FREITAS, S. P. R. Da “Grande Teoria da Beleza”: harmonia como ordem, proporção, número e medida objetiva.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.12 - n.1, 2012, p. 138-156.

138

138

Artigos Científicos

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 273p., n.1, 2012

Da “Grande Teoria da Beleza”: harmonia como ordem, proporção, número e medida objetiva

Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas (Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, SC)

c2sprf@udesc.br

Resumo: Em nossas rotinas de ensino e aprendizagem de Harmonia, Teoria e Análise Musical, lidamos com valores, regras, leis, procedimentos proibidos e permitidos, normas de certo e errado, etc. que se fundamentam em determinadas concepções de “beleza” que nem sempre são propriamente, ou plenamente, declaradas. Relendo o capítulo “A beleza: história de um conceito” do filósofo polonês Wladyslaw Tatarkiewicz (1886-1980), o presente artigo aborda um conjunto de noções consagradas que, hoje emaranhadas, ora mais ou ora menos, acatam ou desacatam o preceito de que a “beleza”, em seu alto valor, reside na proporção e disposição harmônicas, possui caráter numérico e está associada ao que pode ser objetivamente apreendido pela racionalidade.

Palavras-chave: Beleza; Teoria musical; Harmonia; Análise musical; Tatarkiewicz.

On the “Great Theory of Beauty”: harmony as order, proportion, number and objective measure

Abstract: As harmony, theory, and musical analysis are generally taught and learned, one deals with values, rules, laws, prohibited and permitted procedures, standards of right and wrong, etc. which are based on certain conceptions of “beauty” that are not always explicitly or fully stated. Rereading “Beauty: history of a concept” by the Polish philosopher Wladyslaw Tatarkiewicz (1886-1980), this paper addresses a group of sacred notions currently more or less entangled that observe or disregard the precept that “beauty” with its high value resides in harmonic proportion and arrangement, is numerical in nature, and is associated with what can be objectively learned via rationality.

Key-words: Beauty; Musical theory; Harmony; Musical analysis; Tatarkiewicz.

É impossível definir o estado atual de uma disciplina qualquer sem mostrar que sua situação atual não é somente um elo no desenvolvimento histórico autônomo da ciência considerada, mas principalmente um elemento de toda a cultura no instante correspondente

WALTER BENJAMIN, 1931

Este texto aborda uma temática de considerável abrangência e penetração na história da cultura. Um composto de ideias e opiniões, de valores e princípios, de saberes racionais e empíricos, de contas abstratas e escolhas concretas que, profundamente impregnado ao que se entende por “Harmonia” no mundo ocidental, deve ser minimamente evidenciado em nossos estudos musicais. Trata-se de uma doutrina ideal – segundo a qual a “beleza”, em seu alto valor, reside na proporção e disposição harmônicas, possui caráter numérico e está associada ao que pode ser objetivamente apreendido pela racionalidade – que, revisando a história do conceito de Beleza, o filósofo polonês Wladyslaw Tatarkiewicz (1886-1980) chamou de “A Grande Teoria” da estética européia.

A teoria geral da beleza que se formulou em tempos antigos afirmava que a beleza consiste nas proporções das partes, para ser mais preciso, nas proporções e no ordenamento das partes e em suas inter-relações. [...] Essa teoria persistiu durante séculos afirmando [em sua versão mais limitada, que é a quantitativa] que a beleza se encontra tão somente naqueles objetos cujas relações entre as partes mantenham entre si uma razão análoga a que se observa nas proporções: um para um, um para dois, um para três, um para quatro, etc.

A Grande Teoria [em sua versão mais limitada] começou com os pitagóricos [...]. Baseava-se na observação da harmonia dos sons: as cordas produzem sons harmônicos se suas longitudes mantêm uma relação de números simples. Esta ideia se transferiu rapidamente de um modo parecido para as artes visuais. As palavras harmonia e simetria estavam estreitamente relacionadas com a aplicação da teoria aos âmbitos do ouvido e da visão respectivamente (TATARKIEWICZ, 2002, p. 157).

Para “A Grande Teoria”, as “proporções adequadas”, “naturais” ou “perfeitas”, não apenas no monocórdio (na música), mas também na arquitetura, na escultura, na pintura, no corpo humano (e mais adiante, também nas contas e medidas que regulam a “harmonia tonal” inclusive por isso dita “tradicional”)1, serão sempre formuladas “em termos numéricos”, pois, desde as antigas formulações pitagóricas que chegamos a conhecer através da produção escrita de personagens como Filolaus de Crotona (c.470-385 a.C.), “todas as coisas conhecidas possuem números; sem estes, não seria possível pensar nada” (FILOLAUS apud REALE, 1993, p. 85).

1. O número é a causa de tudo

Com a menção ao dictum de Filolaus, recupera-se o nome de Platão (c. 429-347 a.C.) o filósofo que, “herdando e transfigurando” (RIZEK, 1998, p. 258) a tradição pitagórica (que, com o tempo, será lembrada também como a tradição platônica), nos deixou textos fundamentais sobre a matéria aqui em apreço. Uma das revisões platônicas do legado pitagórico (cf. HAAR, 2001, p. 487; LIPPMAN, 1992, p. 3; ROWELL, 2005, p. 51) encontra-se no livro X, 616b, d’A República (PLATÃO, 1990, p. 492). Trata-se de uma passagem do “Mito de Er, o Armênio” já comentada por Wisnik que a avalia “como a mais completa e sistemática visão do cosmos musical e da harmonia das esferas” (WISNIK, 1989, p. 92).2 Outra referência (cf. BOECIO, 2005, p. 59; BERGHAUS, 1992, p. 47; GAINES, 2007, p. 56; GODWIN, 2000, p. 3; JAEGER, 1994, p. 901; 1992, p. 5; MATHIESEN, 2006, p. 114-117; MATTÉI, 2007, p. 109-110; NUNES, 1997, p. 30; RIZEK, 1998), encontra-se no “Timeu” (PLATÃO, 2011), o diálogo que versa sobre a criação do mundo e de todas as coisas que nele existem, que é considerado a “fonte primordial” do neoplatonismo e que se vale das razões pitagóricas para explicar a formação do universo a partir de um princípio primordial. Nesse cosmogônico “Timeu”, o Demiurgo (“o construtor do mundo”, tal como Platão o descreve) teria criado (composto ou fabricado) a alma do mundo do seguinte modo:

[Da combinação] entre o ser indivisível, que é imutável, e o ser divisível que é gerado nos corpos, misturou uma terceira forma de ser feita a partir daquelas duas. E quanto à natureza do Mesmo [identidade, números ímpares, o 3] e do Outro [auteridade, números pares, o 2], estabeleceu, de igual modo, uma outra natureza entre o indivisível e o divisível dos seus corpos [o ser, a essência, a mônoda, o 1]. [...] Procedendo à mistura [...], formou uma unidade a partir das três, e depois distribuiu o todo por tantas partes quantas era conveniente distribuir, sendo cada uma delas uma mistura de Mesmo, de Outro e de ser. Então, começou a dividir do seguinte modo: em primeiro lugar, retirou uma parte do todo [1]; em seguida, retirou outra que era o dobro da primeira [2]; uma terceira, que corresponde a uma vez e meia a segunda e ao triplo da primeira [3]; uma quarta, que era o dobro da segunda [4]; uma quinta, o triplo da terceira [9]; uma sexta, oito vezes a primeira [8]; e uma sétima, que corresponde a vinte e sete vezes a primeira [27]. Depois disto, preencheu os intervalos duplos e triplos, subtraindo partes da mistura inicial e colocando-as entre as outras, de tal forma que cada intervalo tivesse dois centros [ou mediedades, mesotes]: um que transpõe um dos extremos e é transposto pelo outro na mesma fração [a mediedade harmônica], e outro [a mediedade aritmética] que transpõe o extremo que lhe é numericamente idêntico e também ele é transposto. Destas ligações foram gerados nos intervalos atrás referidos outros intervalos de um e meio, um e um terço e um e um oitavo. Através do intervalo de um e um oitavo, preencheu todos os de um e um terço e deixou uma parte de cada um deles, tendo este intervalo sobrante sido definido pela relação entre o número duzentos e cinquenta e seis e o número duzentos e quarenta e três. Foi deste modo que a mistura, da qual retirou aquelas partes, foi utilizada na sua plenitude. Então, cortou toda esta composição em duas partes no sentido do comprimento e, sobrepondo-as, ao fazer coincidir o centro de uma com o centro da outra (semelhante a um X) dobrou-as em círculo, juntando-as uma à outra pelo ponto oposto àquele pelo qual tinham sido ligadas, e impôs-lhes aquele movimento circular que gira no mesmo local; destes dois círculos, fez um exterior e outro interior. Então, determinou que o movimento exterior corresponderia à natureza do Mesmo, e o interior à do Outro. Fez com que o movimento do Mesmo se orientasse para a direita, girando lateralmente, e que o do Outro se orientasse para a esquerda, girando diagonalmente, e deu preeminência à órbita do Mesmo e do Semelhante, pois a ela só deixou ficar indivisa. Por outro lado, a órbita interior dividiu-a em seis partes e formou sete círculos desiguais, fazendo corresponder cada um deles a um intervalo duplo ou triplo, de tal forma que havia três tipos de intervalos. Definiu que os círculos andariam em sentido contrário uns aos outros, três dos quais com velocidade semelhante, e os outros quatro com velocidade diferente uns dos outros e dos outros três, mas movendo-se uniformemente. [...] Deste modo, entrelaçada em todas as direções, desde o centro até à extremidade do céu, abarcando-o do exterior num círculo, e ela girando em torno de si mesma, a alma deu início ao começo divino de uma vida inextinguível e racional para todo o sempre. Assim foi gerado o corpo do céu, que é visível, e a alma, invisível e que participa da razão e da harmonia e é a melhor das coisas engendradas pelo melhor dos seres dotados de intelecto que são eternamente. Constituída pela mistura dessas três partes da natureza do Mesmo, do Outro e do ser, dividida e unida segundo a proporção, ela gira em torno de si própria e, sempre que contata com qualquer coisa cujo ser pode ser dividido ou com qualquer coisa cujo ser não pode ser dividido, é movimentada na sua totalidade; ela informa a que entidade isso é semelhante, de que entidade é diferente, e, principalmente, em relação a que entidade e em que circunstâncias acontece afetar o que devém e o que é eternamente, e por cada um destes é afetada (PLATÃO, 2011, p. 105-107).

As contas deste conto foram refeitas muitas vezes ao longo da história (cf. KEPLER, 1997, p. 131-133) e não são propriamente simples. Com a ajuda de Rocha podemos apreender algo mais desta notável equação com a qual Platão procura “demonstrar que a alma deve ter harmonia, como acontece com a razão” (ROCHA, 2007, p. 217):

Utilizando noções que pertencem ao campo musical, e não à aritmética ou à geometria, Platão definiu o que era o intervalo existente entre os termos de uma media [mediedade]. Ao invés de determinar os intervalos através de diferenças entre números, ele os caracterizou usando sons, considerando que a cada número correspondia um som e que os intervalos eram as distâncias entre os sons. A série de sete números citada acima [1, 2, 3, 4, 9, 8, 27] contém uma progressão geométrica de números pares (1, 2, 4, 8) e uma progressão geométrica de números ímpares (1, 3, 9, 27). A união destas séries [destas duas “linhas-pilastras”] é tradicionalmente representada com a forma da letra grega lambda [Λ, “o ponto de junção”, ver Figura 1a]. Platão preencheu os intervalos entre os números que compõem essas progressões com uma média harmônica e uma média aritmética. A média harmônica se obtém utilizando a fórmula: x = 2(a x b) / a + b. E a média aritmética é obtida com a seguinte operação: x = a + b / 2. Assim, as médias harmônica e aritmética entre 1 e 2, por exemplo, são 4/3 e 3/2, respectivamente. No que diz respeito à música, se atribuímos o número 1 a uma nota e o número 2 à nota que corresponde ao seu dobro e está uma oitava acima (dó e dó., por exemplo), o intervalo de quarta (4/3 ou dó-fá) [logos epitritos, em grego, ou ratio sesquitertia, em latim] será a média harmônica e o intervalo de quinta (3/2 ou dó-sol) [logos hemiolios, em grego, ou ratio sesquialtera, em latim] será a média aritmética. Através desse processo, Platão continuou preenchendo cada um dos intervalos da progressão e obteve duas séries [Figura 1b]. Se juntarmos estas duas séries, podemos traduzi-la para a partitura [Figura 1c] (ROCHA, 2007, p. 217-219).

Figura 1: Razões pitagóricas, proporções e suas mediedades no Timeu” de Platão.

A corrente pitagórico-platônica avança sobre o longo processo da sincretização grego-judaico-cristã. Sincretização determinante em todos os aspectos da história ocidental e que também influi na formação da teoria musical como a conhecemos hoje. Nesta trajetória, os nomes de “Santo Agostinho (c. 354-430) e São Tomás de Aquino (1225-1274) [...] representam as etapas de início e término do processo pelo qual os filósofos católicos da Idade Média chegaram a um acordo com a filosofia grega e harmonizaram as doutrinas de Platão e Aristóteles com suas próprias crenças” (ROWELL, 2005, p. 92). Como se sabe, foram inúmeras as negociações que permitiram a consolidação da nova teoria musical, ocidental e cristã. E uma delas foi uma obrigatória conversão da simbologia dos números gregos em uma aritmologia católica. Neste processo, Santo Isidoro de Sevilha (c. 560-636) cuidou de escrever um capítulo das “Etimologias” (III,4) dedicado ao tesouro dos números: “Não se deve desprezar os números. Pois em muitas passagens da Sagrada Escritura se manifesta o grande mistério que encerram. Não foi em vão que se escreveu o louvor de Deus no livro da Sabedoria (11,20): Dispusestes tudo com medida, número e peso”(LAUAND, 2003, p. 43). Esta atenção se fez notória, e com ela se deu a avassaladora conversão da harmonia única do universo.3 Se os pitagóricos diziam o “número é a causa de tudo”, os doutores da igreja passaram a dizer:

“Deus é a causa de tudo”, afirmava Clemente de Alexandria. [...] Atanásio escrevia: “A Criação, como as palavras de um livro, mostra o Criador”, o mundo é belo porque é obra de Deus! Mais tarde, entre os escritos medievais, a beleza passou de ser uma qualidade das obras divinas, convertendo-se em um atributo de Deus mesmo. Para o escolástico carolíngio Alcuino, Deus era a beleza eterna (aeterna pulchritudo). No apogeu da escolástica [...] Ulrich de Estrasburgo escreve: “Deus não só é o perfeitamente belo e o sumo grau da beleza, é também a causa eficiente, exemplar e final de toda beleza criada”. [...] O mundo todo era belo porque tudo havia sido ordenado por Deus (TATARKIEWICZ, 2002, p. 161-162).

2. A princípio agostiniano da ordem e do número como fundamento da beleza

Ao longo dessa história da “Beleza”, repercute o nome de um dos grandes baluartes da “Grande Teoria”, o supracitado pensador cristão da patrística: Aurelius Augustinus Hipponensis, o Santo Agostinho (c. 354-430), célebre apologista da conciliação entre a antiga tradição filosófica grega e a nova religião cristã e autor de um dos mais influentes tratados musicais da idade média: o “De musica” (AGUSTÍN, 2007) em seis livros datados de 388 a 391 (cf. FUBINI, 1994, p. 84-91; FUCCI AMATO, 2005, 2006; ROWELL, 2005, p. 92-96; TATARKIEWICZ, 1989, p. 51-71). São diversas as máximas agostinianas que podem sintetizar a sua perene autoridade sobre o tema: “O ‘número’ é o gerador da ordem e da harmonia de todo o movimento” (cf. FUCCI AMATO, 2005, p. 25). “A beleza [...] é o prazer que a alma encontra ao descobrir no objeto, por meio dos números de juízo, as ideias de ordem, proporção e unidade, preexistentes em si mesmas em Deus” (KIRCHOF, 2003, p. 93). “Só a beleza agrada; e na beleza, as formas; e nas formas, as proporções; e nas proporções, os números”. “Beleza é medida, forma e ordem (modus, species et ordo) é “aequitas [equidade, justiça, igualdade, moderação], numerosa ou numerositas [o grande número, aquilo que está conforme a medida, a harmonia]”. Para o agostinismo o princípio da ordem e do número é basilar e divino, é o fundamento que regula todas as formas da beleza, “pois nada existe ordenado que não seja belo” (AGOSTINHO apud TATARKIEWICZ, 1989, p. 63), e nada é belo sem numerus:

Até os pássaros e as abelhas constroem conforme os números, o homem deveria trabalhar como eles, porém de forma consciente. [Sobre a beleza do numerus] contempla o céu, a terra e o mar e tudo o que neles há, os astros que brilham no firmamento, os seres que se arrastam, voam ou nadam; todos têm sua beleza, porque têm seus números: tira-lhes isto e não serão nada. [...] Inclusive os artífices de todas as belezas corpóreas tem em sua arte números, com os quais executam suas obras [...]. Busca depois qual é o motor dos membros do próprio artista: será o número. [...] [Na trinômia agostiniana: modus–species–ordro. Cf. Figura 2] Todas as coisas são tanto melhores quanto mais moderadas, formosas e ordenadas são, e tão menos boas quanto menos moderadas, menos formosas e menos ordenadas [...] estas três coisas [...] são como bens gerais em todos os seres criados por Deus, no espírito e no corpo [...]. Ali onde se encontram estas três qualidades em alto grau, existem grandes bens; onde são pequenas, existem pequenos; onde faltam, não há nenhum bem (AGOSTINHO apud TATARKIEWICZ, 1989, p. 53-65).

Desse modo, a música que desconsidera a moderação e a medida, rompe a ordem e erra os números, é música intrinsecamente “do mal”, pertence ao reino das sombras, expressa o “princípio do caos” onde reina o rival “desestruturador da ordem divina”. Para sintetizar a posição que o numerus ocupa no esquema das coisas estéticas em Santo Agostinho – considerado “a principal autoridade musical no mundo luterano” (LUCAS, 2008, p. 26) – a Figura 2 traz um diagrama redesenhado a partir de Rowell (2005, p. 92-96) ao qual são acrescidos alguns comentários de Tatarkiewicz (1989, p. 53).

Figura 2: Esquematização das múltiplas relações entre as qualidades estéticas na trinômia agostiniana.

Rowell (2005, p. 93) destaca que a hermenêutica agostiniana sublinhou na Sagrada Escritura as divinações que aproximam a atividade criadora e ordenadora de Deus (hebraico-cristão) da metafísica pitagórico-platônica (na qual o princípio fundamental da criação é o número e o ser das formas só se dá a reconhecer através de suas propriedades numéricas). Passagens bíblicas que entraram a fazer parte das homilias teórico-musicais, tais como: [Moderação divina] “Mas tudo dispuseste com medida, número e peso” (SABEDORIA, 11, 20); [A origem da sabedoria] “Ele a criou, a viu, a enumerou e a difundiu sobre todas as suas obras” (ELESIÁSTICO, 1, 9); [A grandeza divina] “Quem pôde medir as águas do mar na cavidade da sua mão? Quem conseguiu avaliar a extensão dos céus a palmos, medir o pó da terra com o alqueire e pesar os montes na balança e os outeiros nos seus pratos?” (ISAÍAS, 40, 12). Defendendo que beleza (pulchrum) é moderação (modus), forma (species) e ordem (ordro), e que o numerus possibilita que tais propriedades sejam apreensíveis, essa estética teológica conheceu um longo percurso: a antiga concepção agostiniana “da música como a arte das proporções numéricas” (LUCAS, 2008, p. 24) atravessou a Idade média e embasou a modernizadora e influente concepção da “musica poética” luterana (cf. BARTEL, 1997, p. 33-36), daí diluiu-se na era burguesa repercutindo na contemporaneidade.

Por causa da sua estrutura ordenada numericamente, a música era apropriada para refletir e até mesmo representar o cosmo, o universo, a criação divina, que, dá mesma forma, estavam ordenados à partir do número. Já no tratado anônimo surgido antes do ano 900, Musica Enchiriadis, encontra-se o princípio: “Na formação da melodia, o que é gracioso e gentil será determinando pelos números, aos quais os tons se condicionam. O que a música oferece [...], tudo é formado a partir do número. Os tons passam rapidamente, mas os números [...] permanecem”. Em 1538 escreveu Lutero em seu “Encomion musices”: “Nada há sem [...] o número sonoro”. Quase dois séculos mais tarde, na época de J. S. Bach, Andreas Werckmeister escreveu: “As proporções musicais são coisas perfeitas que o intelecto pode compreender. Por isso são agradáveis. Mas o que o intelecto não compreende, o que confunde e perturba, isso o ser humano abomina” (MÓDOLO, 1996, p. 2).

A ideia de numerus é fundamental para se compreender a visão de música como discurso retórico e simbólico, e também para se compreender a posição privilegiada que a música alcançou, entre as artes, no final do século XVIII no mundo luterano. [...] A visão de música como numerus ajuda a compreender o cultivo do contraponto na prática musical luterana, enquanto na Itália humanista, esta arte passou a ser alvo de críticas a partir do século XVII (LUCAS, 2009, p. 31-32).

Em sintonia com tais repercussões, as resignificações das proporções musicais pitagóricas (1:1, 1:2, 2:3, 3:4, etc.) podem ser rememoradas também com o auxílio de uma passagem do colossal “�����������������������������������������������������������������De universo: sobre a natureza das coisas, as propriedades das palavras e o significado místico das realidades” (em vinte e dois volumes!) escrito pelo abade Rábano Mauro (c.784-856), o Praeceptor Germaniae. No Capítulo III do Livro XVIII: De numero, Rábano aborda o significado místico dos números com tal perícia teológica que o helênico Tetraktýs, o triângulo decádico pitagórico (1 + 2 + 3 + 4 = 10)4, pôde, perfeitamente, ser assimilado como um patrimônio legitimamente judaico-cristão.

Os números, através de alegorias, mostram-nos muitos aspectos do mistério que devemos venerar:

O número 1 [a nota fundamental]: Já o primeiro número, o um, indica a unidade da divindade. Dele se escreveu no Deuteronômio (6, 4): “Ouve, ó Israel! O Senhor teu Deus, é o único Senhor”. (Unus, em latim, pode significar: um, um só, único ou uno. Assim, traduzimos: Dominus unus, que literalmente seria “Senhor um”, por único Senhor). O um expressa também a unidade da Igreja e da fé. Daí que nos Atos dos Apóstolos (4, 32) [...]: “Eram um só coração e uma só alma”.

O número 2 [a oitava]: Já o dois diz respeito aos dois testamentos. Daí que em I Reis (6, 23) esteja escrito: “E fez dois querubins que tinham dez côvados de altura”. Dois também são os mandamentos da caridade: “Estes dois mandamentos resumem toda a lei e os profetas” (Mt 22, 40). O dois expressa ainda as duas dignidades: a régia e a sacerdotal, figuradas por aqueles dois peixes que acompanhavam os cinco pães naquela passagem do Evangelho. O dois significa ainda os dois povos: os judeus e os gentios. Daí que em Zacarias (6, 13) se diga: “E haverá paz entre eles dois”. Também o dois significa a união da alma e do corpo. Daí que o Senhor diga no Evangelho (Mt 18, 19): “Se dois de vós estiverem reunidos sobre a terra...”. Sobre isso também fala o profeta Amós (3, 3): “Acaso podem dois andar juntos se não estão em união?” O dois prefigura também a separação entre os eleitos e os condenados, como diz o Senhor no Evangelho (Mt 24, 40): “Estarão dois no campo: um será tomado; o outro, deixado”.

O número 3 [a quinta justa] é próprio do mistério da Santíssima Trindade, tal como se diz na Epístola de João (I Jo 5,7): “Três são os que dão testemunho”. O três também representa o mistério da Paixão, Sepultamento e Ressurreição do Senhor. Daí que Oséias (6, 2) diga: “Dar-nos-á de novo a vida em dois dias; ao terceiro dia ressuscitar-nos-á e viveremos”. O três exprime ainda a fé, a esperança e a caridade [...]. O três significa ainda os três tempos: o primeiro, antes da lei; o segundo, sob a Antiga Lei, e o terceiro, sob a graça. É por isso que se lê na parábola evangélica (Lc 13, 7): “Eis que já são três anos que venho buscar fruto da figueira e não o encontro”. O três representa também as três formas do agir humano para o bem ou para o mal: pensamentos, palavras e obras. [...]. O três mostra ainda o tríplice modo de os fiéis professarem sua fé: como clérigos, monges ou no casamento. Dessa tríplice profissão na Igreja fala o Senhor por Ezequiel (14,20), dizendo: “Se estes três homens, Noé, Daniel e Jó, estivessem no meio deles não poderiam salvar por sua justiça nem seus filhos nem suas filhas, mas somente a si próprios.5

O número 4 [a quarta justa]: O número quatro é próprio dos quatro Evangelhos, como diz Ezequiel (1, 4): “E no centro havia a semelhança de quatro animais”. O 4 também significa misticamente as virtudes dos santos: Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança; que, pela liberalidade de Deus, revigoram as almas dos santos. Daí que o Evangelho (Mc 8, 9) diga: “E os que comeram eram cerca de quatro mil pessoas. Em seguida, Jesus os despediu”. Quatro também diz respeito às quatro partes do mundo (os pontos cardeais) a partir das quais a Santa Igreja se reunirá. Daí que afirme o profeta (Is 43, 5): “Do Oriente conduzirei a tua descendência e do Ocidente eu te reunirei. Direi ao setentrião: ‘Devolve-os!’ e ao meio-dia: ‘Não impeças!’”. Do mesmo modo, o quatro pode simbolizar os 4 elementos dos quais é formado o corpo humano, pois principalmente deles depende a força e a subsistência do corpo. Com efeito, no Evangelho está escrito que o paralítico no leito era transportado por quatro.

O número 10 [a oitava]: O dez é o número do Decálogo (os dez mandamentos da lei de Deus). Por isso o Salmista (Sl 32, 2) diz: “Entoar-Te-ei hinos na harpa de dez cordas”. É também o número da perfeição das obras e da plenitude dos santos, o que é simbolizado por aquelas dez cortinas que, por ordem do Senhor (Êxodo 26,1 e ss.: “Farás o tabernáculo com dez cortinas...”), foram feitas no tabernáculo do testemunho (cf. Êx 25, 16)” (RÁBANO MAURO apud LAUAND, 2003. p. 43-44).

Contando com essa espécie de aritmologia omniabarcante escreveram-se “leis e normas” ditas “clássicas”, razões objetivas de um ideal de beleza que, assim paramentado, se afirma universal, intemporal e insubmisso a qualquer interação com causas que lhes são externas. Assim, prossegue Tatarkiewicz, segundo critérios pitagóricos, platônicos, aristotélicos e agostinianos que se somam nessa antiga “Grande Teoria”: Beleza é medida, precisão, ordem e proporção enquanto que a carência destes quesitos é Fealdade (caos, descomposição, desinteligência, desarmonia). Com o gradual ocaso da Antiguidade “A Grande Teoria” sobrevive tanto nas reafirmações quanto nas reformulações e ampliações que vai sofrendo. Plotino (o filósofo egípcio neoplatônico que viveu entre c.204-270) dirá que sim, “a beleza consiste em proporção e disposição de suas partes, mas não é só isso”: se acha também nas coisas simples (indivisíveis em partes) e não é apenas uma medida que reside fixa nas coisas, posto que sua essência surge na alma que “ilumina” tais medidas e coisas (cf. LICHTENSTEIN, 2004, p. 26-34). Pseudo-Dionísio (um cristão plotiniano do século V) sintetizará a máxima desta dupla causa: a beleza consiste em “proporção e esplendor” (cf. LICHTENSTEIN, 2004, p. 35-41). No século XIII, o erudito franciscano inglês Robert de Grosseteste (1168-1253) defende que “a composição e a harmonia de todas as coisas compostas derivam-se somente das cinco proporções que se encontram entre os quatro números: um, dois, três e quatro”. E o sábio Ulrich de Estrasburgo (c.1220-1270) logo reitera o viés plotiniano: beleza é “consonantia cum claritate”. Tendência também sublinhada por São Tomás de Aquino (1225-1274): o belo (pulchrum) é claritas et debita proportio. Reflexos desta iluminação plotiniana alcançam a Renascença, e Marsilius Ficino (1433-1499), o platonista e personagem mor da Academia Fiorentina, ainda defenderá a concomitância “esplendor e proporção” na definição ideal da beleza.

Aqui, no Renascimento, entram em cena personagens como o filósofo da arquitetura e do urbanismo, pintor, músico e escultor Leon Battista Alberti (1404-1472), outro dos grandes nomes da Academia Fiorentina.

Perguntado sobre “qual é a propriedade que [...] faz bela uma coisa”, Alberti respondeu: “definirei a beleza como a harmonia de todas as partes, seja qual for o tema em que tais partes revelem-se ajustadas entre si com tanta proporção e conexão que nada pode ser acrescentado, diminuído ou alterado sem prejuízo” (ALBERTI apud OSBORNE,1983, p. 258).

No seu “De pictura” de c.1435 (ALBERTI, 2009) encontra-se uma pioneira exposição completa das leis da perspectiva que, como observam autores como Harnoncourt (1990, p. 78), são leis que se comparam com as leis da tonalidade harmônica. Tais comparações permitem notar, na passagem do Humanismo para a Idade Moderna, como os vínculos numéricos proporcionais entre o mundo visual e o sonoro-musical se conservam sofrendo permanentes modificações. Alberti renova as velhas máximas:

Beleza é harmonia e boa proporção, é “a consonância e integração mútua das partes”. Alberti usou várias palavras latinas e italianas para descrever o que queria dizer concinnitas [boa disposição, arranjo, combinação, elegância simétrica], consensus [acordo, conformidade, cumplicidade], conspiratio partium [acordo, harmonia de divisão], consonantia [ressonância, produção conjunta de sons], concordanza [analogia com os sons harmoniosos da corda] – porém todas produzem o mesmo efeito: a beleza depende da disposição harmoniosa das partes (TATARKIEWICZ, 2000, p. 159-160).

Em 1581, no célebre “Dialogo della Musica Antica et della Moderna”, o defensor da monodia Vicenzo Galilei (1520-1591), personagem de vulto da Camerata Fiorentina e pai do famoso astrônomo Galileu Galilei (1564-1642), bate na mesma tecla: teoria da música é um problema de “raggione e regole”. “A Grande Teoria” segue adiante e extrapola os limítrofes da renascença italiana. Em seu “Compêndio sobre perspectiva e proporção” o artista alemão Albrecht Dürer (1471-1528) escreve: “sem uma proporção adequada nenhuma figura pode ser perfeita”. Para um dos maiores mestres acadêmicos da França do século XVII, Nicolau Poussin (1594-1665): “a ideia de beleza se materializa se tem ordem, medida e forma”. No ápice do academicismo na teoria da arquitetura barroca na França, no “Course d’architecturede 1675, o célebre Nicolas-François Blondel (1618-1686) descreve a beleza como um “concert harmonique” afirmando que tal harmonia “é a fonte, princípio e causa” da satisfação que a arte proporciona. Cem anos depois o clássico ideal da beleza como “ordo e mensura” será defendido pelo esteta suíço Johann George Sulzer (1720-1779) que, em sua influente enciclopédia “Allgemeine Theorie der Schöne-Künste” (“Teoria geral das belas artes” publicada em Leipzig entre 1771 e 1774), afirma: “somente as mentes débeis não se dão conta que na natureza tudo aspira a perfeição”.

3. Das modernas concepções de “beleza” e algo de suas repercussões nas idealizações da “harmonia” musical

Na esfera musical, na viragem para o século XVIII – quando os esforços de personagens como Descartes, Kepler, Mersenne, Kircher, Werkmeister, Wallis, Sauveur, etc., já iluminam consideráveis aspectos do lado místico, sagrado e misterioso do monocórdio – “A Grande Teoria” vai novamente se atualizar. Acolhendo a noção de que a harmonia possui uma perfeição preestabelecida na simples divisão aritmética da corda e também a premissa de que é possível demonstrar racionalmente que os fenômenos naturais conhecidos empiricamente serão sempre matematizáveis, surgem apologistas de vulto como Leibniz e Rameau. Certa vez, sendo solicitado a expor sua definição de perfeição, o filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) assim respondeu:

A perfeição é a harmonia das coisas [...] o estado de concordância ou identidade na variedade. Você pode até dizer que é o grau de contemplabilidade. Na verdade, a ordem, a regularidade e a harmonia correspondem à mesma coisa [...] Portanto, segue-se também naturalmente que Deus, ou seja, a mente suprema, é dotado de perfeição, na verdade, do maior grau, pois do contrário, Ele não se importaria com as harmonias (LEIBNIZ apud GAINES, 2007, p. 123).

Leibniz deixou frases lapidares sempre rememoradas quando se trata de sublinhar que a “Harmonia” (musical ou outras) decorre do ato ou efeito de contar: “música nos encanta, ainda que sua beleza consista simplesmente em uma correspondência de números” (LEIBNIZ apud TATARKIEWICZ, 2002, p. 160). A controversa predeterminação leibniziana ressoa em sua conhecida sentença sobre a questão: “Musica est exercitium arithmeticæ occultum nescientis se numerare animi”.6 Para Leibniz,

“o céu e a terra são regulados pelas mesmas leis, claras, cognoscíveis, calculáveis”. Segue daí uma confiança irrestrita num universo governado por leis acessíveis à nossa razão. A ideia de um Deus, comum aos diversos sistemas, e esta confiança na razão capaz de tornar os acontecimentos do mundo previsíveis, causaram no homem a sensação de estar centrado. [...] a prevalência da razão, em particular da matemática, na concepção do mundo e de Deus, é um elemento unificador. [...] matemática e a lógica são ciências de primeira classe porque coincidem com a estrutura, com a essência de Deus, do mundo e do homem. Dentro desta perspectiva compreende-se que o filósofo falasse de uma “Harmonia preestabelecida” (KIEFER, 1981, p. 245-246).

Nestes anos do século XVIII, na França, na órbita da harmonia dos músicos, “A Grande Teoria” recebe o seu estatuto de modernidade das mãos do compositor e teórico Jean-Philippe Rameau (1683-1764). Na introdução do “Traité de I’harmonie” de 1722, vamos ler: “A música é uma ciência que deve ter regras certas; estas regras têm que derivar de um princípio evidente e este princípio não se revela a nós sem a ajuda da matemática” (RAMEAU apud FUBINI, 2002, p. 68). Esta conhecida sentença ramista mostra parentesco com a sentença leibniziana, mas, numa perspectiva geral, ambas podem ser lidas como ressonâncias racionalistas iluministas de afirmações, igualmente influentes, que atravessam a história culta da teoria musical assinalando a sua forte veia pitagórica-platônica. Como diz Fubini (2002, p. 84), “há que se recordar que o conceito de música como ciência [...] possui uma ilustre tradição que remonta ao pensamento medieval e [...] ao pensamento [...] filosófico grego”: Johann Gottfried Walter em 1708 definiu a música como “uma ciência celestial-filosófica e especificamente matemática” (cf. GAINES, 2007, p. 123). Johann Mattheson (1681-1764) escreveu “a música é a ciência e a arte de dispor habilidosamente sons idôneos e agradáveis” (cf. DAHLHAUS e EGGEBRECHT, 2009, p. 20). Johann Lippius em 1612 afirmava: “A música é uma ciência matemática [...] envolvendo a artística e prudente composição de um canto harmônico, especialmente para mover moderadamente no homem, para a glória de Deus” (cf. LÓPEZ-CANO, 2000, p. 252). Johannes de Garlandia no século XIII dizia: “A música é a ciência do número em relação com os sons” (cf. CANDÉ, 1989, p. 10). Em várias definições de “forte teor pedagógico” (TOMÁS, 2005, p. 41) o estadista e escritor latino Cassiodorus  (c. 490-581) emprega a tríade música-número-ciência: “A música é a ciência ou disciplina que trata dos números, porém de alguns em concreto, os que se encontram nos sons”; “A música é a ciência que estuda a diferença e a conveniência dos elementos harmoniosos entre si, quer dizer, os sons”; “Música é a ciência da harmonia [...] Nenhuma ciência pode alcançar a perfeição sem a música, pois não existe nada fora dela”, etc. (CASSIODORUS  apud TATARKIEWICZ, 1989, p. 93, 95-96 e 133). E com o enciclopédico Cassiodorus  (cf. McKINNON, 1998, p. 143-148) voltamos ao nome de Agostinho que, em seu De Musica (AGUSTÍN, 2007, p. 90) consagrou a definição (uma das mais citadas apropriações cristãs desta antiga e perene associação): Musica est scientia bene modulandi, ou “Música é a ciência do bem medir” (cf. FUBINI, 1994, p. 84-91; FUCCI AMATO, 2005, p. 25; ROWELL, 2005, p. 92-96; TATARKIEWICZ, 1989, p. 51-71; TOMÁS, 2005, p. 31-37). Retrocedendo ainda mais, chega-se ao nome de Aristides Quintiliano, teórico do século III ou IV d. C., que escreveu “a música é uma ciência do melos e das coisas relacionadas a ele” (cf. ROCHA, 2009, p. 140). Tais gnomas históricos continuam ocupando as mentes filosóficas que ainda se perguntam o que é música? O que é ciência? O que se entende por medir?

Com Rameau, o ideal clássico da harmonia – como medida, precisão, ordem e proporção entre elementos diversos regidos por um princípio primordial – reafirma-se naquilo que o théoricien chamou de “corps sonore”. Termo que “designa qualquer sistema vibratório que emita sons harmônicos acima de sua frequência fundamental. Desta forma, toda corda, ao vibrar, contém em si mesma o germe de toda a música” (CRISTENSEN apud VIDEIRA, 2006, p. 36). Em 1750, no “Démonstration du principe de l’harmonie..., Rameau declara:

O corpo sonoro, que eu pleno de razão chamo de som fundamental, esse princípio único gerador e ordenador de toda a música, essa causa imediata de todos os seus efeitos, o corpo sonoro, digo, mais que ressoa, ele gera ao mesmo tempo todas contínuas proporções de onde nascem a harmonia, a melodia, os modos, os gêneros, e até mesmo as menores regras necessárias à sua prática (RAMEAU apud LOUREIRO, 2002, p. 28).

Em uma passagem de 1752, do “Nouvelles réflexions sur sa démonstration du principe de l’harmonie”, percebe-se como, para Rameau esse “princípio único” é um ordenador com capacidades bem mais amplas do que as restritas aos assuntos técnicos da harmonia musical:

Quanta fecundidade existe nesse fenômeno! Tantas consequências se derivam do mesmo. Alguém pode negar-se a considerar um fenômeno tão único, tão abundante, tão racional, se posso usar este termo, como um princípio comum a todas as artes em geral, ou pelo menos às belas artes? Não seria razoável acreditar que a Natureza, que é simples em suas leis naturais, pode ter um só princípio para todas as coisas que parecem estar aparentadas umas com as outras pelo fato de que provocam as mesmas sensações em nós, coisas como as artes cuja finalidade é proporcionar-nos o sentimento da beleza? (RAMEAU apud GODWIN, 2000, p. 146).

Como se observa, são vivas as ressonâncias do monocórdio, são vivas as ressonâncias da Grande Teoria. E também aqui, na teoria musical da era moderna, se faz esclarecedora a observação: “Pode-se dizer que a teoria da beleza [e da harmonia] se formou gradualmente através da história. Na realidade, isto se sucedeu de outra maneira: se formulou antes, e sua história posterior foi mais propriamente de crítica, de limitação, de correção” (TATARKIEWICZ, 2000, p. 182). Com a noção do “corps sonore”, Rameau leva a cabo uma limitadora correção crítica (agora harmônica, tonal e laica) da milenar “experiência de Pitágoras”. Experiência que, na contemporaneidade, desencantada, se conserva na noção de senso comum que os músicos, de modo geral, guardam do fenômeno físico-sonoro que passamos a cultuar como a “Série Harmônica” (um dos principais tópicos correlatos da “Grande Teoria” e da “Harmonia das Esferas”, que não são comentados nesta oportunidade). Condicionando nossa visão de que escolha (configuração, combinação, função) de acordes é uma das “artes cujos segredos se podem calcular e medir” (KAPP, 2004, p. 156), este “imemorial arquétipo da subdivisão das cordas vibrantes” (NIETZSCHE, 1973, p. 62), como se sabe, impôs ao mundo esclarecido uma incômoda problemática de fundo. Problemática, aparentemente irresoluta em seus próprios termos, que, esquematicamente, pode ser assim empalavrada: se harmonia é arte, se arte é beleza, se beleza é ordem (cosmos), se ordem é natureza, se natureza é perfeição e se perfeição é número, então, como pode ser “harmonia” aquilo que escapa aos desígnios desta iluminada regra de cálculo universal?7

4. Das noções de “beleza” que coexistem nas crenças e contra crenças da harmonia tonal contemporânea

Nos tópicos elencados a seguir, para abstrairmos (destilarmos) algo dos efeitos desta “Grande Teoria” nas crenças e contra crenças que regram a nossa disciplina, podemos experimentar, de vez em quando, ler “harmonia” onde está escrito “beleza”, lembrando que tais valores antigos, modernos e contemporâneos não se substituem num suposto etapismo cronológico. Antes coexistem em uma espécie de descomunal “tudo ao mesmo tempo agora”.

Em somatória, Tatarkiewicz (2000, p. 161-164) observa que “A Grande Teoria” geralmente se apresenta em um composto de teses interdependentes, “doutrinas associadas” que perpassam todo o nosso estudo da harmonia e são enumeradas aqui à guisa de resumo.

a) A verdadeira beleza se percebe através da mente, e não por meio dos sentidos.

b) A beleza tem caráter de racionalidade numérica.

c) A tese metafísica: a beleza perfeita reside no mundo das ideias (nas formas modelo, arquetípicas, eternas e imutáveis); a beleza sensorial (que nos é próxima e perceptível) é sempre imperfeita.

d) A tese objetivista: a beleza é um traço concreto nas coisas, é uma extensão física do ser.

e) A beleza é um benefício (o belo é bom, é verdade, bondade).

f) A beleza como exercício de razão e virtude: se a admiração sentida observa a pulchritudo interior e spiritualiis seu fim é positivo.

g) A beleza como vício: se a causa do embevecimento é uma beleza puramente exterior e corporalis, enganosa e ilusória, seu fim é nocivo.

Lê-se aqui a sutil e duradoura distinção que corre pelas entrelinhas: “A Grande Teoria” (que perdura ancorada em concepções antigas, medievais, renascentistas, modernas e contemporâneas) se coloca como o conceito regente de uma “Grande Arte”, de uma “Grande Música” que, zelando por tal ideal de beleza, é um instrumento para a ascese mística e para a formação humanística do indivíduo pleno. Em contrapartida, conforme a matematicidade dos cânones da “A Grande Teoria”, os agregados musicais que, desconjuntados, desconsideram ou desconhecem tais medidas objetivas da beleza conformam uma sub-música, inclusive por isso, dita regressiva, uma música esteticamente inferior, confusa, que causa fruição desordenada e por tanto é instrumento de degradação, de vício e de desarmonia.

Em contraposição, Tatarkiewicz (2000, p. 164-167) destaca algumas das principais reservas, críticas e objeções históricas ao fundamentalismo, essencialismo e totalitarismo da “Grande Teoria”:

a) A beleza não é algo objetivo, mas sim subjetivo, ou seja: serve ao sujeito (“o que é belo para um cão é um cão, para um boi é outro boi”).

b) A beleza se acha na adequação entre o objeto e seu propósito (funcionalismo, relativismo). Um escudo de ouro como arma de defesa não será belo na batalha, o material é inadequado, demasiado pesado para o uso.

c) A beleza não esta nas medidas e proporções do objeto, e sim na capacidade de perceber o sentimento da beleza (estesia).

d) A beleza é complexidade, sutileza e graciosidade (e não a pura proporção, estrutura crua, básica e simples).

e) A beleza possui “um não sei quê” (frase atribuída a Petrarca “non so ché”, celebrizada em francês “je ne sais quoi”), ou seja: a beleza guarda uma margem de indefinição e irracionalidade.

f) As coisas não são belas em si, a beleza se acha é na relação entre as coisas, é uma questão de associação (estética das relações, funcionalismo).

g) A beleza não é uma verdade plena, ilimitada e essencial que não depende senão de si mesma para existir, nós é que estamos condicionados ou aculturados ao que aprendemos ser o belo.

Em complemento ao ânimo racional e quantitativo, ao fundamento metafísico, ao objetivismo e ao alto valor de arte da “Grande Teoria” surgiram teorias secundárias que no correr da história foram assimiladas ou absorvidas e só se tornaram independentes da “teoria principal” após o século XVIII. Dentre estas Tatarkiewicz (2000, p. 167-169) comenta proposições como:

a) A beleza consiste “na unidade da diversidade”.

b) A beleza é um sinônimo pleno da perfeição (pulchrum et perfectum idem est), é “a ideia visível da perfeição”.

c) A beleza se acha naquilo que é adequado e decoroso (aptum e decorum).

d) A beleza é uma manifestação do absoluto.

e) A beleza é expressão da psique e, logo, é expressão das emoções.

f) A beleza é a virtude de permanecer na exata medida, é comedimento, equilíbrio e moderação (a beleza “se encontra no meio de dois extremos”).

g) A beleza reside na metáfora, no expediente maneirista do “parlar figurato(conceptismo, logicismo e agudeza do pensamento, supervalorização da opulência imagística e lexical, uso intensivo de conceitos, imagens de persuasão e hipérboles, etc.).

Em afronta e superação, assim como na esfera da nossa disciplina as clássicas “lições de Rameau” sobreviveram vexadas em meio aos aguerridos protestos e contra opiniões apresentados pelas gerações seguintes, “A Grande Teoria” se viu “em crise”, impelida a conviver com tendências que, desde o século XVIII passaram a enfocar a beleza (a simetria, a proporção, a matemática, a harmonia, etc.) de um modo diferente. Dentre as diversas “causas” desta crise romântico-contemporânea, Tatarkiewicz (2000, p. 169-172) recupera alguns “pontos essenciais”:

a) A experiência cotidiana mostra que a beleza não consiste em nenhum tipo de proporção ou disposição das partes.

b) A beleza sublime está na ausência de regularidade, na vitalidade, no pitoresco, na fealdade, na plenitude e na incontida expressão da emoção. Valores capazes de transcender a beleza que pouco ou nada têm a ver com a natureza ordenada e comedida da “proporção”. O adjetivo “belo” mostra perfeita conformidade apenas em relação ao legado “clássico”.

c) A beleza é evasiva (ambígua, imprecisa, sem referentes particulares, indefinível), teorizar sobre ela resulta em algo sem sentido.

d) A beleza não é coisa a ser friamente medida, é algo que se sente direta e espontaneamente, sem cálculos.

e) Para a teoria clássica é a razão que cria e percebe (aprecia) mais claramente a beleza, mas para os críticos e detratores da corrente classicista “o sentido da beleza” se confunde com gosto (que a reconhece) e imaginação (que a cria), e se operacionaliza como um pressentir as coisas independentemente de raciocínio ou de análise.

Para sublinhar as tensões que vão se intensificando neste jogo de teses e contra-teses (tensões que afetam sobremaneira a nossa disciplina até os dias de hoje), vale a pena contrapor opiniões emblemáticas de personagens como Rameau e Schumann. Pelo partido da “Grande Teoria” – defendendo a tese clássica “é a razão que percebe mais claramente a beleza”, reelaborando o aforismo de Boécio “a razão transcende a imaginação porque abrange o universal” (in ABBAGNANO, 1982, p. 933) – o moderno Rameau é enfático (o primeiro fragmento foi extraído do “Traité...” de 1722 e o segundo das páginas finais do “Génération Harmonique de 1737):

Se a experiência nos pode advertir acerca das diferentes propriedades da Música, ela não é, por si só, capaz de nos fazer descobrir o princípio dessas propriedades com toda a precisão que convêm à razão: as consequências que através dela tiramos são, muitas vezes, falsas ou pelo menos, deixam-nos em dúvida, a qual só a razão deve dissipar (RAMEAU apud NATTIEZ, 1984, p. 257).

Um músico está preocupado com aquilo que lhe dita seu ouvido, e deste modo, esquiva-se geralmente do uso de sua razão. Eu tenho tido em ocasiões essa experiência. O músico não está o suficientemente em guarda contra seu ouvido. Não tem em conta que seu ouvido só pode distinguir aquela parte da música que lhe é perceptível naquele momento. Porém, ignorando essa percepção, a razão abarca a totalidade e pode então fazer saber ao ouvido a respeito dela em cada uma de suas partes (RAMEAU apud MARTINEZ, 2000, p. 6).

Frente a isso, pelo lado daqueles que defendem “o torvelinho selvagem da paixão veemente” – o partido do gênio e da inspiração divina, da espontaneidade e liberdade, da inocência e sinceridade, do conhecimento inato e do sentimento, da beleza e bondade naturais, da experiência individual, etc.– Robert Schumann (1810-1856) protesta: “A razão erra, porém o sentimento nunca” (SCHUMANN apud MEYER, 2000, p. 271). Tal aforismo de um dos primeiros gigantes da geração romântica confunde-se com outro, o antigo aforismo de Cícero – “Superbissimum auris judicium”, o julgamento do ouvido é superior (apud CHRISTENSEN, 1993. p. 33) –, na composição de uma espécie de lei moral que, ainda hoje, influi em nossas crenças, concepções e atitudes. Esta esquemática e tendenciosa polarização – razão ramista versus sentimentalismo schumanniano – pode ser refinada se notarmos o acordo no desacordo. São muitas as evidências que, como salienta Christensen (1993. p. 33), mostram que o músico (instrumentista, arranjador, compositor, produtor de óperas, etc.) e teórico Rameau conhecia perfeitamente o valor do sentimento, da experiência e do ouvido. E é igualmente evidente, por tudo o que sabemos de Schumann e principalmente pela magistral artesanalidade da sua obra, que o impetuoso compositor conhecia perfeitamente os fundamentos racionais do seu ofício.

Tal diferença – beleza (harmonia) apreendida pela razão (objetividade, regras, etc.) ou pelo instinto (subjetividade, liberdade, ouvido, etc.) – marca a história do conceito na passagem do mundo moderno para o contemporâneo. Mas, mesmo antes dessa etapa mais próxima aos nossos dias, a unanimidade jamais foi total. Tatarkiewicz (2000, p. 172-173) observa que, para resolver diferenças sem excluir conceitos a doutrina da beleza cultivou, ao longo da história, um crescente processo de subdivisão conceitual das suas propriedades: Beleza real e abstrata em Platão. Beleza física e espiritual nos Estóicos. Dignitas (mérito, nobreza, honra, valor, dignidade) e venistas (formosura, elegância, graça) em Cícero. Beleza da alma e beleza do corpo em Isidoro de Sevilla. Beleza em número e beleza em graça em Robert Grosseteste. Beleza como compreensão e como familiaridade em Vitelo. Beleza e sutileza, sublimidade e refinamento na passagem do renascimento para o barroco. Nos anos de Rameau se fala em beleza arbitrária e beleza convincente com Perrault. Beleza essencial e natural com André. Beleza da utilidade contraposta a beleza da raridade e da novidade com o classicista Testelin. Para Sulzer a beleza se distingue como elegante (ahnmutig), esplêndida (prächtig) e apaixonada (fuerig). Schiller distingue beleza naif (espontânea, simples, ingênua) e sentimental. No mundo pós-Rameau, Hutcheson distingue beleza essencial e relativa. E Kant fala em termos de beleza livre (freie Schönheit, pulchritudo vaga) e beleza aderente (anhängende Schönheit, pulchritudo adhaerens).

Em alternativa às correntes e reminiscências pitagóricas e platônicas, as tendências que se fortaleceram desde o século XVIII defendem outras teorias da arte. Aqui Tatarkiewicz (2000, p. 174-175) destaca máximas que se firmaram na contemporaneidade:

a) “Todos os juízos sobre a beleza são juízos individuais”. “O juízo de gosto é completamente independente do conceito de perfeição” (título do capítulo XV da “Crítica do Juízo” publicada por Kant em 1790).

b) “O princípio da arte contemporânea não é o belo, mas sim o característico, o interessante e o filosófico” (escreveu em 1797 o poeta, crítico e filósofo alemão Friedrich von Schlegel, 1772-1804).

c) A perfeição se tornou uma noção antiquada. A atenção ao conceito de beleza cedeu lugar ao interesse pelas teorias estéticas que proliferaram a partir do século XIX (teorias da empatia, da ilusão consciente, do funcionamento da mente, do hedonismo, das emoções fingidas, da expressão, da contemplação, etc.).

d) A arte não é necessariamente bela. É mais importante que a obra de arte produza um choque nas pessoas do que as deleite com sua beleza.

e) “Atualmente nos agrada tanto a beleza quanto a fealdade” (declara o escritor e crítico de arte francês Guillaume Apollinaire, 1880-1918).

f) “Identificar arte e beleza é algo que está ao fundo de todas as dificuldades que surgem no momento de apreciar a arte” (escreveu o poeta anarquista e crítico de arte britânico Sir Herbert Read, 1893-1968).

g) “A beleza é um êxtase; é algo tão simples quanto a fome. Não há nada o que se dizer realmente sobre ela [...] A beleza é uma aliada cega. É como o cume de uma montanha que, uma vez alcançado, não conduz a lugar algum” (escreveu o romancista e dramaturgo britânico William Somerset Maugham, 1874-1965).

Consideravelmente excluída da teoria culta, a palavra e a ideia platônica de “Beleza” conservou-se no registro coloquial. Diluída neste mundo compartimentado e informal, a exemplo do que ocorre com a própria noção de harmonia, a beleza se posta ao lado de termos gerais, sinônimos igualmente imprecisos (tais como: agradável, precioso, encantador, bonito, bom, bem-composto, bem-feito, decente, gracioso, galante, atraente, elegante, justo, perfeito, imponente, elevado, formoso, honroso, ilustre), ditos subjetivos, que, desapossados de qualquer compreensão universal, se usam segundo aquilo que se quiser. Para finalizar, vale sublinhar que, examinar essas imensas temáticas que, entremescladas, circundam a nossa arte e ofício – a “Grande teoria”, a “Harmonia das Esferas”, o “cânon do monocórdio” (i.e., a chamada “série harmônica”) – é uma demanda que importa nos nossos estudos da Harmonia, pois contribui incisivamente para o redimensionamento de uma noção de senso-comum, ao mesmo tempo poderosa e ingênua (aquela noção essencialista que diz que “a teoria veio muito depois da prática estabelecida”) que, como vamos vendo, pode ser devidamente contrastada com outra perspectiva, também fundamentalista que, sorrateiramente, retruca: “sim, mas antes de tudo isso, a teoria da teoria já estava lá”.

Notas

1 Cf. o comentário “Do lugar teórico da chamada ‘série harmônica’: o desencantamento da harmonia” em Freitas (2010, p. 493-513).

2 Cf. o comentário “Harmonia das esferas: pitagorismo, ordem e beleza na teoria da harmonia tonal” em Freitas (2010, p. 434-449).

3 Sobre a matemática de Isidoro e a tradição pitagórica, cf. Brito (2005).

4 Sobre o número triangular chamado de o Tetraktýs (conhecido também como Triângulo Decádico, Década, Triângulo Pitagórico, Número Figurado, Tétrade Sagrada de Pitágoras, Pirâmide de Pontos ou através de emblemas como “o número dos números”, “o maior milagre”, “o triangulo perfeito”, um “deus de outra maneira”, a “fonte da natureza”, “o introdutor e a causa da disciplina, da ordem e da harmonia”, etc.) cf. Freitas (2010, p. 437, 444, 551-552), Kepler (1997, p. 133-140), Mattéi (2007, p. 86-87), Rizek (1998, p. 260-261) e Wisnik, (1989, p. 92),

5 Cf. o comentário “Da primazia da quinta: aura de perfeição e a antiga mística da excelência incontestável” em Freitas (2010, p. 550-552).

6 A célebre frase de Leibniz “música é um exercício oculto de aritmética sem que o espírito saiba que está lidando com números” encontra-se em sua “Epistolae ad diversos” de 1712 e, contando com sua emblemática vinculação com o ideário iluminista, outros filósofos vão parodiá-la, distorcê-la ou modulá-la conforme diferentes propósitos. Marcando a nova posição da música no século XIX, o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) em seu “O mundo como vontade e representação” de 1819 assim remodela a sentença: “Musica est exercitium methaphysices ocucultum, nescientis se philosophari animi” (música é um exercício oculto de metafísica, sem que o espírito saiba que está filosofando). Com tal paráfrase Schopenhauer sublinha que, para a nova estética (que, grosso modo, passamos a chamar romantismo), o “significado da música” não é algo apenas “imediato e exterior, a sua casca” (as medidas, extensões e materialidades associadas aos regramentos da harmonia inclusive por isto dita “tradicional”), e seu “efeito estético” difere-se totalmente do prazer proporcionado pela simples “solução correta de um exemplo de cálculo”. Mas é que, aqui, Schopenhauer – como também o farão os funcionalistas da harmonia contemporânea – está à cata das estruturas escondidas: “O significado [da música é] muito mais sério e profundo, relacionado com a essência mais íntima do mundo e de nós mesmos, a cujo respeito as proporções numéricas em que é possível seu desdobramento não se comportam com o assinalado, mas apenas como o sinal” (SCHOPENHAUER, 1974, p. 78-79). Outro pensador, dentre os notáveis intelectuais alemães que marcaram a reflexão sobre as razões da música na segunda metade do século XIX, que nos deixou uma espécie de metáfrase da máxima leibniziana foi o médico e físico Hermann von Helmholtz (1821-1894): “Matemática e música, os opostos mais nítidos da atividade intelectual que podemos encontrar, e ainda conectados, mutuamente sustentados, como se quisessem demonstrar a consequência oculta que se estende por todas as ações de nossa mente”. Em outro cenário, já no contexto da música culta dos inícios do século XX, o filósofo, lógico, ensaísta e tradutor espanhol Juan David García Bacca (1901-1992) volta a modular a moderna sentença aritmológica de Leibniz: “A música dodecafônica é um exercício de geometria afim feito por uma mente-médium que ignora estar fazendo transformações desse grupo afim” (GARCIA BACCA, 1989, p. 200).

7 Cf. o comentário “Da insuficiência da experiência do monocórdio” em Freitas (2010, p. 513-516).

Referências bibliográficas

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

AGUSTÍN, San. Sobre la Msica: seis libros. Madrid: Gredos, 2007.

ALBERTI, Leon Battista. Da pintura. Campinas: Ed. da Unicamp, 2009.

BERGHAUS, Günter. Neoplatonic and pythagorean notions of world harmony and unity and their influence on renaissance dance theory. Dance Research, v. 10, n. 2, p. 43-70, 1992.

BOECIO, Anicio Manlio Torcuato Severino. Tratado de msica. Madrid: Ed. Clsicas, 2005.

BRITO, Arlete de Jesus. A matemática de Isidoro de Sevilha e a tradição pitagórica. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 49-57, 2005.

CANDÉ, Roland de. A música, linguagem, estrutura e instrumentos. Lisboa: Ed. 70, 1989.

CHRISTENSEN, Thomas. Rameau and musical thought in the enlightenment. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

DAHLHAUS, Carl e EGGEBRECHT, Hans Heinrich. Que é a música? Lisboa: Ed. Texto & Grafia, 2009.

FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Que acorde ponho aqui? Harmonia, práticas teóricas e o estudo de planos tonais em música popular. Instituto de Artes, Unicamp, 2010 (Tese de Doutorado).

FUBINI, Enrico. La estética musical desde la antigüedade hasta el siglo XX. Madrid: Alianza Musical, 1994.

FUBINI, Enrico. Los enciclopedistas y la música. Valência: Ed. Univ. de Valência, 2002.

FUCCI AMATO, Rita de Cássia. A música em Santo Agostinho. Em Pauta (Porto Alegre), v. 16, p. 19-35, 2005.

FUCCI AMATO, Rita de Cássia. Deus e música em santo Agostinho: contrapontos e variações. Información Filosófica, v. III, n. 3, p. 15-38, 2006.

GAINES, James R. Uma noite no palácio da razão. O encontro de Bach e Frederico, o grande na era do iluminismo. Rio de Janeiro: Record, 2007.

GARCÍA BACCA, Juan David. Filosofia de la música. Barcelona: Anthoropos, 1989.

GODWIN, Joscelyn. Armonas del Cielo y la Tierra: la dimensin espiritual de la msica desde la antigedad hasta la vanguardia. Barcelona: Paids, 2000.

HAAR, James. Music of the spheres. In: SADIE, Stanley (Ed.). The New Grove Dictionary of Music and Musicians, v. 17. London: McMillan, 2001. p. 487-488.

HARNONCOURT, Nikolaus. O Discurso dos Sons: caminhos para uma nova compreensão musical. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1990.

JAEGER, Werner Willelm. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

KAPP, Silke. Non Satis Est: Excessos e teorias estéticas no esclarecimento. Porto Alegre: Escritos, 2004.

KEPLER, Johannes. The harmony of the world. Philadelphia: American Philosophical Society, 1997.

KIEFER, Bruno. História e significado das formas musicais. Porto Alegre: Movimento, 1981.

KIRCHOF, Edgar Roberto. A Estética antes da Estética: de Platão, Aristóteles, Agostinho, Aquino e Locke a Baumgarten. Canoas: Ed. da ULBRA, 2003

LAUAND, Jean. Rábano Mauro e o significado místico dos números. Videtur, Porto, n. 23, p. 43-44, 2003.

LICHTENSTEIN, Jacqueline (Org.). A pintura. O belo. v. 4. São Paulo: Ed. 34, 2004.

LIPPMAN, Edward A. A history of western musical aesthetics. Nebraska: University of Nebraska Press, 1992.

LÓPEZ-CANO, Rubén. Música y retórica en el Barroco. México: Universidad Nacional Autónoma de México, UNAM. 2000.

LOUREIRO, Eduardo Campolina Viana. A disciplina Harmonia nas escolas de música. Universidade Federal de Minas Gerais, 2002. (Dissertação de Mestrado em Educação).

LUCAS, Mônica Isabel. Imitação segundo o Kantor Caspar Ruetz (1754). Opus, Goiânia, v. 14, n. 2, p. 22-36, dez. 2008.

LUCAS, Mônica Isabel. O ensaio sobre a imitação da natureza na música de Johann Adam Hiller (1754). Revista do Conservatório de Música da UFPel, n. 2, p. 27-46, Pelotas, 2009.

MARTINEZ, Alejandro. Teoría y experiencia musical: consideraciones entorno a la noción de “estructura” en música. In: FORUM DO CENTRO DE LINGUAGEM MUSICAL DA PUC-SP, 2000, São Paulo. Anais eletrônicos...

MATHIESEN, Thomas J. Greek music theory. In: CHRISTENSEN, Thomas (Ed.). The Cambridge history of western music theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 109-135.

MATTÉI, Jean-François. Pitágoras e os pitagóricos. São Paulo: Paulus, 2007

McKINNON, James (Ed.). The early christian period and the latin middle ages. In: STRUNK, W. Oliver e TREITLER, Leo (Ed.). Source readings in music history. New York: Norton, 1998. p. 113-278.

MÓDOLO, Parcival. Música: Explicatio textus, prædicatio sonora. Revista Fides Reformata, São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, v. 1/1, jan./jun. 1996.

NATTIEZ, Jean-Jacques. Harmonia. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Porto: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, v. 3, p. 245-271, 1984.

NIETZSCHE, Friedrich. Os pitagóricos. In: Coleção Os Pensadores, vol. I, Os Pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 61-63.

NUNES, Jordão Horta. Diderot e as analogias musicais. Goiânia: Ed. UFG, 1997.

OSBORNE, Harold. Estética e teoria da arte. São Paulo: Cultrix, 1983.

PLATÃO. A república. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1990.

PLATÃO. Timeu-Crítias. Tradução do grego, introdução, notas e índices: Rodolfo Lopes. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2011.

REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. I. Das origens a Sócrates. São Paulo: Loyola, 1993.

RIZEK, Ricardo. Teoria da harmonia em Platão. Letras Clássicas, São Paulo, n. 2, p. 251-299, 1998.

ROCHA, Roosevelt Araújo da. O Peri Mousik’s, de Plutarco: tradução, comentários e notas. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, 2007. (Tese de Doutorado).

ROCHA, Roosevelt Araújo da. Uma introdução à teoria musical na antiguidade clássica. Via Litterae. Anápolis, v. 1, n. 1, p. 138-164, jul./dez. 2009.

ROWELL, Lewis. Introduccion a la filosofia de la musica. Barcelona: Ed. Gedisa, 2005.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os Pensadores, XXXI).

TATARKIEWICZ, Wladyslaw. Historia de la esttica. Volume 1, La estética antigua. Madrid: Ediciones Akal, 2000.

TATARKIEWICZ, Wladyslaw. Historia de la esttica. Volume 2, La estética medieval. Madrid: Ediciones Akal, 1989.

TATARKIEWICZ, Wladyslaw. Historia de Seis Ideas: arte, belleza, forma, creatividad, mímesis, experiencia estética. Madrid: Editorial Tecnos, 2002.

TOMÁS, Lia Vera. Música e filosofia, estética musical. São Paulo: Irmãos Vitale, 2005.

VIDEIRA, Mário. O romantismo e o belo musical. São Paulo: Ed. UNESP, 2006.

WISNIK, José Miguel. O Som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas (1962-) - Professor na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC, Florianópolis). Membro dos grupos de pesquisa “Processos Músico-Instrumentais” (UDESC) e  “Música Popular: história, produção e linguagem” (UNICAMP). Doutor em Música pela Universidade Estadual de Campinas, com a tese “Que acorde ponho aqui? Harmonia, práticas teóricas e o estudo de planos tonais em música popular” (UNICAMP, 2010). Atua nas áreas de teoria, análise musical, música popular e harmonia.

Recebido em: 13/03/2012 - Aprovado em: 19/04/2012

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 273p., n.1, 2012