The pIano sTudIes By alceu camarGo
Cláudio Thompson - UDESC pianothompson@yahoo.com.br
Guilherme Sauerbronn de Barros - UDESC guisauer@gmail.com
Resumo: Este trabalho analisa os Estudos para Piano compostos por Alceu Camargo, buscando elucidar a concepção estilística, o idiomatismo das peças, a caracterização como gênero Estudo, e as possíveis influências que permeiam tais composições. A composição não foi o ofício escolhido por Alceu Camargo, mas sua obra composicional e, em particular, seus Estudos para Piano, transmitem um pensamento musical coerente e maduro Palavras-chaves: Alceu Camargo; Estudos para piano; Música de salão.
Abstract: The present research investigates the Studies for Piano by the composer Alceu Camargo. It attempts to elucidate some of its characteristics such as Camargo´s notion of style, genre as well as the influences that permeate this composition. Although Alceu Camargo was not a professional composer, his compositions particularily in regard to his Studies for Piano, demonstrate his mature and coherent musical thinking. Keywords: Alceu Camargo; Studies for piano; Salon music.
Entre os anos de 1962 e 1999, Alceu Camargo (1907 – 2001), violinista paranaense radicado no Estado do Espírito Santo, compôs cerca de 44 obras para diversas formações, tais como coro infantil, orquestra juvenil, duos e trios com piano, quarteto de cordas, quarteto de violoncelos, além de obras solo para piano, violino e contrabaixo. Sua obra para piano consiste num total de oito peças, dentre as quais constam dois Estudos para Piano – Estudo Seresteiro e Estudo em Si menor – cujas características serão aqui discutidas. A escolha dos Estudos atende ao interesse de investigar o idiomatismo dos mesmos – uma vez que foram escritos por alguém que, embora dono de uma sólida formação musical e violinística, não tocava piano e tampouco era compositor de formação.
Parte da obra de Alceu Camargo está disponível na biblioteca da Faculdade de Música do Espírito Santo Maurício de Oliveira (FAMES), primeiro local pesquisado para levantamento do seu acervo composicional. Imaginávamos que lá estaria arquivada toda a sua obra, visto que ele foi uma figura de fundamental importância para o meio musical erudito capixaba. Porém, apenas o conjunto de obras para piano encontra-se completo na biblioteca daquela Instituição. Tampouco encontramos ali a catalogação completa das músicas desse compositor. O acesso ao catálogo completo e aos manuscritos autógrafos existentes (alguns se perderam com o passar dos anos) somente foi possível mediante o contato estabelecido com Vera Camargo, viúva de Alceu Camargo, que nos disponibilizou as partituras que possui em seu acervo particular.
A pianista Lia Leal também nos permitiu o acesso a sua biblioteca, e com ela encontramos versões manuscritas das peças Estudo Seresteiro (Zig Zag) e Estudo em Si menor, o que nos possibilitou estabelecer comparação com as versões anteriormente encontradas.
Além dos dois Estudos para Piano, Alceu também compôs dois Estudos para Violino Solo. Interessante notar que os Estudos para Piano foram compostos anos antes dos Estudos para Violino. Contudo, do ponto de vista melódico-harmônico, os Estudos para Piano apresentam fortes características violinísticas, que se sobrepõem a uma concepção puramente pianística, como veremos adiante.
Alceu Camargo, terceiro filho do casal Sezefredo Camargo e Julieta de Lemos Camargo, nasceu na cidade de Curitiba (PR). Desde a mais tenra idade teve intenso contato com a música na casa em que residia com os pais e oito irmãos, sendo seis meninos e duas meninas.
O pai de Alceu era um comerciante e grande admirador da música e costumava receber em sua casa todos os grandes músicos que iam se apresentar em Curitiba. As festas varavam a noite, “regadas” a música. Além de sua mãe, que tocava piano, havia outros parentes que também tocavam instrumentos de forma amadora (Diário da Tarde, 16 de janeiro de 1926, Curitiba, PR).
Segundo o próprio Alceu Camargo, em entrevista cedida ao jornalista Osmar Silva1, tudo isso serviu para despertá-lo para a música. Aos cinco anos de idade, antes mesmo de aprender a ler, sentiu-se atraído pelo violino. Foi então que começou seus estudos, ali mesmo em Curitiba, com
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um professor alemão chamado Ludovic Zeyer, violinista de quem foi aluno até os doze anos2.
A prática musical doméstica e os serões na casa dos Camargo eram uma tradição muito comum, difundida desde o final do século XIX entre os paranaenses, bem como entre os imigrantes alemães que habitavam aquela região. Pequenas orquestras familiares e bandas particulares eram comuns naquela época, devido ao fato da música ser ensinada “[...] no seio das famílias como fator recreativo e complemento da educação e não raro cultivada entusiasticamente pelos seus membros” (RODERJAN, 2004, p. 43).
A presença do piano no ambiente doméstico paranaense foi fundamental na formação das chamadas bandas familiares que, segundo Monteiro (2004), no fim do século XIX constituíam a principal base da música naquele Estado. Senhoras, senhoritas e cavalheiros revezavam-se ao piano acompanhando as danças nas reuniões e saraus familiares (RODERJAN, 2004). Podemos deduzir que o mesmo acontecia na casa da família Camargo. Segundo a senhora Vera Camargo, havia um piano na casa onde Alceu passou a infância em Curitiba, no qual os músicos que vinham de fora realizavam os recitais nas festas.
O Rio de Janeiro, que fora Corte no período monárquico e Capital da República no início do século XX, era tido como referência cultural, não somente para o Estado do Paraná, mas para os demais Estados brasileiros. E foi para lá que Alceu Camargo se transferiu aos 13 anos de idade, para dar prosseguimento aos seus estudos de violino com o Professor Francisco Chiafitelli. Logo depois ingressou no Instituto Nacional de Música – hoje Escola de Música da UFRJ freqüentando a classe do mesmo Professor.
[...] Dispondo de algum recurso, meu pai decidiu me mandar para um centro mais adiantado, onde eu pudesse me desenvolver melhor. Graças a isso e a uma bolsa fornecida pelo governo de meu Estado, vim estudar na Escola de Música do Rio, então chamada Instituto Nacional de Música. Estudando com os melhores professores, consegui me formar na Escola de Música aos dezessete anos. [...] Logo depois de me formar, ganhei a medalha de ouro da Escola, competindo com estudantes que, como eu, tinham conseguido a nota máxima do educandário, um triunfo muito importante em meu início de carreira. Depois realizei concertos em minha cidade natal, no Rio e em diversas cidades do Sul e Nordeste do país. Seguindo o mesmo caminho de outros músicos, que têm de agir assim por uma questão de sobrevivência, participei da fundação da Orquestra Sinfônica Brasileira e passei a integrá-la, isso depois de tocar em outros grupos. (SILVA. “Escola da Música” – “A carreira de Vera e Alceu Camargo”, Vitória, ES).
Na Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), Alceu atuou tocando na terceira estante dos primeiros violinos (1949 -1953). Atuou ainda como spalla na orquestra da Rádio Tupy (1939 - 1951) e da Rádio Club do Brasil S/A (1951 - 1953). Em 1953, Alceu fez concurso para spalla da Orquestra da Sociedade Mineira de Concertos Sinfônicos de Belo Horizonte. Tendo sido aprovado no concurso, atuou também como spalla no Conjunto de Câmara da mesma sociedade. O casal Camargo mudou-se, então, para a capital mineira, residindo lá por onze meses.
Após esse curto período na capital mineira, atendendo ao convite da Sra. Ricardina Stamato da Fonseca e Castro, o casal transferiu-se para Vitória (ES) para lecionar na então Escola de Música do Espírito Santo (EMES), atual Faculdade de Música do Espírito Santo Maurício de Oliveira (FAMES). Lá, Alceu Camargo atuou como professor de violino, harmonia, morfologia e canto coral entre 1954 e 1977, ano em que se aposentou. Em outubro de 1962, a pianista capixaba Áurea Adnet entregou o cargo da direção da EMES para Alceu Camargo, que permaneceu como diretor dessa Instituição até fevereiro de 1967. Mesmo tendo se aposentado oficialmente no ano de 1977, o professor não se afastou das atividades didáticas e artísticas, continuando como contratado da EMES como auxiliar de ensino. De acordo com o seu Currículum Vitae, a EMES foi a primeira (e única) Instituição formal de ensino de música em que lecionou. Seu trabalho como professor de violino naquela Escola, sempre contando com o apoio de sua esposa, resultou no surgimento de um pequeno núcleo de cordas que posteriormente formou a Orquestra de Câmara da EMES e, segundo Magalhães (2003), esse pequeno grupo veio a ser o embrião da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo (OFES).
Alceu Camargo não era compositor de formação e sua atividade composicional era irregular, o que se torna evidente a partir da análise das datas de composição de suas obras. Foi no Estado do Espírito Santo que Alceu Camargo revelou o seu lado compositor. Impulsionado pelas necessidades da vida acadêmica, escreveu dezenas de pequenos ditados melódicos para trabalhar a percepção musical dos alunos. No ano em que assumiu a direção da EMES, compôs o Hino da Escola de Música do Espírito Santo, com letra de Terezinha Dora Abreu de Carvalho, e no mesmo ano escreveu Melodia, sua primeira peça para piano. A partir de 1973, compôs pequenas obras para a “Orquestra Juvenil” da EMES,
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sobretudo com objetivos didáticos. Ao indagar à senhora Vera Camargo sobre como o seu marido começou a compor, ela relatou a seguinte história:
Eu dava aulas de percepção para as turmas da Escola de Música, e eu mesma escrevia os solfejos e os ditados que eu aplicava às turmas. Um dia, eu estava sentada à mesa, com o caderno pautado aberto, e já não saía nada! Eu já estava cansada de tentar pensar em alguma melodia. Então Alceu chegou, me viu ali concentrada e com o semblante preocupado, e me perguntou: “O que é que está acontecendo, Verinha?” Aí eu falei para ele que estava com dificuldade de escrever os solfejos e ditados. Ele pegou o caderno e me perguntou assim: “Como é que você quer isso? Que dificuldade? Quantos compassos? Em que tonalidade?” Eu respondi para ele como eu queria e então ele rapidamente escreveu! Eu fiquei espantada! (risos) Ele me entregou o caderno e disse: “Pronto”. Eu estava ali havia várias horas tentando escrever e ele em cinco minutos escreveu com a maior facilidade! Foi assim... (CAMARGO. Entrevista em 25 de julho de 2008).
Um certo diletantismo de Alceu Camargo enquanto compositor pode ser percebido em um outro depoimento da senhora Camargo:
[...] Esse Estudo Seresteiro [para piano], quando Alceu fez, eu falei assim: “Alceu, que música difícil. Como é que você fez isso?” Ele começava a rir: “Ah, eu fui fazendo!” Tocava à moda dele, fazia as harmonias. Ele dedicou isso aqui à Lia [Leal], não foi? É. A Lia que tocou esse estudo. Agora as outrazinhas eu fazia o acompanhamento junto com ele e ajudava muito, sabe? Mas fazia assim; ele quer assim é assim que vai ser. “Ah, eu não quero assim não” – quando eu tocava alguma coisa – “não, é esse aí que eu quero” – aí eu escrevia. E o último então, aquele quarteto [de violoncelos] que ele fez pro Cláudio [Coutinho]: Conversa Fiada. Aquele que deu mais trabalho porque ele fez a melodia principal, mas ele não queria fazer assim, acompanhamento não. Ele queria que cada violoncelo tivesse a sua parte, assim, participasse mais. Então eu dizia assim: “Alceu, mas
o primeiro violoncelo já está fazendo isso”. Aí eu tocava o primeiro com o terceiro, o segundo com o quarto. Ia fazendo assim. O primeiro com o segundo. Pra ver a harmonia e tudo. (CAMARGO. Entrevista em 25 de julho de 2008).
Alceu Camargo lecionou harmonia e percepção durante alguns anos na EMES e, de acordo com relatos de ex-alunos, tinha preferência por lecionar tais matérias a dar aulas de violino. O conhecimento de harmonia e o ouvido apurado eram as principais ferramentas de que dispunha para compor.
O “I Festival de Música Erudita Capixaba” – realizado no Teatro Carlos Gomes, em Vitória (ES), nos dias 29 e 30 de maio de 19823 – é o único concurso de composição do qual temos notícia da participação de Alceu Camargo. Embora ele não tenha obtido o prêmio principal, curiosamente, dentre as doze obras gravadas como prêmio aos finalistas no LP “I Festival de Música Erudita Capixaba”, cinco são de sua autoria, a saber: Estudo Seresteiro (Lia Leal, piano); Valsa da Saudade (Manolo Cabral, piano); Nostalgia (versos de Maria Helena Dessaune; Ignácia Nogueira, canto; Laudelina Pádua, piano); Caprichosa e Estudo em Si menor (Célia Ottoni, piano). Foram apresentadas, ainda, mais duas peças do Prof. Alceu: Oração (Coral do DEC; Regência de Cláudio Modesto dos Reis); Redemoinho (Hariton Nathanailides, violino; Lia Leal, piano). No entanto essas peças não foram selecionadas para a gravação (Programa do “I Festival de Música Erudita Capixaba”, 1982).
Em seu estilo composicional identificamos traços característicos da chamada música de salão4, muito em voga no Brasil na segunda metade do séc. XIX e início do séc. XX. Por exemplo, a recorrência do gênero valsa (Valsa em Dó; Valsa da Saudade, Divagando – Valsa Lenta; Caprichosa
– Valsa); utilização de uns poucos padrões formais, geralmente e forma ternária (A/B/A)5; no tocante à harmonia, suas obras são estritamente tonais, com eventual “ousadia” cromática.
Composto no ano de 1963, o Estudo Seresteiro é uma das primeiras peças que Alceu Camargo compôs, sendo o primeiro Estudo para piano. Lia Leal, pianista a quem a obra foi dedicada e que colaborou na criação da referida peça, nos relatou em entrevista o seguinte:
[...] a história que eu sempre conto é que eu fiquei, assim, muito feliz de participar muito da criação dessa peça, que eu considero uma das melhores dele. Não porque foi dedicada a mim, mas porque realmente é uma peça difícil, com nuances de técnica... essa reúne técnica e a parte de interpretação de sonoridade. Reúne as duas coisas. Muito interessante, muito bonita essa peça, e difícil. Ele levou essa peça
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pra mim, na minha casa, pra que eu fosse experimentando com ele, por que... ela é toda movimentada igualmente. A esquerda e a direita trabalham juntas com movimentos contrários mas simultâneos. E ele tinha assim... queria ver se soava bem, não é? E então quando uma nota que ele achava que não estava combinando muito e tal, eu repetia pra ele, fazia a direita e a esquerda, ou fazia só a esquerda; e eu achava sempre a esquerda muito difícil. Eu brincava com ele que eu achava aquela esquerda ali tremenda, que ele não sendo pianista. Ele tinha a idéia de fazer aquilo, mas eu achava que se tornava muito difícil, mas não impossível. Então a gente ia vendo aqui, ia fazendo, ia vendo que dava pra se por um dedilhado embora difícil, mas dava pra se fazer. E assim a gente foi... sempre ele voltava e ia... chegava lá em casa, sentava, experimentava, até que ficou pronta a peça e... primeiro chamava Zig-zag e depois ele achou que Zig-zag não era um termo pra uma peça erudita. Ele queria aquilo como peça erudita. Uma peça pra aluno, pra pianista fazer. E então ele falou: “Não. Vou colocar o nome dela de Estudo Seresteiro”. E ela tem as características de um estudo mesmo. Toda trabalhada, toda cheia de semicolcheias ininterruptamente, quase que um moto perpetuo aquilo ali. E ele então achou melhor colocar Estudo Seresteiro. Porque “Seresteiro”? Por que você encontra nela uma melodia que está intrínseca ali. Uma melodia que lembra melodia brasileira de canção seresteira, de canções de modinhas brasileiras até talvez, se a gente pensar nas modinhas da época do império, ou mesmo as canções seresteiras. Por isso que é muito difícil, porque ao mesmo tempo em que ela tem a técnica, não é lenta, é um Allegro, eu acho... e ela tem também permeada ali uma canção, uma melodia de seresta. (Lia Leal em entrevista no dia 22 de junho de 2009).
O estudo apresenta tonalidade de Sol menor e forma ternária (A:/ B:/A). A seção A se desenvolve do compasso 1 ao primeiro tempo do compasso 20; a seção B, do compasso 21, com anacruse, ao primeiro tempo do compasso 37. A partitura indica o retorno à seção A com o sinal ,e posterior encaminhamento à Coda. Observando a partitura do Estudo Seresteiro logo reconhecemos algumas das observações feitas pela pianista Lia Leal. Os movimentos contrários e simultâneos das mãos, em semicolcheias, estão presentes em toda a peça. O compositor sobrepõe duas linhas melódicas nas quais a linha executada pela mão direita é constituída de arpejos onde prevalecem intervalos de terças e sextas, e a linha executada pela mão esquerda é constituída basicamente de intervalos cromáticos. A resultante sonora da sobreposição dessas duas linhas é relativamente dissonante.
Figura 1: Alceu Camargo, Estudo Seresteiro, compassos 1 a 8. Fonte: Cláudio Thompson, 2009.
No entanto, examinando mais atentamente, o que temos, na verdade, é uma melodia principal na linha superior, baseada no motivo de três notas (destaque -Exemplo 1), acompanhada, em movimento contrário e pedais harmônicos (ligadura - Exemplo 1), pela linha inferior. Assim sendo, uma redução estrutural do mesmo trecho revela uma sonoridade mais consonante.
Exemplo 1: Alceu Camargo, Estudo Seresteiro, compassos 1 a 8, versão simplificada mantendo apenas o contorno melódico principal. Fonte: Cláudio Thompson, 2009.
Na seção B, o motivo de três notas (destaque - Exemplo 2) aparece de forma descendente, distinguindo melodicamente esta seção da seção A e, ao mesmo tempo, conferindo unidade motívica à obra.
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Exemplo 2: Alceu Camargo, Estudo Seresteiro, compassos 20 a 29, versão simplificada mantendo apenas o contorno melódico principal. Fonte: Cláudio Thompson, 2009.
No depoimento de Lia Leal, notamos a dúvida do compositor em relação ao título deste Estudo (Figura 2). A escolha final por Estudo Seresteiro demonstra que, embora se trate de um Estudo baseado na exploração de um determinado aspecto técnico-instrumental, criando melodias que requerem do pianista estudo de dedilhado e movimento contrário das mãos, o autor estava ciente de ter conferido à peça um caráter lírico, seresteiro. Para Lia Leal (2009), Alceu Camargo simplesmente compunha, despreocupadamente, sem demonstrar qualquer ambição no sentido de ser reconhecido como compositor de obras acadêmicas.
Figura 2: Alceu Camargo, manuscrito da primeira versão do Estudo Seresteiro. Fonte: Acervo particular de Lia Leal.
De acordo com Lia Leal, o caráter seresteiro do estudo está na melodia da linha superior, exemplificada nos exemplos 1 e 2, a que chamamos de melodia principal. No entanto, além da linha melódica, outra característica seresteira está na condução cromática realizada pela linha do baixo (Figura 1), movimento comumente executado pelos chorões e seresteiros nos acompanhamentos de violão. Todavia, as passagens cromáticas realizadas nas serestas preenchem espaços sustentados ou criados pela melodia; nessa obra, o cromatismo aparece em contraponto com a melodia principal, resultando na sonoridade dissonante característica deste Estudo.
A interpretação dessa obra requer a utilização de recursos expressivos para fazer soar a melodia principal – permeada por arpejos da voz interna da mão direita – além da atenção ao dedilhado e ao movimento contrário das mãos. Apesar de escrito em semicolcheias ininterruptas, os fraseados devem conter rubatos, a fim de salientar o caráter seresteiro da peça. Lia Leal ressalta que, apesar das características da obra como estudo de técnica pianística, Alceu Camargo pensava muito mais na sonoridade melódica de seresta, e que a concepção do Estudo Seresteiro pelo compositor “foi mesmo uma inspiração de fazer alguma coisa que tivesse um pouco de técnica, pra diferenciar um pouco, aquele lado [...] mais de melodia que ele fazia. Talvez ele tenha pensado em apenas fazer alguma coisa diferente” (LEAL. Entrevista em 22 de junho de 2009).
O Estudo em Si menor, dedicado à pianista Célia Ottoni, foi composto no ano de 1982. A peça, caracterizada com andamento Allegro6, pode ser dividida em duas seções desenvolvidas por um motivo rítmico de semicolcheias em ostinato, que imprime unidade à peça. A primeira seção (compasso 1 a 18) subdivide-se em duas partes: a’ (compassos 1 a 8), e a” (compassos 9 a 18). A segunda seção tem início no compasso 19 e se estende até o final da peça.
Assim como no Estudo Seresteiro, Alceu Camargo utiliza duas linhas melódicas sobrepostas. No entanto, nessa peça o resultado sonoro é consonante. O compositor mantém a linha melódica no registro médio durante toda a peça, caracterizando, assim, o contralto como voz principal (destaque menor - Exemplo 3). O caráter agitado da peça se deve, principalmente, ao contracanto na voz do soprano (geralmente a terça superior em relação à voz principal), que é alcançado por meio de bordadura. Como o andamento da peça é rápido, toda essa movimentação do soprano pode ser sentida como um melisma (destaque maior - Exemplo 3).
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Exemplo 3: Alceu Camargo, Estudo em Si menor, compassos 1 a 4. Fonte: Cláudio Thompson, 2009.
O acompanhamento fica a cargo da mão esquerda, e esse é executado seguindo, basicamente, os padrões configurados pela mão direita. Apesar da semelhança de escrita entre os pentagramas, a mão esquerda se caracteriza como acompanhamento devido a seu aspecto mais harmônico, como pode ser observado com toda clareza nos compassos 3, 5, 6, 7 dos exemplos 4 e 5. Tal característica pode ser verificada ao longo de toda a peça.
O compositor não deixa explícito nessa obra um caráter brasileiro, como o faz nas outras obras para piano. Contudo, podemos notar certa “brejeirice” baseada no choro, como a levada rítmica e a condução de contracantos feita pelo polegar da mão esquerda (Exemplo 4), ressaltado pela utilização do pedal. O mesmo ocorre nos compassos 12 a 14, e uma última vez nos compassos 19 a 22.
Exemplo 4: Alceu Camargo, Estudo em Si menor, compassos 5 a 8. Fonte: Cláudio Thompson, 2009.
O Estudo em Ré, para violino solo, composto em 1983, possui semelhança de textura com o Estudo em Si menor. Na obra composta para violino solo, o compositor utilizou na seção A (compassos 1 a 44) a tonalidade de Ré Maior, e na seção B (compassos 45 a 78), sua relativa: Si menor.
Nessa obra temos a configuração de duas vozes sendo voz principal (primeira e última nota de cada compasso -Exemplo 5) e voz secundária (destaque - Exemplo 5), semelhante à realizada pela mão direita no Estudo em Si menor. No entanto, no referido estudo para violino
o compositor não utiliza bordadura para alcançar a nota mais aguda, e sim arpejo.
Exemplo 5: Alceu Camargo, Estudo em Ré, para violino solo, compassos 1 a 19. Fonte: Cláudio Thompson, 2009.
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Outro ponto que chama atenção no Estudo em Si menor é certa semelhança, também de textura, com o Prelúdio II (BWV 847) do primeiro volume do Cravo Bem Temperado, de Bach (Figura 3). É provável que Alceu Camargo tenha usado esta obra como inspiração para escrever seu Estudo.
Figura 3: Johann Sebastian Bach, Prelúdio em Dó menor, BWV 847, c. 1 a 6. Editor: Bruno Mugellini, Warsaw, 1964.
Se considerarmos a harmonia compasso por compasso (Exemplo 6), as vozes externas resultam num grande número de problemas de contraponto. No entanto não se pode afirmar categoricamente se a não observância das regras de contraponto tradicional são uma escolha composicional ou meramente descuido do compositor. Todavia, o mesmo não acontece com o Estudo em Ré, onde o compositor trabalha com um número menor de vozes (Exemplo 7).
Exemplo 6: Alceu Camargo, Estudo em Si menor, redução harmônica, seção A. Fonte: Cláudio Thompson, 2009.
Exemplo 7: Alceu Camargo, Estudo em Ré, para violino solo, redução harmônica. Fonte: Cláudio Thompson, 2009.
Por conta da organização rítmica e de textura, no Estudo em Si menor a relação de contraponto parece ter sido pensada nas notas do primeiro tempo do compasso (5º dedo da mão esquerda e primeiro dedo da mão direita), que soam simultâneas, e na relação entre as vozes externas da mão direita (Exemplo 8).
Exemplo 8: Alceu Camargo, Estudo em Si menor, redução seção A. Fonte: Cláudio Thompson, 2009.
Ainda assim, alguns problemas na condução de vozes acontecem, mas em menor quantidade. A relativa independência no contraponto das
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vozes da mão direita parece indicar que o pensamento violinístico de Alceu Camargo (semelhança apontada entre a mão direita do Estudo em Si menor com o Estudo em Ré) prevalece sobre a escrita pianística. Contudo,
o princípio básico de desenvolvimento técnico-pianístico na simetria das mãos, proposto no Estudo em Si menor, não deixa de ser surpreendente, visto que pensado por um violinista.
Alceu Camargo foi violinista profissional, tendo desenvolvido atividades como performer, empreendedor cultural, professor e compositor. Com relação aos Estudos, fica evidente que o pensamento violinístico está presente na construção das melodias da mão direita, pois estas têm tratamento polifônico mais elaborado que as do acompanhamento.
Ambos os Estudos possuem uma figuração rítmica em semicolcheias ininterruptas, o que confere às peças a característica de moto perpetuo, exigindo do executante um domínio instrumental considerável.
O caráter brasileiro (seresta, explícito no primeiro Estudo; e choro, implícito no segundo Estudo) remete aos saraus de sua infância em Curitiba, bem como a sua vivência em orquestras de rádio e conjuntos de música popular no Rio de Janeiro.
Apesar da composição não ter sido o ofício escolhido por Alceu Camargo sua obra composicional e, em particular, seus Estudos para Piano, transmitem um pensamento musical coerente e maduro, e uma bagagem que reflete a própria história de vida desse músico, simultaneamente rica e modesta.
1 A entrevista a que nos referimos é, provavelmente, do ano de 1978, com reportagem de Osmar Silva e fotos de Adilson Lopes, cujo título é “Escola de Música”. Ao final da página, consta um pequeno histórico biográfico de cada um dos entrevistados: “A carreira de Vera e Alceu Camargo: o seguimento de uma tradição”. Trata-se de uma página de jornal não identificado encontrada no Arquivo Morto da FAMES em pesquisa realizada no dia 19 de junho de 2009.
2 Livreto da programação do “Festival Estadual de Música Brasileira”, EMES, 1980. Vitória, ES.
3 Tanto no LP quanto no Programa do “I Festival de Música Erudita Capixaba”, não constam a data do referido festival. Essa informação foi obtida nos dados biográficos do compositor Carlos Cruz, em seu livro “Brasil: música na história – 50 peças progressivas para piano”, 1986.
4 A maior parte do repertório que alimentou a prática de música residencial [...] pode ser colocado sob a genérica designação de ‘música de salão’. O termo abrange, metonimicamente,
o tipo de música que mais usualmente foi executado nas reuniões musicais das residências, de diversas sociedades particulares de música e em salões de baile, no século XIX: a dizer, peças instrumentais ou vocais de dimensões não muito grandes e estrutura musical simples, com fins solísticos ou coreográficos. [...], suas manifestações mais características são as modinhas, as árias italianas e francesas, muitas vezes transcritas para instrumento acompanhador e voz (quase sempre o violão), e as danças de salão. (SILVA apud FARIA, 2005, p. 21).
5 Segundo Almeida (2001, p. 58), a peça característica de salão geralmente baseia-se em A/B/A ou forma Rondó.
6 Na versão encontrada na biblioteca da FAMES, cópia do manuscrito encontrado no acervo de Vera Camargo, temos a indicação de Allegro M.M. ( = 60). Já na versão encontrada no acervo de Lia Leal a indicação, a punho do próprio compositor, é Allegro M.M. ( = 84). Em nossa edição decidimos especificar apenas a indicação do caráter do andamento: Allegro; visto que as indicações do compositor com relação ao tempo do metrônomo contemplam toda a variação de andamento indicada para esse tempo. Vale também dizer que algumas notas foram alteradas enarmonicamente (si por lá - compasso 23; fá por mi - compasso 26) a fim de corrigir e facilitar a leitura das harmonias.
Referências Bibliográficas
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BORGES, Generozo. Alceu Camargo. Diário da Tarde, Curitiba, PR, 16 de janeiro de 1926.
CAMARGO, Vera. Entrevista para Cláudio Thompson em 25 de julho de 2008. Vitória, ES. Gravação em vídeo. Residência de Vera Camargo.
CRUZ, Carlos. Brasil: música na história. 50 peças progressivas para piano. Irmãos Vitale, São Paulo - Rio de Janeiro, 1986.
FESTIVAL ESTADUAL DE MÚSICA BRASILEIRA. EMES. Programa de Concerto. Vitória, ES, 1980.
LEAL, Lia. Entrevista para Cláudio Laeber Thompson em 22 de junho de 2009. Vitória, ES. Gravação em vídeo. Residência de Lia Leal.
MAGALHÃES, Juca. Da capo: a história da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo: 1977-2002. Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, Vitória, ES, 2003.
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MONTEIRO, Janaina. Pianos Essenfelder, a marca da música paranaense. In: A [des]construção da música na cultura paranaense. Manuel J. de Souza Neto (org.). Curitiba: Quatro Ventos, 2004. p. 121 – 122.
RODERJAN, R. V. A música em Curitiba, da instalação da província ao alvorecer do século XX. In: A [des]construção da música na cultura paranaense. Manoel J. de Souza Neto (org.). Curitiba: Quatro Ventos, 2004. p. 38– 54.
RODERJAN, R. V. Aspectos da música no Paraná (1900 – 1968). In: A [des]construção da música na cultura paranaense. Manoel J. de Souza Neto Org.). Curitiba: Quatro Ventos, 2004. p. 81 - 96.
SILVA, Cleida Lourenço da. Ernesto Nazareth em suas relações com seus contemporâneos nacionalistas. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Música, 2005.
SILVA, Osmar. A carreira de Vera e Alceu Camargo: o segmento de uma tradição. Jornal da Escola de Música, Vitória, ES, sem data.
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BORGES, Generozo. Alceu Camargo. Diário da Tarde, Curitiba, PR, v.?, p.?, 16 de janeiro de 1926.
SILVA, Osmar. “Escola de Música” – “A carreira de Vera e Alceu Camargo: o segmento de uma tradição”. Jornal?, Vitória, ES, data?
Autor desconhecido. Escola de Música comemora 23 anos de fundação. A Tribuna, Vitória, ES, v.?, p.?, 26 de maio de 1977.
Programa de concerto
“I Festival de Música Erudita Capixaba”. Departamento Estadual de Cultura (DEC). Vitória, ES, 1982.
“Festival Estadual de Música Brasileira”, EMES, Vitória, ES, 1980.
Entrevistas não publicadas
CAMARGO, Vera. Entrevista de Cláudio Laeber Thompson em 25 de julho de 2008. Vitória, ES. Gravação em vídeo. Residência de Vera Camargo.
LEAL, Lia. Entrevista de Cláudio Laeber Thompson em 22 de junho de 2009. Vitória, ES. Gravação em vídeo. Residência de Lia Leal.
Anexo
Cláudio Thompson - Possui graduação em Música Bacharelado em Instrumento Piano pelo Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro - CBM - RJ (2004) e Mestrado em Música (Práticas Interpretativas – Piano) pela Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC (2010). Foi professor de Piano na Faculdade de Música de Espírito Santo (FAMES), nos anos de 2003 a 2007, e de 2010 a março de 2011. Atualmente estuda sob a orientação do Prof. Dr. Guilherme Sauerbronn de Barros.
Guilherme Sauerbronn de Barros - Possui Bacharelado em Piano pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO (1994), Mestrado Piano pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
-UFRJ (1998) e Doutorado em Musicologia pela UNIRIO (2005). Atualmente é professor adjunto e Diretor de Pesquisa e Pós-Graduação do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC. É também Editor da Revista DAPesquisa - revista do Centro de Artes da UDESC.
C. THOMPSON; G. S. BARROS (p. 103-120)