ARAÚJO, A. B. Os Multifônicos na Obra Amore et Dolore II, for A-Clarinet and Tape de Pedro Kröger.

Revista Música Hodie, Goiânia, V.12 - n.1, 2012, p. 74-86.

74

Artigos Científicos

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 273p., n.1, 2012

Os Multifônicos na Obra Amore et Dolore II, for A-Clarinet and Tape de Pedro Kröger

Amandy Bandeira de Araújo (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN)

amandyclarinetista@yahoo.com.br

Resumo: O presente artigo oferece considerações sobre os multifônicos para clarinete usados na obra “Amore et Dolore II, for A-clarinet and tape” de Pedro Kröger, com ênfase nas técnicas de produção sonora dos mesmos. Sugere-se digitações adicionais às apresentadas pelo compositor tomando como referência WOLFE, RICHARDS, REICHARD, REHFELDT, GRAZIA e FARMER. As possibilidades de excussão foram testadas empiricamente e questões interpretativas também foram analisadas, permitindo uma abordagem prático-interpretativa do uso desta técnica estendida.

Palavras-chave: Técnicas estendidas para clarinete; Multifônicos; Práticas interpretativas; Pedro Kröger.

The Multiphonics on the Piece Amore et Dolore II, for Clarinet and Tape by Pedro Kröger

Abstract: This article offers considerations about the multiphonics for clarinet used in the piece “Amore et Dolore II, for A-clarinet and tape” by Pedro Kröger with emphasis on the sound production technique of them. It is suggested additional fingerings in addition of those presented by the composer taking as reference WOLFE, RICHARDS, REICHARD, REHFELDT, GRAZIA and FARMER. The possibilities of execution were tested empirically and interpretative issues were also analyzed, allowing a practice-interpretive approach of the extended technique used.

Keywords: Expansive techniques for clarinet; Multiphonics; Performance practice; Pedro Kröger.

A peça Amore et Dolore II, para Clarinete em Lá e Mídia Eletrônica foi composta em 1998 por Pedro Kroger,1 dedicada ao clarinetista Joel Barbosa,2 que também a gravou. Utiliza basicamente três técnicas estendidas para clarinete: multifônicos, frullati e tessitura estendida. A obra também apresenta elementos modernos de notação rítmica e processos composicionais comuns ao século XX. Neste artigo abordaremos os multifônicos presentes na obra, levantando considerações sobre a maneira de executá-los e apresentando outras possibilidades de digitação além das sugerida na peça. Segundo Kröger (2011):

Amore et Dolore II (1998) é uma composição virtuosística para clarinete e mídia eletrônica. A parte da fita foi composta principalmente utilizando o Csound, porém muitos sons pré-gravados foram processados e usados na composição, alguns dos quais do próprio clarinete.

Na composição são aproveitados os recursos expressivos e técnicos do clarinete, como multifônicos e harmônicos, em combinação com a mídia eletrônica, criando uma interação entre ambos.3 (KRÖGER, 2011, p. 11)

Observa-se que o compositor teve a preocupação de indicar na partitura digitações que ajudam na realização dos multifônicos, além de respeitar as dinâmicas viáveis para os mesmos.4 Contudo, o intérprete deve pesquisar outras possibilidades, tanto para facilitar a execução da obra, como para expressar melhor sua interpretação.5

As considerações do presente texto foram tomadas no uso do clarinete em Lá e ressaltamos a dificuldade em encontrar fontes de pesquisa que abordam as particularidades das técnicas estendidas para esse tipo de clarinete. Rehfeldt ressalta en passant algumas considerações sobre a realidade deste instrumento, quando diz que “a maioria das digitações para o clarinete soprano em Si bemol são também aplicáveis aos clarinetes sopranino em Mi bemol e clarinete em Lá (percebendo talvez alguma deterioração na confiabilidade)”6 (REHFELDT, 2003, p. 48) e que “todavia, deve-se notar que essas sonoridades [de multifônicos] foram desenvolvidas essencialmente para o clarinete em Si bemol. A resposta pode ser um pouco melhor para este instrumento do que para os clarinetes em Lá e Mi bemol”7 (REHFELDT, 2003, p. 44). De fato, observa-se que a afinação das notas dos multifônicos no instrumento em Lá é diferente do instrumento em Sib.

Dos Multifônicos utilizados

Segundo Bartolozzi (1967 apud Farmer, 1982), “[multifônico] é a geração de certo número de frequências sonoras sob uma nota e, ao mesmo tempo, em uma única coluna de ar de um instrumento”.8 Farmer (1982, p. 1) salienta que outros termos também vêm sendo usados para determinar essa técnica, tais como “polyphonics, multiple sonorities, multiple sounds and chords”, além de “double stops, overtones and harmonics”, os quais, junto com chords” (acordes) não descrevem adequadamente a técnica.

Os primeiros multifônicos no clarinete podem ser observados no final da década de 1950 e início da década de 1960, em obras de John Eaton, Peter Phillips, William O. Smith, Donald Scavarda, Larry Austin, dentre outros. Alguns clarinetistas, como Gerald Farmer, Phillip Rehfeldt, Ronald Caravan, William O. Smith, Burton Beerman, F. Gerard Errante, Daniel Harris, John Neufeld, Dorrance Stalvey, E. Michael Richards, Nicolas Del Grazia, também contribuíram pesquisando não só multifônicos, mas diversas técnicas estendidas.

No Brasil a pesquisa e as composições que usam técnicas estendidas para clarinete ainda são poucas, podendo ser observado no “Panorama dos estudos acadêmicos e publicações sobre temas relacionados à clarineta no Brasil” (SILVEIRA, 2008) apenas uma publicação específica sobre o assunto escrita por Almeida e Batista (2007): o artigo “A Clarineta na Contemporaneidade: Técnicas Expandidas e Performance Eletroacústica”.9

Muitos clarinetistas estão pesquisando, publicando e criando sítios na Internet sobre multifônicos, mas ainda não existe unidade em vários aspectos da grafia dos mesmos. Os autores que criam tabelas desta técnica usam várias formas diferentes para representar as chaves que devem ser pressionadas para produzi-los. Farmer (1982), Richards (2011) e Kröger (1998) usam uma forma bastante semelhante de grafia da digitação. Utilizam bolas ou quadrados preenchidos para simbolizar os furos que são pressionados ou, sem preenchimento para simbolizar os furos que não são fechados e, para simbolizar uma chave pressionada, o nome da nota (em Inglês) que resulta na utilização da chave na digitação padrão do clarinete. Podemos observar esta prática no exemplo do Exemplo 1a e na explicação gráfica de Farmer (1982) do Exemplo 1b.

a)

b)

Exemplo 1: (a) Grafia de digitação Kröger (1998). (b) Gráfico de FARMER (1982, p. 14) para explicar os símbolos utilizados para as digitações.

Grazia (2011) e Wolfe (2011) utilizam um gráfico semelhante ao desenho do clarinete (Exemplo 2), também simbolizando chaves apertadas ou não, pelo mesmo método. Reichard (2011) utiliza uma combinação desses dois modos de grafia (Exemplo 3).

Exemplo 2: Grafia de digitação encontrada para representar as digitações de GRAZIA.

Exemplo 3: Grafia para representar as digitações de REICHARD (2011).

Observa-se também que não existe uma unidade para a grafia das notas no pentagrama. Durante esta pesquisa observamos dois tipos básicos de escrita que chamaremos de aproximada e real. A aproximada é quando as notas escritas na partitura são iguais à notação tradicional, não representando o som exato produzido; e a real quando expressa a altura mais próxima do som real, utilizando símbolos geralmente usados em microtons para o resultado sonoro que não tem precisão em afinação. Farmer (1982) e Rehfeldt (2003) utilizam um “–” ou um “+” à frente das notas para indicar que elas tendem a ser mais alta ou mais baixa do que indicado na notação tradicional. Grazia (2011) utiliza setas incorporadas aos sustenidos e Richards (2011) utiliza setas após as notas e sustenidos com mais ou menos hastes verticais.10 No Exemplo 5 temos os símbolos mencionados:

Exemplo 4: Exemplo de símbolos de microtons utilizados para grafia de multifônicos. Fonte: FARMER (1982, p. 132).

Farmer (1982) e Rehfeldt (2003) organizam os multifônicos de acordo com características sonoras e particularidades de execução. Farmer (1982) os organiza em três grupos e Rehfeldt em seis categorias.11 Os dois autores apresentam a maioria dos dados semelhantes, mas, algumas vezes, não utilizam as mesmas digitações ou grupos de notas que decorrem no resultado sonoro. Porém, podemos encontrar semelhanças na maioria das questões relacionadas à catalogação, podendo ser observada a seguinte relação (Tabela 1):

Tabela 1: Comparação das classificações de multifônicos de Rehfeldt (2003) e Farmer (1982).

Rehfeldt

Descrição

Farmer

Descrição

Categoria I

Multifônicos que oferecem mais possibilidades de dinâmica, ricos em harmônicos, podem ser iniciados com todos os sons simultaneamente como também iniciando com as notas agudas ou graves, permite também staccato.

Grupo I

Multifônicos mais estáveis e versáteis que podem ser tocados em diversas dinâmicas e articulações.

Categoria IV

Difere da categoria I pela presença marcante de batimentos sonoros, devido a essa característica não permite uma sustentação das notas agudas, geralmente flexíveis em dinâmica.

Categoria II

Multifônicos resguardados a dinâmicas suaves com possibilidade de pequeno crescendo quando estabilizados, são um pouco resistentes.

Grupo II

Multifônicos mais difíceis (quando comparados ao grupo I), limitados a uma dinâmica mais suave e que requerem maior manipulação de embocadura e pressão do ar.

Categoria III

Difere da categoria II por ser mais resistentes permitindo ainda menor variação de dinâmica.

Categoria VI

Executado com aumento e, frequentemente, criando pressão na palheta. Executáveis em diversas dinâmicas e variáveis nos parciais agudos.

Grupo III

Multifônicos mais imprevisíveis que possuem um som repleto de batimentos sonoros e uma maneira um pouco complexa de executar (se comparado aos outros grupos), possível de variar os harmônicos agudos.

Categoria V

Semelhantes aos multifônicos da categoria III, são registrados como díades e limitados às dinâmicas suaves.

Os multifônicos da categoria V de Rehfeldt (2003) não têm correspondente em Farmer (1982).

Na obra Amore et Dolore II encontram-se vinte e três multifônicos, sendo dezoito diferentes. Com exceção de dois (compassos 69 e 70, Exemplo 9), todos apresentam desenho da digitação acima do efeito, e todas as digitações utilizadas podem ser encontradas em Rehfeldt (2003), assim será salientado a categorização desta fonte.

Os primeiros multifônicos da obra podem ser observados nos compassos 57 e 60 (Exemplo 6). O contexto musical em que eles aparecem (piano, com três tempos de pausa precedendo-os) facilita sua execução, pois permite tempo de preparação na pausa. A dinâmica indicada também é um fator fundamental, pois possibilita a execução das duas notas – a tentativa de toca-los numa dinâmica forte pode resultar na omissão da nota mais grave. Eles são encontrados na categoria 5 de Rehfeldt (2003) e, apesar de Farmer (1982) não os ter catalogado, podemos classifica-los como do grupo II, usando seus critérios. A digitação sugerida para o primeiro resulta em Mib alto que alguns autores podem grafar com “ ”. Essa díade é acompanhada de um som de ar que segundo Richards (2011) é comum.

Exemplo 5: Compassos 55 a 62 da obra Amore et Dolore II de KRÖGER (1998).

O segundo par de multifônicos aparece nos compassos 65 e 66 (Exemplo 6), ambos são catalogados por Farmer (1982), Grazia (2011) e Rehfeldt (2003) (categoria 3).

Exemplo 6: Compassos 64 a 67 da obra Amore et Dolore II de KRÖGER (1998).

O primeiro multifônico (Ré#-Dó-Láb12) é encontrado nos catálogos citados com a mesma digitação sugerida pelo compositor. O segundo, Mi-Sib-Sol13, também é encontrado com a mesma digitação da partitura em Farmer (1982), e Grazia (2011) sugere outra digitação (Exemplo 7) que também resulta em uma combinação sonora afinada. Todavia, nenhuma das três digitações encontradas resulta em uma afinação exata do sol.

Exemplo 7: Digitação para o multifônico “Mi-Sib-Sol” por GRAZIA (2011).

Nos Compassos 69 e 70 (Exemplo 8), aparece o mesmo par de multifônicos citados acima (Exemplo 6). Presume-se que, como estão bastante próximos dos que foram apresentados anteriormente, o compositor optou por não repetir a sugestão de digitação.

Exemplo 8: Compassos 68 a 71 da obra Amore et Dolore II de KRÖGER (1998).

Como o segundo multifônico (Mi-Sib-Sol) é ligado ao Láb4 que o precede, sugerimos que seja usada a digitação de Farmer (1982) ou Grazia (2011), pois a afinação mais baixa do Sol, proveniente do uso destas, deixa mais claro que a nota superior mudou. Lembrando também que a digitação de Grazia (2011) acrescenta apenas mais um dedo à digitação do Láb4, fator que pode facilitar a ligadura.

Pode-se dizer que a combinação usada no compasso 73 (Exemplo 9a) é bem comum nas tabelas de multifônicos, sendo encontrado com a mesma digitação sugerida pelo compositor em Farmer (1982), Grazia (2011), Richards (2011), Wolfe (2011) e Reichard (2011). Farmer (1982) é o único que apresenta outra digitação (Exemplo 9b) onde o Fá4 soa um pouco mais baixo em afinação. Rehfeldt (2003) classifica-o como da categoria 2.

a)

b)

Exemplo 9: (a) Compasso 72 e 73 da obra Amore et Dolore II de KRÖGER (1998). (b): Digitação para o multifônico “Ré-Fá-Si” FARMER (1982, p. 42).

No compasso 76 podemos observar dois multifônicos (penúltimo compasso do Exemplo 10), o primeiro é o mesmo citado acima. O segundo é um diferente, encontrado nos catálogos de Reichard (2011) e Farmer (1982), e na categoria 2 de Rehfeldt.

Exemplo 10: Compassos 73 a 77 da obra Amore et Dolore II de KRÖGER (1998).

Neste trecho as notas mais agudas dos multifônicos (Si e Lá#) fazem referência clara à entrada anterior do clarinete no compasso 74 (segundo compasso do Exemplo 10), quando o clarinete toca Dób seguido de Sib na mesma tessitura. Assim o intérprete deve reforçar as notas mais agudas para deixar esse aspecto bem evidente.

A combinação Dó-Mi-Lá# aparece outras duas vezes na obra, nos compassos 83 e 90 e, nessas duas circunstâncias sugere-se o reforço dos harmônicos superiores pelos motivos supracitados.

O próximo multifônico aparece no compasso 78 (Exemplo 11a), Rehfeldt (2003) o classifica como da categoria 2. Farmer (1982) oferece esta mesma digitação no grupo II, além de outra no grupo I (Exemplo 11b) que também resulta em Ré-Fá#-Dó.

a)

b)

Exemplo 11: (a) Compassos 78 e 79 da obra Amore et Dolore II de KRÖGER (1998). (b): Digitação e grafia de notas para o multifônico “Ré-Fá-Dó” por FARMER (1982, p. 42).

Richards (2011) (Exemplo 12a) e Grazia (2011) (Exemplo 12b) apresentam outras sugestões de digitação:

a)

b)

Exemplos 12: (a) Digitação e grafia do multifônico “Ré-Fá#-Dó” por RICHARDS (2011). (b) Digitação e grafia do multifônico “Ré-Fá#-Dó” por GRAZIA (2011)

A sugestão do compositor é simbolizada por Farmer (1982) com um sinal de menos “–” no Dó5, representando que esta nota é um pouco baixa. Richards (2011) simboliza com setas nas três notas para registrar que as três notas soarão altas em afinação (Exemplo 12a) e Grazia (2011) coloca sustenidos com setas para baixo nos Ré#3 e Si#4 (Exemplo 12b) para representar que estas notas soarão baixas em afinação.

Embora a sugestão do compositor seja do grupo II de Farmer (1982), que é mais difícil do que a do grupo I apresentada no Exemplo 11b, a digitação é perfeitamente possível de ser executada. O fator de dificuldade da passagem é o trecho de digitação rápida que precede este multifônico e a posição inusual de pressionar a chave do Mib com o mesmo dedo que fecha o primeiro furo do corpo inferior do clarinete. Assim sugerimos as digitações de Richards (2011) ou Grazia (2011).

Os compassos 80 e 81 contêm dois multifônicos ainda não apresentados (Exemplo 13), Mi-Lá#-Mi e Ré#-Sol-Ré.

Exemplo 13: Compassos 80 e 81 da obra Amore et Dolore II de KRÖGER (1998).

A sugestão de Kröger (2011) para o primeiro multifônico é bastante estável, porém a afinação do Mi5 é consideravelmente baixa. Podemos encontrar a mesma digitação do compositor na tabela de Farmer (1982) no grupo I ou na categoria 1 de Rehfeldt (2003), onde é registrado com um menos “–”. Todavia, podemos encontrar várias outras sugestões de digitação: Grazia (2011) propõe 3 digitações14 diferentes (Exemplo 14a), todas com um Mi5 afinado e Farmer (1982) sugere também outra digitação (Exemplo 14b) com o Mi5 mais afinado, porém com o Lá4 um pouco baixo. Tendo em vista a progressão ascendente anterior e o Dó#5 que precede este multifônico, optamos pelas digitações com o Mi5 mais afinado, para manter uma boa relação intervalar entre o Dó#5 e o Mi5. A digitação de Farmer (1982) oferece também a vantagem de facilitar a passagem para o próximo multifônico, que se diferencia apenas pelo decréscimo da chave do Sol#/Dó#.

a)

b)

Exemplo 14: (a) Digitações e grafias de GRAZIA (2011) para o multifônico “Mi-Lá#-Mi”. (b) Digitação de FARMER (1982, p. 43) para o multifônico “Mi-Lá#-Mi”.

O segundo multifônico da passagem também pertence ao grupo I de Farmer (1982) ou categoria 1 de Rehfeldt (2003). A digitação sugerida é bem comum nas fontes pesquisadas, oferecendo apenas pequenas variações. Richards (2011) e Farmer (1982) apresentam digitações idênticas às do compositor, outra digitação pode ser encontrada no Grupo I do próprio Farmer (1982) apresentada no Exemplo 15a, como também em Grazia (2011) apresentada no Exemplo 15b.

a)

b)

Exemplo 15: (a) Digitação de FARMER (1982, p. 43) para o multifônico Ré#-Sol-Ré. (b) Digitação de GRAZIA (2011) para o multifônico Ré#-Sol-Ré.

O multifônico seguinte na obra, presente no compasso 85 (Exemplo 16), é idêntico ao do compasso 78. A semelhança também é observada na nota que o precede (Si natural), assim as considerações supracitadas também valem para este.

Exemplo 16: Compassos 85 a 89 da obra Amore et Dolore II de KRÖGER (1998).

No compasso 87, podemos encontrar um dos multifônicos mais intrigantes da obra (compasso 87, Exemplo 16). Este aparece com a indicação de ”variar as parciais” e com os numerais 1, 2 e 3 colocados imprecisamente acima de sua duração. O som resultante não deve ser estável, mas sim uma combinação de sons que valorizam os parciais (harmônicos) diferentes de acordo com o algarismo arábico: o número 3 representa a valorização dos mais agudos, o número 2 representa uma valorização dos harmônicos mais abaixo e o número 1 valorizando os harmônicos ainda mais graves do que os apresentados anteriormente.

Farmer (1982) classifica este multifônico como do grupo III e, como citado anteriormente, este é um dos grupos mais instáveis. O compositor usa desta instabilidade pedindo que o clarinetista enfatize esta volubilidade. Para tocá-lo podemos explorar a indicação de Farmer (1982, p. 42) “movendo o queixo para baixo e rolando os dentes inferiores verticalmente pela parte interna do lábio inferior”15.

O multifônico do compasso 92 (Exemplo 17) é frequente nas fontes pesquisadas, e comparado com os outros presentes na peça é o que apresenta maior variedade de digitações. Ele é bastante semelhante ao do compasso 81, modificando apenas a nota do meio, de Sol-natural para Láb. Estas notas ficam entre os sons mais graves e agudos e são mais instáveis tanto em dinâmica e, principalmente, em afinação. Assim, podemos incorporar muitas sugestões de digitação sem comprometer a fidelidade interpretativa da obra.

Exemplo 17: Compassos 92 a 94 da obra Amore et Dolore II de KRÖGER (1998).

Farmer (1982), Richards (2011) corroboram com a digitação sugerida na obra e oferecem mais três digitações em comum (Exemplos 18a, 18b e 18c), discordando apenas na afinação das notas.

a)

b)

c)

d)

e)

f)

Exemplo 18: (a), (b) e (c): Digitações para o multifônico “Ré#-Láb-Ré” por RICHARDS (2011). (d) e (e): Digitações para o multifônico “Ré#-Láb-Ré” por FARMER (1982, p. 43). (f) Digitações para o multifônico “Ré#-Láb-Ré” por GRAZIA (2011).

Na posição do Exemplo 18a (a mesma sugerida por Kröger), Farmer (1982) e Rehfeldt (2003) grafam o Sol#4 com um menos (simbolizando um Sol# baixo), enquanto Richards (2011) registra o mesmo Sol#16 com um “ ” (simbolizando um Sol# alto). No Exemplo 18b Richards (2011) coloca uma seta para cima depois do Ré4 (simbolizando que o Ré4 tem afinação alta), todavia, Farmer (1982) grafa o Ré4 com um menos (simbolizando o oposto de Richards). A disparidade também é observada no multifônico do Exemplo 18c, onde Richards (2011) propõe um Ré4 baixo em afinação e Farmer (1982) um afinado.

Além das digitações análogas às de Richards (2011), Farmer (1982) propõe outras 2 digitações (Exemplos 18d e 18e) e Grazia (2011) oferece mais uma diferente (Exemplo 18f). Todas as digitações sugeridas podem ser executadas facilmente e o resultado sonoro é bastante semelhante. Podemos classificar todas como do grupo I na classificação de Farmer (1982). A digitação do Exemplo 18c mostra ter mais harmônicos graves e apresenta um pouco mais de estabilidade.

O multifônico do compasso 87 (Exemplo 19) é novamente apresentado por três compassos de 4/4 com semínima igual a 76 BPM, do compasso 87 ao 89. Desta vez sem a indicação de variar as parciais, assim a execução deve ser o mais constante possível, mesmo sabendo da natureza instável relatada por Farmer (1982) e Rehfeldt (2003).

Exemplo 19: Compassos 83 a 89 da obra Amore et Dolore II de KRÖGER (1998).

O compasso 104 (Exemplo 20) apresenta o multifônico Mi-Sol#-Ré#, Rehfeldt (2003) confirma a digitação e notação usada na obra. Por outro lado, Farmer (1982) ao catalogar a mesma digitação proposta na obra em seu grupo I, afirma que a o som mais grave resultante é um Mib3 (Exemplo 21a). Richards (2011), mesmo acrescentando a chave “B”17 (Exemplo 21b) para subir a afinação da nota grave, confirma a indicação de Farmer (1982) e a representa com o Ré# alto em afinação (Exemplo 21b). O autor do artigo também observa empiricamente essa realidade no clarinete em Lá.

Exemplo 20: Compassos 102 a 104 da obra Amore et Dolore II de KRÖGER (1998).

Todavia, Farmer (1982) oferece em seu catálogo uma posição (Exemplo 21c) com um Mi natural3 como fundamental e Ré#4 como nota mais aguda, mas a nota do meio pedida pelo compositor (Sol#4) não seria possível. Assim sugerimos a digitação de Richards (2011) que, embora não represente exatamente o desejo do compositor, é a que mais se assemelha.

a)

b)

c)

Exemplo 21: (a) Digitação e notação para o multifônico “Mi-Sol#-Ré#” por FARMER (1982, 43). (b) Digitação e notação para o multifônico “Mi-Sol#-Ré#” por RICHARDS (2011). (c) Digitação o multifônico “Mi-Sol#-Ré#” por FARMER (1982, p. 43).

Outro multifônico diferente é usado no compasso 105 (Exemplo 22a), classificado como do grupo III de Farmer e que não apresenta maiores dificuldades de execução. O seguinte, no compasso 107 (Exemplo 22a) é raro, sendo encontrado apenas na categoria 6 de Rehfeldt (2003) e em Grazia (2011). Grazia (2011) sugere também outra digitação (Exemplo 22b). Esta, apesar de ser grafada com apenas três notas, pode facilmente obter uma grande quantidade de harmônicos, principalmente os agudos, porém com uma afinação do Dó3 um pouco comprometida. Assim, a apresentada na partitura é a melhor opção.

a)

b)

Exemplo 22: (a) Compassos 105 a 107 da obra Amore et Dolore II de KRÖBER (1998). (b) Digitação para o multifônico do compasso 105 por GRAZIA (2011).

Podemos observar mais uma utilização do multifônico do compasso 87 nos compassos 115 e 117 (Exemplo 23). Apesar do contexto complicador a ser realizado – antes e depois de uma passagem de difícil execução, na qual o clarinete toca um arpejo com variação de andamento – as considerações desta combinação são as mesmas citadas anteriormente.

Exemplo 23: Compassos 114 a 117 da obra Amore et Dolore II de KRÖGER (1998).

O último multifônico da peça aparece no compasso 125 (Exemplo 24) e a digitação sugerida pelo compositor é facilmente encontrada nas fontes pesquisadas.

Exemplo. 24: Compassos 120 a 128 da obra Amore et Dolore II de KRÖGER (1998).

A digitação da partitura gera um Fá3 um pouco baixo em afinação, mas nada que comprometa a altura solicitada pelo compositor. Podemos encontrar a mesma digitação em Wolfe (2011), Reichard (2011), Grazia (2011). Farmer (1982) coloca-o no grupo II e apresenta outra digitação (Exemplo 25) que é classificada como do grupo I, o que nos informa que é mais fácil de ser executada. Com esta digitação, a afinação do Fá3 é relativamente mais próxima da nota escrita, porém se não houver cuidado na execução, esta sugestão pode gerar um Ré5. Assim, só é recomendada a execução da segunda digitação de Farmer (1982) se o intérprete tiver bastante segurança da mesma.

Exemplo 25: Digitação para o multifônico “Fá-Si-Láb” por FARMER (1982, p. 44).

Considerações finais

Diante do exposto podemos observar as diversas particularidades dos multifônicos apresentados na peça “Amore et Dolore II, for A-Clarinet and Tape”. As digitações apresentadas na obra são perfeitamente realizáveis; portanto as sugestões desta pesquisa visam, não substituir as já indicadas na partitura, mas oferecer outras possibilidades que facilitem a emissão sonora, contribuam para a fidelidade às notas escritas pelo compositor e ofereçam ao intérprete diferentes possibilidades interpretativas, colaborando para futuras execuções da peça.18

Notas

1 Pedro Ribeiro Kröger Júnior é Professor Adjunto da Escola de Música da UFBA e Doutor em Composição pela Universidade Federal da Bahia/University of Texas at Austin. Em 2009 Dr. Kroger fez pós-doutorado na Universidade de Stanford. Ele tem ganho diversos concursos de composição em âmbito nacional, como o primeiro lugar no “II Concurso Nacional Cidade do Rio de Janeiro”, primeiro lugar no “VI Concurso Nacional de Composição”, segundo lugar no “VII Concurso Nacional de Composição”, dentre outros. Suas composições t����������������e���������������m sido executadas em países como Brasil, Colômbia, Cuba, Viena, Noruega, Itália, e Estados Unidos. Pedro é Diretor do LIM, Laboratório de Informática em Música do PPGMUS-UFBA e foi fundador da ICTUS, periódico do programa de pós-graduação em música da UFBA. (Fonte: Plataforma Lattes).

2 Joel Luís da Silva Barbosa obteve os graus de bacharel em clarineta pela Universidade Estadual de Campinas (1989) e de mestrado (MM) e doutorado (DMA), também em clarineta, pela University of Washington em 1992 e 1994, respectivamente. Atualmente é professor titular de clarineta da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia. Atua como professor dos cursos de mestrado e doutorado desta Escola, com trabalhos nos seguintes temas: clarineta, banda, ensino em grupo e método de banda. Além disso, desenvolve trabalhos de ensino de instrumentos para formação de bandas em comunidades fora da universidade. É membro da comissão de Community Music Activities da International Society for Music Education (ISME). (Fonte: Plataforma Lattes).

3 Kröger, Pedro. Nota de programa do 1º Recital da Pós-Graduação Lato Sensu em Práticas Interpretativas dos Séculos XX e XXI. Natal, 01/04/2011.

4 A versão original da partitura publicada no ano 2000 foi revisada pelo compositor e disponibilizada no seu sítio na Internet. Foi usada a versão revisada para a elaboração deste artigo.

5 O autor deste artigo teve o primeiro contato com a obra em 2005 e teve a oportunidade de apresentá-la em público em Abril de 2011 no recital de professores da Pós-Graduação Lato Sensu em Música dos Séc. XX e XXI da UFRN.

6 REHFELDT, Phillip. New Directions for Clarinet. Revised Edition. Lanham: Scarecrow Press, 2003. p. 48 (“most of the B-flat soprano fingerings are also applicable to the E-flat sopranino and A clarinets (noting perhaps a slight deterioration in reliability)”).

7 REHFELDT, Phillip. New Directions for Clarinet. Revised Edition. Lanham: Scarecrow Press, 2003. p. 44 (“It should be noted, however, that the sonorities were developed primarily for the Bb clarinet. The response may be slightly better for this instrument than for A or Eb clarinet.”).

8 Bruno Bartolozzi, New Sounds for Woodwind. Trans, and ed. by Reginald Smith Brindle. London, 1967, p. 35 apud Gerald Farmer. Multiphonics and Other Contemporary Clarinet Techniques. Rochester (NY: Shall-u-mo Publications, 1982), p. 01. (“the generation, at one and the same time, of a number of frequency vibrations in the single air column of a instrument”)

9 Observa-se também a falta de trabalhos científicos visando a catalogação de obras brasileiras para clarinete e mídia eletrônica, dificultando o acesso dos clarinetistas brasileiros a este gênero musical e, consequentemente, ao público.

10 A notação escolhida por Kröger (1998) é a de aproximação.

11 Outros autores, como Richards (2011) e Grazia (2011), preferem descrever cada multifônico separadamente, sem agrupá-los em categorias.

12 Convencionaremos a nomenclatura dos multifônico com o nome das notas que o formam hifenizadas seguindo a ordem da nota mais grave para a mais aguda.

13 Vale salientar, para os não familiarizados com a tabela de Rehfieldt (2003), que o símbolo “-eb” encontrado na digitação não simboliza uma chave que deve ser pressionada, mas sim, a impossibilidade do multifônico ser exetutado no clarinete em Mib.

14 Apesar de Grazia (2011) acrescentar apenas duas notas para representar os sons da digitação, podemos facilmente obter o Mi5 bem afinado.

15 Gerald Farmer. Multiphonics and Other Contemporary Clarinet Techniques Rochester. NY: Shall-u-mo Publications, 1982, p. 42. (“...moving the chin downward and rolling the bottom teeth vertically along the inside of the bottom lip...”).

16 Richards não utiliza claves nas suas figuras, mas a clave de Sol está subentendida.

17 Aqui usamos o mesmo sistema de grafia de posições de Farmer (2011) citado anteriormente neste texto. Em algumas fontes, principalmente europeias, esta chave pode ser chamada de “5”.

18 Agradecemos ao colega professor Dr. Alexandre Reche e Silva pela revisão do texto deste trabalho.

Referências bibliográficas

FARMER, Gerald. Multiphonics and other contemporary clarinet Techniques. Rochester, NY: Shall-u-mo Publications, 1982.

GRAZIA, Nicolas Del. Clarinet multiphonics. Disponível em: <http://www.clarinet-multiphonics.org/clarinet-multiphonics.html>. Acesso em: 14/04/2012

KRÖGER, Pedro. Amore et Dolore II. For A Clarinet and Tape. Partitura. Salvador: PDF. Disponível em: <http://media.pedrokroger.net/score/amore-et-dolore-II-revised.pdf>. Acesso em: 14/04/2012, 1998.

. Amore et Dolore II, for Clarinet and Tape. (Em Música Eletroacústica na Bahia. Gravada por Joel Barbosa. Realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Música da UFBA, 2001. CD: BA 2002. Faixa 1, 9min.40s.

REHFELDT, Phillip. New directions for clarinet. Revised Edition. Lanham: Scarecrow Press, 2003.

REICHARD, Timothy. The wood wind fingering guide. Disponível em: <http://www.wfg.woodwind.org/index.html>. Acesso em: 14/04/2012.

RICHARDS, Michael E. The clarinet of the twenty-first century. Disponível em: <http://userpages.umbc.edu/~emrich/clarinet21.html>. Acesso em: 14/04/2012.

SILVEIRA, Fernando. Listagem Comentada dos Estudos Acadêmicos e Publicações Sobre Temas Relacionados à Clarineta no Brasil. In: Musica Hodie. S/L, v. 8, n. 1, p. 115-127, 2008.

WOLFE, Joe. Clarinet acoustics. Disponível em: <http://www.phys.unsw.edu.au/music/clarinet/index.html>. Acesso em: 23/04/2011.

Amandy Bandeira de Araújo - Mestre em música na área de performance (clarinete) pela Universidade da Carolina do Sul nos EUA (2009) e Bacharel em música com habilitação em clarinete pela UFPB (2004). Professor de Clarinete e Música de Câmara da UFRN, atuando nos cursos de técnico, bacharelado e Pós-graduação Latu-Sensu em Performance de Música dos Séculos XX e XXI.

Recebido em: 08/02/2012 - Aprovado em: 01/04/2012

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 273p., n.1, 2012