CREPALDE, N. J. B. F. Villa-Lobos: uma manifestação cultural nacional.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.12 - n.1, 2012, p. 232-241.

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Outras Palavras

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 273p., n.1, 2012

Villa-Lobos: uma manifestação cultural nacional

Neylson J. B. F. Crepalde (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG)

neylsoncrepalde@hotmail.com

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar parte da obra e da vida de Villa-Lobos como manifestação cultural nacional, observando, em suas músicas, características nacionalistas como elementos antropofágicos, hibridismo e aglutinação de ritmos populares brasileiros na construção de uma arte de caráter nacional. Após uma reflexão sobre a trajetória de desenvolvimento do pensamento nacionalista nas obras musicais Europeias e Brasileiras, também analisaremos a figura de Villa-Lobos utilizada pelo governo Vargas, como propaganda política nacionalista, dando ênfase à sua significância na história da música brasileira e na evolução do pensamento nacionalista na música do Brasil.

Palavras-chave: Villa-Lobos; Manifestação cultural nacional; Antropofagia; Caráter nacional; Getúlio Vargas; Política nacionalista.

Villa-Lobos: a national cultural manifestation

Abstract: This article has the objective of analyzing part of the work and the life of Villa-Lobos as a national cultural manifestation observing in his music nationalistic characteristics such as anthropophagic elements, hybridism and agglutination of Brazilian popular rhythms on the construction of an art of national character. After a reflection on the course of the development of the nationalistic thought in European and Brazilian music works, we will also analyze the figure of Villa-Lobos utilized by the Vargas government as nationalistic politic propaganda also giving emphasis to his significance in Brazilian music history and in the evolution of the nationalistic thought in music of Brazil.

Keywords: Villa-Lobos; National cultural manifestation; Anthropophagie; National character; Getúlio Vargas; Nationalistic politics.

1. Introdução

Sim, sou brasileiro e bem brasileiro. Na minha música eu deixo cantar os rios e os mares deste grande Brasil. Eu não ponho mordaça na exuberância tropical de nossas florestas e dos nossos céus, que eu transponho instintivamente para tudo que escrevo. Heitor Villa-Lobos (Fonte: Sítio do museu Villa-Lobos)

Sem dúvida, além de ser um dos mais importantes artistas da história da nação brasileira, Heitor Villa-Lobos também foi e ainda é um dos maiores expoentes culturais brasileiros no exterior e um grande nome na história da educação musical brasileira. Sua preocupação com uma música genuinamente brasileira1 e representativa do espectro cultural da nação em uma unidade sublimada (WISNIK, 2004, p. 162) levou-o a grandes obras de arte contemporâneas como Uirapuru (1917), Choros nº 10 (1925) e Floresta do Amazonas (1958).

Filho de um funcionário da Biblioteca Municipal do Rio (Raul Villa-Lobos, professor e autor de livros de história e cosmografia, além de instrumentista amador), Heitor Villa-Lobos foi educado para ser médico e músico (WISNIK, 2004, p. 153). Estudou violoncello e era um profundo admirador da obra de Bach. Contudo, mas também fascinado pela música dos chorões cariocas, fascínio este, que suscitava no jovem artista o desejo incontrolável pelas noitadas musicais o qual só era satisfeito, saltando da janela do quarto, para tocar clandestinamente o violão.

Atravessando esse umbral doméstico à revelia do modelo paterno, Villa-Lobos estava devassando uma das fronteiras impostas pelo mapeamento cultural da Primeira República, onde o violão, o choro e a seresta (sem falar nas batucadas) eram repelidos do estreito conceito de cidadania moral e estética (e reprimidos policialmente, quanto mais populares). (WISNIK, 2004, p. 153)

Segundo Wisnik (2004), as resistências a essas manifestações culturais – tidas como perfeito exemplo de desregramento indesejável – estavam sendo minadas, à medida que as massas emergiam para o capital como mão de obra assalariada. A sociedade pós-escravocrata da época encontrava-se numa transição para o “modo de produção de mercadorias”. A música popular produzida pelos grupos negros e boêmios despontaria com “brilho e relevo no mercado fonográfico”.

Nesse contexto de aglutinação da música, Villa-Lobos compõem obras bastante representativas desse quadro de aproximações erudito-populares do Rio de Janeiro, na década de 20, sendo seu maior projeto nesses anos a série Choros. Esta série, cujo ponto de partida é uma peça para violão solo, atinge progressivamente formas de grande complexidade onde o autor “superpôs em condensações e deslocamentos contínuos as batucadas afro-indígenas, [...] os sambas, os choros e serestas, ponteios, marchas, cirandas, etc., trabalhados em clima de franca bricolage e invenção timbrística” (WISNIK, 2004, p. 165).

Mais elementos antropofágicos e nacionalistas são encontrados nas diversas obras de Villa-Lobos. Apesar de ligeiramente criticado por Mário de Andrade,2 Villa-Lobos foi figura importante na semana de arte moderna de 1922 (Figura 1) e peça chave no governo de Getúlio Vargas (Figura 2) ocupando o cargo de diretor do SEMA – Superintendência de Educação Musical e Artística – e trabalhando ativamente no Curso de Pedagogia de Música e Canto Orfeônico no Brasil e em vários empreendimentos musico-pedagógicos no país.

Antes de seguirmos com a análise de parte da obra e, até mesmo, da vida de Villa-Lobos como uma expressão de identidade nacional política e cultural, tracemos brevemente uma linha do desenvolvimento do pensamento nacionalista aplicado à música, desde suas origens Europeias até suas primeiras expressões embrionárias no Brasil.

Figura 1: Anúncio da Semana de Arte Moderna.3

Figura 2: Villa Lobos e Getúlio Vargas com Arminda e Julieta Strutt.4

2. O desenvolvimento da música nacionalista

Na segunda metade do século XIX, diversos compositores oriundos de diferentes países dirigiram-se aos grandes centros musicais para fazer seus estudos de técnicas de composição e depois voltar a suas terras de origem a fim de compor “músicas nacionais”. A partir de então, apenas “nativos” imbuídos do “espírito” de sua terra poderiam realizar essa tarefa. Assim, Bedrich Smetana (1824-84) compôs o poema sinfônico Ma Vlast (Minha Pátria) em homenagem à Boêmia, baseado na natureza e nas danças rústicas de seu país. Sobre as melodias camponesas da mesma nação trabalharam os compositores Antonin Dvorak (1841-1904) e Leos Janácek (1854-1928). Edvard Grieg (1843-1907) inspirou-se em ritmos e melodias do folclore norueguês para compor as Danças norueguesas e a suíte Peer Gynt, cuja história foi retirada de uma coletânea de contos publicada em 1841. Jean Sibelius (1865-1957) compôs o poema sinfônico Finlândia. Carl Nielsen (1865-1931) foi o grande compositor nacional dinamarquês, e Isaac Albéniz (1860-1909), Enrique Granados (1867-1917) e Manuel de Falla (1876-1946) os espanhóis. (GUERIOS, 2003, p. 75- 6)

Estes foram alguns dos primeiros compositores a manifestarem elementos “nacionais” em suas composições. Desde o surgimento da ideia da nação – “entendida como Estado-Nação e definida pela independência ou soberania política e pela unidade territorial e legal” – o caráter nacional é utilizado nas artes em geral como meio de legitimar e fortalecer o conceito de unidade do Estado e de Identidade Nacional5 (GUIBERNAU, 1997). Segundo Guerios (2003, p. 73): “recorrer à sabedoria do povo significava também afastar-se da sabedoria da civilisation dos franceses, do saber iluminista: significava exaltar o ‘natural’ e o ‘espontâneo’ em detrimento da razão e do planejamento consciente”. O autor comenta ainda que “as demonstrações identitárias tornaram-se afirmações de independência política, afirmando a necessidade de se conhecer e exaltar o ‘tipicamente nacional’”. Por isso, a coletânea de canções alemãs Des Knaben Wunderhorn recebeu em 1808 uma edição especial com o objetivo de estimular a “consciência nacional” libertando a Prússia do domínio Francês.

Na Suécia, após a perda do território da atual Finlândia para a Rússia em 1809, foi formada uma sociedade que fazia leituras de baladas suecas e que trabalhava para o renascimento das “virtudes góticas”. O mesmo ocorria entre os gregos contra os turcos, entre os poloneses contra os russos, entre os italianos contra a Áustria, entre os belgas, entre os escoceses. Eram movimentos ao mesmo tempo de autodefinição (ou seja, de construção de uma tradição e de um caráter nacionais) e de libertação (ou seja, de afirmação dessa cultura nacional perante outras nações). (GUERIOS, 2003, p. 75)

A partir do início do Século XIX, a escola de compositores russos procurava dar mais ênfase à utilização de elementos folclóricos e da língua russa [na ópera], buscando não apagá-los sob as formas musicais alemãs, francesas ou italianas. Mikhail Glinka (1804-57) foi o primeiro. Após um período estudando composição musical na Itália, ele voltou à Rússia e compôs a ópera A vida pelo czar. GUERIOS assim se reporta a esse fato:

Segundo o próprio Glinka, ele decidiu fazer uma música tipicamente russa devido à nostalgia que sentira em relação à terra natal quando afastado dela. Para tanto, utilizou-se de um episódio heroico que fazia parte da história oficial da nação russa, no qual um camponês, Ivan Soussanine, se encarregara de impedir que uma tropa armada polonesa chegasse a Moscou a tempo de matar o czar, mesmo sabendo que isso lhe custaria a vida. (GUERIOS, 2003, p. 76)

Esta ópera teve grande sucesso na Rússia ainda no ano de sua composição, 1836. Teve encenações também na Exposição Universal de Paris em 1867 onde também teve grande êxito. Todas essas características “identitárias” e “descolonizadoras” da música nacionalista russa e de outros países da Europa oriental diferem sobremaneira da música nacional feita na Alemanha ou na França, por exemplo. “Quando a música composta pretendia ser francesa, as características nacionais a serem transmitidas eram a clareza e a razão, características do pensamento iluminista, e não elementos do folclore” (GUERIOS, 2003, p. 78-9). Estas ideias mostram claramente o conceito de civilisation expansionista europeu. Já na Alemanha, as ideias dominadoras tiveram seu maior expoente nas óperas de Richard Wagner, trabalho que ele chamou de Gesamtkunstwerke, ou “obra de arte integral [total]”, síntese do artístico, do filosófico e do intelectual. Wagner compunha a música, escrevia o libretto de suas óperas, pensava a cena e ainda se preocupava com a regência. GUERIOS (2003, p. 79) comenta: “Em suas colocações políticas, Wagner revelava-se um forte defensor da superioridade germânica e um glorificador do antissemitismo” na Alemanha recém-unificada.

Entre 13 e 30 de agosto de 1876, foram ali [no Teatro Nacional de Reichstag] estreadas as mais de 15 horas de seu ciclo de óperas O Anel dos Nibelungos, cujos personagens da mitologia e das lendas populares alemãs agiam no mundo a partir da ética dos mitos pagãos germânicos. Foi a maior demonstração estética possível do poder de realização da nação alemã: a superioridade da “obra de arte integral” era demonstrada por seu representante máximo, que glorificava a mitologia alemã (sua tradição mais antiga) mediante o uso da estética romântica levada ao limite (comprovando sua superioridade à época). (GUERIOS, 2003, p. 80-1)

A música de Wagner estava imbuída de um sentimento absolutamente “colonizador” e expansionista, sendo um bom exemplo da Zivilisation alemã, conceito trabalhado por Norbert ELIAS (1995); ao se reportar ao conceito de civilização este autor associa-o ao padrão de tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às ideias religiosas e aos costumes adotados. Para ele “civilização” seria uma consciência que o Ocidente expressa de si mesmo – a consciência nacional. Este conceito para este sociólogo tem a função de minimizar as diferenças entre os povos, enfatizando o que é comum a todos ou – na opinião dos que o possuem – deveria sê-lo. Esta ideologia apresentada por Norbert Elias é bastante compatível com as características observadas na Gesamtkunstwerke Wagneriana.

Por outro lado, o conceito alemão de Kultur que se desenvolve paralelamente e de forma contrastante ao conceito de Zivilisation (ELIAS, 1995) reflete a consciência de uma nação que visava buscar e constituir incessantemente suas fronteiras, tanto no âmbito político quanto espiritual, e que se perguntava reiteradamente: “Qual é, realmente, a nossa identidade?” Esta ideia afirmativa, aglutinadora e, neste caso, “descolonizadora” das obras musicais nacionalistas feitas na Europa oriental está presente [fundamentalmente] no desenvolvimento da música nacional brasileira, como veremos a seguir.

3. A música nacionalista no Brasil

Uma arte nacional não se faz com escolha discricionária e diletante de elementos: uma arte nacional já está feita na inconsciência do povo. O artista tem só que dar pros elementos já existentes uma transposição erudita que faça da música popular, música artística, isto é: imediatamente desinteressada. (ANDRADE, 1972, p. 15-6)

Mário de Andrade assim descreve a música brasileira. Ela não é uma reinvenção musical, mas uma adequação da música popular aos padrões estéticos eruditos, talvez numa espécie de legitimação da música, até então, considerada “de segunda classe”, como vimos supra. Guerios (2003, p. 82) afirma que o movimento nacionalista no Brasil foi uma resposta à necessidade de provar que o Brasil, cuja independência havia sido proclamada nesse mesmo século, era também digno de se arrogar o título de nação.

As primeiras manifestações autoafirmativas nesse sentido, tiveram seu lugar na ópera com a implementação de uma Ópera Nacional no Rio de Janeiro. A partir de 1857, o império apoiaria o ambicioso projeto da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional, cujo projeto foi proposto por Dom José Amat, um imigrante espanhol fugitivo do cárcere em seu país e refugiado no Brasil. Amat declarava que “o projeto não tratava apenas de exprimir a música (já naturalmente existente) da nação brasileira; tratava também de dar provas do grau de civilização da nação e de salvar suas características próprias ante a estética italiana.” (GUERIOS, 2003, p. 83)

Este autor comenta que a existência da ópera foi efêmera, o que impediu efetivamente a formação de um campo em torno da ideia de música nacional. Em 12 de maio de 1860 a Imperial Academia seria extinta por um decreto, contudo, pouco mais de um mês, em 17 de junho, surgia a Ópera Lírica Nacional.

Ainda segundo GUERIOS (2003, p. 86) “o único dos cinco brasileiros natos que compuseram para a Ópera Nacional que permaneceu conhecido para além de seu tempo foi Antônio Carlos Gomes”. Este autor ilustra um tipo de situação da época: o sucesso de sua primeira ópera apresentada em 1861 valeu-lhe um apoio do imperador para estudar na Europa. Dessa forma, as principais influências musicais de Carlos Gomes são construídas em Milão, onde o compositor estudou e se instalou. Só voltaria ao Brasil esporadicamente para se apresentar. Estas influências italianas seriam uma estética dominante no Rio de Janeiro na época de suas primeiras óperas.

Embora fundamentalmente e culturalmente importante, a ideia nacionalista em Carlos Gomes era ainda embrionária. Alguns dos temas explorados pelo compositor eram nacionais: “O Guarani” e “O Escravo”, por exemplo, mas a estética de suas composições era estritamente italiana com notáveis influências da música de Verdi, Rossini e Donizetti. Além disso, suas óperas foram escritas em italiano.

Na República, temos dois compositores bastante representativos: Alberto Nepomuceno e Alexandre Lévy. “Nepomuceno era o músico ‘oficial’ do regime, estando completamente inserido nos espaços institucionais existentes na capital da República; já Levy nunca ocupou posição oficial nenhuma, tendo vivido na província de São Paulo.” (GUERIOS, 2003, p. 90) Apesar de ter grande consciência do que seria necessário para um projeto de composição de músicas nacionais, para GUERIOS (2003, p. 90), não se pode dizer que Nepomuceno teve a intenção de ser um compositor de músicas nacionais. Seu trabalho distribuiu-se em um amplo espectro de atividades e preocupações musicais, e seria enganador totalizar sua trajetória sob um único interesse. Apesar de concordar com esse autor, julgo real e importante a sua contribuição para o desenvolvimento deste pensamento nacionalista, notado nas preocupações e pensamentos que o compositor tinha acerca da educação musical no país e acerca de uma estética musical nacionalista que pudesse ser reconhecida como tal. Podemos perceber esta preocupação no episódio aqui narrado:

Em 1903, o barão de Studart, cearense que estudou as tradições de seu estado e que escreveu uma breve biografia de Nepomuceno após sua morte, solicitou-lhe que compusesse um hino em homenagem ao tricentenário do Ceará. Em sua carta de resposta, publicada no jornal A República de 29 de julho desse ano, Nepomuceno advertiu que um hino do Ceará só seria reconhecido como tal e aceito “quando a educação artística do povo for outra que não a do nosso ou quando a etnologia tenha fornecido ao artista compositor os elementos de tal ordem que o povo aceite o canto como um produto seu”. Em outras palavras: um povo só reconhece a música como sua se é civilizado o suficiente para entendê-la, o que ainda não era o caso, ou se ela expressar seu próprio canto universalizado pela arte musical, o que também ainda era impossível devido à inexistência de coletas folclóricas. (GUERIOS, 2003, p. 92)

Alexandre Lévy nasceu no mesmo ano que Nepomuceno, em 1864, na província de São Paulo, e também cresceu em ambiente musical. Depois de ir à Europa em 1887 e retornar no mesmo ano, Lévy “comporia, além de uma sinfonia e de outras obras menores, também uma Suíte brasileira para orquestra sinfônica, na qual faria, assim como Nepomuceno, em sua Série, uma tentativa de realização de uma música de características nacionais.” (GUERIOS, 2003, p. 94)

Nessa obra, Lévy utilizou e desenvolveu o tema de uma cantiga popular para o Prelúdio e um argumento retirado do livro A Carne de Júlio Ribeiro, para o seu quarto movimento, denominado Samba. A Suíte foi apresentada no Rio de Janeiro em julho de 1890, em concerto que contou com a presença do chefe do governo provisório da República, o marechal Deodoro da Fonseca. (GUERIOS, 2003, p. 94-95)

A crítica também se mostrou admirada com a fidelidade e habilidade com que Lévy uniu elementos étnicos brasileiros diversos e tão expressivos nos encontros populares. Guerios (2003, p. 95) comenta que “as suítes de Nepomuceno e Lévy fazem parte das poucas e limitadas tentativas de composição de música erudita nacional brasileira até 1920”; tentativas limitadas, porém decisivas na construção dessa estética nacionalista entre os posteriores compositores brasileiros.

Nessa década, a aparição de Villa-Lobos no cenário musical mudaria a situação. Villa-Lobos, “de forma bastante particular, deu nova configuração não só às esperanças de futuro da música nacional, mas também, à leitura do que tinha sido seu passado” (GUERIOS, 2003, p. 96).

4. Villa-Lobos

Para Mário de Andrade – que estava pessoalmente envolvido no projeto de música nacional desde a década anterior – apenas a fase da música brasileira da qual Villa-Lobos era o expoente máximo, era considerada nacionalista (GUERIOS, 2003, p. 96). Mário de Andrade olhava para o passado buscando reconhecer apenas aquilo que servia a esse projeto. Desse modo, produziu uma leitura teleológica tendenciosa que acabou sendo incorporada pelos historiadores da música erudita brasileira.

Esse olhar acabou tendo duas consequências na forma de relatar o passado da música erudita no Brasil. Primeiro, as produções musicais que não seguiam o projeto de uma música nacional construída a partir de canções folclóricas ou populares foram desconsideradas como obras sem interesse, enquanto as que o tentavam foram julgadas como produção de segunda ordem. Sob tal filtro, a Ópera Nacional significou apenas a produção de obras cujos elementos nacionais eram de caráter extramusical, não tendo qualquer interesse para o estudo da evolução da música nacional, e as poucas produções dignas de menção até a morte de Nepomuceno em 1920 foram as que tentaram tratar temas nacionais, fazendo-os de modo “deficiente”. (GUERIOS, 2003, p. 97)

Dessa forma, Villa-Lobos aparece como “gênio que fez tudo a partir do zero” na história da música brasileira. Todavia, as tentativas de produção de música nacional anteriores a Villa-Lobos abriram [desbravaram] caminho para essa nova estética. Dom José Amat conseguiu espaço e recursos para o projeto da Ópera Nacional do Império quando não havia nenhum. No caso de Nepomuceno e Lévy, ambos visaram escrever música nacional, “sempre lamentando não haver material já coletado e passível de ser universalizado. Ambos viam a música nacional como uma possibilidade futura, não realizável a eles” (GUERIOS, 2003, p. 98). Não se pode dizer que obtiveram resultados medíocres e tampouco que estavam num estágio menos avançado de “consciência nacional”. Pelo contrário, as produções de caráter nacional feitas na época, motivaram constantemente discussões e artigos a respeito do assunto ampliando o projeto de música nacional e o “legitimando como uma substância reveladora da essência de um povo que devia ser descoberta e construída” (GUERIOS, 2003, p. 98).

Financiado pelo governo, Villa-Lobos faz sua primeira viagem para a Europa, em 1923. Lá tem contato com grandes maestros e compositores da época. Em sua segunda ida, em 1927, o maestro e compositor já retorna ao velho continente para então ganhar fama e prestígio internacionais. Além de se relacionar intimamente com grandes nomes da música na época [Magda Tagliaferro, Leopold Stokowski, Maurice Raskin, Edgar Varèse, Florent Schmitt e Arthur Honneger], apresenta suas composições e rege nas principais capitais europeias, causando grande impacto no público e na crítica, por conta de suas “ousadias musicais”. Em 1944 embarca numa turnê pelos Estados Unidos da América, a convite do maestro Leopold Stokowsky, onde rege, grava suas obras e recebe várias homenagens e encomendas de novas obras consolidando assim a sua consagração internacional. (Fonte: Sítio do Museu Villa-Lobos)

Segundo Wisnik (2004, p. 138), “politicamente, Villa-Lobos e Mário de Andrade realizam o horizonte de destino do projeto nacionalista: pedagogia coral emanada do artista a serviço do Estado-Nação”.

O poder atribuído à música tem seu eixo numa ambivalência consistente na concepção de que ela pode carrear as forças sociais para o centro político, conferindo ao Estado, através de suas celebrações, um efeito de imantação sobre o corpo social, ou então ao contrário, pode expelir essas forças para fora do controle do Estado, para um regime de centrifugação onde elas se afirmam pela “expatriação radical, longe da vida cotidiana, das ocupações comuns, das servidões impostas.” Introduzindo “no mais íntimo da alma” o próprio da questão política [...] a música aparece como o elemento agregador/desagregador por excelência, podendo promover o enlace da totalidade social [...] ou preparando a sua dissolvência. (WISNIK, 2004, p. 139)

Este poder nos leva a compreender perfeitamente a grande associação feita por Getúlio Vargas com a figura de Villa-Lobos como “propaganda nacionalista”. “O Brasil precisa de educação, de uma educação que não seja de pássaros empalhados em museus, mas de voos amplos no céu da arte”, comenta o compositor (apud WISNIK, 2004, p. 151).

Questionado sobre a maneira de fazer com o que o povo no Brasil tivesse uma opinião definida dos vários gêneros de música e capacidade de seleção, Villa-Lobos responde:

A um país novo, como o Brasil, cheio de INICIATIVAS E CAVAÇÕES, não sobra tempo para cuidar da formação de elementos capazes de, com abnegação e patriotismo, concorrerem para DOMAR O FEROZ INSTINTO, sob o ponto de vista musical, DE UMA RAÇA EM PLENO DESENVOLVIMENTO.

Creio, porém, haver um meio de fazer nosso povo ter uma opinião própria (falo sempre sob o ponto de vista musical). É o da PATRONAGEM ABSOLUTA DO GOVERNO NO SENTIDO DE UMA EDUCAÇÃO POPULAR. (apud WISNIK, 2004, p. 150-151)

O Estado autoritário, nesse contexto explicitado pelo compositor, tornava-se uma espécie de “socorro para o músico erudito perdido em meio ao campo da Arte inteiramente revirado pela nova economia política da cultura capitalista, marcada pelo mercado dos objetos em série” (WISNIK, 2004, p. 152). Percebemos assim como o governo sabia que tinha nas mãos uma poderosa ferramenta publicitária política.

Respaldada por Getúlio Vargas, a contraofensiva orfeônica de Villa-Lobos (ligada a uma antiga tradição tendente a fazer da música o elemento de unificação e de imantação da sociedade em torno do Estado, como se vê desde A República de Platão) busca reconquistar ativamente para a “grande Arte” o seu prestigioso papel de portadora do sentido da totalidade, perdido no vórtice galopante da “crise” moderna. (WISNIK, 2004, p. 152)

Na busca de uma arte de identidade assumidamente nacional, uma das obras mais significativas de Villa-Lobos foi a série Choros citada supra. Após pesquisa preliminar, o material musical desdobrava-se e se multiplicava “num jorro de acontecimentos musicais sempre novos”, comenta Sérgio Mendes (apud WISNIK, 2004, p. 165). Contrapondo ao rigor da música Europeia o seu informalismo caótico, jovem e cheio de vida, num vale-tudo experimental antropofágico, Villa-Lobos usa de técnicas identificadas no impressionismo francês, blocos sonoros polirrítmicos e politonais, identificados na música de Stravinsky, temas de música indígena, os cantos sertanejos, a música dos coretos de banda, a valsa suburbana, a bateria de escola de samba e daí por diante (WISNIK, 2004, p. 165-6).

Há ainda uma intenção notória de captar “o prisma da psiquê musical brasileira” nas “ambientações orquestrais ecológicas (florestais, sertanejas), pela pontuação de cantos de pássaros” notada também em outras obras, “pela citação e desdobramento de cantos rituais indígenas, pela alusão a batucadas, ranchos, valsinhas, cantigas de roda, dobrados”, tudo visto pela ótica das serestas e dos choros. (WISNIK, 2004, p. 166-7)

Considerações finais

Tendo em vista obras como as já citadas Uirapuru, a própria série Choros e a Floresta Amazônica, podemos notar que Villa-Lobos utilizou fortemente do argumento “antropofágico” amplamente difundido na época por Mário e Oswald de Andrade. As apropriações da cultura indígena, dos estilos populares, das valsinhas, cantigas de roda, e de todas essas manifestações culturais do “povo brasileiro” dão à obra de Villa-Lobos um caráter unificador de seus ouvintes que podem se identificar com a música que estão ouvindo, como comenta Guerios (2004). Esta medida estética foi – apesar do grande marco que se tornou – uma iniciativa de desfecho de um processo iniciado alguns anos antes na obra de Carlos Gomes e de seus contemporâneos e que iniciaria toda uma escola de composição subsequente que iria contrastar com o movimento “Música Viva” no Brasil (KATER, 2001). Além disso, Villa-Lobos foi pesquisador de cantos indígenas e folclóricos em viagens pelo Brasil, colaborando com a lacuna nos registros culturais brasileiros, observada por Nepomuceno [citado supra]. O uso e difusão dessa música nacionalista, aglutinadora e afirmativa por Getúlio Vargas em seu governo, mostra-nos ainda como Villa-Lobos avança para se tornar “ícone” da cultura brasileira, além da exposição e divulgação da cultura nacional em suas viagens à Europa e aos Estados Unidos da América. Apesar do fato de o compositor ter sido utilizado como instrumento de propaganda política nacionalista, sua contribuição na divulgação e construção da cultura do país é inegavelmente importante.

Por sua tremenda relevância na história da música brasileira; na educação musical no Brasil; na expressão de uma arte genuinamente e comprometidamente nacional e ainda, na divulgação da cultura brasileira no exterior – dando grande visibilidade cultural ao Brasil na época – podemos considerar Villa-Lobos uma grande manifestação cultural brasileira.

Notas

1 Com a expressão “música genuinamente brasileira”, caracterizo a música que declaradamente visa agregar, ressaltar e afirmar a cultura e a identidade nacionais conforme definições de ANDRADE (1972), ELIAS (1995) e GUERIOS (2003).

2 “Mas no caso de Vila-Lobos (sic) por exemplo é fácil enxergar o coeficiente guassú com o que o exotismo concorreu pro (sic) sucesso atual do artista. [...] Ninguém não imagine que estou diminuindo o valor de Vila-Lobos não. Pelo contrário: quero aumenta-lo. Mesmo antes da pseudo-música indígena de agora Vila-Lobos era um grande compositor. A grandeza dele, a não ser pra uns poucos sobretudo Artur Rubinstein e Vera Janacopulos, passava desapercebida. Mas bastou que fizesse uma obra extravagando bem do continuado pra (sic) conseguir o aplauso. Ora por causa do sucesso dos Oito Batutas ou do chôro de Romeu Silva, por causa do sucesso artístico mais individual que nacional de Vila-Lobos, só é brasileira a obra que seguir o passo deles?” (ANDRADE, Ensaio sobre a música brasileira. 1972).

3 Fonte: <http://www.museuvillalobos.org.br/villalob/biografi/semanart/foto_01.htm>. Acesso em: 20/03/2012.

4 Fonte: <http://www.museuvillalobos.org.br/villalob/cronolog/1931_40/foto_06.htm>. Acesso em: 20/03/2012.

5 Com a expressão “identidade nacional”, GUIBERNAU (1997) caracteriza o conjunto de símbolos, crenças e estilos de vida identificáveis entre os integrantes de uma nação e que suscita o sentimento de pertencer a uma comunidade.

Referências bibliográficas

ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 3. ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1972.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro; Jorge Zahar. 1995

GUERIOS, Paulo Renato. Heitor Villa-Lobos: o caminha sinuoso da predestinação. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

GUIBERNAU, Montserrat. Nacionalismo: o estado nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

KATER, Carlos. Música Viva e H. J. Koellreutter: movimentos em direção à modernidade. São Paulo: Musa Editora: Atravez, 2001.

WISNIK, José Miguel. Getúlio da Paixão Cearense. In SQUEFF, Enio; WISNIK, José Miguel. O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira. 2 reimpr. da 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.

Sítio do Museu Villa-Lobos. Disponível em: <http://www.museuvillalobos.org.br/>. Acesso em: 20/03/2012.

Neylson J. B. F. Crepalde - É graduado em Regência pela UFMG (2010). Especializando em Gestão Cultural pelo Centro Universitário UNA (Belo Horizonte, MG). Apresentou-se como maestro convidado com a Orquestra Sinfônica de MG em 2010 na série Concertos no Parque. Apresentou-se no concerto de encerramento do I Laboratório de Regência da Orquestra Filarmônica de MG em 2009. Atualmente é professor substituto da Escola de Música da UFMG na área de Regência.

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 273p., n.1, 2012