PROtO-HIStóRIA, EvOluçãO E SItuAçãO AtuAl DAS téCnICAS EStEnDIDAS nA CRIAçãO MuSICAl

E nA PERfORMAnCE

José Henrique Padovani - IA/UNICAMP padovani@iar.unicamp.br

Silvio Ferraz - UNICAMP silvioferraz@iar.unicamp.br

Resumo: Fortemente associadas à própria evolução dos instrumentos musicais e às experimentações em torno de seu manuseio, as técnicas estendidas envolvem a utilização de recursos instrumentais e vocais incomuns em um contexto histórico, estético e cultural. No artigo, são apresentados exemplos que demonstram a exploração de técnicas estendidas em peças musicais que vão do século XVII aos dias atuais. Ao final, é esboçada brevemente a situação atual da composição com recursos técnicos em expansão, sendo apresentadas as possibilidades de utilização de meios eletrônicos e computacionais na criação musical, levando assim a uma redefinição das “técnicas estendidas”. Palavras-chave: Técnicas estendidas; Performance instrumental; Técnica instrumental.

Abstract: Closely linked to the very evolution of the musical instruments and the experimentations on their handling, the extended techniques involve the use of instrumental and vocal resources that are unusual in a given historical, esthetical and cultural context. In the paper, we present examples that demonstrate the exploration of extended techniques in musical pieces ranging from the seventeenth century to today. Finally, we sketch briefly the current state of the composition with new technical resources, and present the possibilities of using electronic and computing tools in the musical creation, leading so to a redefinition of the “extended techniques”. Keywords: Extended techniques; Music history; Interactive music systems.

Tradicionalmente associada às técnicas de performance instrumental, a expressão técnicas estendidas se tornou comum no meio musical a partir da segunda metade do século XX, referindo-se aos modos de tocar um instrumento ou utilizar a voz que fogem aos padrões estabelecidos principalmente no período clássico-romântico. Em um contexto mais amplo, porém, percebe-se que em várias épocas a experimentação de novas técnicas instrumentais e vocais e a busca por novos recursos expressivos resultaram em técnicas estendidas. Nesta acepção, pode-se dizer que o termo técnica estendida equivale a técnica não-usual: maneira de tocar ou cantar que explora possibilidades instrumentais, gestuais e sonoras pouco utilizadas em determinado contexto histórico, estético e cultural.

Neste texto procuraremos traçar uma breve genealogia das chamadas técnicas estendidas e identificar o quadro atual da aplicação de recursos estendidos na composição e na performance. Por um lado, tal investigação implica em reconhecer as transformações gerais pelas quais os instrumentos e as práticas instrumentais passaram desde o fim do Renascimento até a contemporaneidade. Por outro, torna-se necessário reconhecer que principalmente a partir das décadas de 1980 e 1990 os computadores passam a intermediar cada vez mais as práticas musicais, estabelecendo-se como recursos que, ao ampliar e diversificar tanto as técnicas e possibilidades de performance do instrumentista quanto a paleta criativa do compositor, podem ser incluídos numa acepção mais ampla do termo “técnicas estendidas”.

1. Técnicas estendidas, desenho dramático e o stile rappresentativo

Evidentemente, toda prática instrumental sempre implicou em técnicas estendidas, resultantes da própria experimentação musical com recursos instrumentais e vocais. No entanto, é possível determinar alguns momentos importantes para a maturação do que hoje se compreende pelo termo, principalmente a partir da consolidação da composição instrumental e da notação musical para instrumentos a partir do Renascimento tardio e do início do século XVII.

Para demonstrar esta associação entre a técnica instrumental e sua extensão por necessidades expressivas, tomemos aqui como um primeiro exemplo a escrita para cordas utilizada por Claudio Monteverdi em Il Combattimento di Tancredi e Clorinda (1624). Buscando produzir um efeito sonoro que reforçasse o drama da cena operística, Monteverdi pede às cordas (viole da braccio) que ataquem repetidamente e com rispidez a mesma nota, dando origem à primeira indicação de tremolo que se tem notícia na literatura. Com tal estratégia, Monteverdi representa o caráter agitado e violento da guerra que tanto caracteriza o stile concitato de seus Madrigali guerrieri ed amorosi, de 1624.

Nesta obra em cujo prefácio o compositor pede aos músicos que toquem os instrumentos “à imitação das paixões do texto” aparece também a seguinte indicação: “Aqui se deixa o arco e puxam-se as cordas com dois dedos” (parte do alto secondo, p. 15), de modo a especificar o que viria a se estabelecer tradicionalmente como pizzicato. Levando em conta, porém, que a indicação ocorre no momento do duelo entre Tancredi e Clorinda, que ela requer utilização de dois dedos para puxar a corda e que o verbo utilizado pelo compositor é strappare – que aqui traduzimos por “puxar” mas que também pode significar “rasgar” ou “arrancar” – pode-se dizer que a técnica indicada é muito próxima daquela que hoje se conhece por pizzicato Bartók – recurso que viria a ser utilizado também por Gustav Mahler, no scherzo da sua 7ª Sinfonia.1

Embora não relacione a técnica requerida por Monteverdi com aquela consagrada por Béla Bartók, Jack Westrup (1940) ressalta que o pizzicato empregado em Il Combattimento di Tancredi e Clorinda “deveria soar claramente forte, já que o texto narra sobre como os combatentes golpeavam um ao outro, elmo contra elmo, escudo contra escudo” (p. 245).

Figura 1: Trecho de Il Combattimento di Tancredi e Clorinda onde aparecem tremoli e a indicação de um pizzicato que, dada as instruções do compositor e o perfil dramático e dinâmico da obra, se assemelharia ao que hoje é denominado pizzicato Bartók.

Tendo em vista, enfim, que tanto a cena quanto o verbo empregado por Monteverdi presumem uma certa violência, pode-se dizer, com certeza, que não se trata da técnica usualmente indicada nas partituras orquestrais pela simples indicação pizz. Tal técnica, que se consolidou com o repertório clássico-romântico, é indicada de maneira cautelosa por Leopold Mozart (1787) em seu Versuch einer gründlichen Violinschule:

Quando Pizzicato, (Pizzicato) estiver indicado diante de uma passagem ou de uma nota; então tal passagem ou nota será tocada sem o uso do arco. Isto é, a corda será desferida com o dedo indicador ou o polegar da mão direita (...). Nunca deve-se porém, quando se desfere a corda, deixá-la descer demais; mas sempre relaxar e voltar a estender a corda: senão ela se bate por ricochete contra a escala do instrumento gerando ruído ou perde logo o tom. (p. 52)

Apesar de ser citado muitas vezes como o primeiro a utilizar o pizzicato, Monteverdi foi precedido pelo soldado inglês Tobias Hume que em 1605 tem suas canções e peças para viola da gamba publicadas em The First Part of Ayres ou Musicall Humors. Na peça “Harke, Harke” figuram, ao que parece pela primeira vez, o pizzicato e o legno battuto. Tais técnicas são indicadas textualmente na tablatura: “toque nove letras com seus dedos”, especificando o número de notas que deveriam ser executadas com pizzicato, e “percutir isso com o lado de traz do arco”, especificando o legno battuto. Vale dizer que esta e outras especificações de performance da viola da gamba definidas por Hume dizem respeito à imitação de outros instrumentos (neste caso, um tambor militar).2

Do stile rappresentativo do início do século XVII até a primeira metade do século XVIII o contraste entre sonoridades, dinâmicas e texturas é um fator ao mesmo tempo dramático e estruturador da escritura composicional, o que se percebe, por exemplo, na construção do concerto grosso através da alternância entre concertino e ripieno ou na valorização de sonoridades como aquelas exploradas por Monteverdi ou, mais tarde, por Vivaldi.

Em uma entrevista a François Delalande (2001), Giovanni Antonini, flautista e diretor do grupo especializado em música barroca Il Giardino Armonico, revela aspectos desse trabalho de destilar tais contrastes sonoros, dramáticos e gestuais da música barroca que teriam sido homogeneizados durante o classicismo.

Figura 2: “Harke, Harke” de Tobias Hume, em que aparecem, ao que tudo indica, as primeiras indicações de pizzicato e legno battuto.

F.D: Ao escutar as gravações do Giardino, é bastante evidente: as vozes são completamente diferenciadas; pode-se as distinguir muito bem.

G.A: Isso se deve a um grande trabalho sobre o ataque. Tem-se medo do ataque. Um ataque, atualmente, não é jamais “ta”, mas quase sempre “ouff”, por razões práticas, na maioria das vezes: porque é mais fácil. (...) Mas o ataque é alguma coisa que “colide”, que dá um golpe, é um elemento de ruído. O momento do ataque é essencialmente feito de ruído. É alguma coisa que está presente nos instrumentos étnicos. A música “clássica”, entre aspas, anulou esses elementos de ruído, enquanto eles existem no jazz, na música étnica, e evidentemente hoje, para voltar ao barroco, certos grupos tem sentido a sua necessidade. Outros não. Outros buscam algo muito meloso, uma espécie de New Age barroca, eu diria. Esse mundo, a mim, não me convence. (p. 120)

Evidentemente, tais “elementos de ruído” que Antonini identifica no ataque são recuperados não apenas a partir do ensaio e da precisão rítmica, mas também a partir de uma leitura que traduz elementos dramáticos do texto musical a partir de recursos instrumentais estendidos.

O que eu devo reiterar é que o emprego de diferentes sonoridades, de diferentes tipos de ataque, o som al ponticello (ao cavalete), o som alla tastiera (sobre o espelho), isso não é jamais um fim em si. Na realidade, isso responde sempre, digamos, a um desenho dramático; parti-cularmente na música de Vivaldi. Tomemos As quatro estações, que possuem cada uma um programa. No momento em que nós quisemos realizar – tomemos um exemplo o mais conhecido – o gelo, o inverno,

o meio que nos pareceu o mais adaptado era de tocar al ponticello, para dar justamente uma impressão de frio. A música barroca é uma música que, mesmo quando não existe um programa explícito, responde sempre a um programa, a uma história, a um desenho dramático. Quão melhor se consegue ler esta história, mais a música torna-se rica. (...) Nós não exageramos jamais gratuitamente. Eu penso, em A Primavera, no cão que late e no pastor que dorme: ti..ra..ra O cão: bam... bam... (...) Você sabe que os violinos (isso pode fazer rir um pouco!) fazem o ruído das árvores: ss... E a viola faz o cão. Então nós, para rir, o que fizemos? Em um certo momento, houve um instante de loucura no ensaio. O violino solista, que fazia o pastor que dorme, começou a tocar com o corpo alongado, como se estivesse adormecendo, e depois havia os violinos tutti que começaram a se balançar como árvores, e o cão se colocou a fazer o cão! É uma brincadeira, mas é significativo. Você está a fazer um cão, você é um cão. De fato, você se diz: “tu és um cão, faça o cão!” e você deve ser cão, você deve ser árvore, você deve ser pastor. (...) É um pretexto para nós. O fato de haver uma melodia muito bela e qualquer coisa que perturba, com esse cão, essa viola que soa muito forte. É uma concepção antirromântica, totalmente antirromântica e moderna. E barroca. O barroco compreendido como grande contraste, como as-simetria. O mesmo para o adagio em O Inverno, o “ta, tirali...”. Lá há o violoncelo que toca muito forte. Mas está escrito, está escrito por Vivaldi! Para esta parte do violoncelo, Vivaldi escreveu molto forte. (...) Nós fizemos muito forte. Muito muito forte, eu não sei... (risos). Lá também, tem-se a chuva, são os violinos “pam, pam, pim, pam, pa”, essa melodia “la, lilali...” e o violoncelo “papipipapapipipapa...”. E está escrito exatamente: viola (que mantem uma nota) pianissimo, violoncelo sempre molto forte, violinos forte, e para a melodia nada está escrito. (...) É uma ideia sonora extremamente moderna. Não é a melodia langorosa dos violoncelos. Frequentemente ou não se faz essa parte ou então se a faz em mezzo piano. É o contraste. É dramático. (...) É inventivo. É uma sonoridade. Eu não sei: é atual. (p. 121-130).

Efetivamente, trata-se uma concepção sonora extremamente atual que, realizada por um grupo como Il Giardino Armonico, é capaz de edificar sonoridades – como no início do segundo movimento de O Outono ou no primeiro movimento de O Inverno – que podem ser comparadas àquelas construídas por compositores da chamada escola espectral, como Gérard Grisey e Tristan Murail. Se a realização sonora e gestual de As Quatro Estações é feita a partir de um pretexto descritivo – cuja essência não é o seu caráter programático, mas o fato de delinear um “desenho dramático”, como diz Antonini –, é importante perceber como tais elementos simbólicos do barroco influem de maneira direta não apenas na estruturação composicional mas também na dança gestual e na superfície sonora de sua realização. Dos gélidos sons al ponticello em O Inverno a legatos e portamentos que remetem ao ébrio em O Outono, o grupo cria contrastes, sonoridades e um drama que não seria possível de se alcançar a partir de uma concepção calcada na Absolute Musik.

2. A luteria experimental e a máquina orquestral clássico-romântica

Seria um engano, contudo, pensar que a música clássico-romântica não tenha contribuído para o surgimento de técnicas estendidas. Se no contexto iluminista, o stile galante e o classicismo incipiente de meados do século XVIII procuraram eliminar certos elementos sonoros, dramáticos e gestuais que permitiam uma grande exploração de recursos instrumentais estendidos, a consolidação das orquestras e a evolução técnica na fabricação de instrumentos decorrente do contexto da Revolução Industrial viriam a permitir novas experiências voltadas à ampliação dos meios instrumentais e de seu emprego nos grupos orquestrais. Nesse período, por exemplo, ocorrem várias experimentações na construção de instrumentos de teclado de modo a potencializar a resposta dinâmica e a homogeneizar as características espectrais de tais instrumentos. É nesse contexto que o pianoforte – já comum em meados do século XIX – e, ainda antes, o fortepiano, vieram a tomar o lugar do cravo e do clavicórdio, paradigmas instrumentais da música barroca.

Entretanto, o processo histórico não se deu de maneira linear e seria ingênuo pensar que o único resultado de tais pesquisas tenha sido ampliar o leque dinâmico e a tessitura de tais instrumentos e, paralelamente, suavizar as transitórias de ataque características dos cravos a partir da substituição do seus mecanismos de acionamento pelos martelos e abafadores dos pianos. Tanto no trabalho dos artesãos que fabricavam tais instrumentos quanto naquele dos compositores e instrumentistas que os utilizavam é possível perceber um grande interesse na exploração de sonoridades que só voltariam a ser investigadas no século XX, a partir das técnicas de piano preparado. Se o trabalho dos fabricantes veio a acarretar no surgimento de pedais de sustentação, una corda e sostenuto – este último apenas em meados do século XIX –, muito mais variados foram os mecanismos inventados e, por certo período, utilizados. Segundo Banowetz (1992),

Um grande número de aparatos primitivos de pedal com vistas a modificar o som entraram e saíram de voga, muitos deles desenhados para imitar outros instrumentos. (...) A música turca estava na moda no fim do século dezoito, e compositores tentavam imitar os sons musicais exóticos dos Janízaros, a escolta militar dos governantes turcos. O pedal janízaro, um dos mais bem conhecidos tipos de pedais primitivos, adicionava todo tipo de ruído à performance normal do piano. Podia fazer com que uma baqueta percutisse na parte inferior da tábua harmônica, acionava sinos, sacudia chocalhos e até podia criar

o efeito de pratos de choque ao golpear várias cordas graves com uma tira de folha de metal. (...) Outro dispositivo comum nesses dias era o assim chamado pedal fagote. Tal mecanismo deitava um rolo de papel e seda sobre as cordas graves, criando assim um zumbido que os ouvintes da época ouviam como semelhante ao do fagote. (...) Mesmo pedais de crescendo e decrescendo, que alteravam o tom ao levantar ou abaixar o tampo do piano ou ao abrir ou fechar aberturas laterais à caixa do instrumento foram construídos para modificar o som de maneira semelhante ao que ocorre no órgão. Outro dispositivo efêmero e igualmente bizarro forçava ar contra as cordas em uma tentativa de amplificar as notas após os martelos as terem acionado. (p. 5-6)

Rosamond Harding (1931) dá maiores detalhes desse cenário, relatando uma rica variedade de experimentações ocorridas no início do século XIX para expandir as possibilidades sonoras de instrumentos de teclado. Apenas para se ter uma ideia dos recursos utilizados, podemos citar a utilização de anéis ou cilindros de fricção, abafadores feitos de materiais como couro, osso, marfim, ferro ou papel, tambores no lugar de cordas e as mais diversas extensões e modificações imagináveis.

Enquanto tais mecanismos podem parecer aberrações a músicos habituados à configuração atual do piano, um estudo historicamente informado de obras desse período requer que se considere a influência dessas particularidades na concepção e na performance de tais peças. O forte-pianista Tom Beghin (2006), um bom exemplo, propõe uma surpreendente interpretação do conhecido allegretto Alla Turca – terceiro movimento da Sonata K.331 em Lá Maior de Mozart – utilizando técnicas de piano preparado para conferir às notas graves da peça uma sonoridade que, provavelmente, deve se assemelhar aos pedais descritos por Banowetz e Harding.

Igualmente relevante, se torna a leitura de indicações de pedal das sonatas op. 106, op. 110 ou op. 111, de Ludwig van Beethoven. No Adagio Sostenuto da sonata op. 106, por exemplo, Beethoven escreve várias vezes, poucos compassos após a indicação una corda: “pouco a pouco duas, e depois três cordas”, gradação que seria impossível de se realizar em um piano moderno, mas que era perfeitamente possível de ser realizada na sua época já que o mecanismo do pedal una corda permitia deslizar continuamente os martelos de maneira a atacar uma, duas ou três cordas. Da mesma maneira, na Sonata op. 110, Beethoven pede que se realize combinações de pedal de sustentação e una corda diversos, obtendo qualidades de timbre e de dinâmica que certamente eram bem mais evidentes nos instrumentos da época.3

Durante o século XIX, a prática composicional passa a ser influenciada, cada vez mais, pela extensão dos recursos orquestrais e a orquestração passa a fazer parte do próprio processo de estruturação composicional de uma obra. Christian Goubault (2009) aponta transformações importantes ocorridas na instrumentação e na orquestração desse início de século, as quais viriam a permitir aos compositores explorar novas possibilidades instrumentais na música orquestral.

Na virada dos séculos XVIII e XIX, a evolução da orquestra se deve a múltiplos fatores: aprofundamento dos registos graves dos instrumentos existentes e exploração de instrumentos graves (clarinete baixo, contrafagote, etc.), extensão do número de instrumentos de uma mesma família (madeiras ou trompas a 3 ou a 4), aperfeiçoamento pela adição de chaves, válvulas ou pistões, novos instrumentos (saxhorns, saxofones, oficleides, sarrusofones), utilização cada vez maior de divisi nas cordas, individualização do timbre ou de um grupo de timbres, oposição de grupos instrumentais. (p. 103)

A sofisticação dos recursos instrumentais e a consequente ampliação das possibilidades orquestrais acarretará em uma profunda transformação da escritura composicional, seja ela para instrumento solista, para grupo de câmara ou para orquestra.

No primeiro caso, a evolução de instrumentos como o piano ou os instrumentos de sopro permitirá uma escritura que cada vez menos se prende aos parâmetros nota e ritmo e cada vez mais inclui a mecânica do instrumento e suas particularidades gestuais e idiomáticas no processo composicional, exigindo técnicas específicas e registrando na própria partitura indicações que passam a prescrever mais e mais técnicas de performance. Um noturno de Chopin é, nesse sentido, bastante distinto de uma Sonata de Mozart, pois prevê, na própria notação permeada por glissandi, indicações de pedal e variações dinâmicas, um instrumento com sonoridades e qualidades mecânicas bastante específicas que não poderia ser substituído por outro sem consequências consideráveis.

Da mesma maneira, a escritura orquestral passa a exigir um tratamento que não mais se resume à distribuição instrumental de um material composicional previamente escrito ao teclado. Se tal atitude certamente continua a ocorrer, ela pouco a pouco dará lugar a uma composição de sonoridades as quais, elas mesmas, são ponto de partida para o processo composicional. De fato, a ampliação da paleta instrumental transformará a orquestra em uma grande máquina de gerar sons, permitindo aos compositores modelar sonoridades a partir dos recursos instrumentais disponíveis.

O mesmo, ainda que de maneira mais tímida, ocorre na escritura para grupos de câmara, que acabam por funcionar de maneira intermediária: incluindo materiais idiomáticos e gestuais atrelados à mecânica instrumental e possibilitando a construção de sonoridades, mesmo que a partir de um leque bem mais restrito do que aquele oferecido pela música orquestral. No trio do 2º movimento de seu Quarteto op. 132, por exemplo, Beethoven modela a sonoridade de uma gaita de fole a partir do uso de pedais em Lá e de uma escritura que de um lado tende ao estatismo harmônico e, de outro, se vale de arpejos para simular a sonoridade rica em harmônicos do instrumento mimetizado.

Figura 3: Trio do 2º movimento do quarteto op. 132 de Beethoven, onde os instrumentos são utilizados de maneira a modelar uma gaita de fole.

Em um texto intitulado Musik und Technik, Theodor Adorno (1997) também aponta essa intensa transformação dos recursos instrumentais no século XIX, discutindo sua crescente influência sobre o trabalho composicional.

Desde Berlioz, o recital está virtualmente nas mãos do compositor, com o que se reduziu a tensão entre texto e audição. (...) Apenas a partir da segunda metade do século dezenove, sedimentou-se, como técnica composicional, a reflexão sobre recursos – os quais haveriam de ser diferenciados das intenções, talvez naturais, com o manuseio dos parâmetros instrumentais como uma especificidade, habilidades artísticas provenientes da reprodução. A tecnicização [Technifizierung] da obra de arte musical maturou-se com a inclusão de técnicas que foram cultivadas extra-territorialmente no sentido de um desenvolvimento técnico geral. Assim ocorreu com a trompa a pistão, condição decisiva da arte de instrumentação composicional de Wagner, a muito disponível antes de dar horas à composição, sem falar no saxofone. (...) Prototípico disso tudo foi Berlioz, o fenômeno original do moderno na música, o primeiro que trouxe em peças a continuidade da tradição assim como da própria estrutura musical. Ele possuía técnicas composicionais no sentido estrito, dada sua própria disposição consciente em trabalhar na realização instrumental com camadas de material que até então se encontravam abandonadas na prática da má vontade. (p. 131-132)

É em Berlioz e, posteriormente, em Strauss – alvos, ao mesmo tempo, das melhores e das piores críticas de Adorno – que se pode encontrar inovações quanto ao uso de recursos instrumentais e orquestrais que exploram novos campos sonoros e expressivos. Na Sinfonia Fantástica (1830), como é bem conhecido, Berlioz inicia o terceiro movimento com um oboé que toca na coxia e é ainda preciso ao especificar tipos de baquetas e pedir que se abafe os tímpanos – no 4º movimento – e utiliza ataques col legno para simular os sons de ossos se entrechocando no trecho final da peça

técnica utilizada anteriormente por Tobias Hume, como dissemos, e por Haydn, no final do 2º movimento da Sinfonia Nº. 67.

Já em Strauss, percebe-se mais uma vez a utilização de pretextos descritivos para criar sonoridades insólitas, como a resultante da escrita de metais, madeiras e violas no início da 2ª variação de Dom Quixote (1897), que remete a balidos de carneiros: uma combinação de tremolo de violas em divisi, trilos de oboés, clarinetes e metais com sordina, alguns em frullato – especificado pelo compositor com a indicação “golpes de língua” [Zugenschlag].4

Por fim, são inúmeras as aparições de “efeitos especiais” – tais como os denomina Goubault (2009) – nas músicas orquestrais que vão desde aquelas do classicismo àquelas do início do século XX, passando pelo repertório do romantismo.

A variedade de maneiras de tocar os instrumentos contribui largamente a suscitar combinações sonoras engenhosas e a enriquecer a orquestração. Para as cordas: arco, pizz., pizz. alla Bartók (...), col legno (isto é, com a madeira do arco; cf o 2º movimento da Sinfonia 67 de Haydn), sul tasto ou Griffbrett (sobre o espelho) ou flautando, sul ponticello ou am Steg (cavalete; cf. Adagio da Sinfonia 97 de Haydn), sobre a madeira do tampo, scordatura (novas afinações dos instrumentos), em harmônicos naturais ou artificiais, glissandi, gliss. de acordes (cf. Debussy, “Ibéria”) ou em harmônicos que surgem ao se tocar abaixo do cavalete (Ravel, “Feria” de La Rapsodie espagnole, Stravinsky, L’Oiseau de feu), compressão da corda no registro superagudo (contrabaixo solo em Salomé de Strauss, no momento em que Herodes acorda e prevê a desventura). Para os metais e as madeiras: o flatterzungue (golpes de língua “enrolando” [roulée]), efeito introduzido na orquestra por Richard Strauss, ao que parece; se encontra em numerosos exemplos em Schönberg, Berg e Webern; Ravel o denomina tremolo dental (L’Enfant et les sortilèges). Schönberg utiliza o flatterzunge em todos os instrumentos de sopro em Erwartung (partitura Universal, num. 425, p. 63-64)... (p. 224-225)

É interessante reparar que a maior parte dos recursos instrumentais citados por Goubault ocorre na música orquestral do fim do século XIX, principalmente por Richard Strauss – com a exceção das obras da primeira metade do século XX e das utilizações por Haydn de técnicas como sul ponticello e col legno.

3. A permutabilidade dos gestos e os sons das válvulas elétricas

Na primeira metade do século XX ocorrem importantes transformações culturais, sociais e tecnológicas que levarão ao surgimento de atitudes composicionais inovadoras. É a partir de tais transformações que, na segunda metade do século, surge a pesquisa em torno das técnicas estendidas – tal como se entende pelo uso do termo hoje em dia.

Com relação aos recursos instrumentais empregados na música orquestral do início do século XX, percebe-se que ocorrem poucas alterações no que se refere à mecânica instrumental e à constituição dos naipes orquestrais. Efetivamente, as inovações na escritura orquestral desse período não ocorrem, assim, a partir da adição de novos recursos instrumentais – com exceção de uma ou outra utilização incomum, como aquela do violinofone em Amazonas (1917) de Villa-Lobos – mas a partir de uma ressignificação da escritura composicional. Tal processo acontece tanto a partir de concepções musicais que se contrapõem à harmonia tonal – através de estruturações melódicas e harmônicas modais ou pós-tonais – quanto a partir de uma utilização inovadora dos timbres disponíveis, como ocorre com

o fagote no início da Sagração da Primavera (1913), de Stravinsky ou com a Klangfarbenmelodie, na terceira das 5 peças para orquestra, op. 16 (1909), de Schönberg.

Com relação à música de câmara, os recursos instrumentais também permanecem, em grande parte, os mesmos. No entanto, é sobretudo na escritura para formações camerísticas que se evidenciam abordagens composicionais que levaram ao aparecimento de novas técnicas instrumentais. Se em um primeiro momento as composições para grupos de câmara não apresentam ostensivamente o uso de técnicas instrumentais incomuns – o que, no entanto, passará a ocorrer com frequência cada vez maior no decorrer do século XX – tais peças passam a ser elaboradas a partir de propostas composicionais que não apenas subvertem as regras da harmonia tonal, mas também a concatenação de gestos e articulações e a própria estruturação formal herdados da bagagem clássico-romântica. Assim, a partir de peças como o Pierrot Lunaire (1912), de Schönberg, ou as 6 Bagatelas para Quarteto de Cordas (1911), de Webern, se desenvolvem processos de estruturação composicional que, ao fragmentar e parametrizar os gestos e as figuras herdados do romantismo e ao se valer de novas possibilidades de emissão vocal e manuseio instrumental, favorecem ao surgimento de novas concepções musicais e ao consequente desenvolvimento do que hoje é comumente denominado pela expressão técnicas instrumentais estendidas.

No Pierrot Lunaire, além do emprego da modalidade de emissão vocal híbrida entre fala e canto do Sprechgesang, é utilizado o recurso de abaixar silenciosamente algumas teclas do piano para suspender seus respectivos abafadores e, desta maneira, fazer com que tais alturas ressoem por simpatia ao ataque de outras notas – recurso que Schönberg já havia utilizado anteriormente na primeira peça do opus 11.

Já na primeira das 6 Bagatelas de Webern, é marcante o emprego e a livre concatenação de uma grande variedade de articulações e modos de jogo instrumental. Especialmente na linha do 2º violino entre os compassos 4 e 7, por exemplo, note-se que nesses poucos compassos articula-se pizzicato, arco ordinario ascendente, sul ponticello e legatto em um salto de 9ª sobre a corda Ré (com arco provavelmente descendente), o que é associado ainda a indicações de dinâmica que, variando de pianissimo a fortissimo, passam por pp tenuto, pp mezza voce, pp crescendo e ff decrescendo.

Tal proposta composicional evidencia uma utilização de técnicas instrumentais que, se não são incomuns por elas mesmas, passam a ser agenciadas de uma maneira inteiramente nova: gestos, modos de ataque, alturas, valores rítmicos e timbres passam a ser livremente permutáveis. No que se refere ao pensamento que molda tal tipo de construção composicional, a permutabilidade e parametrização do material será evidentemente potencializada pelo serialismo. Já no que se refere à técnica instrumental, a livre combinação de modos de jogo e gestos díspares criará uma situação de performance em que se exige do instrumentista prontidão para alternar rapidamente modalidades de uso de seu instrumento e criar elementos gestuais e expressivos que se combinam de maneira imprevisível.

Nesse contexto, não é apenas a partir da expansão das possibilidades instrumentais que as técnicas estendidas devem ser entendidas, mas também a partir de uma situação de perfomance estendida. Uma analogia que explicita tal situação é aquela de um instrumento múltiplo, tal qual trabalha-se na percussão múltipla: um só instrumentista sendo encarregado de articular um número grande de gestualidades, modos de jogo e intenções expressivas, como se estivesse face a um grupo de instrumentos.

Outros fatores de intensa transformação do uso dos instrumentos no início do século se relacionam à utilização cada vez mais autônoma dos sons sem altura definida da percussão – no que se deve destacar a importância de Ionisation (1931), de Edgard Varèse – e à intensa transformação tecnológica ocorrida no início do século, com a utilização cada vez maior da eletricidade em contextos musicais.

Marie-Noëlle Heinrich (2003), elenca algumas dessas criações que logo seriam exploradas por compositores como Edgard Varèse (em Ecuatorial, de 1934) e Olivier Messiaen (em Fêtes des belles eaux, de 1937 e em Tu-rangalîla-Symphonie, de 1948).

O amplificador e o alto-falante são inventados em 1906 e 1913. Edgar Varèse é sem dúvida o primeiro músico a compreender a revolução elétrica. É em 1906, com a chegada da eletrônica, a data em que se produz a mais importante ruptura: é o tríodo, inventado por Lee De Forest, que permite a amplificação. O tríodo permite amplificar um sinal elétrico. A amplificação será desenvolvida nos anos vinte e favorecerá o desenvolvimento do rádio. Chegarão então as primeiras aplicações da eletricidade na música: o Thereminvox, em 1920, as Ondas Martenot, em 1928, o Trautonium, em 1930 (por Oskar Sala), a guitarra elétrica Rickenbacker A-30, em 1931, o órgão elétrico Hammond, em 1934. (p. 20)

O amadurecimento dos recursos tecnológicos, o surgimento das vanguardas – com o rumorismo futurista de Luigi Russolo, por exemplo – e o desenvolvimento do serialismo levarão, a partir do pós-guerra, ao surgimento das condições necessárias às primeiras pesquisas que de um lado resultarão no surgimento da música eletroacústica e, de outro, desencadearão em novas abordagens relacionadas à escritura instrumental – como a utilização de computadores na composição e o desenvolvimento de pesquisas metódicas em torno das técnicas estendidas.

4. A ampliação das técnicas instrumentais, eletroacústicas e computacionais a partir da segunda metade do século XX

Dando continuidade ao alargamento das concepções de performance e técnica instrumental, a conjuntura tecnológica e estética do pós-guerra veio a oferecer instrumentos a duas grandes aproximações ou tendências composicionais que, embora se entrecruzem em obras de compositores de tendências estéticas as mais diversas, delineiam dois modos distintos de pensamento composicional. O primeiro, associado ao serialismo e à própria maneira de operar dos computadores, procura engendrar a música a partir de sua parametrização em valores livremente permutáveis, intercambiáveis ou manipuláveis a partir de uma representação discreta. O segundo tipo de abordagem – associado principalmente à musique concrète e, mais tarde, à música espectral – se dá a partir do que Leigh Landy (2007, 2008) denomina como “paradigma do som”: em que o resultado em escritura, quando ela ainda é utilizada, não vem de um pensamento para-métrico que constrói figuras musicais através da combinação de durações, alturas e articulações, mas de um processo que se atem ao resultado acústico como o foco principal do processo composicional.

É, enfim, a partir da convivência desses dois paradigmas – que aqui chamaremos de um paradigma da música serial e um paradigma da música “dos sons” – que surge uma terceira aproximação, resultante das exigências em termos de performance e técnica instrumental das duas tendências anteriores. Ora construindo melodias, motivos e sequências a partir da permutação de materiais composicionais e articulações instrumentais diversos e ora buscando novas sonoridades como multifônicos ou sons microtonais a partir de instrumentos tradicionais, surge assim uma aproximação composicional fortemente voltada à mecânica instrumental e às possibilidades gestuais do instrumentista. É nesse contexto, enfim, que nascem estudos de aplicação e desenvolvimento sistemático das técnicas estendidas na criação musical e na performance.

É marcante, nesse aspecto, o entrecruzamento dessas três aproximações (serial, sonora e gestual/instrumental) em peças de três compositores importantes da segunda metade do século passado: Luciano Berio, Brian Ferneyhough e Helmut Lachenmann. Nas Sequenze, série de peças para instrumento solo, Berio utiliza estratégias seriais e agencia múltiplas sonoridades possíveis de se obter com técnicas não usuais a partir de uma forte preocupação com a gestualidade, dialogando ao mesmo tempo com a tradição ocidental e com músicas de tradição oral. Na Sequenza III (1966), para voz feminina, Berio toma um riso de mulher e o faz passar por uma sequência de transformações gestuais, com permutação serial rápida de canto ordinario, boca chiusa, fala, tosse, respiração ofegante, estalido de língua e de dedos, trêmulos (ordinário e dental), risos, relinchos e indicações expressivas como urgente, tenso, frenético, alegre, tenso, sonhador, ofegante, desesperado, como eco, sereno, distante, suave, melancólico, espirituoso, estático. Esta retomada de uma gestualidade cotidiana na Sequenza pode ser observada também em outras peças vocais de Berio, como A-Ronne e Cries of London (ambas de 1974).

Figura 5: Trecho da partitura de Sequenza III, de Luciano Berio, em que são articulados diferentes modos de emissão vocal.

Na música instrumental, Berio retoma em obras como Requies (1984), para orquestra, alguns elementos da gestualidade da voz cantada como modelo para a escritura instrumental. Dedicada à memória de Cathy Berberian, Requies é conduzida por uma longa melodia que é ampliada ao passar pelos diversos instrumentos. Esta melodia ganha a cada momento um colorido e uma textura diferente ao ecoar em meio à orquestra através de uma escritura instrumental que remete às note ribatutte – ornamento vocal bastante comum nas óperas do 1600 –, fazendo de tal modelo um modo particular de ressonância orquestral. Para implementar tal modelo, Berio se vale dos mais diversos recursos de alternância de modo de ataque de maneira a alterar o timbre instrumental e a percepção espacial do som, valendo-se de bisbigliandi (nas madeiras), do uso alternado de sordine (nos metais) e de notas alternadas em 3 cordas (nas cordas).

Igualmente marcante, é a gestualidade serializada que Brian Ferneyhough constrói em peças para flauta como Unity Capsule (1976) ou Cassandra’s Dream Song (1970). Ao criar planos de articulação de gestos altamente independentes, especificando nuances relacionadas a técnicas es-tendidas como os graus de relaxamento da embocadura – variando a quantidade de ruído relacionado ao sopro não direcionado ao orifício do bocal – ou o ângulo de sopro – variando assim a altura tocada –, Ferneyhough leva ao limite a fragmentação de gestos proposta por Webern.

Figura 6: Trecho de Unity Capsule, de Brian Ferneyhough onde se sobrepõem várias camadas de materiais sonoros e gestuais.

Se a aproximação de Ferneyhough com relação às técnicas estendidas se dá prioritariamente a partir de uma abordagem serial, Helmut Lachenmann faz uma aplicação voltada à criação de uma paleta rica em variedades e nuances de sons e ruídos. Tal é a situação em que as técnicas estendidas são aplicadas em obras como ou Pression (1970), para violoncelo solo, ou Gran Torso (1972), para quarteto de cordas. Nelas, Lachenmann parte de um estudo minucioso dos sons e ruídos obtidos a partir de inúmeras técnicas de manuseio incomum de instrumentos de cordas friccionadas.

Figura 7: Gran Torso, de Helmut Lachenmann, em que a escritura combina tablatura e notação tradicional, explicitando as técnicas instrumentais estendidas, a gestualidades e os resultados sonoros esperados.

Em todas essas obras, é possível observar que – da mesma maneira como ocorre com Monteverdi e suas indicações para o primeiro tremolo e o seu pizzicato strappato – cada vez mais as partituras precisam vir acompanhadas de textos e notas de performance que descrevem não apenas os recursos de notação utilizados, mas também as maneiras de se realizar determinadas técnicas instrumentais/vocais. Por essa mesma razão, torna-se cada vez mais essencial estabelecer um laço de cooperação entre os compositores e os instrumentistas, marca distintiva da composição com recursos instrumentais estendidos da segunda metade do século XX.

Efetivamente, é a partir dessa cooperação que surgem as primeiras pesquisas sistematizadas voltadas a catalogar as possibilidades instrumentais relacionadas às técnicas estendidas, de onde se deve destacar o trabalho pioneiro de Bruno Bartolozzi. Bartolozzi parece ter sido o primeiro a procurar documentar de maneira sistematizada as novas técnicas instrumentais das madeiras, visando dar novo impulso à escritura instrumental do pós-guerra.

Seu pioneirismo é atestado por Niall O’Loughin (1968) que afirma que, embora Bartolozzi

não seja a primeira pessoa a empregar quartos de tom, diferentes nuances de timbre sobre uma mesma nota ou acordes produzidos por instrumentistas solo(...), ele é o primeiro a produzir um tratado sistemático com detalhes completos de métodos para se produzir esses novos sons (p. 39)

O projeto de Bartolozzi, claramente apresentado no início de New sounds for woodwind (1967), era aquele de ampliar as possibilidades da música instrumental numa época em que a criação musical passava a dispor de recursos tecnológicos associados à música eletroacústica e, mais tarde, à computer music.

Seria difícil encontrar uma outra época musical na qual cada aspecto da técnica e da estética musicais tenham sido sujeitados a uma disputa e a uma discussão tão radicais quanto na nossa. Mesmo o termo “música” adquiriu um sentido mais amplo e em várias instâncias contemporâneas (tais como “música eletrônica”, “música concreta”, “música aleatória”, etc.) ele possui uma significação vastamente diversa daquela reconhecida pela tradição. O fato dessas maneiras de se fazer música serem distintas e individuais devido aos diversos meios utilizados significa, entre outras coisas, que os instrumentos tradicionais cessaram de ser os únicos meios à disposição dos compositores. A continuidade de sua existência no mundo da composição criativa depende, portanto, em uma extensão muito grande daquilo que eles têm a oferecer ao compositor, em quanto eles podem vir a despertar seu interesse e provocar sua fantasia. (p. 1)

Posteriormente, tanto Bartolozzi quanto autores como Pierre-Yves Artaud, Robert Dick, Peter Veale, Phillip Rehfeldt, entre outros, acabaram levando o assunto das técnicas estendidas instrumentais a uma sistematização ainda mais minuciosa, dirigindo sua atenção a instrumentos específicos e descrevendo as possibilidades técnicas de maneira cada vez mais bem documentada. Patricia e Allen Strange (2001), por exemplo, dedicam mais de trezentas páginas ao estudo minucioso de novas possibilidades de instrumentação do violino. Aliás, The Contemporary Violin é um dos poucos livros dedicados à nova instrumentação a incluir capítulos dedicados à utilização de técnicas de processamento de sinais e da utilização de sistemas computacionais voltados à interação musical – no caso, Max/MSP – descrevendo inclusive algoritmos (patches) e técnicas de microfonação e exemplificando em peças específicas a aplicação das técnicas apresentadas.

Apesar dos crescentes esforços em sistematizar e documentar novos recursos e procedimentos voltados à instrumentação estendida, deve-se ressaltar que ainda são raros trabalhos que documentem as propriedades acústicas dos sons obtidos pelos instrumentos musicais. Destacam-se, nesse sentido os trabalhos de Jean-Pierre Robert (1995) é de Walter Gieseler, Luca Lombardi e Rolf-Dieter Weyer (1985). Partindo de uma pesquisa que conta com a utilização de ferramentas de medição acústica, tais trabalhos incluem informações como gráficos que apresentam as envoltórias espectrais que caracterizam o timbre dos instrumentos e, indicam, inclusive, a similaridade entre as formantes espectrais que caracterizam o seu timbre em relação àquelas que permitem distinguir as vogais cardinais.

5. Perspectivas atuais: o computador como técnica estendida

A partir da década de 1990 os computadores pessoais se disseminam na sociedade e, no caso específico da criação musical e da performance, passam a disponibilizar novos recursos que permitem criar uma ampliação das técnicas ainda mais radical do que aquela que vinha ocorrendo desde o início do século XX. Compositores e músicos passam a contar com aplicativos e hardwares capazes de emular um estúdio inteiro, linguagens e ambientes de programação que permitem a um músico não especializado em computação utilizar tais máquinas para realizar cálculos composicionais que automatizam processos como orquestração ou que permitem estruturar mecanismos de interação em que o som instrumental captado é transformado, em tempo real, a partir de processos os mais diversos.

Tal quadro, nos permite reconsiderar a expressão técnica estendida a partir de um contexto em que o computador e as tecnologias computacionais vêm a ampliar as possibilidades técnicas e expressivas dos instrumentos musicais tradicionais e, consequentemente, a transformar a paleta criativa da composição musical contemporânea.

Atualmente, podemos destacar, primeiramente, ambientes como Common Music, Open Music e PWGL, os quais, possuindo funções e interfaces amigáveis, possibilitam ainda a manipulação de áudio (para fins de análise, processamento e análise), a exportação dos dados gerados em partitura e mesmo a integração com sistemas interativos via rede ou áudio. Em tais ambientes, é possível moldar processos automatizados que influem diretamente na concatenação de gestos e técnicas instrumentais ou que permitem, até mesmo, modelar características acústicas e gestuais de diversos instrumentos. Em softwares mais recentes, como o SPORCH de David Psenicka e o Orchidée, de Grégoire Carpentier, tornou-se possível ainda automatizar processos de orquestração espectral, obtendo do computador sugestões de notação para grupos instrumentais (definidos pelo usuário) que, a partir de um banco de sons previamente analisados, simulam, com a maior aproximação possível, a constituição espectral de uma amostra sonora qualquer.5

Uma segunda série de recursos computacionais aplicados à criação e à performance relaciona-se à utilização de sistemas interativos: aplicativos que são programados especialmente para a realização de uma peça ou performance que conta com processos de síntese e processamento de som em tempo real determinados para o contexto específico de uma peça ou improvisação. Assim, a partir de ambientes de programação como Max/MSP, Pure Data, SuperCollider, ChucK, entre outros, torna-se possível criar aplicativos que estendem tecnicamente os instrumentos tradicionais de maneira tão inventiva e imprevisível quanto as experimentações realizadas durante a segunda metade do século de XVIII e início do século XIX com os instrumentos de teclado. Tais recursos, permitem não apenas transformar a resposta sonora dos instrumentos tradicionais – ampliando o seu âmbito, transformando seu comportamento espectral, modificando sua resposta dinâmica ou mesmo espacializando seu som com a ajuda de múltiplos alto-falantes – mas também possibilita criar configurações em que a técnica instrumental do instrumentista passa a controlar ou a interferir em visualizações interativas programadas em diferentes linguagens, extensões e frameworks, como PDP, Gem, Gridflow (Pure Data); Jitter (Max/MSP); Quartz Composer, Processing e openFrameworks, por exemplo.6

Um terceiro tipo de extensão – fortemente associada aos processos interativos – surge com a possibilidade de se modificar fisicamente instrumentos a partir de componentes eletrônicos como sensores e botões que estendem fisicamente as possibilidades de execução do instrumentista. Práticas como o circuit bending e a disponibilização de plataformas amigáveis de computação física (como BasicStamp e Arduino) acarretaram na criação de novos dispositivos físicos de controle, que associados aos recentes avanços em captura de movimentos e computer vision, oferecem novas técnicas e recursos para a exploração da gestualidade do instrumentista em um contexto de performance. Nesse contexto, torna-se possível, por exemplo, controlar processos interativos com novos mecanismos de acionamento e snsores que se pode acoplar livremente a um instrumento ou mesmo ao corpo do instrumentista, que se vê então em uma situação em que não apenas conta com recursos instrumentais estendidos que pode empregar em seu instrumento como também pode modificar e estender tecnicamente tal instrumento, aumentando assim as possibilidades de interação física com

o mesmo em um contexto de música interativa.7

Vale ressaltar que esses novos recursos são bastante recentes nas práticas de criação e performance musical. Se por um lado seu emprego é consideravelmente experimental e relativamente pouco difundido se comparado à utilização das técnicas instrumentais estendidas, cabe ressaltar que o que move tal pesquisa está intimamente relacionado à experimentação instrumental/composicional empreendida em outros períodos da história da música ocidental, como tivemos a oportunidade de demonstrar.

Por fim, se as possibilidades abertas por essas novas técnicas em extensão associadas à tecnologia computacional expandem consideravelmente os recursos disponíveis à criação musical, a inclusão de cada vez mais técnicas e conhecimentos nos processos criativos também coloca grandes desafios. Entre eles, o mais marcante talvez seja aquele de fazer com que tais recursos sirvam não apenas a um aparelhamento da música, mas à exploração de novos campos expressivos – tema amplo e relevante que, contudo, abordaremos em uma outra ocasião.

Notas

1 Mahler prescreve o que também poderia ser aproximado à técnica posteriormente conhecida como pizzicato Bartók, porém com a indicação de dinâmica fffff e a instrução “rasgar [anreissen] com tanta força que as cordas batam contra a madeira”. Tal indicação é muito semelhante àquela consagrada por Béla Bartók em sua Música para cordas, percussão e celesta: “Um pizz. forte, através do qual as cordas devem bater contra o espelho”.

2 Na suíte de pequenas composições intituladas Poeticall Musicke, principally made for two Bass–Viols, publicadas em 1607, Hume ainda se vale de outras imitações instrumentais, como o toque do arco perto do cavalete para obter efeito de trompetes.

3 Como se sabe, nos pianos de cauda atuais o pedal una corda reduz o ataque de três para duas cordas, impossibilitando gradações que provavelmente eram exploradas em tais obras nos pianos da época.

4 Christian Goubault (2001, p. 225) afirma que Strauss foi, muito provavelmente, o primeiro compositor a empregar o frullato (ou flatterzunge) na música orquestral, de onde se explica a utilização da expressão Zugenschlag (que hoje poderia ser confundida com técnicas como

o Tongue Ram, por exemplo).

5 Mais informações sobre os ambientes citados podem ser encontradas nas suas respectivas páginas de internet: http://repmus.ircam.fr/openmusic/home, http://commonmusic. sourceforge.net/, http://www2.siba.fi/PWGL/, http://sourceforge.net/projects/sporch/ e http://recherche.ircam.fr/equipes/repmus/carpentier/orchidee.html. [13/05/2011]

6 Mais informações sobre linguagens voltadas aos sistemas interativos podem ser encontradas em: http://puredata.info/, http://cycling74.com/products/maxmspjitter/, http://supercollider. sourceforge.net/, http://chuck.cs.princeton.edu/, http://processing.org/ e http://www. openframeworks.cc/. [13/05/2011]

7 Mais informações sobre recursos voltados à computação física, ao desenho de novos instrumentos/controladores e à utilização para captura de gestos musicais podem ser encontradas em: http://arduino.cc/, http://wiring.org.co/ e http://www.idmil.org/.

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José Henrique Padovani - Compositor. Mestre e doutorando em música (processos criativos) pelo Instituto de Artes da Unicamp. Sua pesquisa se concentra na investigação sobre o impacto da inclusão de novos recursos técnicos e expressivos nos processos de criação musical, tais como técnicas instrumentais estendidas, composição-assistida por recursos computacionais, sistemas interativos e desenho de novos instrumentos/controladores.

Silvio Ferraz - Compositor. Professor livre docente do departamento de música da UNICAMP. Autor de Livro das Sonoridades e Música e Repetição. Foi Diretor da Escola de Música do Estado de São Paulo e do Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão. Suas obras tem sido regularmente apresentadas em concertos e festivais de música, no Brasil e no Exterior.