sistema para a notação do ritmo concebida pelos compositores dos séc. XI e XII. Consistia em uma série de seis padrões rítmicos que correspondiam aos pés métricos da poesia francesa e latina denominados de: trocaico; jâmbico; dactílico; anapéstico; espondaico e pirríquio (GROUT, 2001 p. 103).

13

É preciso lembrar que as cantatas eram feitas para serem cantadas por um coro de meninos. Assim, portanto, a voz do soprano seria necessariamente uma voz masculina jovem.

14 Das Neu Eröffnete Orchestre, parágrafo 22.

Referências:

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Nova Cultural, São Paulo, 1991. ARISTÓTELES. Retórica. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1998. BARTEL, DIETRICH. Musica Poetica. University of Nebraska Press, Nebraska, USA,

1997.

BROCKHAUS AG (Editor). Duden – Herkunftswörterbuch, Bd. 7. Dudenverlag, Man

nheim, Alemanha, 2001. CHAUÍ, MARILENA. Introdução à história da filosofia. Cia. das Letras, São Paulo, 2005.

DELUMEAU, JEAN. O Pecado e o Medo. EDUSC, Bauru, SP, 2003. EGGEBRECHT, Hans Heinrich. Musik im Abendland. Piper, München, 1991. EICHER, Peter. Dicionário de conceitos fundamentais de teologia. Paulus, São Paulo,

1993.

GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. História da Musical Ocidental. Gradiva, Lisboa, 2001. LUCAS, Mônica Isabel. Humor e Agudeza nos Quartetos de Cordas Op. 33 de Joseph

Haydn. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. MATTHESON, Johann. Der vollkommene Capellmeister. Bärenreiter, Kassel, 1999. MILCH, Richard. Ética Nicomaqueia. Publicações Europa-América, Portugal, 1966.

REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Martins Fontes, São Paulo, 2000. SADIE, Stanley. Dicionário Grove de Música. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1994.

Katia Regina Kato Justi -Bacharel e mestre em Música pela Universidade Estadual de Campinas, onde também atua como oboísta em sua Orquestra Sinfônica. Ainda na mesma Universidade, tem colaborado regularmente como professora de História da Música, História da Música Brasileira e Apreciação Musical na Graduação do Curso de Música e no Projeto Unibanda. Atualmente é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da mesma instituição.