O PIAnO DO DESASSOSSEgO: téCnICAS EStEnDIDAS nA MÚSICA DE fElIPE AlMEIDA RIbEIRO

Luciane Cardassi - Inst. Banff, Canadá luciane.cardassi@gmail.com

Resumo: Este artigo tem como objeto de estudo a obra Desassossego Latente (2010) para piano e recitação do compositor brasileiro Felipe Almeida Ribeiro. A obra apresenta várias técnicas estendidas, as quais são aqui discutidas e catalogadas. A investigação analítica dessa peça nos permitiu estabelecer um catálogo de gestos musicais recorrentes na obra e traçar um paralelo entre os gestos musicais, as várias técnicas estendidas, e o material textual escolhido pelo compositor. Palavras-chave: Técnicas estendidas; Música contemporânea; Piano estendido; Gestos musicais; Compositores brasileiros.

Abstract: This article focuses on the work Desassossego Latente for piano and recitation by Brazilian composer Felipe Almeida Ribeiro. The piece makes use of several extended techniques, which are discussed and systematized in this paper. The analytical investigation of this piece led us to establish a catalogue of recurring musical gestures as well as trace a parallel between these musical gestures, the various extended techniques and the textual material chosen by the composer. Keywords: Extended techniques; Contemporary music; Extended piano; Musical gestures; Brazilian composers.

Introdução

Este artigo tem como objeto de estudo a obra Desassossego Latente (2010) do compositor brasileiro Felipe Almeida Ribeiro1. Desassossego Latente é uma peça para piano que faz uso de várias técnicas estendidas, incluindo a voz do (a) pianista. O compositor a intitula uma peça para piano e recitação, realizada por um performer. O título é uma referência ao Livro do Desassossego de Fernando Pessoa.

O objetivo deste artigo é discutir cada técnica estendida de Desassossego Latente à luz da definição e categorização proposta pelo pianista e pesquisador Luk Vaes (2009), discorrer sobre a escolha e manuseio do texto pelo compositor e investigar um possível paralelo entre o texto e os gestos musicais recorrentes nessa peça de Ribeiro.

1. Aspectos teóricos

1.1 Piano estendido: histórico, definição e categorização

Piano estendido (em inglês: extended piano) é uma expressão que, apesar de fazer parte do vocabulário de performers e compositores contemporâneos, ainda não tem seu significado estabelecido em dicionários de música de referência. Vários trabalhos de pesquisa discutem técnicas estendidas2 para outros instrumentos, mesmo que, na maioria das vezes, essas publicações façam uso de expressões de caráter pouco específico tais como “nova instrumentação”3, “novas direções” (REHFELDT, 1994), “técnicas contemporâneas” (DICK, 1989), e “técnicas de execução não-convencional” (MATTHEWS, 1981, p. iii). Tais expressões são, além de vagas em significado, simplesmente incorretas, pois muitas das técnicas demonstradas não são novas, modernas ou incomuns (VAES, 2009, p. 6). O trabalho de Chun (1982) sobre a obra de George Crumb parece ser o que mais se aproxima de uma discussão criteriosa sobre piano estendido na obra do compositor. De fato, apesar da bibliografia sobre técnicas estendidas para vários instrumentos4, inclusive o piano (CHUN, 1982), e das muitas páginas da internet dedicadas ao assunto, é surpreendente que a expressão piano estendido não tivesse ainda recebido uma definição inequívoca.

A dissertação de Luk Vaes (2009) veio preencher esta lacuna. Através da análise de peças para piano desde o início do instrumento no século XVIII (e até antes, em obras para outros instrumentos de teclado), Vaes estabelece um histórico de determinados gestos, tais como glissandi e clusters, que pertencem, mesmo que perifericamente, ao universo do piano estendido, e que tem sido utilizados esporadicamente por compositores desde

o século XVIII. Já no século XX, novas técnicas de piano estendido foram criadas, as quais compõem um universo de possibilidades criativas para os compositores de hoje. Tais técnicas, apesar de muitas, e de serem usadas por compositores de várias gerações, diferentes gêneros musicais, e em diferentes partes do mundo, parecem ainda estar renegadas, infelizmente, a uma classe inferior. Mesmo compositores consagrados como George Crumb, que tem feito uso extensivo de técnicas estendidas em suas peças para piano, parece ter usado com cautela o termo piano estendido em sua peça Processional, de 1983. No apêndice da peça o compositor explica que fez uso de “alguns efeitos de ‘piano estendido’” (CRUMB, 1983), colocando a expressão entre aspas.

Décadas antes de Crumb fazer uso da sua “nova maneira de manusear sonoridade e timbre”, Henry Cowell já surpreendia as plateias do início do século XX ao tocar diretamente nas cordas do piano. Cowell escreveu peças para o que ele chamou de piano de cordas (string piano), termo que seu aluno mais famoso, John Cage, adotou nas suas primeiras peças para piano preparado.

O piano preparado de John Cage surgiu a partir da necessidade do compositor de transformar o som de um piano a fim de compor música de caráter étnico para o espetáculo de dança Bacchanale, da bailarina Syvilla Fort. Cage colocou objetos entre as cordas e percebeu que parafusos não escorregavam ou vibravam com as cordas onde eram colocados, ao contrário de outros materiais.

E fiquei encantado em perceber que a partir de uma única preparação, dois sons diferentes podiam ser produzidos. Um era ressonante, o outro era de volume baixo e abafado. O som abafado ocorria sempre que o pedal una corda era utilizado. Escrevi Bacchanale rapidamente e com a antecipação proporcionada pela contínua descoberta (CAGE, 1972).

O piano preparado de John Cage, o piano de cordas de Henry Cowell, as técnicas especiais de George Crumb, assim como muitas outras buscas por se ampliar as capacidades tímbricas e sonoras do piano, fazem parte do que chamamos hoje de piano estendido. Importa salientar que o piano estendido é um conceito abstrato, não um objeto físico (VAES, 2009, p. 17), e que o conceito refere-se sempre, e somente, ao instrumento acústico.

Na sua definição de piano estendido, Vaes (2009, p. 8) discorre sobre o que seriam qualidades próprias do piano, e, por oposição, aquelas técnicas consideradas impróprias. Apesar da conotação negativa que o conceito “impropriedade” parece carregar, o significado original da palavra impróprio representa, na verdade, um conceito eticamente neutro.

Apesar do caos que governa as referências a esse assunto, uma característica é comum a todas as [tentativas] de descrição de técnicas e sons: elas são todas impróprias ao instrumento considerado - elas não são verdadeira e estritamente pertencentes a ele. Por exemplo, se o som de uma corda de piano percutida por martelo é uma propriedade do piano, então o som de uma corda de piano dedilhada não é próprio [do piano]. Se for próprio tocar no teclado usando os dedos, então tocar o teclado com o braço constitui técnica imprópria.

Este artigo adota como definição de piano estendido “a prática de performance imprópria do piano, e as características deste conceito, ou seja, as extensões individuais, como sendo aquelas técnicas e sons impróprios que ficam sob controle do pianista durante a performance” (VAES, 2009, p. 8).

Peças para piano podem fazer uso de técnicas estendidas em variadas proporções – sons “próprios” coexistem com sons “impróprios” de maneiras variadas. Além disso, o nível de impropriedade das extensões também varia, dependendo de quão próximas elas estão do que seria o uso próprio do instrumento. Abaixo segue a descrição e hierarquização das extensões estabelecidas por Vaes (2009)5.

Extensões de nível mínimo de impropriedade

São aquelas técnicas que consistem na utilização do piano de maneira própria, e no resultado sonoro também próprio, mas cuja execução é realizada de maneira imprópria. O design de um teclado existe de maneira que um dedo acione uma tecla, e de maneira vertical. Desvios nessa propriedade do instrumento podem ser encontrados nas seguintes técnicas estendidas:

  • Um dedo deslizando sobre as teclas (glissando);
  • Mais de um dedo tocando um tecla;
  • Um dedo tocando mais de uma tecla ao mesmo tempo;
  • Outra parte do corpo acionando uma ou mais teclas;
  • Acionar uma tecla de maneira o sutil que o som o é garantido;
  • Os pedais também podem ser utilizados de maneira imprópria mas

resultando em um som próprio, como quando colocamos um objeto para bloquear o pedal os invés de baixá-lo com os pés.

Extensões de nível médio de impropriedade

Existem duas categorias: 1) A produção de um som próprio através de uma interface imprópria.

O som do piano é intrinsecamente conectado à interface que o produz. A eficiência do sistema de martelo e abafadores é tamanha que qualquer caminho alternativo para se produzir o mesmo som é difícil e supérflua. Entretanto, algumas extensões reproduzem certas propriedades do som de piano:

A execução de notas simples diretamente nas cordas com uso de

uma baqueta macia. O uso do pedal em combinação com esta técnica permite que a vibração do som percorra o seu caminho natural;

O abafar de uma ou várias cordas através do uso das mãos ao invés

da ação dos abafadores; 2) A produção de um som impróprio através de uma interface própria.

Muitas mudanças podem ser feitas aos elementos básicos de produção de som de um piano, os quais são ativados pela interface própria de produção de som:

  • Colocar objetos para vibrar entre as cordas (piano preparado);
  • Colocar objetos para vibrar sobre as cordas (por exemplo, folhas de

papel);

  • Colocar objetos entre os martelos e as cordas;
  • Sons eletrônicos controlados ao vivo pelo pianista;
  • Baixar teclas de maneira silenciosa para que elas vibrem de maneira

simpática quando outras teclas são acionadas de maneira própria.

Extensões de nível elevado de impropriedade

São aquelas em que tanto o som produzido quanto a técnica empregada são impróprios. A maioria delas deixa de lado a interface própria do piano e evita a função mediadora do sistema de martelo e abafadores do instrumento, fazendo uso de partes do corpo ou de objetos para tocar diretamente em diferentes partes do piano.

Partes do corpo tais como ponta do dedo, unha, palma da mão, punho, etc, podem ser usados para:

  • Bater, arranhar ou deslizar sobre as cordas;
  • Bater na madeira;
  • Deslizar sobre ou apertar as cravelhas;
  • Bater na tampa do piano;
  • Bater nos pedais com os pés;
  • Pressionar um ponto nodal de uma das cordas enquanto a corda é

ativada através do teclado ou de pizzicato. Objetos são prescritos para:

  • Bater ou deslizar sobre as cordas;
  • Deslizar sobre as teclas;
  • Bater na estrutura de metal;
  • Bater na caixa harmônica através dos buracos na estrutura de metal;
  • Tocar as cordas do piano com um arco de violino (bowed piano);
  • Acionar indiretamente a vibração de uma corda;
Extensões de nível extremo de impropriedade

Não envolvem som de piano per se:

  • Gestos teatrais sem nenhum som;
  • Outros sons, o produzidos pelo piano, mas executados próximos do piano, seja através do uso de partes do corpo (por exemplo, cantando, gritando, batendo os pés), de objetos, ou de sons prégravados e acionados por controle remoto pelo pianista;
  • Outros sons, o produzidos pelo piano, mas executados sobre as

cordas abertas do piano, explorando a reverberação do som.

1.2 Elementos extramusicais

A intenção de se referir em música a temas da experiência de vida do compositor, ou de elementos de uma determinada cultura, é expressa por Walt Whitman como uma busca pela “vivificação” de elementos externos. “Sem essa vivificação definitiva – a qual apenas o poeta ou outro artista pode dar – a realidade pareceria incompleta, e a ciência, a democracia, e a própria vida, seriam, finalmente, em vão (WHITMAN, 1977, p. 299).

Para Fernando Pessoa, a arte é a representação simultânea de duas paisagens, uma interior e outra exterior (GALHOZ, 1960, p. 31). O poeta também afirma que “a arte pode ser admitida como a interseção de um estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior” (Ibid.). A partir das ideias de Pessoa e Whitman, a referência a ideias extramusicais em Desassossego Latente, tais como a escolha do título e do texto a ser recitado, reflete uma busca do compositor em vivificar a sua música, e de representar através da arte, a sua paisagem interior.

Segundo Meyer (1994, p. 6), a expressão musical de elementos extramusicais decorre da capacidade da música de “evocar associações e conotações relativas ao mundo das ideias, sentimentos, e objetos físicos”. Essa concepção semântica é reafirmada por Nattiez (1990, p. 102): a música “sendo um fato simbólico, tem o potencial de se referir a alguma coisa”. De fato,

    1. o pressuposto semântico de que a música tem a capacidade de carregar significados, de vivificar experiências, e de estabelecer correlações com outras artes, tais como a relação entre música e poesia6, permite-me investigar na peça de Ribeiro um possível paralelo entre o repertório de gestos musicais recorrentes, as palavras recitadas, e a experiência de descoberta desse texto pelo compositor. De acordo com Boulez (1986, p. 189), “a música tem sua própria semântica firmemente enraizada nas suas próprias estruturas básicas e obedecendo leis específicas, de forma que o sentido que ela comunica é paralelo, ao invés de idêntico, ao sentido comunicado pelas palavras”. A investigação analítica das técnicas estendidas criadas por Ribeiro nessa composição podem, portanto, comunicar um sentido paralelo às palavras recitadas, e, consequentemente, ao caráter de desassossego que dá título à peça.
    2. A análise do texto musical foi feita em paralelo a entrevistas com
  1. o compositor. A autora deste trabalho foi colaboradora do compositor na criação dessa obra musical, portanto a investigação analítica está imbuída também de memórias da vivência da pianista durante o processo criativo de Desassossego Latente.

2. Desassossego Latente

A peça Desassossego Latente (2010) para piano e recitação foi a resposta do compositor Felipe Ribeiro à minha solicitação de uma peça para piano que fizesse uso da minha voz. Conhecendo a obra de Ribeiro, observo que em Desassossego Latente o compositor reitera elementos presentes em suas duas peças recentes para piano: “...meu sonho conduz minha inatenção...” (2008), e ad te... per ludum (2009), a primeira para piano solo e a segunda para piano preparado e voz. Em “...meu sonho conduz minha inatenção...” Ribeiro já parece buscar estender o piano através de uma reflexão cuidadosa sobre a ressonância do instrumento. A peça não apresenta técnica estendida per se, mas faz uso extensivo do pedal tonal e de clusters baixados de maneira silenciosa, causando as cordas desses clusters a vibrar por simpatia. Já em ad te... per ludum, uma peça curta para piano preparado e voz, o compositor parece ter experimentado com cores diferentes ao se utilizar de técnicas estendidas tais como a colocação de moedas entre as cordas e de um tipo de tecido entre as cordas e os abafadores. O uso de técnicas estendidas em ad te... per ludum parece ter proporcionado ao compositor a criação de uma paleta de possibilidades que ele desenvolveu e consagrou em Desassossego Latente.

2.1 O piano estendido em Desassossego Latente

Adotando-se os critérios de classificação de Vaes (2009), o piano estendido na peça em estudo apresenta várias técnicas de nível médio, nível elevado e nível extremo de impropriedade.

2.1.1 Técnicas de nível médio de impropriedade em Desassossego Latente

Existem duas categorias entre as técnicas de nível médio: a) aquelas em que ocorre a produção de um som próprio através de uma interface imprópria ou b) aquelas em que ocorre a produção de um som impróprio através de uma interface própria. Três tipos de extensões em Desassossego Latente fazem parte desta última categoria, em que apesar das teclas serem baixadas de maneira própria, o som resultante difere do som próprio do instrumento. A descrição de cada técnica consta da seção de instruções que acompanha a partitura (RIBEIRO, 2010):

Piano preparado: as notas C3 e Bb3 têm uma moeda colocada no meio da corda, (aproximadamente o segundo harmônico). A sonoridade assemelha-se a de um gongo. A circunferência da moeda deve cobrir exatamente o espaço das três cordas, sem sobra, para evitar vibrações metálicas indesejadas. Moedas de 10 centavos de dólar americano ou canadense, ou de 2 centavos de euro são opções viáveis, mas fica a critério do pianista encontrar a moeda ideal para cada piano. O piano preparado é notado através de cabeça de notas quadradas.

Sons harmônicos: a tecla a ser baixada tem a cabeça da nota em formato de diamante enquanto o som resultante está entre parêntesis. Deve-se preparar o piano com antecedência utilizando-se de giz, pincel atômico, etiquetas de papel ou outra forma de marcação a fim de mapear cada harmônico. Antes da tecla ser baixada a outra mão rapidamente se coloca dentro do piano e toca com a ponta de um dedo a região da corda marcada previamente.

Notas abafadas: algumas teclas são baixadas enquanto a outra mão abafa a corda próximo ao respectivo agrafe.

2.1.2 Técnicas de nível elevado de impropriedade em Desassossego Latente

As extensões a seguir fazem parte de uma categoria em que nem a maneira de produção do som, nem o som resultante, são considerados próprios do instrumento, ou seja, estas extensões apresentam nível elevado de impropriedade:

Pizzicato: as notas em cruz indicam pizzicato de unha diretamente nas cordas:

Teclas baixadas de maneira silenciosa: o pedal sostenuto nesta peça ignora as notas acima do Dó central. Quando a ressonância de notas agudas é necessária, o pianista precisa pressionar de maneira silenciosa uma tecla enquanto, com a outra mão, realiza o pizzicato nas cordas.

Clusters silenciosos: são notados com as notas limites no agudo e no grave dentro de uma caixa e utilizados apenas para indicar a região do pedal sostenuto. Todos os clusters notados dessa maneira devem ser pressionados de maneira silenciosa, e sustentados pelo pedal sostenuto. Clusters são sempre cromáticos.

Glissando nas cravelhas: glissandi de unha ou ponta do dedo nas cordas entre as cravelhas e os agrafe. As alturas apenas indicam a região aproximada a ser executado o glissando.

2.1.3 Técnicas de nível extremo de impropriedade em Desassossego Latente

O uso da voz é extensão de nível extremo nessa peça de Ribeiro, pois não envolve som de piano per se. Entretanto, a voz é utilizada quase sempre com o pedal de sustentação baixado, o que significa que as cordas do piano ressoam por simpatia ao serem acionadas por sons vocais produzidos no interior do piano. Em Desassossego Latente a voz é usada de duas maneiras: cantando, sempre senza vibrato, ou sussurrando, em pianíssimo, mas de maneira audível.

2.2 O texto

O texto da peça é formado por uma série de 12 palavras em dois idiomas: romeno e húngaro:

Romeno Húngaro Português
sânge vér sangue
singurātate magány solidão
opresiune elnyomás opressão
te rog kérem por favor
moarte halál morte
ajutor segítség ajuda
milă irgalom perdão
nu nem não
frică félelem medo
anxietate szorongás ansiedade
nervos ideges nervoso
cruditate kegyetlenség crueldade

Tabela 1: Lista de palavras em romeno e húngaro, e a tradução para o português, criada pelo compositor em Desassossego Latente.

Observa-se um significado comum entre todas as palavras – elas se relacionam a situações de terror e ansiedade. O compositor observou, em visita recente ao leste europeu, que esses sentimentos fazem parte do dia-a-dia das pessoas. Ribeiro afirma que a escolha de uma lista de palavras ao invés de um poema veio ao encontro do seu interesse por um texto menos narrativo, mas de significado pungente:

Tento evitar um texto narrativo demais, o que de certa maneira distancia o ouvinte da estrutura musical da peça. As palavras (de certa maneira, jogadas no texto) são inspiradas numa exposição que assisti em Budapeste. Foi minha primeira vez nessa cidade e fiquei assustado com a realidade deles. É um povo que ainda hoje sofre as consequências do Nazismo e principalmente do Comunismo. Em Budapeste existe o “museu do terror” onde espera-se construir uma consciência do perigo dessas ditaduras. O prédio deste museu foi utilizado pelos Nazistas e pelos Comunistas para torturas e assassinatos. Quando entrei no porão do museu, tive essa sensação de tempo parado, uma mistura de concentração e medo. A partir daí, resolvi aplicar essa experiência nessa peça (RIBEIRO, 2010).

Apesar do significado imbuído nessa lista de palavras, criada por Ribeiro, importa salientar que, durante o processo composicional, ela foi usada de maneira intuitiva. Palavras com ênfases em vogais foram escolhidas para momentos em que a voz canta e palavras com ênfases em consoantes para momentos de recitação. A escolha da palavra a ser utilizada, e em que momento, ocorreu de maneira intuitiva, mas não aleatória. Algumas palavras que compõem a lista não fazem parte da versão final da peça. A escolha de dois idiomas que o compositor não domina, permitiu a ele “trabalhar num terreno desconhecido e portanto com maior liberdade” (RIBEIRO, 2010), e reforça a ideia de que para Ribeiro o som se sobrepõe ao significado individual de cada palavra. De fato, a lista de palavras foi utilizada como opções de sonoridade e não é necessária a compreensão de cada palavra durante a performance. Mesmo assim, vale ressaltar a relação entre o significado geral da lista e o título da peça – Desassossego Latente. Desassossego significa agitação, perturbação, falta de sossego, enquanto latente significa algo não aparente, que não se manifesta por fora. Todas as palavras da lista de Ribeiro são enraizadas em sentimentos dessa natureza, estabelecendo coesão entre título e material textual da peça.

3. Repertório de gestos musicais

A partir do estudo rigoroso da peça de Ribeiro podemos observar a recorrência de determinados gestos musicais, os quais serão discutidos no que se refere ao material musical e função desempenhada em Desassossego Latente:

3.1 Arpejo descendente: um dos gestos de maior recorrência na peça. Consiste em um breve arpejo, de 4 ou 5 notas apenas, em articulação staccato e em crescendo, mantendo níveis médios de intensidade. Uma das ocorrências desse gesto afirma a sua função na peça: podemos observar no Exemplo 1 que o arpejo descendente articula uma gesto vocal, e a palavra que o precede é ajutor, que significa ajuda. É como se esse gesto assumisse um caráter de pedido de socorro, um pedido que não podia ser compreendido até esse momento, mas que já estava presente desde o início da peça.

Exemplo 1 – Desassossego Latente, comp. 36. Arpejo descendente articulando o gesto vocal com a palavra ajutor.

Esse pedido de socorro assume às vezes um caráter insistente, obsessivo, e que combinado com o gesto em notas repetidas, produz um ambiente de tensão e ansiedade (Ex 2).

Exemplo 2: Desassossego Latente, comp. 58. Arpejo descendente de caráter insistente.

Ao final da peça, o arpejo parece se contrair em 5 notas subjacentes, no registro grave do piano, e o gesto ocorre com as notas abafadas, como se o pedido de socorro fosse ao final abafado, sem resposta (Exemplo 3).

Exemplo 3: Desassossego Latente, comp. 68-69. Arpejo descendente transformado em notas adjacentes abafadas no registro grave.

3.2Notas repetidas: este gesto ocorre por toda a peça, quase sempre em crescendo e em acelerando. A manifestação mais explícita desse gesto são as acciaccaturas, que ocorrem no registro médio e agudo, e cujas notas devem ser repetidas o mais rápido possível, proporcionando um ambiente de caráter nervoso (Exemplo 4):

Exemplo 4: Desassossego Latente, comp. 11. Acciaccaturas seguidas de arpejo descendente.

Em outros momentos, o gesto em notas repetidas ocorre no registro grave, em pianissimo, e com as notas abafadas, com um caráter diverso. O ambiente de nervosismo das acciaccaturas parece se transformar em um ambiente de suspense (Exemplo 5):

Exemplo 5: Desassossego Latente, comp. 17. Notas repetidas abafadas no registro grave.

As notas são às vezes repetidas em pizzicato nas cordas, sempre em crescendo e accelerando:

Exemplo 6: Desassossego Latente, comp. 64. Notas repetidas em pizzicato.

3.3 Mesmas alturas, executadas através de técnicas estendidas diversas: este gesto se aproxima do gesto de notas repetidas, pois o efeito resultante é o de uma sequência de sons de mesma altura. As notas são, entretanto, repetidas de maneira esparsa, e com frequência utilizando técnicas de pizzicato nas cordas e de sons harmônicos executados em diferentes cordas no piano. O caráter desse gesto é, portanto, bastante diferente daquele de notas repetidas de maneira nervosa. Aqui, o material musical associado às palavras sussurradas pela pianista, estabelecem um ambiente delicado, de reflexão e serenidade (Exemplo 7 e 8).

Exemplo 7: Desassossego Latente, comp. 33-34. Mesmas alturas, obtidas através de técnicas estendidas diversas.

Exemplo 8: Desassossego Latente, comp. 43-44. Mesmas alturas, obtidas através de pizzicato nas cordas, sons harmônicos e voz.

3.4 Glissando nas cravelhas e notas preparadas: um glissando breve, nas cravelhas, em crescendo mas sempre em intensidade reduzida, e que ocorre com frequência associado a uma ou ambas as notas preparadas com moedas (som de gongo). O som de gongo articula o glissando, produzindo um gesto que explora o elemento surpresa (Exemplo 9): são apenas duas as notas preparadas nessa peça, portanto, quando elas ocorrem, um ambiente novo é criado. O som de gongo é definitivamente um elemento surpresa nessa peça, e associado ao glissando dentro do piano, esse efeito é ampliado. É um gesto delicado, que produz um ambiente sonoro bastante sutil, semelhante ao ambiente de reflexão e ansiedade relacionado ao gesto anterior.

Exemplo 9: Desassossego Latente, comp. 37. Glissando nas cravelhas associado às notas preparadas com moedas entre as cordas (som de gongo)

3.5 Camada de ressonância: o pedal tonal é utilizado a fim de sustentar o som de clusters cromáticos baixados de maneira silenciosa (Exemplo 10). A aura de ressonância produzida por esse recurso, acionada através de um ou mais acordes em articulação staccato e em intensidade elevada, configura um nível subjacente de sonoridade que permeia boa parte da peça. Essa camada subliminar produz um caráter de duplicidade, ou seja, através desse recurso a peça existe em dois universos paralelos: um universo sonoro concreto, formado de gestos musicais claramente identificáveis, e outro subliminar, formado por uma nuvem de sons harmônicos variáveis.

4. Paralelo entre os gestos musicais e o texto em Desassossego Latente

Segundo Boulez (1986, p. 184), a relação entre música e poesia pode assumir muitas formas, em vários níveis diferentes de interação: desde o mais evidente, quando o compositor coloca em música o texto, até o mais profundo, quando a poesia é incorporada à música como sua “fonte de irrigação”. Em Desassossego Latente, Ribeiro criou uma lista de palavras, a qual mantem relação direta com os sentimentos relacionados a situações de terror e ansiedade vivenciados pelo compositor em visita ao leste europeu. A lista de palavras, imbuída de significado pungente, configura portanto a fonte de irrigação dessa peça musical.

O compositor afirma que fez uso da lista de palavras de maneira intuitiva. De fato, não existe uma relação direta entre o material musical e as palavras cantadas ou sussurradas nessa peça. O que a investigação analítica de Desassossego Latente permitiu observar foi a recorrência de alguns gestos musicais, e através deles, e o estabelecimento de determinados ambientes sonoros, os quais são a expressão musical dos sentimentos irrigados pelo texto.

O gesto recorrente em notas repetidas, de caráter nervoso, produz um ambiente de tensão e ansiedade quando se trata de acciaccaturas em crescendo (Exemplo 4). Esse ambiente de tensão se transforma quando as notas repetidas ocorrem no registro grave, com as notas abafadas (Exemplo 5). De fato, as duas técnicas estendidas que ocorrem associadas a esse gesto - aquela em que o som das cordas é abafado através da colocação de uma das mãos sobre as cordas do piano, e aquela em que as notas são executadas em pizzicato nas cordas - transformam o ambiente de tensão desse gesto em um ambiente de suspense, reflexão e resignação.

O gesto recorrente em arpejos descendentes produz um ambiente sonoro também de tensão e ansiedade, como um grito de socorro, enfatizado pelo uso desse material musical em associação com a palavra ajutor (Exemplo 2). Também nesse gesto observa-se que o uso de técnicas estendidas, neste caso as notas abafadas no registro grave ao final da peça (Exemplo 3) transforma o ambiente sonoro característico do gesto. Na última instância desse gesto, o grito de socorro em arpejos é concentrado em nota consecutivas, e o som abafado, quase inaudível. O ambiente sonoro de tensão relacionado a esse gesto em arpejos é portanto transformado em um ambiente de resignação, em que o grito de socorro é calado.

Através da investigação dos gestos recorrentes em arpejos e em notas repetidas, observa-se que as técnicas de piano estendido foram utilizadas de maneira a transformar o caráter nervoso e de tensão desses dois gestos em um ambiente de suspense ou resignação. Todos esses sentimentos encontram paralelo nas lista de palavras de Ribeiro.

Os demais gestos recorrentes em Desassossego Latente fazem uso quase exclusivo de piano estendido. O gesto em que mesmas alturas são executadas através de diferentes técnicas estendidas, inclusive a voz, produz um ambiente sonoro tranquilo, de reflexão e serenidade, sem resquício algum de agressividade (Exemplo 7 e 8). Os dois últimos gestos recorrentes, tanto o que faz uso das notas preparadas, quanto o que utiliza o pedal tonal, também produzem um ambiente sonoro delicado, de serenidade, em que a memória de sentimentos de tensão existe de maneira subjacente, sem agressividade.

A análise dos gestos musicais recorrentes nos permite discorrer sobre o uso de técnicas estendidas em Desassossego Latente. Gestos como os de notas repetidas e em arpejos descendentes ocorrem na maioria das vezes independentes do piano estendido. Entretanto, quando técnicas estendidas são associadas a esses gestos, o ambiente sonoro criado por eles é completamente diverso. O caráter nervoso e de ansiedade se transforma em um ambiente de serenidade. Quanto aos demais gestos recorrentes, gerados quase na sua totalidade por meio de técnicas estendidas, o ambiente sonoro produzido é sempre mais delicado, como a memória de momentos difíceis, que não queremos vivenciar novamente, mas que continuam pungentes.

Considerações finais

Os ambientes sonoros característicos em Desassossego Latente são irrigados a partir do texto criado por Ribeiro e decorrem da reiteração de determinados gestos musicais. Sentimentos associados às palavras que compõem o texto são interpretados através de ambientes sonoros de dois tipos: um de caráter nervoso e ansioso, outro de caráter sereno, de suspense e resignação. Entre os gestos musicais recorrentes, aqueles que fazem uso do piano estendido, seja em níveis médios, elevados ou extremos de impropriedade, estabelecem ambientes sonoros que evocam sentimentos mais delicados, ora de suspense e resignação, ora de reflexão e memória. O uso da voz do (a) pianista constitui técnica estendida, e a voz também é utilizada nessa peça de maneira sutil, ora cantando em intensidade reduzida, ora sussurrando, de acordo com os ambiente sonoros de serenidade.

A lista de palavras de Ribeiro e o título da peça são a fonte de irrigação de Desassossego Latente, e o piano estendido é o instrumento através dos quais os sentimentos pungentes vivenciados pelo compositor permanecem latentes nessa obra. O compositor fez uso do piano estendido a fim de explorar sons que não pertencem ao universo sonoro convencional do piano. A utilização do piano estendido nessa peça tem uma relação com a escolha estética do compositor de Ribeiro, que diz se encontrar às vezes em um “limbo estético, com a sensação de não pertencer” a nenhuma linha estética da música de hoje (RIBEIRO, 2010). Talvez esse seja um traço de personalidade característico de muitos compositores em busca de uma linguagem individual. É certo que no caso de Cage, Cowel, Crumb e outros compositores que estenderam as possibilidades tímbricas do piano no último século, a busca por uma independência dos sons convencionais do piano levou-os a produzir algumas das obras para piano mais significativas do século XX.

Notas

1 Desassossego Latente faz parte do projeto Going North, um programa de recital com peças

de compositores brasileiros e canadenses. As peças são para piano, voz da pianista, sons

eletrônicos e filme, e foram compostas especialmente para este projeto. 2 Na bibliografia em português, a expressão “técnicas expandidas” (e não “técnicas estendidas),

é utilizada por Tokeshi, 2003, Copetti & Tokeshi, 2005, e outros autores. 3 Uma extensa série, editada por Bertram Turetzky e Berney Childs, que inclui volumes sobre

o clarinete (Rehfeldt, 1994), violino (Strange, 2001), contrabaixo (Turetzky, 1989), flauta (Howell, 1974), trombone (Dempster, 1979), violão (Scheiner, 1986), harpa (Ingefield & Neil, 1985), oboé (Van Cleve, 2004) e voz (Edgerton, 2005).

4 Além da bibliografia citada nas notas acima, vale mencionar os trabalhos de Tokeshi, 2003 e Copetti & Tokeshi, 2005 sobre técnicas estendidas no violino. 5 Para descrição completa e exemplos específicos de cada extensão, consulte Vaes, 2009, p. 19-21. 6 Tema que desenvolvi em trabalho anterior (CARDASSI, 1998).

Referências bibliográficas

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. ad te... per ludum. Para piano preparado e voz. Partitura. Buffalo: Finale, 2009.

. ...meu sonho conduz minha intenção... Para piano solo. Partitura. Buffalo: Finale, 2008.

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Luciane Cardassi - Pianista. Doutora em Música (Contemporary Music Performance) pela Universidade da Califórnia, San Diego (EUA) e Mestre em Música/Piano pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi bolsista da CAPES. Tem artigos publicados em importantes revistas nacionais na área de performance da música contemporânea, além de palestras e concertos no Brasil e exterior.