CrIAçãO, CIrCulAçãO E trAnSMISSãO MuSICAl: IntEr-rElAçõES E (rE)DEfInIçõES A pArtIr DOS CEnárIOS tECnOlóGICO E MIDIátICO COntEMpOrânEOS

Luis Ricardo Silva Queiroz - UFPB luisrsq@uol.com.br

Resumo: As mídias e as tecnologias contemporâneas têm se relacionado de forma intrínseca com a produção musical, estabelecendo importantes parâmetros para a compreensão da música enquanto expressão artística e cultural. Considerando essa realidade, este trabalho tem como objetivo refletir acerca das inter-relações entre música, mídia e tecnologia, discutindo e analisando os impactos dos meios tecnológicos e midiáticos na criação, circulação e a transmissão musical na atualidade. O trabalho tem como base pesquisa bibliográfica em estudos da área de música e afins, bem como experiências e pesquisas empíricas, consolidadas ao longo da última década, em diferentes campos da música. A partir das análises e reflexões realizadas, o texto evidencia como a música na contemporaneidade tem encontrado nas mídias e nas tecnologias, importantes pilares para a sua produção e difusão, e para a veiculação e transmissão de seus conteúdos e técnicas. Palavras-chave: Música; Mídia; Tecnologia; Contemporaneidade.

Abstract: Contemporary media and technologies have been intrinsically linked to the musical production, setting important parameters for the understanding of music as artistic and cultural expression. Considering this scenario, this paper aims to reflect on the interrelationships between music, media and technology, discussing and analyzing the impacts of technological and mediatic means in the creation, circulation and dissemination of music nowadays. The work is based on a literature research in the area of music studies and related areas, as well as experiences and empirical research, consolidated over the last decade, in different fields of music. From the analysis and considerations made, the text highlights how music in the contemporaneity has found in the present media and technologies important pillars for its production and dissemination, as well as the propagation and transmission of their contents and skills. keywords: Music; Media; Technologies; Contemporaneity.

Os diferentes recursos tecnológicos e sistemas midiáticos existentes na atualidade, bem como as múltiplas relações que estabelecem com o universo cultural contemporâneo, têm definido caminhos diversificados para a criação, a circulação e a transmissão de músicas de distintos contextos culturais. Tal aspecto está intrinsecamente relacionado com o fato de que tanto as tecnologias1 quanto os veículos de comunicação de massa2 do mundo atual se inter-relacionam de forma íntima com as estratégias e recursos que as pessoas utilizam para criar, executar, ouvir, divulgar e vivenciar músicas.

Considerando essa realidade, apresento neste artigo, reflexões acerca dos impactos da tecnologia e da mídia no universo musical e as inter-relações que esses fenômenos estabelecem com a música, estética e socialmente. As discussões apresentadas têm como base abordagens teóricas e pesquisas empíricas realizadas ao longo da última década na área de música, mais especificamente, nos campos da etnomusicologia, educação musical e práticas interpretativas. Além disso, o texto tem como base, aportes teóricos de áreas diversas que têm se dedicado ao estudo de temas relacionadas ao foco deste artigo.

A fim de elucidar as principais questões que permeiam este trabalho, estruturei o texto em quatro partes centrais. Inicialmente, apresento reflexões gerais acerca da relação entre música, mídia e tecnologia, refletindo sobre diferentes configurações que caracterizam a interseção entre esses elementos em diferentes períodos da história. Na segunda parte, traço um panorama geral sobre a criação musical a partir do cenário tecnológico e midiático atual, visando apontar as principais transformações e perspectivas que tal contexto tem gerado no processo de produção musical. Na terceira parte, reflito sobre as diferentes formas de circulação da música estabelecidas a partir das tecnologias e das mídias atuais, dimensionando as discussões para os impactos dessa realidade no contexto cultural da música. Por fim, realizo uma abordagem acerca de diferentes formas de transmissão de repertórios, valores e saberes musicais, caracterizadas a partir do mundo da tecnologia e das mídias, refletindo sobre a importância desses aspectos para a definição e a compreensão de distintas práticas musicais em seus contextos de criação, performance e circulação.

Música, mídia e tecnologia

A pós-modernidade, entranhada por uma complexidade de fenômenos que emergiram principalmente a partir da segunda metade do século XX, tem delineado caminhos que arquitetaram um “novo” mundo. Um mundo marcado pela acentuada velocidade das transformações sociais e

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culturais; pela problematização, (re)definição e relativização dos conhecimentos e dos valores estabelecidos; pelo crescimento demográfico e a urbanização exacerbada; e pela profunda e veloz expansão tecnológica e dos meios de comunicação; entre outros aspectos.

Certamente, no âmbito das ciências humanas, não há uma definição única e consensual sobre o que seja e o que caracteriza a chamada pósmodernidade. No entanto, neste trabalho, emprego o termo com base na definição de Lyotard (1993, p. 15) que entende pós-modernidade como uma época que representa “o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes”. Gatti, nessa mesma direção, afirma que tais transformações se delinearam principalmente a partir dos anos de 1950, com o estabelecimento de novos cenários sociais: “cibernético-informáticos, informacionais e comunicacionais” (GATTI, 2005, p. 599).

Para Moreira (2003, p. 1204), “o surgimento e o desenvolvimento dos meios de comunicação podem ser considerados uma característica essencial da cultura ocidental e uma dimensão marcante da sociedade atual”. Citando Thompson (1995 e 1998)3, o autor enfatiza que, para entender a natureza do mundo nos dias de hoje, é preciso dar lugar de destaque às reflexões sobre os meios de comunicação e o seu impacto, haja vista que têm papel significativo na vida social e no cotidiano das pessoas.

No caso específico das manifestações musicais, os meios de comunicação e o arsenal tecnológico, característicos da pós-modernidade, têm gerado grandes impactos nas formas de produção e inserção do fenômeno musical na sociedade. Este aspecto tem interessado, de forma representativa, os estudiosos da música em geral (musicólogos, etnomusicólogos, educadores musicais, compositores, intérpretes etc.), bem como, profissionais de áreas diversas que se dedicam ao estudo da música.

A música, definida segundo a ótica da etnomusicologia, é uma forma de expressão humana que não pode ser entendida e nem concebida desvinculada da cultura em que está inserida e da escala de valores e significados que envolvem o seu contexto de produção, conceituação e prática (HOOD, 1971, BLACKING, 1995, NETTL, 2005, MERRIAM, 1964). Assim, para entender as manifestações musicais no mundo de hoje é fundamental a compreensão dos diferentes universos que as rodeiam, as definem, as transformam e as consolidam e, nesse sentido, entendo que o mundo tecno-lógico e as configurações midiáticas atuais são fatores determinantes para entendermos e (re)pensarmos a música na sociedade contemporânea.

Estudos que buscam compreender de forma sistemática relações entre música, mídia e tecnologias constituem uma ampla literatura, internacional e nacional, com abordagens em diferentes áreas de conhecimento. Vinculados a essa perspectiva, pode-se mencionar os trabalhos de Hoffert (2007), Meizel (2011), Valente (2007) e Wikstrom (2009), com enfoques mais específicos da área de música; Lull (1987), Freire Filho e Janotti Jr. (2006), Trotta 2010, no campo da comunicação; Alten (1996), no âmbito da engenharia de áudio; Hennion (2003) e Thornton (1996), em pesquisas da sociologia, entre outros estudos que poderiam ser citados.

Daniel Gohn destaca a importância de compreendermos a música a partir de suas inter-relações com o mundo tecnológico atual. Nas palavras do autor:

[...] a tecnologia ajudou a delinear o funcionamento das estruturas que regem a música hoje. O rádio, a televisão, o vídeo, o computador, a internet – todos tiveram um importante significado em suas respectivas épocas de surgimento. Para acompanhar a história da música é preciso compreender como ela foi afetada nesse sentido, do mesmo modo que analisamos fatores sociais, políticos ou econômicos (GOHN, 2009).

As mudanças que se consolidaram, sobretudo, nos últimos 60 anos, no cenário da mídia, da tecnologia e, conseqüentemente, da música, são resultados de um processo que vêm se estabelecendo na sociedade moderna desde o século XIX. Esse processo se configurou a partir do surgimento dos meios de circulação em massa em ampla escala, das descobertas tecnológicas e da consolidação de novas formas de produção e veiculação do fenômeno musical.

Para Dizard Jr., há três grandes transformações que caracterizaram a inserção das “tecnologias da mídia de massa” no âmbito da sociedade contemporânea:

A primeira [das três fases] aconteceu no século XIX, com a introdução das impressoras a vapor e do papel de jornal barato. O resultado foi a primeira mídia de massa verdadeira – os jornais “baratos” e as editoras de livros e revistas em grande escalas. A segunda transformação ocorreu com a introdução da transmissão por ondas eletromagnéticas – o Rádio em 1920 e a televisão em 1939. A terceira transformação na

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mídia de massa, que estamos presenciando agora, envolve uma transição para a produção, armazenagem e distribuição de informação e entretenimento, estruturadas em computadores. Ela nos leva para o mundo dos computadores multimídia, compact disc, bancos de dados portáteis, redes nacionais de fibras óticas, mensagens enviadas por fax de última geração, e outros serviços que não existiam há vinte anos (DIZARD JR. 2000, p. 53-54).

Diversos autores, a exemplo de Simon Frith (1996), buscaram retratar momentos históricos relacionados aos processos de produção e circulação musical. Todavia, com o intuito de contemplar os objetivos específicos deste trabalho, optei por uma estruturação mais pessoal que pudesse retratar diferentes fases consolidadas a partir da inter-relação entre música, mídia e tecnologia. Assim, partindo para uma reflexão específica no campo musical, acredito que, grosso modo, é possível destacar pelos menos seis grandes fases que marcaram a origem e a consolidação de meios tecnológicos e/ou midiáticos e que tiveram impactos significativos no fenômeno musical.

A primeira fase que merece menção se consolidou ainda no início do século XIX com o estabelecimento das casas de impressão. No Brasil, a primeira casa dessa natureza que se tem registro foi a estamparia de Pierre Laforge, no Rio de Janeiro, que começou seu processo de impressão a partir de 1834 (SANDRONI, 2001). De maneira geral, as casas de impressão proporcionaram uma grande difusão de partituras pelo mundo, criando um comércio altamente significativo para a circulação de música, mas limitado aos que tinham conhecimento da notação musical ocidental.

A segunda grande fase é mais abrangente e, de certa forma, mais representativa para a criação e difusão da música, principalmente no que tange à música popular urbana. Trata-se do período de desenvolvimento dos aparelhos de reprodução e gravação musical a partir do final do século XIX, como o gramofone e o fonógrafo. Tal fato permitiu a comercialização de fonogramas em larga escala, propiciando, assim, a possibilidade de um contato direto do público com o som musical, sem a necessidade de uma performance ao vivo. As primeiras gravações no Brasil são de 1902 e, a partir desse período, há, no país, uma grande ascensão desse recurso, mudando consideravelmente os rumos da música brasileira popular (FRANCESCHI, 2002).

A terceira fase tem relação direta com a segunda transformação destacada por Dizard Jr. (2000), sendo estabelecida a partir da década de 1920, com o surgimento e a consolidação do rádio como veículo de difusão em massa, que encontrou na música uma das suas principais formas de expressão. Especificamente no Brasil, as décadas de 1920, 1930 e 19404 têm

o rádio como maior expoente musical, definindo e estabelecendo os rumos da música nacional, no que se refere aos gêneros e estilos musicais e o surgimento e consolidação de compositores e cantores consagrados no contexto cultural do país (CALABRE, 2002).

A quarta fase, ainda relacionada com o período que Dizard Jr. (2000) concebe como a fase da transmissão por ondas eletromagnéticas, é marcada pela introdução da televisão a partir de 1939 nos Estados Unidos e, no Brasil, a partir de 1950. A partir dessa época há novos direcionamentos para o fenômeno musical, já que a dimensão imagética do artista (roupas, cabelo, dança, entre outros aspectos) passa a ter papel preponderante na produção, circulação e aceitação musical.

Paralelo a essa quarta fase, acrescentaria uma quinta, relacionada ao período de surgimento dos sintetizadores e de outros recursos que passaram a ter papel preponderante no processo de criação e produção musical. No cenário da música erudita, tal fato se estabelece, sobretudo, com a consolidação da “música concreta/eletroacústica”5, estabelecida a partir dos pioneiros experimentos de Pierre Schaeffer, no ano de 1948 (PALOMBINI, 1999).

Finalmente, a sexta fase refere-se ao cenário atual e poderia ser desdobrada em várias outras. Ela se estabelece a partir da inserção e proliferação da informática na sociedade contemporânea a partir dos anos de 1970, mas se projeta de forma acelerada nas últimas décadas com o surgimento de novas fontes e formas de gravação, reprodução e circulação sonora. A internet, como novo e mais poderoso veículo midiático dos últimos tempos, e sua junção ao computador, uma das mais substanciais ferramentas tecnológicas da atualidade, criaram um mundo para música em que mídia e tecnologia se (con)fundem, criando formas de produção, difusão e, conseqüentemente, de acesso ao fenômeno musical, antes inimagináveis.

É considerando o universo estabelecido, principalmente, a partir da última fase descrita que apresento as reflexões a seguir, analisando, sobretudo, os aspectos consolidados pela inter-relação entre música, mídia e tecnologia e seus impactos nos processos de criação, circulação e transmissão musical na sociedade contemporânea.

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A criação musical a partir dos meios tecnológicos e midiáticos da atualidade

Conforme exposto anteriormente, a segunda parte deste artigo traça um panorama geral da criação musical a partir dos meios tecnológicos e midiáticos, com o intuito de apontar as principais transformações e perspectivas que este contexto gerou no processo de produção musical.

As ferramentas tecnológicas e os sistemas de veiculação estabelecidos pelas mídias, de cada época, foram sempre fatores preponderantes para

o processo de criação musical. Quando a partitura era o principal meio de circulação musical, os compositores, principalmente no âmbito da música erudita, criavam suas obras de acordo com os códigos e as possibilidades desse veículo comunicacional. Cabia aos intérpretes, transpor para as suas performances as idéias escritas pelos criadores da música. Esse padrão dava ao compositor maior domínio do resultado final da obra, já que o papel do intérprete era, sobretudo, o de compreender e traduzir o que estava escrito.

Todavia, com as diversas possibilidades estabelecidas pela tecnologia e, por conseqüência, pela mídia, novas formas de criação musical emergiram, principalmente graças aos processos de gravação e reprodução sonora. Tal fato propiciou mudanças representativas na criação musical, principalmente, na música popular, tornando a obra mais aberta à participação de outros músicos, não só o compositor. Arranjadores, produtores e intérpretes passaram a desempenhar papel mais determinante no resultado final do “produto” musical, já que as suas escolhas podiam se concentrar em novos timbres, texturas, harmonias, ritmos e outros parâmetros com implicações diretas no processo de criação, transcendendo a escrita do compositor.

Além disso, os canais de veiculação provocaram uma mudança direta na forma de concepção da obra, que passou a ser gerada com base nos meios específicos de circulação disponíveis. Assim, a música para ser toca-da no rádio ou na televisão, por exemplo, precisa ser criada de acordo com determinados critérios, que a tornem adequada ao formato da programação desses tipos de mídia. Formato que é variável de acordo com a época, o público alvo, o perfil do programa etc.

Outra questão determinante são as ferramentas disponíveis para o processo de criação. A partir de meados do século XX, com a definição de criações musicais como a música eletroacústica (LICATA, 2002), já mencionada anteriormente, e de expressões da música popular como a criação e prática dos DJs (ARALDI, 2007), por exemplo, fica evidente que as tecnologias passaram a influenciar diretamente no processo de geração do “produto” musical. Assim, muitas manifestações contemporâneas são concebidas para serem executadas sem o uso de instrumentos musicais “tradicionais”, utilizando, por exemplo, somente sons gravados e dispensando, portanto, a presença do intérprete instrumentista, pelo menos, aquele que realiza a interpretação, sincronicamente, no momento da performance. Em músicas dessa natureza, a execução da obra passa a ser realizada por um computador, um equipamento de som, etc., cabendo ao “intérprete” a manipulação do meio tecnológico utilizado.

Outros exemplos e reflexões poderiam ser apresentados, mas as questões destacadas acima são suficientes para o escopo deste trabalho, demonstrando que tecnologias e mídias disponíveis em cada época são aspectos que podem ser definidores para o estabelecimento de processos de criação musical. Tal fato faz com que muitas expressões musicais sejam concebidas e consolidadas a partir desses recursos, deixando claro que não podem ser compreendidas e analisadas de forma dissociada das realidades desses fenômenos, principalmente nos dias atuais.

Um novo panorama para a circulação de músicas

Com a difusão dos meios de comunicação de massa na contemporaneidade, os impactos da mídia e da tecnologia no processo de circulação musical são facilmente percebidos. Todavia, a importância e o papel desses aspectos para o universo da música, exigem que, cada vez mais, lancemos olhares críticos sobre essa realidade, refletindo sobre a inter-relação da tecnologia e da mídia na sociedade e, como esses fatores são determinantes na produção e inserção da música na cultura contemporânea.

Os processos de gravação e registro musical proporcionaram acessos incomensuráveis no universo da música. Se até a primeira metade do século XIX o contato com o fenômeno musical se dava, quase que exclusivamente, por meio das performances ao vivo, a partir das últimas décadas do referido século, esse cenário foi ampliado consideravelmente. Com o ad

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vento da gravação a música passou a ter uma circulação cada vez maior e as fronteiras geográficas deixaram de ser barreiras, proporcionando trocas, misturas e acessos que fazem da experiência musical algo completamente diferente do que tinha sido até o final do século XIX. Além do registro, a música, com o rádio e a televisão obteve uma ampliação significativa do processo de circulação musical, sendo praticamente impossível delimitar, na atualidade, as fronteiras que demarcam os caminhos da música. Para além dessa realidade, com a inserção e ampliação da internet, essas fronteiras se tornaram ainda mais diminutas, e o acesso e a circulação de música ganharam, e vêm ganhando a cada dia, proporções mais abrangentes. O etnomusicólogo José Jorge de Carvalho retrata este momento:

Devido a um aumento gigantesco da oferta de gravações nas últimas duas décadas, numa mesma sala-de-estar de uma casa de classe média urbana de uma grande cidade brasileira podem haver gravações de ópera, sinfonias, música de câmera, jazz, blues, rock, lambada, carnaval, samba, pagode, axé music, salsa, bolero, flamenco, world music. Todos esses gêneros musicais tão diversos entre si convivem sem maiores atritos estéticos, pois correspondem a momentos distintos da vida desses consumidores de nossos tempos. (CARVALHO, 1999, p. 3).

Refletindo sobre esse processo, o autor destaca aspectos positivos e negativos desta realidade e os impactos da mídia e da tecnologia no universo musical atual. Para Carvalho, é evidente que o acesso a uma diversidade de músicas das culturas do mundo é algo extremamente positivo, pois, proporcionam experiências estéticas e culturais distintas e podem servir de inspiração para criadores e ouvintes “sensíveis” à exploração de novas linguagens sonoras, até pouco tempo, desconhecidas. Todavia, o autor destaca que há, também, um efeito perverso nesse modelo, pois as tecnologias de gravação e reprodução que possibilitam esse trânsito entre os mais variados estilos, tendem a se basear num gosto padronizado, o que limita a experiência estética e artística em relação ao fenômeno musical.

Naturalmente que a discussão do meio não pode ser separada do seu impacto na sociedade, mas, independente de qualquer coisa, o que não se pode negar é que os processos de difusão e circulação musical na atualidade têm gerado transformações significativas nas formas de acesso, vivência e prática do fenômeno musical. Cada vez mais, as facilidades de registros e divulgação da música permitem o rompimento das fronteiras culturais. Tal fato tem, entre outros aspectos, gerado, nos diferentes contextos musicais do mundo, processos de enculturação6 e aculturação7 sem qualquer perspectiva de controle e compreensão absoluta.

A transmissão de conhecimentos e habilidades musicais

Finalizando, minha análise, realizo uma abordagem acerca de diferentes formas de transmissão de repertórios, valores e saberes musicais, caracterizadas a partir do mundo da tecnologia e das mídias, refletindo sobre a importância desses aspectos para a definição e a compreensão de distintas práticas musicais em seus contextos de criação, performance e circulação.

O acesso aos diferentes fenômenos culturais proporcionado pelas tecnologias e pelas mídias contemporâneas têm, conseqüentemente, estabelecido impactos significativos nas formas de transmissão dos saberes das distintas culturas. De acordo com Acevedo e Nohara (2008, p. 121), essa característica tem feito com que os impactos sociais, culturais e psicológicos das mensagens das mídias despertem especial interesse de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento. Refletindo ainda sobre a importância da mídia no processo de formação, estas autoras enfatizam que “a indústria dos meios de comunicação, ao fabricar, difundir e reproduzir informação para uma coletividade, possui papel essencial na formação dos pensamentos e comportamentos de seus membros” (ACEVEDO E HOHARA, 2008, p. 123).

Tal fato pode ser percebido no universo da música e, por essa razão, as formas de transmissão dos saberes musicais e os impactos das mídias e das tecnologias nesse contexto têm interessado diretamente os estudiosos desses fenômenos. Especificamente no que tange ao universo da música, essas relações representam focos de análises, sobretudo, dos educadores musicais, já que as formas de ensinar e aprender música são definidas, muitas vezes, a partir do diálogo dessa expressão cultural com os diferentes recursos tecnológicos e midiáticos.

Naturalmente, ouvir, ver e interagir com a música no rádio, na televisão e/ou na internet têm impacto direto na percepção e na relação do ser humano com o universo musical. Como afirma José Jorge Carvalho: “os

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meios de comunicação e difusão cultural provocam uma constante renovação na percepção do ouvinte de música”. Tal fato se dá, sobretudo, porque os meios de comunicação de massa, principalmente na contemporaneidade, estão buscando “avançar na tecnologia de confecção dos novos produtos musicais e nos mecanismos de interação desses produtos com seus consumidores” (CARVALHO, 1999, p. 3).

Nos dias de hoje, é comum, inclusive em manifestações tradicionais da cultura popular (grupos de congado, folia de reis, maracatus, entre outros) acesso a práticas musicais distintas, até mesmo as suas próprias, por meio de recursos modernos de gravação e reprodução musical, com a facilitação de se obter equipamentos como Mini Disks, Mp3, Ipods, celulares, etc. Tal fato criou novas formas de experiência musical, fazendo com que a circulação e a transmissão dos conhecimentos relacionados à música se estabeleçam por vias cada vez mais vinculadas aos formatos tecnológicos e midiáticos da atualidade.

Noutra perspectiva, as mídias atuais têm delineado novos caminhos para a aprendizagem musical. Assim, são cada vez mais comuns processos de auto-aprendizagem, com o auxílio de informações via internet, vídeo-aulas disponíveis inclusive em sites como o Youtube, entre outros. Tal aspecto é amplamente discutido por Brown (2009), que apresenta um panorama geral acerca das múltiplas formas de acesso dos jovens ao fenômeno musical, refletindo sobre os usos e os impactos desses recursos no processo de formação musical na atualidade.

Nessa mesma perspectiva, Daniel Gohn (2007, 2009) tem destacado a importância, as facilidades e as possibilidades que os recursos tecnológicos e as mídias contemporâneas têm oferecido para a consolidação de processos de ensino e aprendizagem da música. Para o autor, fica evidente que o universo midiático e tecnológico, além de oferecer diferentes possibilidades para a prática, a vivência e, conseqüentemente, para a transmissão de conhecimentos musicais, permite uma inter-relação significativa da aprendizagem musical com recursos motivadores e em ascensão nos dias de hoje.

A partir desse breve panorama, fica evidente que a ampliação dos recursos tecnológicos e as facilidades de acesso estabelecidas pelas mídias contemporâneas têm propiciado novas formas de contato, vivência e, conseqüentemente, aprendizagem musical. Nesse contexto, a transmissão de conhecimentos musicais ganhou novas dimensões, rompendo barreiras geograficamente estabelecidas e criando novas formas de assimilação e incorporação dos saberes relacionados à música, bem como, sua inserção e o seu papel como fenômeno artístico e cultural.

Conclusão

Tomando como base as discussões apresentadas ao longo do texto é possível afirmar que música, mídia e tecnologia caracterizam-se na atualidade como importantes pilares de expressão, circulação e acesso cultural. A inter-relação entre esses três fenômenos na contemporaneidade tem estabelecido, no mundo da música, impactos de grandes proporções nos processos de produção, circulação e transmissão de saberes musicais.

No âmbito da criação musical, o que se percebe é que o arsenal tecnológico e as formas de veiculação da música sempre foram definidores de técnicas, concepções e estratégias diversas de produção do fenômeno musical. Dessa forma, na pós-modernidade, em que estamos cada vez mais entranhados por um mundo tecnológico e midiático de grande amplitude, é visível que processos de criação em música são definidos em função de ferramentas tecnológicas e meios de circulação do fenômeno musical, estabelecendo práticas composicionais e interpretativas com características distintas das formas de criação e interpretação consolidadas, principalmente, até a primeira metade do século XX.

Nessa mesma direção, a ampliação e o fortalecimento dos meios tecnológicos e de comunicação de massa têm proporcionado uma circulação cada vez mais abrangente de músicas. Tal fato tem rompido com as fronteiras culturais e proporcionado, a diferentes parcelas da população, acessos e vivências de músicas de diversificadas culturas do mundo. Essa realidade pode gerar tanto aspectos positivos quanto negativos para o cenário musical, mas é indiscutível o impacto e a importância desse processo para a definição dos rumos das culturas musicais no mundo atual.

Com o acesso cada vez mais abrangente e com os múltiplos meios tecnológicos e midiáticos disponíveis, as formas de transmissão dos saberes musicais na pós-modernidade têm sido constantemente redefinidas. Sem abandonar por completo estratégias “tradicionais” de transmissão musical, fica claro que novos parâmetros, formas de percepção e experiên

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cias com o fenômeno musical criaram novos contextos de aprendizagem, rompendo com formatos considerados, até pouco tempo atrás, como ideais e mais adequados para o ensino e aprendizagem da música.

A partir dessas reflexões, é fundamental destacar que compreender a inter-relação da música com os sistemas tecnológicos e midiáticos da atualidade é fator fundamental para entender o fenômeno musical como um elemento da cultura contemporânea. Tal perspectiva se dá pelo fato de que, em diferentes facetas do universo musical, seja no âmbito da música erudita, da música popular urbana ou da música de culturas populares de tradição oral, a configuração tecnológica e midiática do mundo atual tem tido impactos avassaladores. Dessa forma, tecnologia e mídia, no mundo pós-moderno, representam eixos fundamentais para o universo da música, sendo elementos fundamentais para uma compreensão contextualizada do fenômeno musical no âmbito da sociedade contemporânea.

Notas

1 Utilizo o termo “tecnologia” neste trabalho a partir das definições de Veraszto, Silva, Miranda e Simon (2008, p. 78) que a entendem como “[...] um conjunto de saberes inerentes ao desenvolvimento e concepção dos instrumentos (artefatos, sistemas, processos e ambientes) criados pelo homem através da história para satisfazer suas necessidades e requerimentos pessoais e coletivos.”

2 A expressão “veículos de comunicação de massa” se refere, neste trabalho, a mecanismos midiáticosutilizadospara adivulgaçãode informaçõesemlarga escala, comojornais,televisão, rádio e, mais recentemente, internet. O conceito é empregado com base nas definições de autores como Schwartz (1985), Morin (1997), Monteiro (2011) e Ball-Rokeach e Defleur (1997).

3 THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995. / THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social Da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.

4 A década de 1940, mais especificamente, ficou conhecida como a época de ouro do rádio devido ao sucesso, e ao alto índice de audiência e ao impacto sociocultural alcançado pelo rádio nesse período (CALABRE, 2002).

5 Segundo Aguilar (2009, p. 2), o termo música concreta foi criado por Schaeffer “em oposição a uma música predominantemente abstrata que imperava nessa época. Muito superficialmente, a composição da música aqui denominada de abstrata envolvia um procedimento baseado na permutação de uma série, isto é, de uma coleção fixa de unidades discretas (discreto aqui em oposição a contínuo), cuja conformação se constituía no núcleo gerador da estrutura”. Assim é possível afirmar que “música concreta” designa um tipo de música produzida a partir de material sonoro gravado e manipulado experimentalmente a partir de montagens, colagens e/ou diversas outras formas trabalho eletrônico.

6 Processo no qual os indivíduos incorporam elementos de um determinado universo cultural (LANGNESS, 1987; LARAYA, 2002; MELLO, 1987). 7 Processo em que saberes, valores e/ou práticas de uma cultura são assimilados e incorporados por indivíduos de outra realidade cultural (LANGNESS, 1987; LARAYA, 2002; MELLO, 1987).

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