RELAÇÕES ENTRE MÚSICA E LINGUAGEM NA SEGUNDA METADE DO SÉC. XVIII: A ALLGEMEINE GESCHICHTE DER MUSIK DE JOHANN NIKOLAUS FORKEL

RELATIONS BETWEEN MUSIC AND LANGUAGE IN THE SECOND HALF OF THE 18TH CENTURY: THE ALLGEMEINE GESCHICHTE DER MUSIK BY JOHANN NIKOLAUS FORKEL

Mônica Lucas - ECA/USP monicalucas@usp.br

A partir de meados do século XVIII, as relações entre a música e as artes do trivium vão se estruturando mais intimamente. Dentre os textos da segunda metade do século XVIII, a discussão mais extensa a respeito das relações entre música e linguagem está contida na Allgemeine Geschichte der Musik [“História Geral da Música”], de Johann Nikolaus Forkel.

Nascido em 1749, Forkel adquiriu seus primeiros conhecimentos teóricos musicais através do estudo do Der vollkommene Capellmeister [“o mestre-de-capela perfeito”], o importante tratado de Johann Mattheson (1739).1 Em seguida, estudou Direito na Universidade de Göttingen. A partir de 1777, foi apontado como professor de teoria musical nessa mesma instituição, cargo que ocupou até sua morte em 1818. Forkel ocupou a primeira posição destinada à teoria musical em uma universidade, e, por isso, é considerado o pai da musicologia moderna.

Entre suas publicações, destacam-se: Über die Theorie der Musik [“sobre a teoria da música”] (1785); Über Johann Sebastian Bachs Leben, Kunst und Kunstwerke [“sobre a vida, arte e obras de Johann Sebastian Bach”] (1802), que constitui a primeira bibliografia compreensiva de um compositor; Allgemeine Litteratur der Musik [“literatura geral da música”] (1778-1779) – “introdução ao conhecimento de livros musicais escritos desde os tempos mais antigos até os modernos entre os gregos, entre os romanos e entre as nações européias modernas; sistematicamente ordenado, com comentários e apreciação crítica”. A Allgemeine Geschiche der Musik [“história geral da música”] (1788-1802) é a primeira história universal da música em alemão.

A Allgemeine Geschichte der Musik foi publicada em 2 volumes, em 1788 e 1801, época que coincide com o surgimento de obras semelhantes de Giovanni Battista Martini (Bolonha, 1757-1781), de Philippe Joseph Caffaux (Paris, 1754), de Benjamin de Laborde (Paris, 1780) e de Charles Burney (Londres, 1776-1789).

O primeiro volume da obra de Forkel contém uma extensa introdução, em que o autor procura descrever as “verdadeiras propriedades” da música, oferecendo também uma definição “verdadeira” desta arte. Nela, aprofunda-se na relação entre música e linguagem, estabelecendo regras da gramática e da retórica musical.

Forkel entende o vínculo entre música e linguagem segundo dois aspectos diversos, porém relacionados. O primeiro se concentra no aspecto histórico, estabelecendo para ambas as artes uma origem comum, que permitiria a transposição completa das premissas da linguagem verbal para o âmbito musical. Forkel afirma que a música teria evoluído desde um estágio primitivo, em que seu conteúdo seria em grande parte indeterminado, até a constituição de uma linguagem perfeitamente análoga à linguagem verbal, em que as emoções e suas modificações poderiam ser expressas com grande precisão. Isso permite a ele estabelecer uma segunda abordagem para a ligação entre música e linguagem, segundo seu aspecto sistemático. Forkel parece ser o primeiro autor a utilizar o termo gramática para se referir ao conjunto de prescrições e regras que determinam o uso correto da linguagem musical. Ele trata ainda da retórica musical, seguindo o aspecto sistemático parcialmente elaborado por autores anteriores a ele. Nesse trabalho, examinaremos as idéias de Forkel a respeito da gramática e da retórica musical.

1. Gramática musical

Para Forkel, a gramática musical abrange três tópicos principais: as tonalidades (estudo dos intervalos, escalas e modos), a harmonia (estudo dos acordes e de seus encadeamentos, cadências e modulações) e a prosódia musical ou ritmopéia (em que se observa os pés métricos, os compassos e sua acentuação). O esquema inclui ainda partes auxiliares da gramática musical: a acústica, a canônica (teoria matemática dos sons) e a teoria da notação musical (semiografia).2 Neste esquema, apenas as partes principais se concentram nas relações entre música e discurso verbal.

Forkel afirma que melodias compostas com notas de uma mesma escala representam emoções próximas ao sentimento principal, enquanto notas de escalas diversas representam emoções distantes daquela estabelecida na peça como fundamental. Estas emoções secundárias só podem ser representadas com exatidão na música dos povos mais avançados, na qual há controle sobre a modulação. Ele resume a ligação entre linguagem e melodia da seguinte maneira:

“as expressões formadas a partir dos tons individuais das escalas se conformam entre si para a caracterização dos nossos sentimentos, assim como as partes da linguagem se conformam para a caracterização das diversas relações de um objeto ou pensamento. Portanto, temos tons principais, característicos e de ligação, tão variados quanto as emoções com todas as suas relações e maneiras de encaixe e que servem para a sua expressão.”3

Para Forkel, a harmonia musical é equivalente à lógica dos pensamentos no discurso verbal: a correção harmônica se relaciona ao pensamento que distingue entre o verdadeiro e o falso. Por isso, Forkel denomina a harmonia de “linguagem da lógica” musical.

Forkel afirma que a melodia e a harmonia estão intrinsecamente ligadas. Enquanto a primeira se relaciona à correção da expressão, a segunda exibe a verdade do pensamento musical. Assim, a harmonia é ontologicamente anterior à melodia: “a linguagem é o vestido dos pensamentos, e a melodia, da harmonia”.4 Forkel afirma que a frase melódica só soará verdadeira para a emoção se for acompanhada de harmonia correta. Quanto à relação entre harmonia e linguagem, lemos com Forkel que

“ninguém é capaz de ditar boas diretrizes para a melodia que não derivem da natureza da harmonia, do mesmo modo que um professor de língua não pode ditar prescrições para uma boa e correta expressão se não derivá-las da arte de pensar corretamente.”5

O ritmo, terceira parte principal da gramática musical, não é essencial à linguagem; é antes um auxiliar externo da expressão musical, como a métrica silábica na poesia. No entanto, ele contribui para a beleza das frases harmônicas e melódicas. O ritmo depende do sentido da ligação melódica dos tons.

Forkel, diferentemente de autores anteriores que se dedicam à relação entre música e retórica, trabalha a partir da gramática, a mais básica dentre as artes do trivium.

Isso se dá porque ele entende que a relação entre música e palavra é intrínseca, e não uma simples analogia, efetuada artificialmente.

Dadas as premissas de Forkel, de que a música é linguagem dos sentimentos e que música e palavra possuem uma origem idêntica (a natureza das emoções humanas), Forkel se aprofunda nas relações entre a gramática verbal e musical: identifica pequenos grupos melódicos com sílabas e substantivos, melodias simples com frases simples, adjetivos com as emoções variadas proporcionadas pelas notas de passagem da escala, etc.

Para o autor de Göttingen, a linguagem musical, em seu estágio mais evoluído, exige o uso das faculdades mais elevadas da razão: o reconhecimento e o julgamento. Para ele, na linguagem musical é possível reconhecer claramente as emoções e suas nuances (vale lembrar que para Forkel, a emoção está em constante modificação). A harmonia cumpre um papel fundamental no reconhecimento exato de emoções “verdadeiras ou falsas”; ela é a contrapartida emocional da lógica.

Como autores mais antigos, Forkel também admite um nível de aproximação ainda mais íntimo entre música e palavra, que se opera não no âmbito da correção musical ou textual, mas no poder patético que ambas as linguagens possuem, e que se opera no âmbito da Retórica.

2. Retórica

No prefácio à Allgemeine Geschichte der Musik, Forkel assume seu débito para com Der vollkommene Capellmeister de Johann Mattheson, que afirma ter sido o primeiro tratado alemão sobre a retórica musical. Contudo, declara que na época da escrita dessa obra, a música ainda não havia atingido uma perfeição que permitisse a esse teórico apresentar uma teoria completa a respeito da retórica musical. Por este motivo, Forkel considera-se o primeiro autor a propor um sistema completo da retórica musical, que consiste nos seguintes tópicos:6

Partes principais:

  1. periodologia musical (organização do pensamento musical em grande âmbito);
    1. escritas musicais (ordenação dos diferentes tipos de pensamentos musicais); divididas de acordo com seu emprego nos estilos
    2. [Schreibarten] sacro, de câmara e teatral ou ainda segundo o estilo [Styl] dos afetos tristes, alegres, calmos ou violentos.
  2. os gêneros [Musikgattungen] musicais (uso das expressões musicais) adequados à finalidades sacra, de câmara e teatral ou ainda por sua disposição monódica ou polifônica. A finalidade e a disposição determinam os diferentes tipos de peças vocais, como ária, dueto, trio, etc., e instrumentais, como sonata, concerto, sinfonia, abertura, fuga e peças características de dança. Entre os gêneros compostos, figuram a ópera, a opereta, o oratório e a cantata (sacra e profana).
  3. a disposição dos pensamentos musicais em relação ao âmbito da peça, segundo a ordem estética (cujas partes são exordium (ou introdução), tema (frase principal), frases secundárias, frases contrárias, desmembramentos, refutações, corroborações e conclusão) e as figuras retóricas.

Partes auxiliares:

  1. interpretação, ou declamação de peças musicais. Pode ser vocal, instrumental ou ambas conjuntamente.
  2. vcrítica musical, que trata da necessidade de princípios das regras na deteminação do Belo e do gosto musical

Forkel se estende nas relações entre música e linguagem ao detalhar as partes principais da retórica musical, semelhantes às descritas nas preceptivas retóricas clássicas.

Com relação ao primeiro tópico, Forkel define o período musical como uma frase exeqüível em uma única respiração. Embora ele inclua a periodologia na parte dedicada à retórica, vimos que ele a estuda mais profundamente quando aborda a gramática musical.

Com relação aos gêneros musicais, Forkel afirma que eles se distinguem “em parte por sua forma, em parte por sua essência, e em parte por sua destinação.” Forkel invoca as convenções do decoro, prescrições retóricas tradicionalmente vinculadas à discussão sobre os gêneros e estilos musicais, quando afirma que as peças devem ser adequadas a determinadas circunstâncias, a certas emoções [Empfindungen] e finalmente a certos lugares. Segundo ele, “é preciso escolher, dentre os diversos modos de ex-pressão musical e seus significados infinitamente variados, os que melhor se ajustam a uma determinada intenção e a um determinado uso”.7 Esta escolha determina os estilos ou escritas musicais.

Para Forkel, matérias distintas estabelecem três estilos principais de escrita: o estilo sacro, que se relaciona com afetos elevados, nobres e devotos, o estilo de câmara, utilizado para o deleite de um público seleto em ambientes privados e o estilo teatral, utilizado para a expressão de sentimentos morais.8 Forkel descarta a divisão retórica tradicional que divide os estilos em alto, médio e baixo, segundo a qualidade do afeto representado. Ele a substitui por uma distinção segundo as emoções básicas da alegria/ serenidade, melancolia e da ira.

Com relação à sua essência, ou seja, à emoção representada, Forkel distingue os gêneros os gêneros sacro, teatral e profano. No que diz respeito à destinação, Forkel aponta diversos estilos de escrita, vocais e instrumentais, monódicos e polifônicos: coral; recitativo; ária; dueto; terceto; quarteto, quinteto, sexteto, etc.; coro; sonatas para todos os instrumentos; concertos para todos os instrumentos; sinfonia; abertura; fuga; peças de dança.

Sob a idéia de gêneros e estilos musicais entendem-se, em tratados musicais seiscentistas e setecentistas, classificações diversas. Elas parecem ter sido absorvidas no sistema proposto por Forkel, mas há também alguns aspectos originais, que veremos adiante.

A classificação mais antiga, segundo o gênero melódico e a espécie de contraponto utilizada, é descartada por autores da musica poetica.

A segunda subdivisão, que opõe os estilos antigo [polifônico] e moderno [monódico], refere-se inicialmente à ênfase no contraponto (relacionada ao quadrivium) ou na representação do texto (vinculada ao trivium). Ela é retomada por Mattheson, que liga a polifonia ao estilo sacro (o lugar por excelência das práticas conservadoras), e a monodia, ao teatral (o gênero da verossimilhança retórica). Para Forkel, diferentemente, a cisão entre polifonia e monodia não indica o tipo de concepção musical nem a circunstância de lugar, mas o número de oradores envolvidos no discurso: a polifonia emula vozes de um grupo de pessoas, enquanto a monodia representa um monólogo. Esse afastamento da visão matemática em prol de uma ligação total com a linguagem, fundamentada em uma origem comum a ambas as artes parece ser o resultado de um processo já perceptível em Mattheson, mas que só se concretiza definitivamente em Forkel. Esse pensamento permite a este autor entender a música legitimamente como discurso emocional, independente da presença um texto que a qualifique.

A divisão segundo os gêneros musicais (sacro, de câmara e teatral) foi utilizada pela primeira vez por Marco Scacchi, no século XVII, e reproduzida por vários autores, entre eles Mathesson, para descrever a concordância entre discurso e ocasião. Forkel adota essa mesma divisão, mas entende as qualidades sacra, de câmara e teatral de duas maneiras diversas: elas se referem tanto a uma classificação de gêneros musicais [Musikgattungen], que se conformam à ocasião, como aos estilos [Schreibarten], que se conformam às emoções [Empfindungen] ou sentimentos [Gefühle] individuais expressos pelo modo de escrita. Esta segunda relação não é prescrita em tratados anteriores nem pela Retórica. Esse é o aspecto em que Forkel mais se afasta do paradigma poético-retórico, em sua discussão sobre gêneros e estilos.

Com relação à divisão que leva em consideração a qualidade da matéria, Monteverdi, no início do séc. XVII, já descreve três afetos básicos (tristeza, temperança e ira) representáveis pela música.9 Mattheson transpõe para essa idéia as denominações retóricas alto, médio e baixo, que toma de empréstimo das retóricas de Johann Christoph Gottsched. Forkel não se satisfaz com esta proposta. Descartando-a, apresenta uma divisão que ele considera mais adequada à questão dos estilos musicais, mais próxima da de Monteverdi. Ela consiste na classificação entre afetos tristes, temperados e alegres, codificados segundo seu potencial persuasivo. Essa compreensão parece diretamente vinculada à retórica aristotélica e à tradição propagada pelos autores das poéticas musicais seiscentistas e setecentistas. É interessante notar que esse é um dos únicos pontos do texto em que ele utiliza o termo retórico afeto [Affect], em detrimento das noções estéticas emoção [Empfindung] ou sentimento [Gefühl].

Na última divisão, segundo os subgêneros musicais, podemos notar que a música instrumental, inicialmente concebida como um tipo de desproporção fantástica (como, por exemplo, em Athanasius Kircher)10, passa a ser legitimada na obra de Mattheson, com a inclusão do estilo instrumental. Na divisão de Forkel, a finalidade e a disposição das peças definem vários gêneros, vocais e instrumentais, que não têm nenhum tipo de

primazia uns sobre os outros, guardando em comum a apenas o fato de expressarem todos a mesma linguagem das emoções.11

* * *

Em sua discussão sobre as partes do discurso, é interessante notar que Forkel não se detém na inventio, parte à qual as retóricas clássicas dedicam extensas porções de suas obras.

Retóricas antigas, assim como obras setecentistas que discorrem sobre a poética musical (em especial Heinichen e Mattheson), dão grande ênfase à inventio musical, dedicando extensas porções de suas obras a esta parte da composição. Notamos ainda que esta situação se inverte em Forkel. Ele não faz referência alguma a procedimentos comumente relacionados à inventio em sua sistematização da retórica musical, como o uso de lugares-comuns como recursos auxiliares do compositor. Esse fato salta aos olhos, numa comparação. Forkel parece, com isso, supor que a inventio seja um processo interior e não passível de teorização. Esse é o ponto em que Forkel se afasta mais do ensinamento retórico tradicional.

Vimos que, na inventio retórica, palavras portadoras de sentido do texto determinam em que direção a fantasia do compositor deverá agir, amparando-se nos lugares-comuns e num grande número de figuras musicais. Nesse sentido, a inventio é um saber artesanal e estudado, uma ferramenta direcionada para a composição; ela não se relaciona à auto expressão de um sujeito criador. A criação musical a partir da inspiração, embora também seja descrita por autores como Mattheson, é vista como um recurso secundário. Contudo, para Forkel, esse é o recurso principal a ser utilizado na composição.

Ao tratar das partes do discurso, Forkel volta-se diretamente para a dispositio. Para ele, será bem ordenada “uma peça em que todos os pensamentos se suportam e reforçam mutuamente da maneira mais vantajosa”.12 Forkel, como Mattheson, enfatiza a função persuasiva do discurso musical. Se ele não atingir o ouvinte, será considerado frio e ineficaz. Ao reforçar a necessidade de organização do discurso, ele reafirma a ligação entre o discurso do orador e a oração musical:

“Um orador agiria de modo não natural e contrário à sua finalidade, caso quisesse ensinar, convencer e mover sem determinar qual fosse a frase principal, as secundárias, suas aplicações, a refutação das mesmas e suas provas. Ele agiria ide modo igualmente não natural e contrário à sua finalidade se, ao colecionar os materiais de seu discurso, não determinasse antes de que maneira, em que ordem eles devem ser utilizados. Na própria vida comum, a ordem é tão importante que, seguindo-a, alcançamos nossos objetivos e desejos, e desprezando-a, falhamos.”13

Forkel declara que linguagem das emoções está sujeita ao mesmo tipo de ordenação pré-determinada necessária à linguagem verbal, e denomina essa coerência de ordenação estética. Ela corresponde claramente à dispositio de Mattheson. Para ele, a ordenação estética dos pensamentos “fundamenta-se única e exclusivamente na maneira como as emoções e pensamentos se desenvolvem uns [a partir] dos outros”.14 Com isso, afasta-se da idéia romântica de forma musical como molde imposto à obra.

Ele divide sua ordenação estética em partes cujo número pode ser reduzido ou ampliado, de acordo com o âmbito da peça. Em sua forma mais completa, esta divisão consiste em: introdução; frase principal e frases secundárias; dúvida musical (frases que parecem contradizer a frase principal); desmembramentos; refutações; reforço (união das frases que confere maior efeito à frase principal); conclusão.

Ao discorrer sobre a introdução, Forkel refere-se a Cícero e Quintiliano, reafirmando, como seus colegas musicais – de Johann Joachim Burmeister (1606) a Johann Mattheson (1739) –, a função do exordium de tornar o auditório dócil.

A frase principal ou tema deve conter frases secundárias, que suportam e reforçam a frase principal. Elas correspondem, no discurso verbal, aos exemplos, que explicam a proposição principal, e às provas, que garantem sua verossimilhança. As frases secundárias devem conter ainda desmembramentos, que servem para iluminar a frase principal sob todos os aspectos e pontos de vista. Eles correspondem, na linguagem verbal, às descrições, às expressões sinônimas e à “individualização de uma emoção geral”.

A parte da dispositio que Forkel denomina refutação [Wiederlegung] ocorre quando “são apresentadas idéias ou expressões de uma emoção inadequadas à caracterização clara desta”.15 Corresponde à confutatio de Mattheson. A ela se segue o reforço [Bekräftigung] a repetição da idéia principal, semelhante à confirmatio exposta pelo autor do Mestre de Capela Perfeito.

Por fim, a conclusão [Conclusion] ou epílogo da peça, deve conter uma repetição veemente das frases que se seguem às provas, refutações, desmembramentos e reforços anteriores. Esta parte visa “transpassar totalmente o ouvinte com a emoção desejada pela peça”. Essa função, se aproxima muito daquela descrita por Cícero, Quintiliano e Mattheson com relação à peroratio do discurso musical.

No que diz respeito à disposição musical, autores da musica poetica anteriores a Forkel já admitem a existência de uma ordem estabelecida pela natureza em todas as coisas, captada (e não criada) pelo engenho humano. As retóricas musicais afirmam que, “na vida, a ordem é responsável por alcançarmos nossos objetivos” (Forkel) e que, nas artes, a ordem garante a compreensão do discurso por parte do ouvinte – seja ela representada pela a planta de um edifício (Mattheson), pela sentença do orador (Burmeister, Forkel) ou pelo plano da composição musical. Sendo assim, seus autores dividem seus discursos musicais em partes constituintes, atribuindo a elas diferentes funções. Há um consenso geral de que a introdução e

o fim do discurso têm função mais patética, visando, respectivamente, ganhar a benevolência e comover o ouvinte. A parte central, diferentemente, concentra-se mais nas descrições, nas provas e nos argumentos. Entre os autores considerados, Forkel é o único que se preocupa em encontrar análogos musicais para essas provas e argumentos. Ele apresenta exemplos musicais de “sinônimos”, de “descrições” e de “individualização de emoções”. Dentre esses procedimentos, este último é surpreendente, por não constituir, em princípio, um argumento lógico utilizável para provar e arumentar. Nesse ponto, Forkel pode estar se referindo à expressão de emoções individuais que não pertencem ao cânone dos afetos codificados. É interessante notar que a referência às emoções individuais surjam na parte do discurso mais voltada para os procedimentos racionais.

* * * A teoria das figuras musicais é uma das transposições mais antigas da retórica para a música, e já consta das primeiras musicae poeticae, como a de Burmeister (1606). No século XIX, a teoria das figuras já deixara de integrar os tratados musicais, e Forkel é um dos últimos teóricos a descrevê-las. Ele declara, como Burmeister, que certos recursos musicais específicos conferem poder patético – “força, vivacidade e efeito” – ao discurso sonoro. Para Burmeister, a figura musical é uma representação da idéia principal contida na frase verbal, quando esta é posta em sons. Kircher,

semelhantemente, diz que a figura musical acrescenta uma “variação eloqüente” à palavra. Ambas as concepções concentram-se na representação musical das palavras principais da do texto, que no caso de autores reformados, evidencia seu poder dogmático e gera ensinamento. Alguns procedimentos estritamente musicais, vinculados à idéia de numerus, também ganham status de figura, quando a eles é acoplado um sentido verbal e teológico. Com isso, para esses autores, a figura move e ensina.

Forkel também afirma que as figuras musicais apelam não só à razão, mas também à imaginação e às forças que a ela estão sujeitas. Sua definição de figura é a seguinte:

“Denominamos figuras a esses recursos da expressão [que visam um efeito geral]. A intenção direta do discurso dirige-se à razão, assim como a de uma peça musical, à emoção. Todos os recursos através dos quais o discurso da razão e da emoção é capacitado a operar outras forças, além de sua intenção direta, recaem nas assim chamadas figuras.”16

Para ele, o fato da música e o discurso verbal não compartilharem exatamente das mesmas figuras não se deve a especificidades de cada uma dessas linguagens, mas à falta de estudos que se proponham realizar essa transposição mais acuradamente.

Forkel, como Burmeister e Kircher, enfatiza o poder patético da figura. Contudo, provavelmente pelo fato de descartar um sentido dogmático na música, deixa de considerar o aspecto de ensinamento, presente na concepção de figura musical de autores anteriores. Para ele, a figura é apenas um recurso expressivo que afeta a imaginação do ouvinte. Apelando para a imaginação, e não para a idéia tradicional de mover afetos, Forkel parece centrar-se nos mecanismos internos e individuais do ouvinte.

Para ele, as figuras visam causar uma variação súbita na emoção: a figura não é a palavra tornada eloqüente, mas a expressão potencializada por uma variação súbita. Ela não depende da palavra. Por isso, Forkel aponta figuras que contém um sentido especificamente musical. Apesar dessa diferença de concepção, é interessante notar Forkel ainda utiliza a denominação figura para esses procedimentos subjetivos.

A discussão retórica sobre as virtudes da elocução só passa a fazer parte das preceptivas musicais a partir de Mattheson. Ele dá grande importância à noção de decoro, o sistema de adequação entre a matéria, o discurso e a ocasião, que constitui a premissa básica para o Mestre-de-Capela Perfeito. Com relação à elocutio, ele afirma que deve haver adequação no estilo: matérias altas requerem um tratamento suntuoso, ou seja, muito figurado, e matérias baixas, inversamente, requerem estilo fluente e sem elaborações. Forkel descarta a divisão de Mattheson: ele sugere a adequação do estilo às emoções [Empfindungen] ou sentimentos [Gefühle] individuais tristes, temperados ou alegres expressos pelo modo de escrita

Finalizando sua discussão sobre gêneros e estilos, Forkel, como Mattheson, enuncia as virtudes e vícios da elocução musical. A discussão sobre vícios e virtudes da elocução são partes tradicionalmente constituintes das preceptivas retóricas. Para Forkel, entre as virtudes, estão a unidade de pensamento, a precisão, a clareza e a boa conexão lógica entre as partes; entre os vícios, incluem-se a falta de precisão, que gera falta de clareza e com isso compromete o efeito geral da peça. Para ele, o bom efeito da peça se baseia, além desses critérios, em transições e contrastes eficazes entre as partes. Neste ponto, ele parece utilizar critérios estéticos, que não são mencionados nos tratados retóricos nem nas poéticas musicais.

Conclusão

As transposições entre música e linguagem, nos séculos XVII e XVIII, fundamentam-se em aspectos tradicionalmente examinados pela retórica, dentre os quais destacam-se, nos tratados musicais, a adequação de estilos e gêneros musicais e a divisão do discurso segundo suas partes constitutivas. No final do século XVIII, Forkel buscou aproximações ainda mais estreitas com as artes do trivium, estabelecendo também uma gramática musical.

Assim, no que concerne às idéias de gênero e estilo musical, Forkel parece ter absorvido classificações diversas, propondo uma solução própria, em que as principais novidades são: 1. toda música, instrumental ou vocal, é linguagem. A presença do texto deixa de ser um critério definidor do estilo; 2. as mesmas categorias de decoro – sacra, de câmara, teatral – podem ser entendidas tanto como indicações de adequação de circunstancia de lugar quanto como estilos musicais que expressam emoções ou sentimentos específicos do compositor.

A posição que Forkel atribui, na classificação em subgêneros, à música instrumental, só é possível mediante essas modificações sutis, que permitem a ele descrevê-la como uma linguagem que representa emoções específicas do autor (e por isso, dispensam uma codificação verbal). É interessante notar que essa representação, embora individual, não deixe de ter como finalidade principal a persuasão do ouvinte, pois de outro modo, a música não estaria cumprindo sua função como arte.

Com relação à dispositio, Forkel mantém uma postura retórica, afirmando que a disposição musical não consiste em um molde imposto à representação, mas em uma organização determinada pela concordância de seus elementos internos e por sua finalidade.

É interessante observar que a ordem natural das idéias musicais pode ser artificialmente distorcida no estilo fantástico. Para autores seiscentistas, como Kircher, esta deturpação imitaria a falta de coerência própria da música instrumental, carente da determinação textual. Contudo, autores mais tardios, como Mattheson e especialmente Forkel, deixam de considerar a ordem musical como um procedimento diretamente vinculado ao texto. Mattheson, em sua divisão de gêneros e estilos, cria a categoria instrumental para incluir gêneros que, embora não contem com a palavra, apresentam um discurso coerente (e não fantástico).

Apesar de exibir uma concepção mais benevolente em relação à música instrumental, Mattheson continua a atribuir a ela uma posição inferior à música vocal. Forkel desfaz essa hierarquia, quando modela a linguagem das emoções apenas nas qualidades internas do discurso musical (ritmo, melodia, harmonia), e não na palavra. Para ele, a presença do texto deixa definitivamente de ser um critério definidor do sentido musical. Forkel é o primeiro autor a desenvolver sistematicamente a idéia de música como “linguagem das emoções”.

Nesse estudo, foi possível comprovar que as relações entre música e linguagem fixadas pela musica poética sobrevivem na obra de Forkel, apesar de algumas variações, certamente devidas às influências da Estética, disciplina então nascente. Com base nas opiniões de Forkel, é possível verificar serem anacrônicas algumas idéias frequentemente veiculadas por tratados musicais modernos, que abordam obras de autores contemporâne-os a este autor, como Haydn e Mozart sem levar em consideração adequação de suas obras aos critérios reguladores dos gêneros e estilos, ou segundo o prisma de modelos impostos, como o da “forma-sonata”, comumente aceito pelos manuais teóricos românticos e modernos da forma musical. Questões relativas à dispositio têm sido discutidas mais profundamente por autores como Bonds,Webster e, no Brasil, Barros.17

Notas

1 MATTHESON, Der Vollkommene Capellmeister (Hamburgo, 1739). Kassel: Bärenreiter, 1991.

2 FORKEL, Johann Nikolaus. Allgemeine Geschichte der Musik (Leipzig, 1788-1802). Laaber: Laaber Verlag, 2005, § 67.

3 “Es ist genug, hir bloss noch zu wiederholen, dass die aus den einzelnen Tönen der Tonleiter zusammengesezten Ausdrücke, zur Bezeichnung unserer Gefühle mit ihren Beziehungen, sich unter einender so verhalten, wie die zur Bezeichnung der mannichfaltigen Beziehungen eines Gegenstandes oder Gedankens dienenden Redetheile der Sprache; dass wir folglich Haupt – Eigenschafts – und Verbindungstöne haben, die so mannichfaltig sind, als es die Empfindungen mit allen ihren Beziehungen und verschiedenen Arten von Verbindung, zu deren Ausdruck sie dienen sollen, nur immer seyn können.“ Ibid., § 36.

4 Ibid., § 38.

5 “niemand ist im Stande, Vorschriften zur Verfertigung einer guten an einander hängenden Melodie zu geben, ohne sie aus der Natur der Harmonie zu hohlen, eben so wenig als ein Sprachlehrer Vorschriften zu einem guten und richtigen Ausdrucke geben kann, wenn er sie nicht aus der Kunst richtig zu denken vernimmt.“ Ibid. §38.

6 Ibid., § 134.

7 Ibid., § 81.

8 Ibid., § 82-84.

9 MONTEVERDI, Claudio. Madrigali Guerrieri e Amorosi (Veneza, 1638). Prefácio. Wien: Universal, s.d.

10 KIRCHER, Athanasius. Musurgia Universalis (Schwäbisch Hall, 1662). Kassel, Bärenreiter, 2006, I, 7, 3, 7.

11 Com referência aos gêneros e estilos musicais, cf. Ainda PALISCA, Claude. The Genesis of Mattheson’s style classification. In: BUELOW, Georg e H. J. Marx: New Mattheson Studies. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

12 Ibid., § 98.

13 Ibid., § 97.

14 Ibid., § 99.

15 Ibid., § 103.

16 “man nennt diese Hülfsmittel des Ausdrucks [zur Erreichung einer so allgemeinen Wirkung] Figuren. Die nächste Absicht der Rede geht auf den Verstand, so wie die eines Tonstücks auf die Empfindung. Alle Hülfsmittel nun, wodurch sowol die Verstands – als Empfindungsrede in den Stand gesetzt wird, ausser ihrer nächsten Absicht auch noch auf andere Kräften zu wirken, liegen in den sogenannten Figuren“. Ibid., §104.

17 BONDS, M. E. Op.cit.,; WEBSTER, James. Haydns Farewell Symphony and the Idea of Classical Style. Cambridge: Cambridge University Press, 1992 e BARROS, Cassiano de Almeida. A orientação retórica no processo de Composição do Classicismo observada a partir do tratado Versuch einer Anleitung zur Composition (1782-1793) de H.C. Koch. Dissertação de mestrado: IA-UNICAMP, 2006.

Referências:

FORKEL, Johann Nikolaus. Allgemeine Geschichte der Musik (Leipzig, 1788-1802). Laaber: Laaber Verlag, 2005.

KIRCHER, Athanasius. Musurgia Universalis (Schwäbisch Hall, 1662). Kassel, Bärenreiter, 2006, I, 7, 3, 7.

MATTHESON, Johann. Der Vollkommene Capellmeister (Hamburgo, 1739). Kassel: Bärenreiter, 1991.

MONTEVERDI, Claudio. Madrigali Guerrieri e Amorosi (Veneza, 1638). Prefácio. Wien: Universal, s.d.

PALISCA, Claude. The Genesis of Mattheson’s style classification. In: BUELOW, Georg e H. J. Marx: New Mattheson Studies. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

Mônica Lucas -Graduou-se em clarinete na Universidade de São Paulo e especializou-se na interpretação de música antiga no Conservatório Real de Haia (Holanda), obtendo diplomas em flauta-doce e em clarinetes históricos. Trabalha regularmente com diversas orquestras barrocas no Brasil e na Europa, realizando concertos e gravações. Coordena desde 2001 o Conjunto de Música Antiga na ECA-USP. Seu doutorado e pós-doutorado (auxílio FAPESP) envolvem pesquisas sobre a visão poético-retórica na música setecentista. É autora de “Humor e Agudeza em Joseph Haydn: os quartetos de cordas op. 33”, pela editora Anna Blume (auxílio FAPESP). É responsável pela disciplina “História da Música” no Departamento de Música da ECA-USP.