BENEDETTI, D. V. L. O Prélude da Suíte para Piano Solo Le Tombeau de Couperin de Maurice Ravel: considerações composicionais e...

Revista Música Hodie, Goiânia, V.12 - n.1, 2012, p. 44-55.

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Artigos Científicos

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 273p., n.1, 2012

O Prélude da Suíte para Piano Solo Le Tombeau de Couperin de Maurice Ravel: considerações composicionais e interpretativas

Danieli Verônica Longo Benedetti (Universidade de São Paulo, São Paulo, SP)

danieli-longo@uol.com.br

Resumo: O presente artigo, segmento de pesquisa de Doutorado realizada no Departamento de Música da ECA/USP/FAPESP, pretende elucidar, por meio do Prélude, peça que abre a suíte para piano solo Le Tombeau de Couperin (1914-1917) do compositor francês Maurice Ravel, alguns dos procedimentos de composição e da técnica do instrumento antigo resgatados da obra para cravo do compositor barroco François Couperin (1668-1733) e transpostos por Ravel para o piano moderno. Assim, por meio do estudo da obra para cravo de Couperin foi possível verificar uma espécie de fusão de duas linguagens e de duas técnicas instrumentais distanciadas no tempo. Unem-se a isso a importância de algumas questões interpretativas levantadas a partir desta fusão de linguagens.

Palavras-chave: Maurice Ravel; Piano; François Couperin; Cravo; Interpretação.

The Prelude from Suite for solo Piano Le Tombeau de Couperin by Maurice Ravel: compositional and interpretive considerations

Abstract: This article, part of a doctoral research conducted at the Department of Music of the ECA/USP/FAPESP aims to elucidate compositional and technical procedures in the Prélude from the suite Le Tombeau de Couperin (1914-1917) by french composer Maurice Ravel. Such procedures are traced back to French barroque composer François Couperin (1668-1733) harpsichord pieces, and are translated by Ravel to the modern piano. Thus, by studying the works for harpsichord by Couperin it was possible to see a kind of fusion of two languages and two instrumental techniques apart in time. This fusion of languages poses several interpretive questions.

Keywords: Maurice Ravel; Piano; François Couperin, Harpsichord; Interpretation.

O presente artigo pretende elucidar, a partir do Prélude da suíte para piano solo Le Tombeau de Couperin do compositor francês Maurice Ravel (1875-1937), o uso de alguns dos procedimentos composicionais e da técnica cravística de François Couperin (1668-1733) resgatados e transpostos para o piano moderno. Pretende também, abordar algumas questões interpretativas levantadas a partir desta fusão de linguagens.

A obra, iniciada em julho de 1914 e concluída em novembro de 1917, é uma suíte escrita segundo as formas do século XVIII, e composta de seis peças dedicadas, cada uma delas, a um amigo que, assim como Ravel, se engajaria pela defesa da França durante os anos da Primeira Grande Guerra (1914-1918). Porém, diferente dele, estes deixariam suas vidas nos campos de batalha.

Ravel participou ativamente da guerra como soldado e Le Tombeau de Couperin não constituiu apenas uma homenagem a François Couperin – conforme teria declarado em seu esboço autobiográfico (Orenstein, 1989, p. 46) – mas a toda a música francesa do século XVIII, e também como um adeus aos amigos desaparecidos na linha de frente. O sentimento da defesa da pátria levou Ravel a se alistar e o fato de engajar-se no conflito limitou sua produção artística, assim como a de seus contemporâneos; Le Tombeau de Couperin constitui-se na única obra escrita durante esse período, além de concluir sua produção para piano. As seis peças que compõem a Suíte estão assim organizadas:

1. Prélude - dedicada ao amigo e colaborador Jacques Charlot (18...-1915);

2. Fugue - dedicada ao amigo Jean Crouppi (18...-1915);

3. Forlane - dedicada ao amigo Gabriel Deluc (18...-1916);

4. Rigaudon - dedicada aos irmãos e amigos Pierre (1878-1914) e Pascal Gaudin (1882-1914);

5. Menuet - dedicada ao amigo Jean Dreyfus (18...-1915);

6. Toccata - dedicada ao amigo Joseph de Marliave (1873-1914).

O importante pianista e pedagogo francês Alfred Cortot (1877-1962), contemporâneo de Ravel, assim descreveu a suíte Le Tombeau de Couperin em seu importante estudo intitulado La Musique française du piano

...nenhum monumento de glória poderia tão bem honrar as memórias francesas quanto estes cantos luminosos, estes ritmos claros e flexíveis, expressão perfeita de nossa cultura e de nossa tradição.1 (CORTOT, 1981, p. 288)

A primeira audição da obra ocorreu no dia 11 de abril de 1919, em concerto organizado pela Societé Musicale Independente-SMI,2 na Salle Gaveau em Paris e interpretada pela pianista Marguerite Long (1874-1966), viúva de Joseph de Marliave, dedicatário da última peça da Suíte. O evento contou ainda com a presença de Maurice Ravel, conforme crítica do concerto encontrada na revista Le Courrier Musicale de 1 de maio de 1919, por ocasião de pesquisa de campo na Biblioteca Nacional da França. Não foi possível identificar o autor do artigo que assina com as iniciais L. V. Segue trecho em que a obra é mencionada:

(...). Porém os favores do auditório foram – com justiça – à segunda parte do programa. O adorável Tombeau de Couperin de Maurice Ravel, suíte de peças de um requinte pianístico, as quais o músico de Scarbo se propõe evocar por meio das mais modernas expressões, o arcaísmo elegante e sutil de seu mais antigo predecessor! Ele encantou a todos. Também o toque antigo e moderno, elegante e sutil, da Sra. Marguerite Long colabora, na medida em que o talento de uma intérprete contribui para valorizar o talento de um compositor. Com a presença sobre o estrado do Sr. Maurice Ravel.3

L. V. (BNF, Le Courrier Musicale, 1/05/1919, p. 134)

A Suíte de Maurice Ravel possui a clareza e a estrutura do estilo das danças que compõem a suíte barroca e está construída com extremo rigor formal, o que suscita a filiação intrínseca de Ravel a esse período.

Assim, a peça que abre o ciclo, e que representa o foco deste artigo, foi dedicada a Jacques Charlot. Amigo e colaborador de Ravel, Charlot atuou nos campos de batalha como tenente de infantaria4 e era sobrinho do editor e compositor Jacques Durand (1865-1928). Foi morto em 3 de março de 1915 na linha de frente de sua seção, durante uma missão militar. Debussy também homenageou Jacques Charlot e dedicou o segundo movimento do ciclo para dois pianos En Blanc et Noir (1915).

O Prélude tem como indicação de andamento Vif (Vivo), está escrito em 12/16, na tonalidade de Mi menor e totaliza 97 compassos. Para a abertura de seu Tombeau Maurice Ravel submete o intérprete ao mesmo rigor imposto por François Couperin em suas peças para cravo, ou seja, tudo está estritamente indicado. De acordo com a organização de suas peças, Couperin não inicia nenhuma de suas Ordres5 com um prelúdio, mas encontramos no final de seu tratado L’Art de Toucher le Clavecin (1717) oito préludes-réglés6 escritos nas tonalidades de suas Ordres. De acordo com suas indicações o intérprete deveria, ao executar uma de suas suítes, precedê-la com o prelúdio referente à tonalidade da suíte em questão. Couperin escreve:

Escrevi os oito prelúdios seguintes, nos tons de minhas peças, tanto de meu primeiro livro; quanto do segundo que acabam de ser publicadas (...). Não somente os prelúdios anunciam agradavelmente o tom das peças que iremos tocar, mas servem a desatar os nós dos dedos; e servem para experimentar os cravos sobre os quais ainda não nos exercitamos.7 (COUPERIN, 1717, p. 51)

Chama a atenção o oitavo prelúdio, na tonalidade de Mi menor, em compasso composto 6/8, no qual o compositor adota como elemento de base o movimento ondulante e contínuo de semicolcheias que se alternam entre as mãos, fórmula bastante frequentada em suas peças rápidas, de caráter virtuosístico. Coincidentemente, ou não, o Prélude de Ravel, de caráter virtuosístico, também está escrito na tonalidade de Mi menor, em compasso composto (porém 12/16) e fazendo uso do movimento ondulante de semicolcheias que se alternam entre as mãos. Seguem os compassos iniciais do oitavo prelúdio de François Couperin.

Exemplo 1: F. Couperin, Ed. Breitkopf. Huitième prélude, comp. 1-9. In: L’Art de toucher le Clavecin (1717).

Outro elemento fundamental encontrado na obra para cravo de François Couperin e amplamente explorado na obra Le Tombeau de Couperin de Maurice Ravel, é a ornamentação, ou agréments, termo usado pela escola francesa para esta prática. Os agréments são identificados através de sinais, ou códigos da escrita musical colocados sobre uma determinada nota e interpretados de acordo com os vários quadros, ou tables d’agréments da época, que explicavam a forma de execução dos vários sinais, ou códigos de ornamentação. Os franceses Jean Henri D’Anglebert (1629-1691), Jean Philippe Rameau (1682-1764) e François Couperin e o alemão Johan Sebastian Bach (1685-1750) organizaram cada um o seu quadro, contendo seus sinais de ornamentação e a forma de execução, destinado à execução de suas peças para cravo.

Nota-se nas várias reflexões deixadas nos prefácios das ordres e da obra didática L’Art de toucher le Clavecin que François Couperin buscou na utilização dos agréments, além de ornamentar a linha melódica, efeitos de expressão e nuances que a corda pinçada do cravo não era capaz de realizar.

No cravo as cordas são pinçadas por um plectro que pode ser de pena, de couro duro ou ainda de plástico; por esse motivo as notas ao serem tocadas, mesmo que tenham certa ressonância, não podem ser comparadas aos recursos do piano moderno, capaz de realizar legatos e oscilações de intensidades de dinâmica com maior nitidez.

Em relação à extensão, os cravos da época de Couperin tinham no máximo cinco oitavas e podiam ainda contar com dois teclados (os de fabricação francesa). Neste caso, contavam ainda com dois ou três registros, possibilitando realizar contrastes de timbres e de intensidade. Por meio de tais recursos o instrumento era dotado para realizar contrastes de timbres – muito explorado pelos intérpretes da época – mas não de nuances de dinâmica. Couperin escreve sobre o assunto:

O cravo tem uma perfeita extensão e, por si só, é um instrumento brilhante, mas já que é impossível fazer crescer ou diminuir a sua sonoridade, ficarei para sempre grato a quem, com infinita arte e bom gosto, contribuir para tornar este instrumento capaz de expressão. (BENNET, 1989, p. 37)

Conforme as palavras de François Couperin, esta parece ser, para o autor, a grande limitação do cravo. Logo, os inúmeros agréments, idealizados pelos compositores que se dedicaram à literatura do cravo tendem a valorizar determinadas notas e dar ilusão de duração e intensidade, a introduzir algo análogo às nuances de dinâmica que a mecânica do cravo não era capaz de realizar.

A table d’agréments de François Couperin, conforme as indicações do compositor deixadas na página 178 do seu tratado L’Art de toucher le Clavecin, foi colocada no final do primeiro livro de suas pièces de clavecin. Para suas peças, o autor utiliza toda a ornamentação de seus predecessores, tremblements, pincés, doublés, ports de voix, coulés, arpègements montants e descendents e ainda inventa outros: a aspiration, que abrevia o valor da nota e a suspension, que retarda o ataque da nota. Ver os dois agréments no exemplo que segue.

Exemplo 2: F. Couperin. Premier Livre des Pièces pour Clavecin, 1713, p. 75. In: Ed. Fuzeau 1988.

A nota de rodapé colocada na primeira página do Prelúdio de Maurice Ravel nos remete imediatamente ao siècle des lumières e especificamente à música de François Couperin: “As pequenas notas devem ser atacadas sobre o tempo”.

Exemplo 3: M. Ravel, nota de rodapé do Prélude da suíte Le Tombeau de Couperin. Durand, 1917, p. 2.

Esta observação refere-se as inúmeras indicações de Couperin deixadas aos intérpretes e estudiosos da sua obra, para que realizassem todo tipo de ornamentação, os agréments ou petites notes, sobre o tempo. Logo, Ravel resgata a específica indicação de Couperin e a transpõe para quatro peças do Tombeau: o Prélude, a Forlane, o Rigaudon e o Menuet. Henriette Fauré, primeira intérprete da obra completa para piano de Maurice Ravel, com o qual trabalhou o repertório em questão, escreve sobre o assunto em seu livro Mon Maitre Maurice Ravel, no qual reúne suas impressões e os ensinamentos do Mestre: “Não executá-las sobre o tempo [referindo-se às petites notes] seria omitir todo o estrito caráter e a real cinzeladura desta música” (FAURÉ, 1978, p. 88).

O Prelúdio é extremamente ornamentado e de acordo com a table d’agréments e as peças para cravo de François Couperin, Ravel fará especial uso de dois de seus ornamentos, o pincé simple (uso da nota inferior) e o tremblement simple9 (uso da nota superior), porém os escreve por extenso. Para este último, Ravel faz uma adaptação e os inicia todos pela nota real, diferente de Couperin que especifica em seu tratado L’Art de Toucher le clavecin, sobre a necessidade de iniciar todo tremblement pela nota superior (COUPERIN, 1717, p. 24). Logo, com alguns exemplos selecionados, os agréments de Ravel estão assim distribuídos dentro do Prélude.

– Pincé simple: comp. 22, 23, 24, 25, 26, 27 (primeiro Fá#), 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 53, 54, 56, 57, 71, 72, 73, 74, 75, 76 77 (primeiro Fá#), 78, 79.

Exemplo 4 : M. Ravel, Durand Ed. Musicales, Le Tombeau de Couperin, comp. 21-23.

Tremblement simple: comp. 2, 4, 10, 12, 27 (segundo Fá #, o primeiro Fá# vem a ser um exemplo de uso do pincé simple, ver no exemplo 5), 31, 33, 38, 40, 50, 52, 55, 58, 77 (segundo Fá#), 79 (segundo Si), 87, 89.

Exemplo 5 : M. Ravel, Durand Ed. Musicales, Le Tombeau de Couperin, comp. 27-29.

– Tremblement continu: comp. 96

Exemplo 6 : M. Ravel, Durand Ed. Musicales, Le Tombeau de Couperin, comp. 93-97.

De modo geral, quatro formas musicais são usadas na suíte barroca: a forma rondeau, que alterna um refrão literal a diferentes couplets (abacada); a simples forma binária, que compreende duas seções, cada uma delas repetida (aabb), sendo para essa forma adotada uma organização harmônica precisa (a parte da tônica à dominante e b parte da dominante retornando à tônica); a terceira é a forma com Trio que se encontra, por exemplo, no minueto, esquematizada A (minueto ||:a:||: b (a’):||) B (Trio, contrastante) A (volta do minueto sem repetição ||a || b (a’) ||) e uma última forma, que é a dança baseada no baixo ostinato, do tipo chaconne ou passacaille.

Couperin dá à maioria de suas peças, incluindo as danças, a simples estrutura binária com duas repetições (aabb), que sob o ponto de vista harmônico estão assim organizadas: a ‘seção a conduz à dominante ou ainda à relativa, em relação à tonalidade principal; a ‘seção b parte da dominante ou relativa e retorna à tônica. Na segunda seção, quase sempre, surgem breves modificações de ritmo e melodia, que desaparecem com a volta da tônica.

O Prélude de Ravel está estruturado em duas partes, assim como a maioria das peças de Couperin, no qual faz uso da forma binária (aqui em maiores proporções ao da simples forma binária adotada por Couperin) com duas repetições, porém Ravel realiza apenas uma repetição, a parte A. Tal procedimento faz com que a abertura da Suíte configure-se em duas partes de durações aproximadamente iguais, assim organizadas:

A – do compasso 1 ao 36 (1ª vez 33 cps. + 2ª vez 29 cps. Total = 62 comp.)

B – do compasso 37 ao 97 (Total 60 comp.)

Quanto à estruturação harmônica, Ravel realiza para a primeira parte o mesmo procedimento adotado por seu predecessor, ou seja, a parte A conduz à relativa em relação à tonalidade principal, porém a parte B inicia na região de Do Maior, resgatando a tonalidade principal.

||: Mim ______ Sol M:|| Dó M _________ Mim ||

Lembramos que o aspecto rítmico do Prelúdio evidencia um fluxo contínuo de semicolcheias que perpassará a peça do início ao fim. Assim como seu predecessor Ravel não fará uso de temas, mas de dois motivos distintos evidenciados no interior desta fórmula inspirada de Couperin e que constitui o elemento de base do Prélude: o movimento ondulante de semicolcheias. Seguem os compassos iniciais do Prélude de Maurice Ravel.

Exemplo 7: M. Ravel, Durand Ed. Musicales, Le Tombeau de Couperin, cps. 1-7.

No que diz respeito à extensão das peças para cravo de Couperin, raramente veremos o autor utilizar todo o espaço sonoro oferecido pelo instrumento. Nota-se uma grande proximidade entre as vozes e muitas de suas peças são escritas sobre as duas pautas, unicamente em clave de Sol, como por exemplo, Les Abeilles, Les Laurentines, Le Gazouillement, Les Bagatelles e Le lis naissans; ou unicamente em clave de Fá como, Les Sylvains, L’enchanteresse, La Marche des gris-vêtus, L’Angélique, Les ondes, Les Baricades Misterieuses, La Ménetou, Les délices, La Castelane, e L’Intime. Isto se encontra principalmente nos dois primeiros livros, usando para isso duas oitavas e meia do instrumento, às vezes até menos, e as peças escritas no registro central do teclado não usam um intervalo maior do que este. Frequentemente, nos momentos em que duas vozes dialogam, menos de uma oitava as separa e raras são as peças que fazem uso de toda a extensão do teclado do instrumento. A homogeneidade sonora parece ser a base da arte de Couperin em todos os sentidos e gêneros, sobretudo no cravo; esta exige que os diferentes planos sonoros não sejam muito distantes um dos outros, e a matéria sonora parece se confinar em um registro restrito, que seja no grave, central ou agudo.

A homogeneidade sonora também será tratada em seu Prélude, e no que diz respeito à extensão da peça, esta não irá utilizar todo o espaço sonoro oferecido pelo instrumento moderno. Nota-se uma grande proximidade entre os planos sonoros, as mãos caminharão quase sempre juntas e dificilmente uma oitava as separa. O Prélude acontece em registros restritos, fazendo sobremaneira uso do registro central (Dó 2 ao Dó 5). Assim como nas peças de François Couperin, relacionadas anteriormente, as quais o compositor escreve apenas em Clave de Sol ou de Fá, podemos observar Ravel transportando o procedimento cravístico para o piano do século XX. Exceção feita ao segundo ponto culminante (comp. 80) no qual os planos sonoros afastam-se aos pontos extremos do instrumento, no caso o piano. Segue parte do manuscrito autógrafo do compositor tirado da capa do livro Marguerite Long au piano avec Maurice Ravel, no qual a clara caligrafia do compositor evidencia a proximidade dos planos sonoros no trecho inicial do Prélude:

Exemplo 8: M. Ravel, Le Tombeau de Couperin, Prélude, compassos iniciais do manuscrito autógrafo.

O uso de baixos cromáticos, sobretudo descendentes, e sobremaneira, da Dominante à Tônica, é outra característica encontrada em algumas das peças para cravo de François Couperin.10 Ver o uso deste procedimento no refrão do rondeau, La Muse-Plantine, da Dix-neuviéme ordre.

Exemplo 9: F. Couperin, Dover, 1988. Dix-neuvième ordre, La Muse-Plantine, comp. 1-8.

No compasso 14 do Prélude, Ravel realiza uma movimentação cromática nas vozes inferiores em direção à Do Maior, que será confirmada cadencialmente (V – I) nos compassos 21 e 22. Esta movimentação cromática será elaborada em duas partes: a primeira que inicia no compasso 14 realiza uma cadência (V – I) em La menor do compasso 16 para 17; a segunda será literalmente transposta (comp. 18-21) realizando cadência (V – I) em Sol menor imediatamente seguida pela afirmação cadencial em Dó Maior. Conforme exemplificado anteriormente, o uso deste tipo de progressão cromática descendente faz parte dos procedimentos de composição usados por François Couperin em algumas de suas peças para cravo e Ravel, para esta passagem do Prélude, faz uso deste procedimento. Segue a primeira movimentação cromática mencionada.

Exemplo 10: M. Ravel, Le Tombeau de Couperin, Prélude, comp. 14-17.

Questões interpretativas relacionadas ao Prélude

Dentre os intérpretes consultados todos são unânimes: o uso adequado do pedal é de suma importância para que o Prélude, e de modo geral, a suíte moderna de Ravel, não entre em desacordo com a exigência do estilo a que a obra submete o intérprete. Trata-se de uma obra em que o rigor e a clareza sonora são impostos como regra de base. O pianista Dominique Merlet11 fala sobre a necessidade de esquecer o pedal impressionista (Paris, 21/12/2006). A busca por uma sonoridade extremamente limpa e clara é a prioridade para esta peça, daí a importância de uma correta utilização do pedal. Vlado Perlemuter, referência absoluta como intérprete da obra pianística de Maurice Ravel, tendo trabalhado integralmente a obra em questão com o próprio compositor, escreve: Ravel pedia um pedal sóbrio para este Prélude. Poderia dizer: um pedal colocado em pequenos toques. (PERLEMUTER, 1989, p. 62)

A pianista Dana Ciocarlie12 também se manifesta sobre a importância do uso de meios pedais e vibrato de pedal, porém nunca pedais inteiros, exceção feita para a única indicação de pedal deixada na partitura pelo próprio compositor, a do compasso 93 (ver Exemplo 6). Para a pianista, o uso de pedais mais longos, porém jamais inteiros, podem ser cautelosamente usados na apresentação do segundo motivo (apresentado no comp. 22, ver Exemplo 4), mais expressivo, e nos dois pontos culminante da peça. Ciocarlie ainda fala sobre a ligadura deixada no vazio, referindo-se à emblemática semínima com um ponto de stacatto acompanhada pelo curto sinal de ligadura, encontrado já no primeiro compasso do prelúdio (ver Exemplo 7), ela diz: “Tratam-se dos sinais de pedal de Ravel, os quais deve-se usar um pequeno toque, apenas para que a sonoridade não seja seca” (CIOCARLIE, Paris, 28/12/2006).

Remetendo a questão à versão da obra para orquestra, realizada pelo próprio compositor,13 notamos a referida figura musical, encontrada nos compassos iniciais, executada pelos violinos com a indicação de pizzicatto. Acredito ser esse o efeito a ser recriado ao piano.

Como efeito de mudança de timbre, os pianistas consultados sugeriram o uso da surdina nas indicações de intensidade pp (pianíssimo), em que poderíamos pensar numa analogia aos diferentes registros do cravo, mencionados anteriormente. Neste sentido, faz-se importante ressaltar, que a peça se passa em um ambiente sonoro restrito às baixas intensidades, na qual a indicação da nuance pp é predominante. Para a peça que abre o ciclo, Ravel coloca imediatamente o intérprete diante do objeto da obra, que é o de transpor para o piano o uso de uma técnica cravística e, para isso, o uso das baixas intensidades vem ao encontro do potencial sonoro do instrumento. Os dois pontos culminantes, o primeiro na ‘parte A’ (comp. 28) e o segundo na ‘parte B’ (comp. 80), fazem uso da dinâmica ff (fortíssimo), contrastam ao ambiente sonoro predominante e mostram o potencial sonoro do instrumento moderno.

O Prélude é de alto grau de dificuldade e, curiosamente, ao estudá-lo, uma necessidade orgânica molda a mão do pianista a um formato arredondado e colado ao teclado. Dominique Merlet escreve em artigo publicado na revista PIANO, dedicada à obra pianística de Maurice Ravel, declaração reiterada durante entrevista concedida em Paris: “A escrita pianística de Ravel, e em particular para a suíte Le Tombeau de Couperin, é extremamente inspirada pelos cravistas. É necessário tocar na borda do teclado, com as mãos arredondadas e com uma grande precisão e clareza” (MERLET, In: PIANO, 2006/2007, p. 89 e Paris, 21/12/2006).

De acordo com Elizabeth Joyé, cravista e especialista da obra de François Couperin, esta observação é pertinente e corresponde ao formato da mão dos cravistas (Paris, 1/01/2007).

Outra necessidade se impõe: a menor tensão muscular ou da mão, ao executar este Prélude de caráter virtuosístico, motto perpertuo de semicolcheias do primeiro ao último compasso da peça, compromete sua execução. Acreditando que tal negligência interferiria no resultado da execução de suas peças, François Couperin escreve em seu tratado L’Art de toucher le clavecin, já em 1717, sobre a importância de manter a flexibilidade das mãos e a liberdade dos dedos, evitar qualquer tipo de tensão muscular ao tocar, manter as mãos próximas do teclado e raramente deixar a mão cair do alto (COUPERIN, 1717, p. 6-7). Estas regras aqui parecem se impor e tornam-se imprescindíveis para uma justa execução do Prélude do Tombeau de Maurice Ravel.

Considerações finais

Para a composição da suíte Le Tombeau de Couperin, Maurice Ravel buscou no século XVIII francês a clareza, a precisão, a racionalidade e o rigor formal. Sendo assim esta suíte moderna impõe ao intérprete uma total fidelidade ao texto do compositor, limitando-o a maior liberdade de expressão. Poderíamos então fazer um paralelo às reflexões de François Couperin, personagem homenageado por Ravel, nas quais em seu tratado L’Art de toucher le clavecin (1717) precavia-se contra a liberdade dada ao intérprete, indicando minuciosamente todas as suas intenções à execução de suas pièces de clavecin. Sobre isso Maurice Ravel dizia: “Toquem minha música no tempo, mas com expressão” (ARTAUD, 1975, p. 7).

Mesmo tendo marcado sua produção anterior com obras que demonstraram um grande número de inovações, abrindo novas perspectivas para o instrumento e para o intérprete, quanto a inovações de timbres e sonoridades até então desconhecidos (entre elas Jeux d’eau, 1901; Miroirs, 1904-05 e Gaspard de la nuit, 1908, para piano solo), é voltando-se ao passado, com a composição da suíte Le Tombeau de Couperin, na qual o compositor adota procedimentos e formas do passado nacional, fazendo assim o uso de uma linguagem neoclássica, que Maurice Ravel conclui sua produção pianística, sintetizando, com esta fusão de procedimentos, toda sua linguagem musical.

A partir do estudo da obra para cravo de François Couperin e dos procedimentos de composição característicos da escola do cravo francês do século XVIII, foi possível encontrar na Suíte moderna de Ravel a transposição de vários desses elementos; tais apontamentos fazem-se aqui imprescindíveis no sentido de uma interpretação coerente e historicamente fundamentada.

Notas

1 ...nul monument de gloire ne pouvait honorer des mémoires françaises mieux que ne le font ces chants lumineux, ces rythmes à la fois nets et flexibles, expression parfaite de notre culture et de notre tradition. (CORTOT, 1981, p. 288)

2 A Societé Musicale Independente - SMI, idealizada por Maurice Ravel e criada em 1909 por um grupo de compositores entre os quais Charles Koechlin, Florent Schimitt e o próprio Ravel, foi uma associação cujo principal objetivo seria promover a música contemporânea, sem distinção de escola e nacionalidade. A SMI foi criada a partir do desentendimento desses compositores junto a Societé Nationale de Musique – SNM, criada em 1871, esta com o objetivo de divulgar a música contemporânea porém restrita aos compositores franceses. Estas associações foram responsáveis pela ‘1a audição’ de importantes composições dentre as quais menciono o Prélude a l’après midi d’un faune de Claude Debussy (23/12/1894 pela SNM) e a obra focada no artigo em questão (11/04/1919 pela SMI). A criação, ideologias e consequências desses agrupamentos são atualmente sujeito de minha pesquisa de Pós Doutorado sediada no Departamento de Música da ECA-USP, com o apoio da FAPESP.

3 (...). Mais les faveurs de l’auditoire allèrent – et combien justement – à la seconde partie du programme. Je veux dire d’abord à l’adorable Tombeau de Couperin de M. Maurice Ravel, suite de pièces exquicement pianistique où le musicien de Scarbo se complait à évoquer par des plus modernes expressions, l’archaisme élégant et subtil de son très vieux prédécesseur! Il y réussi à ravir. Le jeu ancien et moderne aussi, élégant et subtil de Mme Marguerite Long l’y aida, dans la mesure où le talent d’une interprete aide à l’accompli talent d’un auteur. Et la salle entière imposa d’enthousiasme le bis de son choix: Forlane. Voire la presence sur l’estrade de M. Maurice Ravel. (BNF, Le Courrier Musicale, 1/05/1919, p. 134)

4 Tropa militar que faz serviço a pé.

5 Couperin escreveu 252 pièces de clavecin (peças para cravo), divididas em quatro Livros e organizadas em 27 “ordres”, pois, ao contrário de seus predecessores ou contemporâneos, ele não utilizou a palavra suíte.

6 Desconfiado do “bom gosto” (termo usado por ele) dos cravistas da época, o compositor não escreveu prelúdios non mésurés (característicos da época), nos quais os compositores, a partir de um esquema geral, davam liberdade ao intérprete, confiando a este o bom uso de ritmos, de andamento, de harmonização e de ornamentação ou seja, os cravistas do siècle des lumières eram exímios improvisadores

7 J’ai composé les huit préludes suivants, sur les tons de mes Pièces, tant de mon premier livre; que du second qui vient d’etre mis au jour (...). Non seulement les préludes annoncent agrèablement le ton des pièces qu’on va jouer mais ils servent a dénouer les doigts; et souvent à éprouver des claviers sur lesquels on ne s’est point encore exercé. (COUPERIN, 1717, p. 51)

8 Eu envio o leitor às páginas 74 e 75 do meu primeiro livro [referindo-se ao Primeiro Livro das Pièces de Clavecin] para o restante dos agréments [páginas onde se encontra sua Table d’Agréments], suficientemente detalhados e explicados (COUPERIN: 1717, p. 17).

9 A especificação simple foi colocada pelo autor do presente artigo. Couperin exemplifica em seu quadro de ornamentos apenas o Tremblement continu.

10 Muse Plantine, Ombres Errantes, La Mysterieurse e a Passacaille apenas citada, são exemplos de peças nas quais encontramos o uso evidente deste procedimento.

11 Pianista francês de renome internacional, vencedor do Concurso Internacional de Genève (1957), professor do Conservatório Nacional de Strasbourg de 1964 a 1969, do Conservatório Nacional Superior de Paris de 1974 a 1992 e do Conservatório Nacional de Genève de 1992 a 2003. Merlet é considerado pela crítica especializada um dos maiores intérpretes da obra pianística de Maurice Ravel da atualidade. Sua versão da integral da obra para piano de Maurice Ravel foi registrada em 1991 pela gravadora Mandala e recebeu o prêmio Diapason d’or. Sua versão da obra Le Tombeau de Couperin foi a referência para o meu trabalho.

12 Jovem pianista romena. Dedica-se ao ensino do piano na École Normale de Musique de Paris e vem se afirmando como intérprete de um vasto repertório em importantes salas da Europa.

13 Em 1919 Ravel realiza a versão para orquestra de quatro números da Suíte: Prélude, Forlane, Menuet e Rigaudon (“a ordem foi modificada para a realização de um final mais grandioso”, Marnat, 1986, p. 764).

Referências bibliográficas

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Partituras

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. L’Art de toucher le clavecin. Leipzig: Edition Breitkopf, 30477.

. Pièces de Clavecin (Premier Livre). FAC–SIMILÉ. Paris: Ed. Fuzeau, 1988.

. Complete Keyboard Works. Series One: Ordres I – XIII. New York: Dover publications, INC, 1974.

. Complete Keyboard Works. Series One: Ordres XIV – XXVII. New York: Dover publications, INC, 1974.

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. Le Tombeau de Couperin. Version d’orchestre (poche). Paris: Durand Ed. Musicales, 1917.

ORAIS (pessoa, data e local da entrevista)

Dana Ciocarlie, Paris, 28 de dezembro de 2006.

Dominique Merlet, Paris, 21 de dezembro de 2006.

Elizabeth Joyé, Paris, 1 de janeiro de 2007.

Danieli Verônica Longo Benedetti - Doutora e Mestre pela ECA/USP, suas pesquisas, ambas financiadas pela FAPESP, tratam da influência do contexto histórico nas obras dos compositores Claude Debussy e Maurice Ravel. Bacharel em instrumento, piano, pela UNESP; especialista no ensino do piano pela École Normale de Musique de Paris, França e em interpretação pianística pelo Conservatório Nacional de Strasbourg, França. Professora do curso de música da Universidade Cruzeiro do Sul, atualmente em licença, desenvolve pesquisa de Pós-Doutorado sediada no Departamento de Música da ECA/USP, com apoio da FAPESP.

Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 273p., n.1, 2012

Recebido em: 02/02/2012 - Aprovado em: 29/02/2012