FERRAZ, S. Litania (2011), Para Quarteto de Cordas (à Memória de J. A. Almeida Prado): gênese composicional e poética.
Revista Música Hodie, Goiânia, V.12 - n.1, 2012, p. 216-231.
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Outras Palavras
Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 273p., n.1, 2012
Litania (2011), para Quarteto de Cordas (à Memória de J. A. Almeida Prado): gênese composicional e poética
Silvio Ferraz (Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP)
sferraz@pq.cnpq.br
Resumo: Este artigo apresenta a poética e o processo composicional de Litania para quarteto de cordas. A obra foi escrita para a tourné brasileira do Arditti String Quartet em 2011 e foi composta em homenagem ao compositor José Antonio de Almeida Prado. No artigo a composição de Litania é apresentada seguindo os passos de deriva de uma linha e cruzamento de linhas, tendo como fundamentação poética a noção de ritornelo desenvolvida por Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mil Platôs. O que procuro mostrar é o quanto tal noção permite um trabalho composicional que não esteja baseado no paradigma clássico em que se dava privilégio à homogeneidade do material, antecedência da forma, e escuta linear derivativa. O artigo apresenta assim o plano de composição de Litania como demonstração das potencialidades que a compreensão do universo intensivo de escuta permite à composição musical para além da noção de coerência formal. Por se tratar de uma exposição na forma de relato da gênese composicional e da poética desta obra, o artigo está disposto em pequenos aforismas que ora se concatenam diretamente, ora apenas se contrapõem livremente.
Palavras-chave: Composição; Litania; Quarteto de cordas; Arditti; Ritornelo; Deleuze.
Litania (2011), for String Quartet (In Memoriam J. A. Almeida Prado): compositional genesis and poetics
Abstract: This paper presents the compositional process and poetic principles implied in my composition Litania, for String Quartet. This was written in homage to the Brazilian composer José Antonio de Almeida Prado, to the Brazilian “tourné” of The Arditti String Quartet in 2011. The compositional process involved in Litania is presented as following steps of a line astray, line crossings, under the main notion of “refrain” as proposed by Gilles Deleuze and Félix Guattari. Based on this philosophical notion I tried to demonstrate how it is possible a compositional process far from a classical paradigm, which emphasize notions as material homogeneity, formal antecedence, and linear and derivative listening. This article presents the compositional plane of Litania as a demonstration of a potential frame to a compositional way without having the formal coherence as a main guide. The aphorismatic paper structure follows the compositional process, genesis and poetics. Those aphorisms are both directly and non-directly related, sometimes in a free counterpoint.
Keywords: Composition; Litania; String quartet; Arditti; Refrain; Deleuze.
1. Linha e deriva
Imaginemos uma linha. Uma linha em seu sentido abstrato, mas com todas suas ressonâncias sonoras, visuais, táteis, espaciais. Algo que vai de um ponto a outro ou que passa por diversos pontos (estes também abstratos).1
Imaginemos que esta linha quando prolongada possa encontrar-se com outras linhas e que tal encontro possa ser da ordem de um contraponto ou de um cruzamento.
O ponto de encontro entre as linhas inaugura sempre um corte ou transição. Este ponto é a porção instantânea que sempre realça um ou outro aspecto das linhas que nele se cruzam.
No ponto de cruzamento, uma linha pode ao cruzar-se com outra, seguir na direção em que vinha ou mudar de direção.
Uma linha passa sempre por três espaços: o caos, a terra e o cosmo (Cf. DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 416-423). O caos, onde nenhuma forma ganha permanência; a terra, lugar de aparente permanência; o cosmo, prolongamento do caos transitório ou “viagem no interior do transitório”.
O que quero dizer com “viagem no interior do transitório”? Talvez declarar que existe uma permanência tão pequena, mas que chama para si a fabulação de uma terra firme e permanente.
Uma linha pode encontrar-se com outra linha e com isto dar nascimento a um nó. Mas ela pode também dobrar-se sobre si mesma e também dar nascimento aos nós. Os nós são os pontos de cruzamento. Eles indicam o lugar de quebra a partir do qual não se sabe se a porção de linha que segue será aquela mesma (anterior aos nós); se a fusão de duas ou mais linhas cruzadas ou, se uma nova linha. Ou seja, continuar com a primeira linha ou viver dois desvios: a nova linha ou a fusão de linhas. Neste ponto de dúvida que dá nascimento à nova porção de linha, podemos dizer que nele há um novo espaço e que seus primeiros momentos são transitórios, e que, embebido no transitório, pede-se uma nova terra, uma nova permanência, um novo hábito, tal qual aquele estável que vinha sendo definido pela primeira porção de linha.
O nó é um ponto de dúvida, pois imerso no nó, não se sabe se o encontro foi entre duas ou entre mais de duas linhas, ou se não foi apenas a própria linha que se embaraçou.
Ampliando um pouco esta imagem da linha, olhando a linha bem de perto, pode-se bem imaginar que a linha é como uma linha têxtil. É feita de fiapos e se compõem por tramas – um feixe de fiapos.
Uma música pode ser pensada como um feixe de fiapos. Por ela passam diversos materiais, vindos de tradições distintas e que até poderiam ser julgadas incompatíveis. Mas no tecer do feixe nada é incompatível. Pode-se imaginar o fiapo de lã entretecendo-se com um fiapo de sujeira, de pó, de pelo de gato, de bagaço de planta; o mesmo com uma música. Uma melodia por se entretecer com um fiapo de cor.
Esta imagem de diversidade que um feixe de fiapos permite pode ser pensada a propósito do material de uma composição. Uma linha, linha melódica, pode ser montada com material intervalar, harmônico, tímbrico, o mais diverso, não necessariamente constante, nem interligado por derivações ou recorrências. A imagem de um feixe de fiapos permite vislumbrar momentos em que um material ganha consistência, mesmo sendo excessivamente diversificado e composto de fragmentos que, entremeados, não atingem nenhuma homogeneidade, ou que, mantendo-se heterogêneo, não estabelecem um padrão. É o lugar em que nenhuma forma se estabelece ou se afirma. Algo próximo ao caos, mas que mesmo assim apresenta uma consistência; suas partes estão reunidas não pelo que tem em comum, mas pela força do próprio emaranhado daquilo que tem de dispar.
Mas não existe apenas o caos como exemplo. Se o caos pode ser visto como um lugar de transiência, de não permanência, contrapõe-se a ele a Terra firme: o lugar em que padrões se estabelecem, em que nasce um código que se reitera e que, neste movimento, seja ele regular ou irregular, se faz presente e ganha permanência enquanto padrão.
Por fim, à Terra contrapõe-se o Cosmo: aquele lugar em que os fios de nossa trama seguem padrões, mas também, no fato que tais padrões ganham autonomia, destacam-se da trama principal e se põem a chamar a atenção para si, tamanho o contraste que geram. Põem toda a trama em risco, distinguem-se de outros componentes e estabelecem logo um campo heterogêneo que abre espaço para novas conexões.
A aceleração da alternância de padrão pode facilmente levar ao caos. A imagem da linha traz toda uma gama de modalidades: ela pode ser constante, não constante (regular ou irregular); pode ser sem nenhuma permanência, ora quebradiça ora densa; trazer nódulos rugosos longitudinais, dada a heterogeneidade de algum material, ou, simplesmente, tornar-se mais densa por conta de um material mais denso ainda.
A linha ainda pode se curvar sobre ela mesma e criar nós, pode também cruzar-se com outras linhas ou compor uma linha mais densa, um novo feixe constante, ou simplesmente atropelar-se em um nódulo complexo de linhas.
2. Forma do tempo: Ritornelo
É importante dizer que todo este percurso realizado da linha aos pontos e aos planos, do caos à terra e ao cosmo, segue três aspectos que fui buscar na filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Eles decorrem diretamente do conceito de ritornelo desenvolvido em Mil Platôs, mais precisamente no “Platô 11, 1837 – acerca do ritornelo”. Partindo deste termo emprestado da música, o ritornelo, o platô 11 é aquele no qual Deleuze e Guattari mais dedicam ao estudo da música, referência a qual está no próprio título: “1837”: ano em que nascem seis das principais obras de Schumann, dentre elas as Cenas Infantis (DECARSIN, 2011, p. 1) e que facilmente nos rementem à ideia do ritornelo musical.
O que Deleuze e Guattari denominam por ritornelo? O ritornelo envolve sem dúvida a noção de reiteração, porém, a proposta deles vai além da denominação direta da terminologia musical. Em Mil Platôs Deleuze e Guattari desdobram esta simples reiteração em três aspectos, que retomam um pouco o que o próprio Deleuze já havia proposto nas três sínteses do tempo em seu Diferença e Repetição, de 1968. Resumindo o que propõe Deleuze temos: (1) a síntese do habito/ ética; (2) a síntese da memória (estética/nomeação); (3) a autonomização de componentes (poiesis/salto). Em suma, cada síntese trata de uma forma do tempo: (1) tempo circular, a reiteração; (2) a inscrição na memória e o tempo direcionado, mas reversível, a espiral; (3) o tempo retirado dos eixos, irreversível, a linha reta (DELEUZE, 1968, p. 108-seq). O ritornelo segue esta mesma lógica e descreve: (1) a busca de um eixo, o momento direcional; (2) a fundamentação do eixo na criação da noção de dimensões de um território; (3) o afundamento do eixo, a autonomização das peças e as conexões com outros territórios ou peças soltas – a sua desterritorialização (DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 382-384).
Proponho aqui uma leitura gráfica representando simbolicamente os três aspectos do ritornelo descritos acima por α, β, γ. Cada pequena sequência α β γ delimita um percurso entre encontrar um eixo (a), fazer deste eixo seu território (b) e cair em instabilidade ou poiesis (c).
Podemos encadear os três aspectos do ritornelo como sucessão de estados. Mas ao se imaginar o ritornelo, deve-se ter em conta que ele nunca se dá sozinho, ele sempre segue, insere-se ou se contrapõe a outros ritornelos. Nesta sucessão e contraponto – o passo a passo de um jogo de territorialização –, manifestam-se três entroncamentos possíveis de ritornelos:
γ α: quando da poiesis2 nasce um novo momento de fundação de eixos; desterritorialização absoluta.
γ β: quando a poiesis é imediatamente capturada por um outro território já constituído; captura ou reterritorialização?
γ γ: quando da poiesis desemboca-se em outra poiesis infinitamente sem que se crie um novo chão; buraco negro.3
O passo seguinte é buscar uma representação simples destes pontos de entroncamento, tendo, como horizontal, o eixo extensivo do tempo.
Nesta representação topográfica da sequência de estados não há apenas a linha horizontal.4 O prolongamento extensivo da sequência horizontal bifurca-se intensivamente em cada entroncamento: nódulos com densidades e velocidades distintas. Os nódulos implicam uma densidade ou velocidade e estas não são mais da ordem do extensivo, são da ordem do intensivo (notável, mas não mensurável). Tudo o que na topografia acima está desenhado na linha pela horizontal é mensurável; são momentos com seus materiais, suas densidades, texturas, porém o que se dá na vertical é não mensurável; são os pontos de entroncamento entre linhas horizontais extensivas, pontos visualizáveis, sensíveis, mas não mensuráveis.5
Os entroncamentos entre linhas tem dimensões distintas, sendo de fato a manifestação da atualização de conexões virtuais. Considerando-se que são diversas as camadas de território e que estes andam em paralelo, de que estamos sempre imersos em uma heterogenia de camadas, cada uma com suas linhas horizontais e nódulos densos, e, que tais linhas se cruzam assim como os nódulos podem se sobrepor, chegamos à imagem do rizoma e seus nódulos, distinguindo os simples contrapontos territoriais, as modulações entre territórios, e os jogos entre território e poiesis, território e habito, hábitos e hábitos, hábitos e poiesis, poiesis e poiesis. As desterritorializações, as territorializações e as interrupções em buracos negros.
O aforisma 23 expande aquele primeiro quadro simples. Ou seja, de finito e de pequenas linhas de territorialização e desterritorialização, obtém-se a combinatória imensa do que Deleuze e Guattari chamam de contrapontos territoriais. Estes contrapontos, que não são meras reuniões, mas modulações entre imagens distintas, aumentam a potência deste mapa, de modo que os pontos de origem perdem sua pertinência em meio à trama heterogênea que geram. Chegamos assim a uma nova imagem da sequência, na qual cada entroncamento é um ponto de origem. Não estamos mais a falar da imagem clássica do encadeamento de ideias por desdobramento (derivação, interpolação ou reiteração simples), mas da constituição lenta de uma nuvem com nódulos irregulares, com mudanças de velocidades e densidades - velocidades e densidades intensivas. Trata-se da deriva, espaço em que a forma nasce junto com os entroncamentos e objetos que a constituem.6
É esta nuvem do contraponto territorial que Deleuze e Guattari chamam de espaço liso, na esteira da proposição de Pierre Boulez em Musica hoje (DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 596-597; BOULEZ, 1963, p. 110 seq). O espaço liso é aquele em que as ranhuras, as estrias, até podem demarcar um arcabouço, mas são embaçadas pelo espaço não mensurável dos entroncamentos de território – o que chamarei aqui de espessuras de tempo (TARKOVSKI, 1998, p. 139).
Mais do que uma marca temporal, do que um dado cronológico de memória e localização, o corte do espaço liso desenha nós: ponto de mudança de natureza. Ou seja, a questão toda do tempo não está apenas na linha do tempo enquanto antes e depois, enquanto mais rápido ou mais lento, com ou sem estrias, com ou sem medida. Não se deve confundir esta noção de um tempo extensivo com aquela de um tempo intensivo, tal qual propõem Deleuze e Guattari. Estriado não quer dizer apenas pulsado ou ritmado, nem liso diz respeito a som contínuo ou ao grande pedal. As dobras do tempo intensivo não se dão mais na extensão do tempo enquanto linha, mas nos nódulos que embaralham uma, duas ou mais linhas.
Talvez valha retomar que o extensivo é todo aquele quadro de conhecimentos mensuráveis: um objeto ou a percepção deste objeto. Enquanto o espaço, tempo ou sensação intensivos diz respeito ao não mensurável da experiência do objeto atual da percepção. No intensivo estão os desdobramentos de conexões que uma percepção dispara na forma de sensação. Não é da ordem do mensurável, seus desdobramentos de conexões são móveis e não tem a necessária permanência que permita ser medido. Talvez aí more o desafio do estudo da arte, “como estudar o transiente em constante movimento, como estudar o intensivo?” (RAHN, 2004).
O tempo intensivo nasce do tempo extensivo. É no tempo extensivo que surgem os nódulos que desenham escapadas, cortes, dobras; que abrem o território para o seu fora. Cada pequeno ponto é a porta para uma duração sem medida, a possibilidade de mudança de direção de um vetor. Interessante retomar aqui o modo como Zourabichvili, filósofo e especialista na obra de Deleuze, refere-se ao tempo em Deleuze ao dizer: “O tempo [para Deleuze] é relação entre dimensões heterogêneas (ZOURABICHVILI, 1994, p. 78), ou ainda: “O tempo, pura mudança, é a passagem de uma dimensão a outra (devir)” (p. 77). Esta é a concepção do tempo em Deleuze, um tempo pluridimensional, intensivo (p. 77).
A ideia então é a de tomar esta fórmula do ritornelo como proposta de pensamento composicional: estamos diante de um plano de composição orientado por um vetor de deriva, e não mais de derivação, direcionamento ou interpolação. O compositor conhece o ponto em que ele está, relaciona-se, no máximo, com forças centrípetas ou centrífugas locais, mas não conhece o ponto em que vai chegar. A composição neste caso não é da ordem nem da derivação lógica, nem da repetição pura e simples, nem da delimitação de um ponto de chegada. Trata-se de um processo em que as conexões imediatas foram mais pertinentes do que aquelas que envolvem a ideia de uma memória longa; de um espaço estriado com marcas e referências formais que caracterizam a reexposição ou a variação. Não se privilegia assim uma forma a priori, pois a forma passa a ser pensada como contemporânea ao material e como entroncamentos que se determinam no próprio percurso em deriva.
Cada ponto, nódulo, é o lugar de atualização de conexões virtuais que se escondem no tempo extensivo de existência do objeto musical, sonoro ou, simplesmente, da ideia de escuta. Escutar é justamente realizar saltos do campo extensivo para o intensivo, do liso e estriado extensivo ao liso e estriado intensivo. Pode-se ainda dizer que tais mudanças de natureza correspondem às mudanças no campo háptico da percepção; a escuta como um mapa de saltos entre as dimensões visuais, táteis, sonoras, proprioceptivas envolvidas na percepção.
Na não linearidade da escuta, um fragmento inexpressivo de objeto pode tornar-se mais pregnante do que um elemento formado: um simples ataque diferenciado de um timbre pode chamar mais a atenção do que todo um tema elaborado. Não se trata de superar estas variáveis livres que atravessam uma obra; mas de encontrar neste fato, um mecanismo composicional que valha e crie a tensão necessária para que nasça o movimento dentro da forma e para que a própria forma se faça e se desfaça neste movimento.
3. Composição por cruzamento de linhas e deriva em Litania
Litania, minha recente peça para quarteto de cordas, foi escrita como sendo uma linha, ou um feixe que compõe uma linha densa, e tal qual uma linha ou feixe, possui seus nódulos.7
Como um feixe, a peça começa composta por uma respiração de ataques (pequenos nós de energia) que ressoam sobre frequências que pertencem ao universo da música tonal (Bach. “erbarme dich mein Gott“, Paixão Segundo São Matheus), mas está escrita com recursos de uma música não tonal.
A música pode bem ser pensada como feixes de energia – uns longos outros curtos, que ganham ressonância em espaços harmônicos.
Por vezes estes feixes podem curvar-se sobre si mesmos, ou encontrar outros feixes. Os nódulos, cruzamento entre feixes, podem dar nascimento a outro feixe ou a um feixe de fiapos. A sequência de nódulos, por sua vez, também desenha uma linha, a linha rítmica do intervalo entre nódulos. A linha então não é apenas a expressão do material ou da trama de material, mas, também, a portadora de um ritmo: o ritmo do encontro entre linhas ou fragmentos de linhas, o ritmo dos nódulos.
É da deriva da linha solta que nascerá a forma da peça. Nesta deriva, uma referência musical, tal qual a reescrita de um fragmento harmônico proveniente de J. S. Bach (material de impulsos lentos empregado logo no início da composição, na forma de respirações), pode se cruzar com um canto de pássaro ou ainda com o som rangido e lento da roda de um carro de bois.
Assim, a ideia de deriva permite cruzamentos inusitados, fora das restrições de um sistema e mesmo dentro de um sistema, também permitem cruzamento de situações que estejam fora de seu quadro de previsões. É dessa maneira que a harmonia em Litania é pensada como se fosse uma caixa de ressonância. Um campo harmônico, um encadeamento de acordes, é pensado como sendo um espaço de ressonância moldável, no qual ressoa uma corda: uso simples do modelo de ressonância de um envelope dinâmico sobre um envelope espectral (o encadeamento de acordes). Foi assim que me vali da sequência harmônica do “Erbarme dich mein Gott” (da Paixão Segundo São Mateus, de Bach), lentamente metamorfoseada pela primeira sequência de acordes coral da Paixão, pela harmonia contrastante do início dos arpejos da Ciaccone, da Partita BWV 2004 e pelas séries deduzidas de análise espectral das fundamentais dos campos harmônicos das três composições de Bach utilizadas como palimpsesto ao longo da peça. Este quadro de alturas ordenadas constituí o ambiente de ressonância para figuras rítmicas provenientes de um universo composicional bastante distante daquele da música de Bach: a sobreposição de quatro séries de durações desenhadas como uma polifonia de respirações lentas.
Primeiros compassos de Litania, séries rítmicas que ressoam sobre acorde velado de Si menor.
A linha, que também pode ser vista como um feixe de linhas, cruza-se com outras linhas, é deformada e dá nascimento a outras linhas. As respirações do início com impulsos lentos, facilmente se transformam no ruído distante de balanços em um parque, por exemplo, ou na pontuação rítmica de um sino ou tambor perdido.
Se nestes balanços (vai e vem) temos um pouco de terra, a todo instante advém momentos de Caos: deles podem nascer talvez os pontos mais fortes, os cortes mais abruptos, aqueles que apontam para um caminho ainda desconhecido pelo compositor, ao escrever a peça.
As Partitas e Sonatas para violino solo de Bach; as suas Suites para violoncelo solo; a música de rabeca do sertão brasileiro; o som rangido das rabecas. os tocadores de rabeca e seus modos de arcada (uma arcada a cada nota); os sons rangidos de carros de boi, Rangido e chorado, são algumas das linhas que se cruzam com muita facilidade, tendo em vista a ressonância simples entre instrumentos de cordas e sonoridades contínuas com variação de espectro, como nas articulações de arco que vão do tasto ao ponticello e a sua repercussão em uma caixa de ressonância harmônica de maior permanência.
Na relação entre as linhas, cabe pensar, não na proporção, mas nas porções de tempo vividas de um feixe continuo face ao tempo vivido de outro feixe. Este tempo vivido não depende apenas da duração, da “longueur“ de cada feixe, mas da distância que se estabelece entre uma porção e outra e o quanto esta diferença, não mensurável, permite durar um novo feixe. Existe um cálculo incalculável que diz o quanto uma porção de continuo, cortada, pede para que outra se estabeleça, ou o quanto uma porção de contínuo pede para si mesma.
O compositor é o primeiro ouvinte, ele ouve suas sequências em uma escala móvel que só ele conhece. É com esta escala móvel que mede o comprimento de cada porção de feixe: os momentos mais lisos; os mais constantes e ondulados; os mais turbulentos; os mais pontuados (podendo também, ser constantes e calmos). É assim que ele mede o momento em que um feixe pode ser filtrado, deixando passar apenas um de seus fiapos. Em Litania esta estratégia aparece, por exemplo, ao filtrar o tutti caótico para deixar transparecer um pequeno solo de violino refazendo deformada uma quase amostra da Ciaccone do BWV 2004.
Por mais que se pense e que se tente falar sobre a composição, sobre o tempo na música, sobre o controle deste tempo, a última ação é sempre um tanto quanto intuitiva – resultado empírico ou calculado, mas intuitivo.
Nem sempre as pequenas linhas e fiapos que compõem a linha nascem de um som ou da imagem de um som. Uma linha sonora cruza coisas diversas e por vezes, visuais ou táteis. Estes fiapos não audíveis permitem todo um diferente jogo de proporções (proporções espaciais e não mais temporais). Nestes fiapos, sejam visuais, táteis ou sonoros, outros fiapos surgem como fiapos de memória. Ou seja, uma música não se compõe apenas daquilo que é dado de antemão como musical ou sonoro. Participa da música uma grande porção de memória visual e tátil, além da sonora. Na composição de Litania sobrevieram alguns destes fiapos visuais, como a falsa simetria entalhada no altar da igreja Nossa Senhora do Rosário de Tiradentes, Minas Gerais.
Anotação em canto de página dos rascunhos de Litania: Projeção da falsa simetria do entalhe do altar da Igreja Nossa Senhora do Rosário de Tiradentes, em uma grade de quatro linhas, como base para determinação de estrutura rítmica entre os instrumentos do quarteto de cordas.
As simetrias visuais podem facilmente resultar em projeções de simetrias temporais, sobretudo rítmicas e podem nascer de uma projeção dada empiricamente pelo olho, ou de uma projeção numérica. Entretanto, o ritmo audível que resulta desta projeção pode não corresponder à simetria notável ao olhar. Cabe ao compositor acreditar que algo subsiste deste cruzamento e trabalhar para que transpareça no resultado audível, o efeito do que era da ordem do visual. “Tornar sonoras as forças não sonoras”, como lembra diversas vezes Gilles Deleuze, ao falar de música.
Anotação em canto de página dos rascunhos de Litania: Sobreposição de duas sequências de entradas de instrumentos, seguindo numerações permutadas, quase regulares, e aplicação de objetos (pequenos gestos) musicais.
Sempre é importante lembrar que a simetria visual tem de ser transformada para que se torne simetria para os ouvidos. Em Litania, os pequenos jogos de falsa simetria visual foram transpostos, de modo a constituir resultantes de um algoritmo simples em que cada camada de ataque segue uma série provisória de durações, com reiterações quase que constantes de um ataque (cada ataque podendo inclusive ser escrito com modos de jogo distintos: um pizzicato, uma nota longa, uma sequência de sons em jété etc.). Este ritmo também se cruza com uma linha ou farpa de noite, pequenos ruídos reiterados em um pulso quase constante. No intuito de fazer ouvir a assimetria tais operações são locais e de curta duração.
Anotação em canto de página dos rascunhos de Litania: “Noite/final”. Sequência de durações (ataques) de ordenação numérica quase regular, transcrita na forma de sons noturnos (cricrilos)
Quanto a qualquer simetria, vale aqui uma escolha - a escolha pelo princípio de economia. Neste sentido, observo apenas três variáveis relativas à construção de tais simetrias de durações: simetrias por reiterações regulares, por reiterações irregulares/permutações (estático) e por variações progressivas (direcionais crescentes ou decrescentes). Não fui além daquilo que Messiaen observa quanto ao Sacre de Stravinsky, nada mais do que um personagem crescente, um decrescente e um personagem testemunho. Acrescentei apenas um personagem irregular, mas este também é proveniente de Messiaen ao empregar suas interversions (permutações) na composição da “Épode II” de Chronochromie.
As sequências nascidas destas simetrias podem ser por sua vez, sobrepostas, justapostas ou intercaladas. Nada além destas três possibilidades. É no limite destas possibilidades que temos as relações entre camadas do tipo regular, irregular, ou direcional. Nas justaposições são três as variáveis: justaposições por corte, por transição gradual (direcional), ou com entrelaçamentos de porções regulares ou irregulares.
Em Litania estas simetrias e os jogos de justaposição, sobreposição e entrelaçamento valem tanto para a composição de pequenas estruturas, como para a composição geral que encadeia tais estruturas em blocos. Distingo assim, os blocos de espaço-tempo, os blocos de andamentos, e os blocos de textura. São quatro os blocos de andamento: lento, agitado, móvel, estático. No ponto de encontro entre cada um desses momentos algo acontece: porções de linha ou trama. É o ponto de corte, ponto em que de uma situação estável, já de hábito criado, nasce a instabilidade do novo lugar, da nova porção.
Olhando o plano geral da partitura posso dizer que a peça é construída como uma sequência de blocos alternados seguindo um tanto a tradição barroca de lento-rápido. Blocos que não se relacionam por derivação, como observei ao falar da forma do tempo (o ritornelo), mas que, ao se encadearem, desenham um ritmo geral. É este ritmo geral que toma o lugar de condução da escuta da peça por meio de suas proporções e jogos de contração e expansão.
Contribui para este jogo de blocos, a duração de cada bloco, as alternâncias e entrelaçamentos de blocos e mesmo a sobreposição de blocos, para o desenho rítmico geral da peça. Contribui para este ritmo, a irregularidade ou regularidade nas durações dos blocos, bem como a função de cada bloco, um face ao outro, ora estabelecendo cortes e abrindo para novas paisagens sonoras, ora com um corte brusco e transiente. Este seria o caso da primeira irrupção em agitato e do corte dado pelo preciso final.
Trecho entre os c. 4-6 de Litania. O habito calmo, quase notturno, é cortado abruptamente pelo violino e pelo violoncelo, sem que se estabeleça um novo hábito, um novo terreno.
Situação semelhante à dos c.4-6 ocorre entre o c.13 e os c.15-16, em que o quase corte da frase do 1º violino deixa marcas na continuidade do hábito, ou textura, anterior, com os sffz realizados pela viola, 2º violino e, posteriormente, adotados pelo 1º violino e violoncelo.
Trecho final de Litania (c.78-84). Observe-se o preciso ff, c. 80; apenas um compasso realizando um corte, sem, no entanto, estabelecer novo território.
Em Litania, trabalho sempre pela sobreposição de estruturas rítmicas, compondo uma língua rítmica que nasce a cada peça. Uma “língua” que nasce da sobreposição de acentos simples, de cortes, de blocos texturais, de universos harmônicos, de universos de referências etc. Como nos poemas-imagens de Henri Michaux em que a linguagem nasce a cada hábito cíclico; o código que define o poema não é preestabelecido, ele nasce junto com o poema. Não há pressuposição de uma linguagem. Ao ouvinte, ou mesmo ao interprete, cabe viver este nascimento da linguagem, sabendo que não há o que compreender, pois a relação não é mais a de recognição e sim de de cognição: o nascimento de códigos dá-se sempre pela primeira e última vez.
Henri Michaux, duas páginas de seu livro de poemas-ideogramas Par des traits (1994) e página de uma das aulas de Paul Klee reunidas e reproduzidas em La Pensée Créatrice: “Ponto de partida: executar ritmos acústicos batendo o tempo com intensidade variável. Da figuração quantitativa sem acento tônico à figuração qualitativa com acentuação.” (KLEE. 1977, p. 267)
O plano de composição de Litania é tecido por 11 texturas, sendo algumas transientes e outras estáveis, algumas compostas por heterofonia (como nas complexas estruturas rítmicas das polifonias dos Pigmeus da África Central); outras, por sobreposição e relação do tipo figura fundo (polifonia de elementos heterogêneos) e, ainda, aquelas caracterizadas por grandes prolongamentos (pedais contínuos; “carros de boi”).
Um plano geral de texturas de Litania, indicando tais texturas de 1 a 11 e o número de compassos de permanência de cada uma, evidencia aquelas de maior permanência (valores entre 7 e 10), as mais breves (entre 3 e 5) e as transientes. Este índice de frequência de texturas ao longo da peça indica as três texturas de maior presença: T1, T6, T9. As texturas T2 e T11 são aquelas de menor frequência, embora T11 seja da família de T9. Desenha-se assim um ritmo de permanências, transiências, mudanças bruscas, mudanças graduais etc.
Distingo sempre: (1) o ritmo de impulsos primários, impulsos dados por ataques de notas; (2) os impulsos secundários, dados por residuais oriundos do contraponto de camadas de ataques distintos; (3) o ritmo de ciclos texturais, ciclos de colorido harmônico. O residual de todas estas camadas de ritmos corresponderia ao ritmo geral da peça, sendo este o último elemento que entrará em modulação com o ouvinte. Outros ritmos advêm da escuta, afinal o número de variáveis presentes em uma escuta é imenso: momentos de maior ou menor atenção e relações com o ambiente. Mas mesmo diante de tais variáveis a música quando pregnante, quando suficientemente enquadrada em uma moldura de escuta, assume o papel de modulante do corpo, também pulsante do ouvinte.
4. Plano de composição do tempo intensivo (à guisa de conclusão)
Por fim diria que em Litania, assim como em outras peças que tenho escrito, busco pensar o tempo de um modo bastante distinto daquele com que estamos acostumados. Imagino assim: (1) uma abcissa que traçaria simplesmente a numeração de compasso, o tempo extensivo, mensurável; (2) uma ou mais coordenadas com índices de densidade, dinâmica e textura, linhas verticais em que as diferenças não são da ordem numérica mensurável, extensivas, mas intensivas. Estas linhas intensivas dizem aqueles pontos em que se dão as diferenças de natureza: o salto de uma escuta melódica para uma escuta textural, visto ser uma escuta textural de natureza diferente daquela que foca um fluxo de densidades, dinâmicas ou velocidades. Posso assim também dizer se são próximas ou distantes a relação entre uma textura e outra, se uma retoma a outra, se são fortemente contrastantes, se transitam docemente entre si. São diferenças notáveis, mas são diferenças de natureza e não diferenças de grau. Poderia dizer isto para qualquer um dos parâmetros, pois afinal, um corte brusco é diferente de uma passagem gradual, mas não sabemos que diferenças de natureza estas diferenças extensivas disparam. Ou seja, posso dizer e explicar o que se passa no plano extensivo, mas o intensivo é apenas intuído.
Ao considerar na escuta musical os saltos de natureza e não apenas aqueles de grau (mais-menos; maior-menor) entra em questão outra noção de tempo. Não estou mais falando de tempo extensivo, de sucessão, mas de um tempo intensivo, de espessura. Cada modo de corte ou transição dispara uma espessura, texturas distintas também disparam espessuras e o mesmo pode ser dito para qualquer mudança de parâmetro e de domínio de escuta: a escuta do som, as referencialidades do som, a escuta harmônica, melódica; escuta tátil, visual, abstrata, proprioceptiva (escuta do peso, do movimento de um gesto), sendo a escuta musical o cruzamento destes terrenos de naturezas distintas.
A partir da sequência do ritornelo, exposta no aforismo 25, poderia imaginar uma forma simples de representar os dois espaços, o extensivo, mensurável – aquele sobre o qual o compositor se debruça – e o intensivo e não mensurável – aquele que é resultado de uma formulação bem mais complexa e com um número imenso de variáveis, mas que está atrelado ao primeiro e que dele depende, mesmo que ganhando autonomia com o tempo.
Um pouco na esteira dos desenhos de Paul Klee e Henry Michaux, reproduzidos nos aforismos 62 e 63, talvez pudesse ensaiar uma representação desta relação entre os dois planos, o intensivo e o extensivo. Represento do modo o mais simples.
À esquerda da figura acima, dois gráficos espelhados: O espaço-tempo extensivo, atual (o tempo cronológico e as curvas de variação de parâmetros quaisquer) e seu conjunto imagem em que pontos singulares do primeiro gráfico são refletivos no que definimos como espessura intensiva. A espessura intensiva, a espessura de conexões, de desdobramentos, de afetos que uma imagem de percepção pode disparar ou conectar. Mesmo não mensurável, o conjunto espelhado segue passo a passo o conjunto mensurável. Até as dobras e redobras do tempo no espaço-tempo intensivo seguem sua imagem no plano extensivo. Na figura desenhada à direita ensaio um desdobramento mais complexo dos dois domínios. O emprego de tais gráficos é específico em ações locais de composição.
Esta seria então a viagem poética que me propus em Litania, mas que poderia pensar para qualquer música ou obra de arte: lugares em que um espaço extensivo, mensurável, tem sua imagem refletida em um espaço intensivo, desdobrando-se ainda na espessura intensiva que pode nascer do contraponto entre os dois espaços. Viagem em que um espaço de cálculo, aquele em que o compositor trabalha com uma objetividade transitória, converte-se em um amálgama não calculável, mas notável no espaço de escuta.
Ora mais ora menos denso, com mais ou menos pressão temporal, no intensivo, o tempo cronológico está embaçado, sem definição nítida, mas sempre interligado ao espaço-tempo extensivo. É assim que vejo aqui a escolha do compositor; intuitiva, mas sempre interligada a um espaço mensurável. A escuta do ouvinte também opera entre estes dois domínios. Com isto o compositor pode ter em mente que por mais inventiva que seja uma escuta, estará sempre atada a imagem extensiva elaborada em seu plano de composição.
Se podemos falar do espaço e do tempo intensivos no ato de composição, reforço que deles falamos como sendo lugar da intuição. É o domínio das escolhas pessoais, desde a escolha do material até a escolha da ordem de apresentação, dos cortes locais, as escolhais globais etc. Ele é parte do lugar de composição do qual não se pode retirar o espaço e tempo extensivos aos quais o compositor imagina dominar. Enfim, deste plano sem nome sabe-se apenas que ele pode ser pulsante; que este pulso determina regularidades ou irregularidades; que determina um código – como o vimos para o poema visual de Michaux –; que, sendo um código periódico, modula o corpo de ouvintes e intérpretes. Foi com este mínimo de certezas que Litania foi trabalhada de modo a se propor como um conjunto modulante de ciclos, sobrepostos ou justapostos (polifonias, corte e contrastes): sons, referências e estratégias que vão e vem, módulos melódicos, módulos harmônicos, formas de ataque, que por sua simples presença modulam escutas. Nada além disto. O código é apenas a periodicidade descrita pelo vai e vem de espessuras distintas do espaço-tempo intensivo.
Sendo todo código uma função periódica, ou seja, um código é a existência de uma frequência, e retomando a ideia de modulação da qual me vali ao longo deste artigo, qualquer código modula qualquer código; qualquer existência frequencial de pequena permanência modula outra existência igualmente periódica. Pode-se dizer também que uma existência de curta permanência também tem sua força modulante, porém incidindo como uma turbulência. Deste modo há sempre conexão entre dois corpos ou ideias e tal conexão é da ordem da modulação. Da modulação entre duas frequências resultam frequências laterais, ou seja, outros padrões, outros códigos nascem sempre do encontro entre dois corpos. Como qualquer modulação, uma conexão pode ampliar o padrão ondulatório das frequências participantes ou diminuir tais padrões.
Esta noção que busquei na filosofia de Gilles Deleuze e de Gilbert Simondon e que atravessa o conceito de ritornelo e a noção de modulação, tem sua relevância ao permitirse imaginar o campo de composição musical para além dos paradigmas clássicos que privilegiaram as relações do tipo “harmônicas”; relações essas em que as modulações entre códigos sempre tendiam ao reforço de padrões. Existe um corpo, um objeto sonoro ou mesmo um objeto musical, do tipo melodia ou acorde que, no encontro com outro corpo, dispara um estado de modulação. Isto consiste em dizer que qualquer elemento justaposto ou sobreposto a outro provoca um estado de modulação, uma conexão e que tais conexões podem ter maior ou menor duração, também reforçando ou diminuindo a força de um ou outro padrão. Sob tal imagem é dado à estratégia de justaposição ou sobreposição ligar elementos com tanta consistência, quanto uma prática clássica do tipo desenvolvimento ou derivação. Tal paradigma de pensamento composicional abre ao compositor um vasto campo de modulações distintas, as quais ele pode colocar em equilíbrio ou desequilíbrio, ponderando-as na construção da reunião modulante de códigos que compõe sua música e compondo com isto sua resultante rítmica.
Notas
1 Este percurso, da linha solta, de certo modo segue o percurso do ponto à linha exposto por Paul Klee em sua conferência publicada sob o título de “Confessions créatrices” (KLEE, 1980, p. 76-seq).
2 Emprego o termo poiesis no seu sentido primeiro de “invenção”, tal qual proposto por Humberto Maturana e Francisco Varela para a formulação do conceito de auopoiesis (MATURANA e VARELA, 1987, p.47-48)
3 As noções de território, territorialização, desterritorialização, buraco negro, linha de fuga, são provenientes da definição da Ritornelo elaborada por Deleuze e Guattari em Mil Platôs. Ver DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 381-391; ZOURABICHVILI, 2004, p. 89-98; GUATTARI, 1979; FERRAZ, 2011, p. 51-55; FERRAZ, 2005, p.36-40; BOGUE, 2003, p.17). É importante lembrar que tal noção reúne diversas das principais propostas no campo das ciências nas décadas de 1940 e 1970, como aquelas de sistêmica de Ilia Prigogine, a retomada da física quântica nos anos 90 (a atual noção de “discórdia quântica”, por exemplo), a noção de deriva da teoria situacionista de Guy Debord. São propostas extremamente complexas mas que mudaram uma série de paradigmas do pensamento clássico sobre a continuidade de um plano. A opção pelo conceito de Ritornelo se dá por sua proximidade e quase aplicação direta ao plano de composição musical.
4 A ideia de “estados” segue aqui duas referências distintas porém relacionáveis, aquela de Ligeti em seu artigo “States, Events, Transformations” e o livro de Ilia Progogine e Isabelle Stengler, Entre le temp et l’éternité (LIGETI, 1993, p.164-171; PRIGOGINE e STENGERS, 1988, p. 45).
5 Sobre as noções de intensivo e extensivo ver BERGSON, 1927, p.1-5; DELEUZE, 1968, p. 287 seq). Tal noção é relevante aqui tendo em vista que grande parte daquilo que em música reservamos ao espaço da “sensação” diz-se do não extensivo, espaço quase que improvável de ser medido e quantificado.
6 Salientamos aqui a importância desta observação: a forma é contemporânea aos objetos e entroncamentos que a constituem. Tal visão vai na contramão da teoria clássica que considera a forma como anterior aos elementos, seja pela análise indutiva ou dedutiva.
7 Litania, para quarteto de cordas. Encomenda do Arditti String Quartet para sua turné brasileira de 2011.
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Silvio Ferraz - Compositor, professor Livre Docente do Departamento de Música da UNICAMP. Autor de Música e Repetição, Livro das Sonoridades, Notas do Cadernos Amarelo e Notas.Atos. Gestos. Bolsista Vitae para a criação do ciclo de composições Livro das Sonoridades em 2003. Foi diretor da Escola de Música do Estado de São Paulo e do Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão em 2009 e 2010. Em 2011 recebeu Prêmio Zeferino Vaz de Produtividade Acadêmica conferido pela UNICAMP. Bolsista PQ1_CNPQ. |
Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 273p., n.1, 2012
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