FONTERRADA, M. T. O. A Educação Musical Brasileira e três modelos explicativos de mundo: em busca de significados.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.12 - n.1, 2012, p. 191-203.

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Artigos Científicos

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 273p., n.1, 2012

A Educação Musical Brasileira e Três Modelos Explicativos de Mundo: em busca de significados

Marisa Trench de Oliveira Fonterrada (Universidade Estadual Paulista, São Paulo, SP)

marisatrench@uol.com.br

Resumo: Neste artigo estudam-se modalidades de educação musical predominantes no Brasil e seu alinhamento a diferentes visões de mundo. O reconhecimento de que modernas práticas de educação musical estão inseridas em paradigma contemporâneo do conhecimento, mostra sua pertinência para um mundo em mudança. Em consonância com ele, as práticas aqui lembradas apontam para alternativas no relacionamento do homem consigo mesmo, com outros homens e o meio ambiente, estimulam a cooperação, a relação entre as artes, a condução de ações pelos princípios da ecologia e a recuperação de valores perdidos ou debilitados.

Palavras-chave: Teoria da complexidade; Educação musical; Ecologia acústica; Comportamento criativo.

Brazilian Music Education and Three World Explanatory Models: in search of meanings

Abstract: In this paper we study the main modalities of music education in Brazil and how they can be compared to different views worldwide. Recognition that modern practices in music education are inserted in contemporary knowledge paradigms shows their relevance to a changing world. According to this contemporary paradigm the practices included herein point to alternatives in the relationship between men and themselves, men and other men and men and the environment. They also encourage cooperation, the relationship among the arts, the conduction of actions ruled by the principles of ecology and the recovery of values lost or weakened.

Keywords: Theory of complexity; Music education; Acoustic ecology; Creative behavior.

Hoje, no Brasil, a reconquista do espaço da música na escola, após décadas de quase total ausência, faz-se urgente. Com a assinatura da Lei no. 11769/08, que tornou obrigatório a presença da música nos currículos escolares em todos os níveis da educação básica, temos como consequências imediatas:

• A euforia de educadores musicais e estudantes de Licenciatura em Música, ao vislumbrar possibilidades de ver a sua profissão reconhecida e valorizada;

• A desconfiança de arte-educadores de outras áreas artísticas, por não compreenderem a razão desse tratamento diferenciado dedicado à música, em relação às outras linguagens expressivas;

• A perplexidade dos responsáveis pela Educação, nos mais diversos segmentos corpos administrativo, docente e discente – por não saberem de que modo cumprir o disposto na Lei;

• A agitação do mercado de livros e instrumentos ao supor um substancial aumento de suas vendas.

Entretanto, o momento requer uma reflexão a respeito do significado dessa reinserção da música na escola; dos benefícios que ela pode ou não trazer à formação dos alunos em todos os níveis, ampliados à instituição escolar e à própria sociedade; e quais dificuldades serão enfrentadas por todos os segmentos envolvidos com a educação e a cultura, no que se refere à sua efetiva implantação.

Para compreendermos de que modo se processou historicamente o ensino de música nas escolas brasileiras e qual tem sido seu significado, é preciso afastar, por um momento, a especificidade do tema, para lançarmos um olhar às mudanças ocorridas em outras áreas do saber e no significado que elas carregavam – e ainda carregam – entre seus seguidores.

A fim de discutir tais assuntos que tocam intensamente a realidade atual, precisa-se, em primeiro lugar, saber em que lugar se colocar para examiná-los e, também, escolher as lentes com que se irá observá-los. Essas lentes formam o que se convencionou chamar de visão de mundo e são elas que nos permitem conhecê-lo e interpretá-lo a partir de seus pontos de vista. No dizer de José Júlio Martins Torres:

A visão de mundo é uma janela conceitual, através da qual percebemos e interpretamos o mundo, tanto para compreendê-lo como para transformá-lo [...] uma espécie de lente cultural, na construção da qual, os ingredientes incluem valores, crenças, princípios, premissas, conceitos e enfoques que modelam nossa percepção da realidade e, portanto, nossas decisões, ações e interações e todos os aspectos de nossa experiência humana no universo. É a ferramenta cultural mais poderosa da qual dispõem um indivíduo, grupo social, uma comunidade e uma sociedade, para (re)significar seu passado, compreender seu presente e fazer previsões para construir seu futuro. (TORRES, 2005, p. 1)

Em sua exposição a respeito das visões de mundo que norteiam a apreensão e compreensão da realidade, Torres cita três lentes, que correspondem, respectivamente, às três visões de mundo que mais tem exercido influência na construção do pensamento ocidental e influenciado a conduta humana, em especial no decorrer dos últimos séculos: a visão mecanicista, a visão econômica e a visão complexa de mundo.

A visão mecanicista de mundo, desde o século XVII, é responsável por praticamente tudo que já se pensou e concebeu no que se refere à compreensão da natureza e da sociedade. Ela ampara-se nos ideais de René Descartes, para quem o pensamento reflexivo, a dúvida, as idéias claras e distintas e a busca por regularidades dariam conta da tarefa de compreender objetivamente o mundo, em contraposição à prática filosófica contemplativa da Grécia clássica e da Idade Média. Esse modo de proceder influenciou poderosamente o pensamento científico; difundiu procedimentos metódicos, dotados de determinadas características, de precisão, concentração no objeto a ser estudado, objetividade, entre outros, e, teve por conseqüência a instalação da confiança na Ciência; a supremacia da razão e da mente sobre os sentidos; as percepções e o corpo; a busca da verdade e da certeza; a quantificação de dados como ferramenta de conhecimento da realidade; a possibilidade de generalização dos achados científicos; a necessidade de manutenção da neutralidade do observador e a organização do conhecimento em áreas compartimentadas, dotadas de limites bem delineados. A maior parte da tradição ocidental erigiu-se a partir desse paradigma, mais fortalecido a partir da Revolução Industrial e do desenvolvimento e do progresso por ela provocados.

Desde o século XVII, a metáfora mecanicista tem sido dominante para o entendimento da natureza, da sociedade e das organizações. O marco conceitual desta visão de mundo – o racionalismo científico – concebeu uma realidade objetiva e governada por leis físicas e matemáticas exatas. As leis de Newton legitimaram o mecanicismo e validaram suas implicações: linearidade, monocausalidade, determinismo, reducionismo e imediatismo. (TORRES, 2005, p. 1)

A ideia de mundo como máquina enquadra-se nessa visão, na qual não há espaço para a subjetividade. A compreensão do mundo se dá mediante procedimentos lineares, construídos em um movimento que vai do simples ao complexo, progressivamente. Uma das principais decorrências desse tipo de visão é a fragmentação do saber, modelo ainda hoje plenamente instituído na maior parte do sistema educacional, mesmo que sob a aparência de diversidade em suas propostas.

Como lembra Torres, a partir da tecnologia, foi gerada “uma indiferença generalizada em relação a critérios éticos e morais. O divórcio entre ciência, arte, filosofia e tradição parece ser o maior responsável pelo distanciamento generalizado da ética” (2005, p. 2).

A visão econômica de mundo, a segunda lente apresentada pelo mesmo autor, surgida ao final da década de 1970, acrescenta à metáfora da máquina, a de mercado e dá importância ao capital intangível – a informação – diferente do capital tangível trazido pela visão mecanicista de mundo. Não obstante as diferenças nos meios e propósitos, os modos de proceder das duas visões – a mecanicista e a econômica – não são muito diferentes, tanto que Torres considera esta lente como uma variável da visão mecanicista de mundo. Como explica, nesse modelo: “as organizações continuam funcionando como máquinas e se relacionando como provedoras do mercado global. As pessoas são tratadas como “capital humano” [...] ou como “capital intelectual” – uma mercadoria” (TORRES, 2005, p. 3).

O consumo é altamente estimulado e a capacidade de invenção não valorizada, pois, segundo o jargão da área econômica, “não agrega valor ao mercado”; vale dizer que aquilo que não dá lucro é desprovido de importância. Nesta visão de mundo, os procedimentos de globalização, a alta importância dos meios de comunicação e o domínio técnico são valorizados, enquanto não se estimulam o desenvolvimento de capacidades criativas, o refinamento dos sentidos e sentimentos e a capacidade de reflexão.

A visão complexa de mundo constitui a terceira lente e foi iniciada no século XX, a partir de grandes mudanças ocorridas na própria ciência, que alteraram profundamente os modos de compreender o mundo, a natureza, o universo e o próprio homem. A primeira destas mudanças ocorreu com as pesquisas de Einstein, no início do século XX, que abalou profundamente os conceitos da Física clássica e relativizou o conhecimento humano, mostrando que ele não é único nem fixo, mas depende da perspectiva pela qual é examinado. Com Heisenberg, o criador da Física Quântica, chegou-se ao princípio da incerteza, segundo o qual a realidade é incerta, imprecisa e não previsível; o observador é parte do fenômeno observado e a matéria, antes considerada uma realidade irrefutável, é vista como inconsistente, a não ser quando, a partir de relacionamentos com o meio, ganha consistência. Para Torres, o terceiro fator que contribuiu para a instalação desta visão de mundo foi a descoberta do DNA, por James Watson e Francis Crick:

[...] veio mostrar que o que impulsiona o universo, por meio de todas as transformações e da manifestação de todas as formas de vida, é a informação. O Universo não é somente matéria, energia e relacionamentos. Matéria, energia e relacionamentos nada mais são, respectivamente, do que meios de armazenamento, de transporte e de multiplicação de dados para a geração de informação e conhecimento. E mais, da informação se gera matéria, energia, relacionamentos, informação, conhecimento e sabedoria. (TORRES, 2005, p. 5)

Muitos autores, a partir dessa nova maneira de ver e interpretar o mundo, alinharam-se a essa compreensão da vida e dos fenômenos. Entre eles, o antropólogo Gregory Bateson, os biólogos Henrique Maturana e Humberto Varela e o físico Fritjof Capra, apenas para citar alguns nomes. Esses autores se afastam da tradição científica de caráter mecanicista, iniciada a partir de Descartes, e que prossegue na teoria correlata – a visão econômica de mundo. Essa nova teoria concebe a relação entre todas as coisas e fenômenos em um sistema comum a todos os seres vivos, a partir da troca de informações entre eles e o meio ambiente.

A grosso modo, as teorias que surgiram no século XX com os cientistas acima mencionados (teoria da complexidade, teoria geral dos sistemas, teoria de Santiago), apontam para um olhar renovado em direção ao mundo, que busca compreendê-lo a partir de conceitos revolucionários, que substituem o conhecimento objetivo por outro tipo de apreensão da realidade e para a qual o mundo deixa de ser entendido como máquina, passando a ser concebido como organismo vivo. Podem-se citar, entre outros, a troca da competitividade pelo compartilhamento de ações, emoções e pensamentos; a adoção da ideia de que o conhecimento não provém apenas das capacidades da mente, mas, também, das capacidades perceptuais e emocionais do ser humano, que se caracterizam pela interação constante e dialógica entre elas e o meio ambiente; a ampliação e superação da objetividade do saber, pela aceitação do papel da subjetividade na compreensão dos fenômenos e do mundo, bem como, o reconhecimento da profunda ligação existente entre corpo, sentimentos e mente. Além disso, esta visão substitui a certeza pela incerteza, e a ideia de obtenção de conhecimento nas ações de caráter linear por outra, construída em redes de saber, na qual cada tema ou informação conecta-se com outros. De acordo com Capra, isso se dá de modo similar ao que ocorre no que ele denomina teias da vida, que são constituídas por sistemas abrigados dentro de sistemas, suficientemente fechados para se constituírem em padrões determinados, mas permeáveis o suficiente para permitir a sua relação e comunicação. Para esse autor, os sistemas vivos tem uma unidade básica, pois apresentam padrões de organização semelhantes, o que se estende a todos os sistemas vivos. Capra defende a ideia de que esse padrão sistêmico pode ser, também, estendido a outras instâncias, como a organização da mente consciente – no plano individual – e do grupo – no âmbito social. Segundo ele, os padrões e as formas de interação sistêmica que caracterizam a vida biológica podem ser aplicados à compreensão da consciência humana e da realidade social (CAPRA, 2009, p. 93). Para Torres:

A Teoria da Complexidade vem mostrar a interdependência essencial de todos os fenômenos – é o que Fritjof Capra (1996) chama de Visão Ecológica Profunda. Segundo ele, estamos todos encaixados nos processos cíclicos da natureza. O ser humano é um finíssimo fio dessa rede universal que ele chama de Teia da Vida. E a mais óbvia característica de qualquer rede é a sua não-linearidade. É óbvio, também, que o conceito de diálogo está intimamente ligado com o padrão de rede.

A visão de complexidade e de ecologia profunda nos remete à idéia de sustentabilidade para reverter o quadro de vulnerabilidade a que todos estamos submetidos, inclusive o Planeta, na sua totalidade complexa. (TORRES, 2005, p. 5)

Olhando um pouco para trás, pode-se dizer que a música, na sociedade e na escola brasileira desempenhou muitos papeis e esteve a serviço de diferentes ideais no decorrer do tempo, como ocorre em todas as outras áreas; pois a adoção desses papéis depende da visão de mundo preponderante em cada época e lugar. As lentes expostas podem auxiliar na compreensão desse fenômeno, quando aplicado à educação musical.

No início da colonização brasileira, por exemplo, nas primeiras missões jesuíticas que atuaram no país, a prática musical tinha como principal propósito a divulgação e adoção da cultura européia como modelo; além de pretender retirar da ignorância os habitantes da terra descoberta, permitindo-lhes acesso ao saber e à cultura do Velho Mundo. Esse modelo, em que pesem as diferentes formas que tomou durante o processo histórico vivido pelo país, continuou forte e serviu de orientação para as ações artísticas e educacionais desenvolvidas, não apenas naquela época, mas em períodos posteriores. Refiro-me em especial, às instituições dedicadas ao ensino da música: conservatórios e escolas especializadas de música públicas e privadas (FONTERRADA, 2008, p. 208-210).

Nesse modelo predominam os ensinamentos técnico-instrumentais e os exercícios diários de caráter progressivo; o aprendizado da música está fortemente atrelado ao ensino de um instrumento musical e em procedimentos que visam o domínio técnico-motor de segmentos corporais necessários à execução. A ênfase é posta na autodisciplina, no domínio técnico-instrumental e no conhecimento do repertório musical específico daquele meio – instrumento ou voz. Esse tipo de ensino não é dirigido a todos, mas apenas às pessoas em que se detecte a existência de “talento” musical, ou “dom”, isto é, uma relação especial de determinado indivíduo com a música, considerada pelos seguidores deste modelo como “inata”. A decorrência da adoção deste tipo de ensino é a alta especialização musical, que determina seu caráter exclusivo e sua aderência à visão mecanicista de mundo, de que fala Torres.

Em vista do exposto, pode-se afirmar que o paradigma mecanicista parece nortear o ensino especializado de música; em especial, a formação de instrumentistas e cantores, para construir indivíduos/máquinas de fazer música, os quais desenvolvem suas habilidades na maior parte das vezes, desde tenra idade, a partir de procedimentos pedagógicos lineares, que se dão progressivamente, do simples ao complexo. A “indiferença em relação a valores éticos e morais” é encontrada na predominância de foco no domínio técnico, o que implica na superação de si mesmo, valoração de procedimentos competitivos entre colegas de estudo ou profissão, fortalecimento do individualismo, crença no talento como condição do estudo de música e a decorrente instalação de procedimentos de exclusão, além do pouco diálogo travado entre a música e outras áreas de conhecimento.

Esse modelo, ainda predominante em escolas especializadas de música, teve seu foco alterado nos primeiros anos do século XX, em São Paulo, em propostas de ensino de música aplicadas na escola pública, o que ampliou seu alcance a todos os alunos, perdendo a sua destinação inicial e exclusiva a indivíduos considerados talentosos. A princípio essas iniciativas foram de âmbito local e partiram do trabalho de artistas comprometidos com a educação, como o Maestro Cardim, Fabiano Lozano e João Mendes Júnior, entre outros. Nas escolas paulistas o ensino de música tinha como suporte o ideal cientificista – fortemente amparado nos conhecimentos médicos e psicológicos da época, mesmo considerando-se a tendência pedagógica voltada para o Canto Orfeônico de inspiração europeia. Os educadores faziam grande esforço para compreender de que modo as estruturas mentais se comportavam diante da música, para, a partir daí, elaborarem princípios capazes de aumentar a eficiência do ensino e aprendizado da música (CARDIM & GOMES JR, 1926, p. 14).

O fato de ser aplicado à escola pública, democratizando, portanto, o acesso à música pela população atendida, amenizava o seu caráter mecanicista. O ideal positivista de calcar no conhecimento científico a compreensão da realidade e a construção de ações educativas era o principal foco dos autores em questão que, embora tenham ampliado o alcance de seus atos, inserem-se, ainda, no mesmo modelo anteriormente mencionado.

Um pouco mais tarde, com Villa-Lobos, e agora aplicado em âmbito nacional, o ensino de música nas escolas com o movimento do Canto Orfeônico adotou outro modelo, diferente do anteriormente mencionado. Ao promover o Canto Orfeônico nas escolas de todo o país, Villa-Lobos o fez navegar nas ondas do Nacionalismo. Um de seus principais propósitos era a construção e o fortalecimento da identidade do povo brasileiro e a valorização da cultura nacional e do sentimento de amor à pátria. Veja-se, então, que as raízes dessa orientação não se inseriam mais no cientificismo e na eficiência pedagógica, mas na instalação do sentimento de brasilidade. Esse modelo vigorou por anos na escola brasileira, mesmo após o termo Canto Orfeônico ter sido alterado para Educação Musical, pela Lei nº 4024/61 (GIOS, 1989, 1º. v., p. 106).

No entanto, a mudança de orientação do Canto Orfeônico, quando transposto do âmbito estadual para o federal, não chegou a se caracterizar como adoção de um novo modelo de ensino, mas configurou sua adesão à tendência, também européia na origem, encontrada em especial nos países periféricos, de valorizar a identidade nacional. Os movimentos nacionalistas foram fortes na Escandinávia, no Leste europeu e na Península Ibérica, em países que viam suas respectivas culturas serem afogadas pela cultura predominante da Europa Central.

Na educação musical, o movimento nacionalista deu-se, em especial, na Hungria, com as propostas de Zoltán Kodaly e Béla Bartók que influenciaram diretamente a implantação do Canto Orfeônico no Brasil, como modelo nacional de educação musical na escola pública, por Villa-Lobos.1

Na proposta do Método Kodály, percebe-se mais uma vez que a visão de mundo não se alterou, não obstante a mudança de foco, propondo a valoração da identidade nacional e o oferecimento de um tipo de educação musical de alto nível a todas as escolas da Hungria. Tal afirmativa pode ser constatada em uma série de fatores, entre eles:

• A sequência cuidadosamente regrada dos conteúdos a cada ano escolar;

• Os materiais folclóricos musicais, colhidos em pesquisas pela Hungria e em outros países do Leste europeu e submetidos a cuidadosa análise e ordenação, que obedeciam a rígidos critérios de caráter linear, organizados do simples para o complexo;

• A escolha dos conteúdos da grade curricular, a cada ano escolar, da escola maternal ao Instituto Superior de Música, caracterizada por ser bastante criteriosa e voltada para a obtenção de excelência no ensino e na aprendizagem da música.

Esse conjunto de procedimentos traz a mesma visão de homem máquina encontrada no modelo anteriormente exposto.

Na implantação de seu equivalente no Brasil (o Canto Orfeônico) esse rigor não ocorreu; não por caracterizar um paradigma diferente, mas por razões que cercaram, cercearam e, até mesmo, impediram a sua efetiva implantação; a começar pela dificuldade de deslocamento dos professores de música ao Rio de Janeiro, para assistirem às aulas dos cursos de formação previstas por Villa-Lobos, num país dotado de tal extensão territorial, numa época em que os meios de transporte eram mais do que precários.

No início da década de 1970, pela Lei nº 5692/71, houve uma mudança radical na orientação do ensino de música/artes na escola. Neste novo modelo, as linguagens artísticas foram agrupadas em uma só disciplina: Educação Artística – posteriormente denominada Arte-Educação pelos próprios arte-educadores – e foram consideradas, em seus múltiplos formatos, como canais de expressão individual. Defendiam-se princípios que as colocavam no centro da sala de aula, acessíveis a todos e se estimulavam as iniciativas que levavam o aluno a se exprimir espontaneamente por meio de uma delas. Desprezava-se a crença no dom, concedido a pessoas dotadas de talento especial, e considerava-se a arte como própria do homem, canal e expressão de todo ser humano (PEIXOTO, s.d., p. 15-17; BARBOSA, 1982, p. 25).

Os princípios da educação artística afastam-se do rigor da chamada educação tradicional, colocando ênfase no processo sobre o produto, valorizando a sensibilização e a improvisação, rejeitando o ensino de regras de conduta, memorizações, enfim, os usuais procedimentos do ensino de música. [...] O discurso da educação artística amparava-se no conceito modernista (ampliação do universo sonoro, expressão musical comprometida com a prática e a livre experimentação) [...] o incentivo à liberação de emoções, a valorização do folclore e da música popular brasileira além da interpenetração das linguagens artísticas. (FONTERRADA, 2008, p. 218)

A proposta apoiava-se nas idéias de John Dewey e foi trazida ao país pelo seu aluno Anísio Teixeira, um dos paladinos da Escola Nova. Como se verá adiante, essa maneira de ver a Arte não está plenamente contemplada nos paradigmas trazidos por Torres, embora alguns de seus traços a aproximem do modelo complexo. De acordo com esse modelo, o conhecimento não se dá exclusivamente pela ação da mente, mas se instala a partir das diferentes instâncias do ser humano: o corpo, as sensações, as emoções, a mente, de maneira não fragmentada, mas holística, o que é condizente com a filosofia que embasou o modelo adotado.

Diga-se, no entanto, que, na sua implantação, a música ficou enfraquecida, por uma série de motivos, entre os quais podem ser destacadas: a adoção da polivalência, em que um só professor, habilitado em uma das linguagens, se encarregaria de proporcionar aos alunos experiências em outras expressões artísticas, e a conseqüente dificuldade sentida pelos arte-educadores em se adaptar ao modelo, em especial no que se refere à música. O caráter espontaneísta que dirigia as práticas educativas em artes, talvez, tenha pesado para esta linguagem, mais do que para as demais. Isto se deve ao fato de o ensino de música ser ainda pensado em termos fortemente organizativos e determinados, em virtude de sua própria natureza, o que dificultava a implantação de práticas de caráter expressivo e espontâneo. De maneira geral e, independentemente do fato de a aula de artes ter ou não alcançado sucesso em suas diferentes formas de implantação, a iniciativa da educação artística parece, principalmente, negar o paradigma mecanicista de mundo e se aproximar do terceiro paradigma, ao incentivar a expressão individual, colocar a Arte no centro da escola e acreditar que todas as pessoas são, potencialmente, capazes de criar e fazer arte.

No entanto, embora esse modelo incentive a criação espontânea, a falta de regras e propósitos definidos foi outro fator que dificultou sua implantação. O fato de a escola não ser capaz de sustentar a prática da música a não ser como exceção – por iniciativa de alguns poucos professores de música – enquanto a maior parte deles preferia atuar em outras áreas artísticas, contribuiu para seu enfraquecimento. Com a ausência de propostas efetivas no âmbito da escola, surgem duas conseqüências:

• Muitas dessas propostas de ensino de música saíram da escola e ocuparam outros espaços, como, por exemplo, os projetos sociais e as igrejas, onde conseguiram se desenvolver e interessar as comunidades que atendiam;

• A escola, carente do exercício da música como proposta educativa, ficou aberta ao consumo da música de mercado, trazido como lazer e entretenimento pelos próprios alunos, ou por seus professores. Esses, por não serem capazes de atuar com propostas educativas em música, rendiam-se ao apelo das músicas da moda, que funcionavam como mercadoria a ser consumida como passatempo.

Nesse último quesito, a falta de direcionamento da atividade musical na escola e o fortalecimento do consumo da música de mercado, remetem ao segundo paradigma, decorrente da visão econômica de mundo, surgida na década de 1970, com a tecnologia da informação. Essa inserção ainda não é plena, como se verá adiante, pois há ainda muitos elementos que não se adéquam ao modelo.

Na mesma época, enquanto no Brasil o ensino de música na escola parecia perder o rumo, em outros países da Europa e da América do Norte ocorria um fenômeno oposto. Este se caracterizava no interesse de alguns compositores de música contemporânea pela educação musical, o que fez aflorar um considerável número de propostas de caráter criativo. É a época de John Paynter na Inglaterra, Boris Porena, na Itália, Murray Schafer, no Canadá, Theophil Meier na Alemanha, entre outros. John Paynter e Boris Porena exerceram grande influência no sistema educacional de seus respectivos países, liderando propostas de reforma de ensino com ênfase na invenção e criação musicais (PAYNTER, J. 1970, 1972; 1992., PORENA, B., s.d., MATEIRO & ILARI, 2010). Meier foi Diretor de uma escola de formação de professores (Pedagogische Musik Schule) na Alemanha, na qual trabalhou intensamente com propostas de educação musical criativa. E Schafer, embora não diretamente, como seus colegas, pois nunca lecionou em escolas de ensino primário ou secundário, exerceu também influência, ao participar de inúmeros projetos destinados a crianças e jovens, nos quais a inventividade e a criação musicais foram grandemente valorizadas e estimuladas (SCHAFER, 1991, 2010).

Paynter e Porena, até bem recentemente, eram pouco conhecidos no Brasil. A introdução do nome de Paynter no país foi intermediada por Violeta Hemsy de Gainza, educadora musical, que o levou à Argentina e mostrou suas propostas à América do Sul. Porena ficou conhecido em âmbito ainda mais restrito: o Padre José Penalva, de Curitiba, músico, regente coral e compositor, conheceu o trabalho de Porena em uma de suas visitas à Itália e tratou de divulgá-lo entre seus amigos e alunos. Meier esteve algumas vezes no Brasil na década de 1980 e chegou a trabalhar com professores e atores durante alguns anos, enquanto Murray Schafer começou a visitar o país a partir de 1990. Ainda assim, as idéias de Murray Schafer encontraram mais terreno para se sedimentar do que a de seus companheiros, não só pelo fato de ter vindo ao Brasil várias vezes, mas, também, por ter alguns de seus livros publicados em português.

Pode-se dizer que, malgrado as diferenças entre as propostas, todos esses autores tinham um interesse comum – o incentivo à capacidade criativa dos alunos e à construção de propostas em que essa capacidade fosse constantemente estimulada, o que os insere no terceiro modelo de visão de mundo, o da complexidade. Recentemente, o lançamento do livro “Pedagogias em Educação musical”, de Tereza Mateiro e Beatriz Ilari tornou possível aproximar o pensamento de alguns educadores que incentivam práticas criativas à educação musical (MATEIRO & ILARI, 2010).

No Brasil, o único educador musical a se inserir plenamente nesse paradigma é Hans Joachim Koellreutter, alemão de nascimento e brasileiro por adoção, que introduziu, entre seus alunos, propostas revolucionárias, apoiadas na produção da vanguarda musical e na capacidade e interesse dos jovens pela música e pelo fazer criativo. No entanto, essa influência não atingiu as escolas em grande escala, a não ser indiretamente, quando alguns de seus discípulos nelas atuaram; suas propostas pedagógicas não foram incorporadas às ações educativas governamentais, nem incentivadas nos programas determinados por políticas públicas.

O que ocorria nas instituições de ensino, a partir da década de 1970, é que propostas criativas de diferentes naturezas estavam presentes nas artes plásticas – que exploravam várias maneiras de estimular os alunos a criar – assim como no teatro – por meio da adoção de jogos teatrais de caráter improvisatório. Em música, como não se sabia o que e como fazer para desenvolver propostas que tivessem o mesmo teor criativo utilizado pelas outras linguagens, essa prática era deixada de lado. Na melhor das hipóteses, o espaço abria-se para que os alunos, espontaneamente, fizessem o que quisessem em termos de atuação musical. A influência dos educadores já mencionados dava-se em espaços distantes do âmbito escolar, em ambientes musicais específicos, restritos a alguns educadores musicais.

Com a LDBEN nº 9394/96, o conceito de ensino de arte novamente foi alterado. Perdeu seu caráter predominantemente expressivo e veio a ser compreendida como fonte de conhecimento. Nesse modelo, destacam-se o conhecimento da história das artes, o ato de fazer e a oportunidade de reflexão. A educação musical no Brasil a partir dessa Lei de Diretrizes e Bases tem sido alvo de muitos estudos e análise, inclusive, por esta autora, em um de seus livros (FONTERRADA, 2008, p. 219-78). Na prática, porém, este modelo, no que se refere à música na escola, ainda tem mostrado dificuldade em se afirmar. A prolongada ausência dessa linguagem na maior parte das instituições de ensino trouxe como conseqüência a perda de referenciais para sua realização, o que só recentemente começa a ser amenizado, pela criação de muitos cursos de Licenciatura em Educação Musical, ou em Música, com habilitação em Educação Musical.

Não se pode esquecer que, embora as dificuldades ainda sejam imensas, o país assistiu à criação da Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM), em 1990. Ela tem incentivado pesquisas e experiências de ensino e aprendizagem de música e a inclusão da subárea nos cursos superiores e de Pós-graduação lato e stricto sensu, contribuindo sobejamente para o fortalecimento da Educação Musical nos cursos de graduação e Programas de Pós-graduação de universidades, em todo o país.

É importante afirmar que, a partir da década de 1970 e, mais intensamente, nos anos 1990, o ensino, de maneira geral, sofreu grandes transformações, provocadas pelas profundas mudanças nos meios de comunicação, que permitiram o acesso imediato de um grande contingente da população global a tudo que se faz no mundo todo. Apesar das infinitas possibilidades que esse novo meio abriu, ele não trouxe, porém, a grande abertura que se mostrava possível, pelo acesso ilimitado aos bens culturais e à música, pois interesses mercadológicos encarregaram-se de oferecer e reforçar a importância dos produtos mais vendáveis e potencialmente lucrativos. Tal fato provocou distorção na recepção dos chamados bens culturais, pela hábil condução do gosto da população ao que convinha à indústria cultural.

Não se quer dizer, com isso, que não tenham havido ganhos trazidos pela revolução tecnológica. Pelo contrário, muito do que hoje se faz na escola em relação à música, só é possível graças a programas encorajadores da escuta e do fazer musical, organizados em jogos dinâmicos e interessantes, apaixonadamente aceitos pelos jovens; cite-se, além disso, a democratização do acesso ao ensino de música, por meio dos Programas de Educação à Distância, que não pode ser subestimada. No entanto, seria, também, uma distorção acreditar que a tecnologia da informação só nos trouxe benefícios, pois não é assim. A tecnologia não é boa ou ruim em si mesma; tudo depende do uso que dela se faz.

Do que se reclama aqui é da imposição do gosto pelas leis de mercado, o que se considera uma distorção das possibilidades da música e de sua prática, a qual cumpre combater. O ensino de música, já debilitado pelas condições a que foi submetido, em especial a partir da década de 1970, encontrou-se a serviço desse novo senhor – a indústria cultural – e dos valores de mercado, a dirigir o gosto da população– em especial o segmento composto por crianças e jovens. A música de mercado invadiu a escola e passou a nortear a escolha do repertório cultural a ser consumido, mediante a propagação da ideia de ligação entre música e entretenimento. Nesse modelo, a música já não é fator de identidade nacional, nem tampouco fonte de conhecimento, canal de expressão individual e coletiva e, muito menos, instância de difusão da cultura européia. Ela está, agora, por muitas formas, atrelada ao mercado do show business, à venda de CDs e a outros recursos midiáticos, o que faz que a aparente escolha dos jovens pelo repertório preferido seja, na verdade, induzida por seu apelo mercadológico.

Essa maneira pela qual a música se apresenta na escola pode ser compreendida como imersa no segundo paradigma de Torres – a visão econômica de mundo, em que a informação obedece a leis de mercado e é considerada capital intangível, que se afasta do capital tangível trazido pela visão mecanicista (2005, p. 3) – o que lhe dá estatuto de mercadoria.

Muito, ainda, se poderia falar dos autores que têm contribuído com suas propostas, para a difusão de práticas criativas em educação musical; a saber, aqueles considerados como da “segunda geração” de educadores musicais2. No entanto, como não é possível apresentar o trabalho de todos eles, dadas as limitações de tempo e espaço, considera-se a possibilidade de destacar apenas um, que se adéqua à visão de mundo trazida pela teoria da complexidade e pela teoria dos sistemas e, entre os educadores musicais citados, talvez, seja o que mais a ela adere – Murray Schafer.

A adoção de uma determinada visão de mundo é algo que vem paulatinamente, na medida em que as idéias e pensamentos que a ele subjazem emergem das práticas culturais. No entanto, a adoção de um modelo implica o abandono de muitos atos, pensamentos e valores. Nesse sentido, ouçamos o que diz De Souza Silva:

Muitas boas idéias deixam de ser implantadas por serem conflitantes com modelos mentais profundamente arraigados que limitam a maneira de as pessoas pensarem e agirem e interagirem. Isto caracteriza a grande crise em que vivemos hoje, uma crise de percepção. Esta crise deriva do fato de que nós, e em especial nossos líderes, conduzimos a execução de nossas ações e interações, orientados pelos conceitos de uma visão de mundo, inadequada para lidarmos com um mundo cada vez mais complexo. Deixamos, não só de reconhecer como diferentes problemas estão inter-relacionados, mas também que as nossas soluções afetam outras pessoas e até mesmo as gerações futuras. (DE SOUZA SILVA, 2001. Apud: TORRES, 2005, p. 1)

Uma educação musical alicerçada no modelo complexo, hoje emergente, do qual, inclusive, alguns traços já vêem sendo mostrados ao longo deste trabalho em algumas das propostas educativas aqui examinadas, abrirá mão de alguns comportamentos usuais no mundo contemporâneo, que tendem a se conformar com objetivos de caráter empresarial, que visam prioritariamente chegar a resultados positivos e se adequar às leis de mercado, buscando, no ambiente educativo – seja ele escola ou não – a organização de um tipo de comunidade que poderia ser chamada “comunidade de aprendizes” (SCHAFER, 1991, p. 277). Neste tipo de comunidade, a experiência de cada um é compartilhada e a contribuição de cada membro é considerada igualmente importante para a obtenção de conhecimento.

Segundo a visão complexa de mundo, a realidade é definida pelos relacionamentos e pelos processos. Cada membro de uma determinada comunidade está relacionado, afeta e é afetado pelas ações e pelas idéias de todos os demais membros, o que mostra que a qualidade desses relacionamentos e processos, ao longo da vida, é mais importante do que são as estruturas formais. Traduzindo-se esta afirmação em termos da educação, poder-se-ia dizer que, também aqui, a qualidade dos relacionamentos é mais importante do que as regras de qualquer gramática; o que as torna flexíveis e as coloca em função do grupo ou indivíduo que as pratica.

No interior da comunidade de aprendizes, a proposta de Schafer abrange três eixos, que sintetizam sua maneira de entender a arte e a educação musical, dentre os quais o primeiro é o compromisso da comunidade em relação ao meio ambiente, questão principal da ecologia. Quando essa relação se dá especificamente entre o homem e o ambiente sonoro, ela passa a pertencer à área da ecologia acústica.

A ecologia acústica é relativamente recente. Os primeiros estudos sistemáticos acerca do som ambiental no tempo e no espaço foram feitos por Schafer no final da década de 1960 e início de 1970, quando lecionava na Universidade de Simon Fraser, em Barnaby, um distrito de Vancouver, no Oeste do Canadá. Nessa época, ele criou um grupo de Pesquisa – The World Soudscape Project – que tinha como proposta estudar o som ambiental de lugares e períodos históricos diferentes, e encontrar seus significados para as pessoas desses lugares. Muitos projetos foram desenvolvidos então, como gravar o som dos bairros da cidade de Vancouver, em que os jogos de rua praticados pelas diferentes comunidades ou os sons do porto são alguns poucos exemplos dessa atividade, que se ampliou, com muitas outras ações, inclusive no plano internacional (Schafer, 1991, p. 119-205, FONTERRADA, 2004, p. 40-58).

O mais importante nessa proposta é o incentivo renovado à capacidade de escuta do ambiente sonoro, embora esta não seja, ainda, totalmente reconhecida. Ainda pouco se fala das conseqüências que as transformações da civilização trouxeram à capacidade de escuta humana; assunto não tão debatido fora do círculo de pesquisadores, artistas e cidadãos sensíveis, que se incomodam com a avalanche de estímulos sensoriais que tomou conta do mundo e que, desde então, só tem crescido (SCHAFER, 2001; DUARTE, 2010).

Outro eixo que justifica a inserção de suas propostas no terceiro paradigma é o que ele denomina “confluência das artes”, em que todas as artes confluem sem qualquer hierarquia, “como os tributários de um rio” (SCHAFER, 2002, p. 25). Em suas propostas artísticas e educacionais há um trabalho de sensibilização a todos os sentidos; esse modelo não pode ser confundido pelo adotado nas práticas da educação artística, pois aqui o artista não é polivalente. O que há é um trânsito interdisciplinar entre as linguagens artísticas na construção da obra ou proposta educacional, que são, porém, conduzidas, por especialistas.

O terceiro eixo, também condizente com a inserção das idéias schaferianas nesse mesmo paradigma é a relação da arte com o sagrado. O sentido de sagrado é holístico, isto é, envolve todos os canais utilizados pelo homem para se apropriar, relacionar e interpretar o existente. Isso significa que essa apropriação não se dá exclusivamente pela mente racional, mas pelo conjunto de possibilidades do ser humano para apreender e interpretar a realidade: o aparato sensível, motor, perceptivo, afetivo, social, intelectual e espiritual. O sagrado indica a necessidade de o homem buscar respostas para as questões do ser e da origem da vida, no que se alinha ao pensamento de Capra e à teoria de Santiago (Fonterrada. In: MATEIRO e ILARI, 2010, p. 275-303). As sociedades orais têm modelos explicativos para o mundo e para a vida, que se expressam em seus mitos de origem (ELIADE, 1963). Para Schafer, o enfraquecimento do valor do sagrado é responsável pelos problemas contemporâneos, pois, em diferentes instâncias, deixa de incidir na valoração da vida, do homem, da comunidade e do meio ambiente. Esse papel está presente nas sociedades orais, nas culturas da Antiguidade e no Oriente. O papel da arte, hoje, é recuperar esses valores, perdidos ou debilitados; e é por isso, que o autor indaga: Qual é o propósito da arte?”, a que ele mesmo responde: “É promover mudanças em nós” (SCHAFER, 2002, p. 83-4).

No Manifesto dos Educadores Musicais escrito no Fórum de Salzburg acerca do papel e da importância da música na atualidade, também é ressaltado o papel transformador da música; nele, rejeitam-se as noções de música exclusivamente como lazer e entretenimento, e acentua-se a sua importância para a formação do cidadão, por ser portadora de valores essenciais, de caráter universal (SALZBURG, 2011. FONTERRADA. In: JORDÃO, ALLUCCI, MOLINA, TERAHATA, 2012, p. 96-100).

Neste momento tão importante, em que o Brasil e a comunidade dos educadores musicais, as escolas e autoridades escolares, em todos os níveis, defrontam-se com o momento de implantação da lei que reconduz a música ao currículo das escolas brasileiras, é de grande importância a reflexão a respeito do significado dessa reinserção, dos benefícios que pode ou não trazer à formação dos alunos em todos os níveis, da possível extensão desses ganhos à instituição escolar e à própria sociedade, sem que se esqueçam as dificuldades a serem enfrentadas por todos os segmentos envolvidos com a educação e a cultura. Quem sabe, com essa reflexão, muita vontade, confiança e crença no valor da música e da educação musical como portadora de vida e de valores humanos essenciais, essa realidade possa ser construída.

Notas

1 Essa informação foi dada à autora em ocasiões diferentes por dois distintos ex-alunos de Villa-Lobos: o Professor Doutor Orlando Leite, da Universidade de Brasília, e o Professor Doutor Homero de Magalhães, pianista e docente do Instituto de Artes da UNESP.

2 A primeira geração de educadores musicais é constituída por Jaques-Émile Ddalcroze, Edgar Willems, Zoltán Kodály, Carl Orff e Shinichi Suzuki, entre outros.

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Marisa Trench de Oliveira Fonterrada - Professora Livre-Docente em Técnicas de Musicalização pelo IA-UNESP. Doutora em Antropologia e Mestre em Psicologia da Educação pela PUCSP. Docente do Curso de Pós-graduação em Música do Instituto de Artes da UNESP, dedica-se a questões da educação musical na contemporaneidade e ecologia acústica.

Recebido em: 15/04/2012 - Aprovado em: 11/05/2012

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 273p., n.1, 2012