JARDIM, V. L. G. A Música no Currículo Oficial: um estudo histórico pela perspectiva do livro didático.
Revista Música Hodie, Goiânia, V.12 - n.1, 2012, p. 167-174.
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Artigos Científicos
Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 273p., n.1, 2012
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A Música no Currículo Oficial: um estudo histórico pela perspectiva do livro didático
Vera Lúcia Gomes Jardim (Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP)
vera_jardim@hotmail.com
Resumo: Este artigo objetiva analisar o Compendio de musica para o uso dos alumnos do Imperial collegio “D. Pedro II”, de Francisco Manuel da Silva, adotado para a disciplina Música Vocal, de 1838 a 1879, a fim de apreender a seleção de conteúdos, de métodos e técnicas que compuseram o currículo do Colégio Pedro II, no tocante ao ensino da música no sistema oficial de ensino, além de expressar as forças aque se articularam para legitimar as idéias que incidiram sobre a sua organização. Foram compulsadas, ainda, fontes como os programas de ensino, legislação, imprensa, partituras, programas de recitais, para articular o tema. Sacristán (2000) e Choppin (2004) dão suporte teórico para esta análise, afirmando que os livros didáticos constituem instrumentos que esclarecem, não apenas os meios que operacionalizam os métodos para a aquisição do conhecimento, mas também articulam as finalidades educacionais. A análise revela a técnica da memorização para a aquisição do conhecimento e a importância dos processos teóricos antes das atividades práticas.
Palavras-chave: História da educação musical; Educação musical e currículo oficial; Livro didático; Música vocal; Colégio Pedro II.
The Music in the Official Curriculum: a historical study from the perspective of the textbook
Abstract: This article analyzes the Compendio de musica para o uso dos alumnos do Imperial collegio “D. Pedro II”, by Francisco Manuel da Silva, adopted for the discipline Musica Vocal (Vocal Music), 1838 to 1879, in order to understand the selection of content, methods and techniques that made up the curriculum of the Colégio Pedro II, in relation to music teaching the official educational system, and can express the forces that were articulated to legitimize the ideas that affected on their organization. Other sources were examined as educational programs, legislation, news, scores, programs for recitals, to articulate the theme. Sacristán (2000) and Choppin (2004) provide theoretical support for this analysis, saying that textbooks are tools that clarify not only the means to operationalize the methods for acquiring of knowledge, but also articulate educational purposes. The analysis reveals the technique of memorization for the acquiring of knowledge and theoretical importance of the processes prior to practical activities.
Keywords: History of music education; Music education and the official curriculum; Textbooks; Vocal music; Colégio Pedro II.
1. Introdução
Em mais de uma década de pesquisas históricas sobre a educação musical escolar – oficial e pública – venho reiteradamente procurando demonstrar a importância desta modalidade de pesquisa para a compreensão da complexidade do fenômeno educativo e das relações da música na esfera escolar. Para tanto, torna-se necessário investigar a circulação e interferência das idéias e ações dos sujeitos; os modos de organização na composição dos grupos que promovem políticas, ordenam os postos de poder, atuam na condução, manutenção ou alteração das finalidades de ensino que incluem ou excluem determinadas áreas de conhecimento, e, as implicações decorrentes na organização dos currículos e conteúdos ministrados. Busco, ainda, desmistificar a cristalização da ideia do glorioso passado da educação musical, no Brasil, presente em muitos relatos que garantem que houve uma época (indefinida) que a sua importância estava dada, sem a necessidade do difícil embate para a sua justificativa, para a árdua construção do seu valor pedagógico e social, e, consequente consolidação no âmbito educacional. Muitos dos trabalhos que abordam a temática da educação musical ainda permanecem presos a essa representação do passado e reivindicam a volta deste pretenso tempo, bom e remoto, em que o ensino da música não exigia tantos desafios dos seus profissionais.
Em que poderíamos nos basear para fundamentar tais afirmações? Onde estariam os relatos dessas experiências bem sucedidas? A ausência da pesquisa primária, da investigação e análise de fontes e documentos históricos pode manter áreas obscuras na compreensão da trajetória deste ensino e prejudicar a consciência que temos sobre as referências, padrões, conjunturas, que consolidaram essa interpretação, criando uma memória que silencia e não contribui para a construção do conhecimento da configuração da educação musical escolar em seu processo histórico.
Decorrem desta ausência algumas incoerências que, a partir da análise das fontes por outra ótica, podem demonstrar que resultam em equívocos. Destes, selecionei apenas dois tópicos para a elaboração deste artigo. O primeiro deles, diz respeito ao grande incentivo dado à educação musical com a criação do Conservatório de Música do Rio de Janeiro, a partir da generosa atitude do Imperador preocupado com a cultura musical do país. A verificação dos documentos oficiais demonstrou o oposto, apontando a total ausência de investimento de recursos públicos neste empreendimento e um descaso que se arrastou por cerca de doze anos para dar início às atividades – ainda em condições precárias – do conservatório. Revelaram, contudo, a tenacidade e empenho de um músico, que tomou as rédeas deste árduo trabalho: Francisco Manuel da Silva; estabelecendo ainda, a sua relação com o início da música no espaço escolar oficial, constituindo-se no segundo tópico, aqui apresentado.
Sobre a inserção da música no currículo escolar, é conveniente ressaltar que ao maestro Heitor Villa-Lobos era atribuída a única iniciativa de organizar e implantar o ensino da música nas escolas, aquela que resultou da elaboração de um projeto de educação musical de âmbito nacional, executado a partir de 1930. Em minha dissertação de mestrado (Jardim, 2003), em que estudei o período de 1889 a 1930, pude apontar a existência do ensino da música como disciplina escolar nas escolas públicas de São Paulo, abordando a sua instituição legal, a elaboração dos métodos, e caracterizar as fases que a disciplina assumiu, primeiramente, com o sentido de sensibilização e civismo, mais tarde, com um caráter civilizatório, e, por fim, com um cunho cívico-nacionalista.
Para este artigo apoiei-me na minha tese de doutoramento (Jardim, 2008) e trouxe a primeira referência oficial de inclusão da música no currículo, presente no primeiro Regulamento do Colégio Pedro II, de 1838,1 que incluía Música Vocal como matéria distribuída nas oito séries do curso. O Colégio Pedro II foi fundado na Corte,2 no Rio de Janeiro, como a primeira instituição que assumiu a condição modelar para as congêneres no país.
Ressalto que o ensino da música nas escolas de ensino regular, ao longo do tempo, não permaneceu inalterado e foi organizado a partir de diferentes objetivos educacionais e pedagógicos, daí, a mudança dos termos empregados para designar a disciplina: Música Vocal, Música, Canto Coral, Canto Orfeônico, Educação Musical, demonstrando a sua permanência no ensino oficial. Chervel (1990) enfatiza que a compreensão das finalidades do ensino está vinculada ao conhecimento da história das disciplinas escolares que identificam, classificam e organizam os diferentes objetivos atribuídos à escola em diferentes épocas.
São estes os elos que serão articulados, a luta pela criação de um pólo de formação específica e a entrada deste conhecimento no âmbito escolar, mediados pela publicação e adoção de um método de ensino que carrega a necessidade de adaptação, em reconhecimento às características dos diferentes espaços de formação.
Em 1808, a Imprensa Régia foi criada no Brasil e as tipografias, proibidas até então, começaram a ser instaladas, iniciando a publicação de libretos de óperas e materiais musicais. Circulavam, no país, tratados sobre harmonia e teoria musical de publicação estrangeira cujas edições, nos países de origem, eram destinadas aos estudos teórico-filosóficos empreendidos nas catedrais, seminários ou universidades de natureza investigativa e exploratória da música. Essas publicações eram usadas, aqui, nos seminários, com os mesmos propósitos. Contudo, outros materiais coletados em recentes pesquisas musicológicas3 demonstram ter destinação diferente. Eram os Manuais, ABCs e Artinhas, manuscritos voltados para atender às questões de ordem prática da música, relacionadas à execução instrumental e ao canto.
Os Manuais, ABCs e Artinhas continham os rudimentos ou noções elementares de determinada matéria, que no caso da música, encerravam os princípios da teoria musical. Eram destinados aos músicos amadores e iniciantes e, por essa razão, assumiam a condição de materiais de ensino.
Francisco Manuel da Silva já havia publicado, em 1832, o Compendio de musica pratica destinada aos amadores e artistas brasileiros, vulgarmente conhecido como Artinha, nome com o qual foram registradas as suas futuras edições. Esta obra traz os mesmos elementos que o Compendio de musica para o uso dos alumnos do Imperial collegio “D. Pedro II”, do mesmo autor, publicado, adotado e adaptado para as aulas de Música Vocal, em 1838, de acordo com o primeiro regulamento do colégio, inaugurado em 1837, com o início de suas atividades escolares no ano seguinte, em 1838.
Sacristán (2000) afirma que “quando há ensino é porque se ensina algo ou se ordena o ambiente para que alguém aprenda algo” (p. 120) de modo organizado e sistematizado, que se expressa em um material especializado – no caso, aqui considerado como livro didático – que constitui “suporte privilegiado dos conteúdos educativos, o depositário dos conhecimentos, técnicas ou habilidades que um grupo social acredita que seja necessário transmitir às novas gerações” (CHOPPIN, 2004, p. 553). Não se restringe, contudo, a essa função. Comporta, também, os aspectos de dominação e controle que envolvem a seleção e a difusão de determinados conteúdos; a padronização dos conhecimentos, os meios de comercialização, e inúmeros agentes envolvidos na sua elaboração (CHOPPIN, 2004).
Sob o aporte teórico dos autores acima, os livros didáticos constituem instrumentos que esclarecem, não apenas os meios que operacionalizam os métodos para a aquisição do conhecimento, para o desenvolvimento das habilidades, mas também articulam as finalidades educacionais em suas relações extra-escolares, que comportam intervenções sociais e políticas, envolvendo aspectos ideológicos, morais, culturais.
O objetivo deste trabalho é analisar o Compendio de musica para o uso dos alumnos do Imperial collegio “D. Pedro II”, de Francisco Manuel da Silva, adotado para a disciplina Música Vocal, por quarenta e um anos, no período de 1838 a 1879, a fim de apreender a seleção de conteúdos, de métodos e técnicas, explícitas ou implícitas no Compendio que, no desenvolvimento da disciplina, compuseram o currículo do Colégio Pedro II e podem expressar as forças que se articularam para legitimar as idéias que incidiram sobre a sua organização. Para essa análise foram articuladas outras fontes, como os programas de ensino, legislação, publicações, imprensa, métodos, materiais didáticos, partituras, programas de recitais, entre outros, para permitir uma visão abrangente sobre o tema.
2. O autor e a obra
Francisco Manuel da Silva (1795-1865) é mais conhecido como o compositor do Hino Nacional Brasileiro, mas foi músico de destaque na cidade onde nasceu, o Rio de Janeiro, e de grande atuação no cenário artístico nacional. Francisco Manuel da Silva foi aluno do Padre José Maurício Nunes Garcia,4 destacou-se como regente e, como compositor, deixou obra significativa e reconhecida como um grande expoente do seu tempo. Teve intensa atuação política e engajamento nas manifestações civis, inclusive na defesa da classe, organizando e dirigindo a Sociedade de Beneficência Musical, a restauração da Capela Imperial, na Sociedade Fluminense, na Ópera Nacional (LEITE, s/d).
Na defesa dos interesses dos músicos e das suas condições de trabalho, Francisco Manuel da Silva organizou, em 1833, a Associação Beneficência Musical, também chamada de Associação Musical. Era uma corporação que além de defender os interesses profissionais da classe, também prestava auxílio e assistência aos músicos mediante contribuição de seus membros. A Associação objetivava desempenhar, paralelamente, duas funções: a de amparo aos músicos e de incentivo cultural em fomento à música (ANDRADE, 1965). Promovendo a atividade cultural, a Associação garantia a participação e trabalho dos músicos em maior número de recitais e, conseqüentemente, maior arrecadação em favor dos músicos, conforme atestam os estatutos e documentação da entidade.
Preocupado com a formação dos músicos para melhores condições de trabalho e aprimoramento, Francisco Manuel da Silva foi o grande articulador da criação do Imperial Conservatório de Música, sendo o seu primeiro diretor, e praticamente único, enquanto esteve vivo; pois somente na ocasião de sua morte em 1865 é que deixou a direção do Conservatório, assumindo, em seu lugar, o Dr. Thomas Gomes dos Santos.
Foi num cenário de persistência nas negociações políticas por parte dos músicos envolvidos e intensa reivindicação profissional, que o Imperial Conservatório de Música foi inaugurado, em 1848, organizado para ministrar gratuitamente as aulas de música, mesmo sem envolver investimento público, já que a verba necessária para a abertura e funcionamento do Conservatório seria provida por duas loterias anuais, durante oito anos, a fim de organizar e manter o Conservatório, sem onerar os cofres públicos. Entretanto, documentos e peças oficiais5 podem comprovar a demora e as dificuldades da instalação do Conservatório, o descaso pelas reivindicações da Sociedade Musical e os obstáculos pelos quais passou nos primeiros anos de sua existência. Entre o requerimento de solicitação da verba, em 1841, sua aprovação e a efetiva inauguração em 1848, transcorreram sete anos; sendo que apenas a primeira cadeira – de Rudimentos, preparatórios e solfejos –, compreendendo o curso de Canto para o sexo masculino, foi implantada. O segundo curso, de Canto para o sexo feminino, só foi iniciado em 1853, doze anos depois de feita a solicitação (JARDIM, 2008).
O descaso pelas reivindicações da Sociedade Musical é declarado no editorial do jornal O Brasil, de 1841, que apontava o contraste do grande talento dos brasileiros para a música e a falta de atenção do governo em promover políticas de incentivo para a sua prática e formação, e denunciava:
A música tem sido entregue a seus destinos; hoje só é lícito gozar de seu ensino às pessoas abastadas que podem pagar mestres; ao povo nada se concede; coma, beba, vista-se, pague impostos, que mais quer? (Jornal O BRASIL, 1841, p. 4)
Binder e Castagna (1997) atribuem a Francisco Manuel da Silva o primeiro compêndio teórico sobre música, impresso no país, denominado Arte da muzica para uzo da mocidade brazileira por hum seu patrício, publicada em 1823, no Rio de Janeiro, pela Typographia de Silva Porto & C.ª. Tal compêndio, com trinta e oito páginas, apresenta características de sistematização das questões teóricas com a finalidade de ensinar música. Traz os mesmos elementos que a publicação de 1832, também de autoria de Francisco Manuel da Silva, chamado Compendio de musica pratica destinada aos amadores, e artistas brasileiros, com onze páginas (Artinha) e, com a criação do Imperial Conservatório de Música, Francisco Manuel da Silva, fez outra adaptação e publicou o Compendio de princípios elementares de música para o uso do Conservatório do Rio de Janeiro, com quinze páginas, em 1848.
A análise dessas obras publicadas revelou pequena variação dos conteúdos, ligeiramente aprofundada no caso do compêndio destinado ao uso do Conservatório, mantendo-se a forma concisa, sem exemplos ou propostas de atividades práticas.
3. Compendio de musica para o uso dos alumnos do imperial collegio “D. Pedro II”
Gasparello (2007) destaca o predomínio de materiais impressos estrangeiros destinados às atividades de ensino, até a década de 1860, e afirma que
em 1861, por exemplo, foi publicado o primeiro livro de História do Brasil por um professor do Colégio Pedro II, Lições de História do Brasil, de Joaquim Manuel de Macedo, que iniciou a linhagem dos professores/autores didáticos para a cadeira de História do Colégio. (GASPARELLO, 2007, p. 818-819)
Observa-se, que no caso da Música, desde a inauguração do Colégio Pedro II, em 1837, e de acordo com o Regulamento de 1838 que incluiu a matéria Música Vocal no currículo do colégio, já havia a indicação de uma publicação brasileira de autor nacional, o Compendio de musica para o uso dos alumnos do imperial collegio “D. Pedro II”, de Francisco Manoel da Silva, publicada no mesmo ano de 1838, em edição da Typographia Nacional. Como dito anteriormente, o Compendio é uma espécie de versão da famosa Artinha, daquele autor, e ao que parece, assim que a música fez sua estréia no âmbito educacional, o fez já com a indicação de um livro didático devidamente adaptado ao espaço escolar.
O Compendio, assim como a Artinha, de Francisco Manuel da Silva, compõem uma síntese normativa da música, apresentada de forma concisa para ser decorada, inculcada, recitada como uma oração, de forma individual e introspectiva, em consonância com as práticas de ensino da época. Não são tratados teóricos, contém apenas cerca de dez a quinze páginas que depois de decoradas serviam de guia para a iniciação das aulas práticas, ou seja, a aplicação dos conceitos decorados para leitura da partitura e execução no instrumento ou canto.
Mesmo circunscrita à área da formação específica, a forma que constitui as “artinhas” conviveu no espaço escolar por uma prática sedimentada pelos músicos, que repetiam os ensinamentos tal qual os haviam recebido. A despeito de várias tentativas de dar outro direcionamento para o ensino da música, com orientações e propostas divergentes e distintas, esses sistemas e processos continuaram a ser usados e seguidos pelos músicos que ministravam aulas nas escolas de formação geral, para cujo conteúdo requeria-se um profissional especializado (JARDIM, 2008).
Francisco Manuel da Silva inicia o seu Compendio com a dedicatória: “Que a Sua Majestade Imperial, o Sr. D. Pedro II, Imperador constitucional e defensor perpétuo do Brasil oferece para o uso dos alunos do Imperial Colégio de D. Pedro II” (1838, p. 1).
No Compendio... os conteúdos estão organizados de modo a contemplar aspectos teóricos relacionados à notação musical – pauta, notas e valores, claves, compassos – ou seja, abordam saberes necessários ao aprendizado da leitura do código da escrita musical, e por isso, relacionam-se à reprodução da partitura. A seguir, expõe conteúdos relacionados aos intervalos, escalas e tons, saberes que envolvem uma compreensão das regras estruturais e encadeamentos musicais dentro de uma lógica tonal. Refere-se, portanto, a compreensão e a escuta musical a partir de uma determinada concepção, formulada sob um padrão cultural.
Retoma, nas lições seguintes, problemas mais complexos da grafia musical relacionados à escrituração rítmica, como quiálteras, síncope, apogiaturas e outros sinais gráficos de expressão e dinâmica, assim como a nomenclatura técnica (em italiano) de andamentos e termos gerais usados na música. E, por fim, trata das regras fundamentais de Transposição; conhecimentos técnicos, de ordem prática, necessários para a execução da música e, principalmente, para acompanhamento.
A ausência de outras orientações e pela cristalização das práticas do ensino de música, nos permite deduzir que a técnica de aprendizado estava calcada na memorização desses conceitos e definições. O emprego da memorização visava à reprodução exata, na totalidade do texto escrito (partitura musical), que constitui um atributo da época, e que, de certa forma, ainda se mantém pela exigência de fidelidade absoluta à partitura.
A memorização não se relaciona apenas à execução da partitura, mas à forma de aquisição do conhecimento das regras teóricas e do sistema de escrita, cujo método de ensino não se dá pela análise, dedução e compreensão e sim pelo processo de aprender de cor, retendo na memória a definição dos usos e procedimentos da leitura, e o que se indica para a execução. Por esse método, supõe-se que o fato de o aprendiz conseguir recitar o conceito ou a localização das notas seja suficiente para que ele saiba como agir ao cantar ou ao tocar o instrumento musical.
Interessante ressaltar que a seqüência de apresentação dos tópicos de ensino, no Compendio..., segue a mesma estrutura de cursos de formação do músico, que em 1855, assumiu essa conformação no currículo6 do Imperial Conservatório de Música, e que se manterá de certa forma, inalterado, até os dias atuais:
- De Rudimentos, preparatórios e solfejos;
- De Harmonia e Composição;
- Regras de acompanhar.
Ressalta-se a importância dos processos teóricos serem ensinados, por essa concepção, antes do aprendizado prático, e primeiramente ser necessária a aquisição da leitura e escrita da notação musical; depois a Harmonia, Composição e prática de acompanhamento.
Isso significa que antes de o aprendiz manifestar idéias musicais originais, elas precisavam estar dispostas dentro das regras aceitas e permitidas na concepção musical da época. Por isso, as aulas teóricas ocupam um lugar predominante, pois é por meio delas que ocorre uma sistematização dos conceitos que devem ser aprendidos, introjetados e reproduzidos. Tais como os conceitos de Afinação (concepção da altura precisa dos sons que são considerados aceitos para fins musicais); de Ritmo (a divisão e proporção exata dos sons no tempo); de Contraponto e Harmonia (a consonância entre os sons, as suas progressões, seqüências e encadeamentos); até chegar à Composição, ou às formas e estruturas vigentes pelas quais o discurso musical deveria ser organizado.
Conforme salienta Francisco Manuel da Silva (1838), nas suas definições de Música, publicadas no Compendio de musica para o uso dos alumnos do imperial collegio “D. Pedro II”:
A melodia é a bem deduzida sucessão de diferentes sons de que se formam as frases musicais.
O ritmo é a simétrica organização que submete a duração dos sons aos movimentos do compasso, e regulariza todas as mais partes de que se compõem as frases. (SILVA, 1838, p. 3)
Considerações finais
É provável que a atuação de Francisco Manuel da Silva em tantas frentes de defesa dos interesses dos músicos, bem como sua tenacidade, habilidade política e insistência para colocar em prática seus ideais, tenha garantido, por tantos anos, a permanência de seu livro didático no currículo do Colégio Pedro II. Acrescente-se, também, que a organização desse conjunto de regras teóricas na forma de artinhas era usada pelos músicos nos processos de ensino em que vigorava o sistema individual mestre/discípulo e, constituíram-se como práticas de ensino descritas em documentos anteriores ao da elaboração do Compendio e do seu uso, tanto no Colégio Pedro II quanto no Imperial Conservatório de Música.7 Ainda hoje, de forma explícita ou camuflada, podem ser verificados nas práticas conservatoriais.
Inicialmente, a Música Vocal estava incluída no currículo do Colégio Pedro II com o sentido de formação do indivíduo, organizada como uma disciplina de saberes técnicos, para atender a demanda pelo ensino de música formada pela elite da Corte. O ensino e a prática da música, pela análise dos programas de ensino do Colégio, evidenciam um nítido interesse em uma formação primorosa do canto erudito. Por isso, essas aulas tinham a característica do ensino individualizado com o caráter de instrução especializada, principalmente, se considerarmos que no Rio de Janeiro, à época, não havia instituições de ensino que atendessem às expectativas de formação da elite, habituada ao teatro lírico e às cerimônias religiosas com grande aparato musical – instrumental e vocal. Ressalta-se, aqui, o valor e a necessidade social da música vocal e instrumental, assim como a sua apreciação, que envolvia, também, trilhar o percurso de sua prática e aprendizagem.
Contudo, justamente, em meados do século XIX, momento em que as condições do mercado editorial brasileiro se expandiam e tornava-se crescente o interesse por obras de autores didáticos brasileiros (GASPARELLO, 2007), o Compendio, de Francisco Manuel da Silva, foi preterido em favor da indicação de um método de autoria e edição francesas. O ensino da música demonstra estar novamente na contramão das tendências do momento.
A morte de Francisco Manuel da Silva e sua ausência no campo de batalha poderiam relacionar-se às alterações ocorridas, mas, o programa de ensino do Colégio Pedro II, de 1879, demonstra uma mudança na visão da música na escola pela indicação do livro didático, na determinação do uso do A.b.c. musical, de A. de Garaudé para a parte teórica e Solfejos, para a parte prática, do mesmo autor.
O A.b.c. musical e Solfejos de Alexis de Garaudé (1779-1852), inserem-se em um movimento ocorrido na Europa, especialmente na França, que questionava os procedimentos de ensino que privilegiavam somente as questões técnicas, e trazia propostas de ensino mútuo e simultâneo. Caracterizava-se pela popularização do acesso ao conhecimento e à escola, que, se por um lado favoreceu a difusão da educação popular, por outro se defrontou com questões didáticas que impuseram a necessidade da adequação de técnicas específicas para proceder ao ensino em circunstâncias tão diferentes. Opunha-se a este movimento o avanço do virtuosismo artístico, que exigia um ensino particularizado e especializado, cujo modelo e padrão era representado pelo Conservatório Nacional de Música de Paris e pelas formas conservatoriais, tão bem representadas pelos métodos de ensino de Francisco Manuel da Silva.
Podemos identificar, no espaço escolar, uma tentativa de introduzir mecanismos de ensino adotando métodos mais democráticos. Se, por um lado o Compendio e seu autor não voltaram mais ao espaço da educação formal, no Colégio Pedro II, a matriz que lhe deu origem, a Artinha, de Francisco Manuel da Silva, demonstrou adequar-se aos propósitos da instrução especializada, visto ter alcançado um sucesso editorial que perdurou por mais de um século.8
Notas
1 Coleção de Leis do Império do Brasil.
2 A fundação do Colégio Pedro II foi determinada pelo decreto de 2 de dezembro de 1837 – Coleção de Leis do Império do Brasil.
3 Os estudos no campo da musicologia, no Brasil, são recentes e em desenvolvimento nos últimos anos. As pesquisas iniciadas por Cleofe Pearson de Mattos, Francisco Curt Lange, Régis Duprat, Bruno Kiefer, Paulo Castagna, Lenita Waldige Mendes Nogueira, entre outros, incluem a catalogação e organização de acervos e descrição de documentos musicais. As pesquisas desenvolvidas por Paulo Castagna visam dar a conhecer compositores brasileiros e suas obras, mais notadamente mestres de capela e organistas, ligados às ordens religiosas, bem como o estudo de sua atuação profissional e de sua relação com a prática musical. Promove, assim, reflexões metodológicas sobre a catalogação de música em acervos brasileiros de manuscritos musicais.
4 O padre José Maurício Nunes Garcia (1767 -1830) foi mestre-de-capela na Irmandade do Rosário e São Benedito, desde 1798 até tornar-se mestre da Capela Real com a chegada da Família Real, em 1808. É considerado um dos mais expressivos compositores da música sacra brasileira (Cf. Dicionário Grove de música, 1994).
5 O decreto de 27 de novembro de 1841 concede duas loterias anuais a fim de estabelecer o Conservatório de Música. O decreto n.º 496 de 21 de janeiro de 1847 instrui sobre a criação do Conservatório, iniciando suas atividades em agosto de 1848, conforme relatórios do Conservatório.
6 Conforme a organização do Conservatório estabelecido no decreto nº 238, de 27 de novembro de 1841.
7 Foram encontrados relatos sobre os mesmos procedimentos de ensino em períodos anteriores ao da criação do Conservatório Imperial de Música (1848) que podem nos levar a crer que já constituíam uma forma sedimentada de prática de ensino; entretanto, são fontes que carecem de análise específica para posterior confirmação.
8 Em 1945 a Irmãos Vitale Editores adquiriu os direitos da Artinha, de Francisco Manuel da Silva e, de acordo com os registros da editora ela foi publicada, regularmente, até 1976. Durante todo o período não deixou de ser publicada.
Referências bibliográficas
ANDRADE, Ayres de. Francisco Manuel da Silva e seu tempo – 1808-1865. Vol. I. Rio de Janeiro: Sociedade Gráfica Vida Doméstica Ltda., 1965.
BINDER, Fernando Pereira e CASTAGNA, Paulo. Teoria Musical no Brasil: 1734-1854 - I Simpósio de Musicologia Latino-Americana - XV. Curitiba, 1997.
CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. In: Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 30, n. 3, set./dez., 2004
Coleção de Leis do Império do Brasil.
Dicionário Grove de música - Edição Concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
FREIRE, Ricardo Dourado. Sistemas de Solfejo analisados a partir de conceitos de Robert Gagné. Anais do 1º Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais. Curitiba: UFPR, 2005.
GASPARELLO, Arlete M. O livro didático entre práticas e saberes. In: Simpósio Internacional: Livro Didático – Educação e História – FEUSP, 2007.
JARDIM, Vera L. G. Os sons da República. O ensino da música nas escolas públicas de São Paulo na Primeira República - 1889-1930. Dissertação de Mestrado. PUC-SP, 2003.
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Vera Jardim - É musicista e licenciada em Música, pedagoga, especializada em Psicopedagogia, mestre e doutora em Educação (Educação: História, Política e Sociedade) pela PUC-SP. Atualmente é professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP e pesquisadora da PUC-SP. Tem experiência na área de Educação, Música e Artes, atuando principalmente na formação de professores e orientação de estágios, e na pesquisa histórica de materiais e livros didáticos, história da educação, história da educação musical. |
Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 273p., n.1, 2012
Recebido em: 08/03/2012 - Aprovado em: 25/03/2012
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