SALLES, P. T. Quarteto de Cordas nº 02 de Villa-Lobos: diálogo com a forma cíclica de Franck, Debussy e Ravel.
Revista Música Hodie, Goiânia, V.12 - n.1, 2012, p. 25-43.
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Artigos Científicos
Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 273p., n.1, 2012
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Quarteto de Cordas nº 02 de Villa-Lobos: diálogo com a forma cíclica de Franck, Debussy e Ravel1
Paulo de Tarso Salles (Universidade de São Paulo, São Paulo, SP)
paulotarsosalles@hotmail.com
Resumo: Este artigo trata do quarteto de cordas nº 02 de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), obra do período inicial do compositor, escrita segundo o modelo de sonata cíclica, desenvolvido por César Franck e sistematizado por Vincent D’Indy. Outra referência importante neste estudo são os quartetos de cordas compostos por Franck (1889), Debussy (1893) e Ravel (1903) que possivelmente serviram de modelo a Villa-Lobos. Dentro desse contexto são analisadas as relações temáticas presentes na exposição do primeiro movimento, revelando aspectos harmônicos e rítmicos que estruturam a obra e recorrem nos demais movimentos.
Palavras-chave: Análise; Villa-Lobos; Quartetos de corda.
String Quartet nº 02 by Villa-Lobos: a dialogue with the cyclic form of Franck, Debussy and Ravel
Abstract: This article investigates Villa-Lobos’s String Quartet nº 02, an early work by this composer, written according cyclic sonata principles, as developed by César Franck and systematized by Vincent d’Indy. Another important source are the string quartets composed by Franck (1889), Debussy (1893) and Ravel (1903), which possibly served as compositional models to Villa-Lobos. In this light, the themes of the Exposition in the first movement were analyzed and this procedure reveals some harmonic and rhythmic aspects throughout all the other movements.
Keywords: Analysis; Villa-Lobos; Strings quartets.
1. Introdução
Composto em 1915, o Quarteto nº 2 de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) é obra típica da fase inicial do compositor, no que diz respeito ao material harmônico e também em relação ao tratamento cíclico da forma. O conceito de forma cíclica, em que os temas de um movimento recorrem nos demais, historicamente se deve a Mendelssohn, Schumann, Liszt e Franck.2
A sonata cíclica [é uma forma] na qual cada movimento está baseado na transformação dos temas dos demais movimentos. Indícios sutis desse procedimento podem ser encontrados na Sinfonia em Dó menor de Beethoven, mas foi na obra de Mendelssohn, Schumann e Berlioz que ocorreram suas aplicações mais significativas. Esse conceito exerceu influência contínua desde Franck e Tchaikovsky até os dias atuais. (ROSEN, 1988, p. 393)
O Quarteto de Cordas de Franck é um exemplo de forma cíclica e sabe-se que serviu de modelo para a composição do quarteto de Debussy (WHEELDON, 2005). As obras de Franck e Debussy foram importantes referências para a formação do estilo de Villa-Lobos em seu período inicial. O método composicional de Franck foi analisado e comentado por Vincent D’Indy em seu Cours de Composition Musicale (1912), livro que Villa-Lobos estudou em seus anos de formação. E a música de Debussy, que chegou aos ouvidos de Villa-Lobos por volta de 1911 (MARIZ, 1989, p. 43-46), contribuiu decisivamente para sua concepção harmônica e formal.3 O quarteto de cordas de Ravel, composto em 1903, também pode ser considerado provável influência, embora não existam registros tão significativos quanto os apontados para Franck, d’Indy e Debussy.
A sonata cíclica é um conceito modificado da forma-sonata clássica, adaptado ao estilo musical predominante do século XIX. Os processos de transformação motívica ganham maior importância do que a polarização entre as áreas tonais. A ideia de variação contínua prevalece e faz com que a textura se torne mais unificada do que normalmente ocorre no estilo clássico, resultando em um efeito “quase hipnótico”. Outra característica importante é o deslocamento do clímax, do final do Desenvolvimento (típico do Classicismo) para a Coda (ROSEN, 1988, p. 392-393). Essas características, herdadas do Romantismo, estão presentes no Quarteto nº 2 de Villa-Lobos.
A esse respeito Lisa Peppercorn escreveu de maneira um tanto contraditória, dadas as definições vistas acima e os elementos que ela mesma relaciona:
O material temático do terceiro movimento, um curto Andante, está relacionado aos dois movimentos precedentes, especialmente a melodia com que o violino começa (no Più Mosso, p. 25 da partitura de bolso). Essa melodia é a mesma do tema principal do Scherzo. Mas, a despeito da conexão temática entre os três movimentos, a forma não é cíclica [...] (PEPPERCORN, 1991, p. 38)4
Após a composição de seu primeiro Quarteto, muito distante da tradicional estrutura do quarteto de cordas,5 Villa-Lobos decidiu adotar o formato mais tradicional em quatro movimentos contrastantes nas obras subsequentes, dando preferência ao Scherzo como movimento intermediário (segundo ou terceiro). No Quarteto nº 2 os quatro movimentos apresentam intercâmbio entre seus temas, o que condiz com as definições habituais da forma cíclica. Além disso, as dimensões dos movimentos proporcionam a oportunidade de manipulação temática, o que dá a esse quarteto um fôlego composicional consideravelmente maior do que o primeiro.
2. Estrutura formal do 1º movimento
O primeiro movimento do Quarteto nº 2 apresenta uma estrutura formal derivada da sonata com as alterações adotadas ao longo do século XIX, sobretudo em relação à textura e ao tratamento motívico, em detrimento das polarizações harmônicas do Classicismo. Sua estrutura tonal é bastante instável e não possibilita uma definição de tonalidades principais e secundárias, concentrando as ações em torno do desenvolvimento dos motivos temáticos, tratados polifonicamente. É o que se pode chamar de forma-sonata romântica.
Para muitos compositores, como para Schumann, a exposição não cria uma polarização, mas apenas um sentido de distância. A polarização é enfraquecida por meio de um desvanecimento cromático ao fazer a aproximação à segunda tonalidade [...].
A concepção de recapitulação como resolução do século XVIII por vezes desaparece. O segundo tema do Concerto nº 2 em Fá menor, 1º movimento, de Chopin jamais é tocado na tônica, enquanto o segundo grupo do Concerto nº 1 em Mi menor de Chopin é tocado no modo da tônica maior na exposição (!) e recapitulado à mediante [...].
As texturas heterogêneas do final do século XVIII, tão essenciais para o estilo de sonata quanto a polarização harmônica que reforçam, são frequentemente abandonadas em favor de um movimento rítmico unificado, contínuo e quase hipnótico [...].
A sonata é uma estrutura fechada, ordenada. Entre 1825 e 1850 os compositores preferiram formas abertas e buscaram o efeito de uma improvisação. Suas tentativas de romper com a sonata levaram a duas direções essencialmente relacionadas: [...] 1) a sonata cíclica [...]; 2) a combinação de estrutura de um movimento e de quatro movimentos amalgamados em um [...] (ROSEN, 1988, p. 390-393)
Devido ao constante trabalho temático realizado por Villa-Lobos no 1º movimento, prevalece a sensação constante de Desenvolvimento, compensada pela inserção de três melodias mais extensas e expressivas (temas “líricos”), derivadas do tema b, apresentado de maneira truncada pelo primeiro violino (c. 5-7). A textura de acompanhamento dessas melodias é nitidamente homofônica, ocasionalmente com um toque de conotação nacionalista. Podemos classificar as seções da seguinte maneira:
Tabela 1: Descrição formal do primeiro movimento do Quarteto de Cordas nº 2 de Villa-Lobos.
Compasso |
Seção |
Descrição |
1-11 |
Exposição |
Tema a: c. 1-4 (viola); c. 5-7 (cello). Destaque para o tricorde Maior-menor. Dó. Ponte: eixo de simetria Mi-Ré# (c. 5) Tema ‘b’: c. 5-7 (1º violino). O tricorde cromático aparece em diversos pontos da Exposição. Sol-Fá#-(Fá)-Mi. Tema ‘a’: c. 7-9 (viola); c. 9-11 (2º violino). Dó#. Codeta: c. 12-14. |
15-81 |
Desenvolvimento |
O tratamento difuso dos motivos temáticos, já presente na Exposição, mantém-se em diversas variações de textura. Entre os c. 35-44 há um tema de caráter lírico, em tercinas. No c. 67-81 outro tema se destaca sobre uma textura mais homofônica. |
82-93 |
Recapitulação |
Tema ‘a’: c. 82-83 (1º violino). Ré. Tema ‘b’: c. 83-84 (viola); c. 86-86 (1º violino, retrógrado). Ponte: c. 87-90, eixos de simetria do tema ‘a’. Tema ‘a’: c. 91-92 (cello) Tema ‘b’: c. 92-93 (viola) |
93-159 |
Coda |
Mais elaborações com caráter de Desenvolvimento. Outro tema lírico ocorre no c. 112-123, com a mesma textura de acompanhamento do c. 67-81, sugerindo a figuração rítmica do samba. Nos c. 148-150 (13 depois da marca de ensaio “I”) os temas reaparecem na viola (b) e cello (a). |
Em função do tratamento dado à textura e devido ao constante desenvolvimento temático, pode-se questionar se o efeito da Recapitulação é pleno, pois as relações tonais se perdem em larga escala. O tema inicial que sugere um centro em Dó reaparece em Ré no compasso 82; as aparições do tema ‘b’ são bastante difusas entre os compassos 83 a 90 (Exemplo 1). A ideia de retomada se dá mais pela semelhança na distribuição dos eventos do que pelo contraste tonal.
Exemplo 1: Compassos 82 a 90 do primeiro movimento do Quarteto de Cordas nº 2 de Villa-Lobos.
O movimento é construído como uma fantasia, a partir de dois elementos temáticos mais destacados, os chamados “temas cíclicos”, os quais reaparecerão nos demais movimentos.
3. Aspectos estruturais da exposição: temas e suas transformações
Embora não se possa considerar o Quarteto nº 2 de Villa-Lobos como tipicamente “atonal”, nele as transformações motívicas são mais evidentes que suas relações tonais. O tema ‘a’, tocado inicialmente pela viola (Exemplo 2) faz uso do cromatismo para obscurecer as definições triádicas mais elementares, através da imbricação de tricordes com agrupamento de terças maiores e menores. A sonoridade lembra algumas passagens densamente cromáticas da escola wagneriana e até momentos do expressionismo vienense da fase atonal de Schoenberg, Webern e Berg. Não obstante, apresenta ainda o caráter nostálgico de certas modinhas tipicamente brasileiras.
Esse tema apresenta grande recorrência em outras obras de Villa-Lobos. Peppercorn chega a esboçar uma sistematização desse tipo de recorrência. Apesar de inicialmente apresentado à viola, o cello o assume no compasso 5 (ver Exemplo 2) e esse tipo de associação entre figura e instrumento se torna uma tópica na música villalobiana.
Sempre que ele concebe uma melodia – ou o fragmento de uma melodia – e lhe dá um instrumento em particular, ele irá, quando emprega e mesma melodia ou fragmento em obras posteriores, repeti-la no mesmo instrumento. Um exemplo desse procedimento é o motivo no final do Andante do Segundo Quarteto de Cordas, tocado pelo cello (p. 28 da partitura de bolso, compasso 3). Uma parte desse motivo reaparece na parte do cello do último movimento (p. 37, compasso 13). Esse motivo é usado novamente na 2ª Sonata para cello, iniciada apenas um mês após a conclusão desse quarteto. E finalmente reaparece junto com um motivo já familiar da Sonata para cello e com o qual ele se funde, nas Bachianas Brasileiras nº 1 para oito cellos. (PEPPERCORN, 1991, p. 39)6
Exemplo 2: Acima: 1º movimento, c. 1-4 (tema ‘a’). Os retângulos indicam a ocorrência dos tricordes Maior-menor. Abaixo vemos cada um desses tricordes (3-3, na classificação de FORTE, 1973) em separado.
Desse modo, a tonalidade principal, Dó Maior, escapa momentaneamente, voltando a ser percebida na chegada ao quinto compasso. No entanto, daí para frente, as relações tonais ficam bastante rarefeitas. O tricorde Maior-menor se converte em um elemento temático explorado tanto linearmente como verticalmente, em situações em que Villa-Lobos explora a ocorrência de eixos de simetria. Além disso, a relação harmônica desses eixos tem a função de promover a transição para o tema ‘b’.
A ocorrência da simetria no Exemplo 2 se dá na medida em que as notas Mi e Ré# formam o tricorde Maior-menor tanto com a nota Sol (vl. I)7 quanto com a nota Dó (vlc.). A nota Sol, por sua vez, é o pivô entre essa estrutura e o início do tema ‘b’ (em destaque no Exemplo 3, na parte do vl. I). Simultaneamente, o tema ‘a’ converte-se em um contraponto ao tema ‘b’, um pouco à maneira de certas texturas empregadas por Schumann e Chopin (ROSEN, 1988, p. 386-393).8
Exemplo 3: Eixo de simetria em torno das notas Mi-Ré# (c. 5), fazendo a transição para o tema ‘b’.
No quarteto de cordas de Debussy há um momento particularmente notável, na abertura do IV movimento (c. 1-9, ver Exemplo 4), em que a textura se assemelha bastante à empregada por Villa-Lobos na elaboração do tema ‘a’, visto acima. Notam-se não apenas o “elegíaco solo do cello”9 (WHEELDON, 2009, p. 10) como toda a disposição textural da frase, concluindo em um acorde que explora a sonoridade das 5ªs no oitavo compasso, que prepara a repetição da melodia no cello pelo 1º violino no compasso seguinte. Também é possível observar a ocorrência de tricordes do tipo Maior-menor entre os compassos 3 e 4, bem como nas notas iniciais do solo do cello (Láb-Dó-Dób).
Exemplo 4: Debussy, IV mov. do Quarteto de Cordas (1893), c. 1-9.
O tema ‘b’ é aproveitado de duas maneiras distintas ao longo do primeiro movimento e nos demais. Inicialmente há o aproveitamento temático da “cabeça” do tema, que consiste na sequência descendente de três semitons (tricorde cromático, ver Exemplo 5). A reaparição de seu perfil melódico se dá por meio de variação. Contrariando a ideia de um tema “lírico”, “feminino”, comum na estética do Romantismo, esse material temático apresenta-se subliminarmente por meio de inserções invertidas e retrogradadas, por vezes seccionado pelas indicações de arco. Pode-se até mesmo atribuir ao caráter abreviado e abstrato dos temas ‘a’ e ‘b’ uma postura francamente moderna de Villa-Lobos, que antecipa algumas de suas realizações posteriores.
Exemplo 5: Eixos de simetria como elementos de transição na Recapitulação.
O uso dos eixos de simetria em torno do tricorde maior-menor é confirmado na Recapitulação, onde uma série desses eixos demarca a transição entre o tema ‘b’ (em versão retrógrada) e o tema ‘a’ (Exemplo 5). A nota Mi do 1º violino (c. 87) serve como pivô entre o tema ‘b’ e o tricorde Maior-menor (M-m) formado com as notas Réb e Dó (viola). Estas, por seu turno, formam outro tricorde M-m com a nota Lá no c. 89 (viola), assim como o par Fá-Mi (c. 86-87) forma outro tricorde M-m linear na parte do 1º violino com Dó# (c. 89). Relações desse tipo se encadeiam até o c. 91, onde o tricorde M-m se estabelece sobre o eixo Dó-Dó# em relação ao Mi (vl. I) e o Lá (vl. II). Nesse compasso essa estrutura de transição é superposta à nova entrada do tema ‘a’ no cello, começando com a nota Lá, uma das notas que se relaciona com o eixo de simetria.
O tema ‘b’ pode ser relacionado a uma melodia importante do quarto movimento (Exemplo 6), aparecendo tanto na Exposição (c. 17) quanto na Recapitulação (c. 162). Nessa variante observa-se o perfil geral, desconsiderando a terceira nota da versão original (o Fá natural do Exemplo 3). Abaixo (Exemplo 7) vê-se a relação entre esses temas.
Exemplo 6: Variante do tema ‘b’ no IV movimento, Allegro deciso, c. 17-19.
Exemplo 7: Comparação entre as versões do tema ‘b’ no 1º movimento (acima) e no 4º movimento.
A escolha desses temas, com essas características, é determinante na exploração das possibilidades cíclicas da obra.
Enquanto Debussy é explícito no uso de um único tema para relacionar os movimentos de seu quarteto, os procedimentos cíclicos de Ravel são muito menos perceptíveis. Isso se deve ao tema cíclico de Ravel, o qual diferentemente do de Debussy não oferece ritmo e melodia característicos. (WHEELDON, 2009, p. 16)
Com os temas escolhidos para o Quarteto nº 2 Villa-Lobos parece ter adotado o meio-termo entre essas propostas. O tema ‘a’ apresenta um perfil muito bem definido e se presta prontamente a ser reconhecido em todas as suas reaparições, soando como “reminiscência”. Já o tema ‘b’, “com seu ritmo regular e único salto, [...] parece ser concebido mais para a metamorfose do que para ser memorável” (WHEELDON, idem, ibidem). A citação se refere ao tema cíclico de Ravel, mas se adapta plenamente ao segundo tema de Villa-Lobos. Dentre as metamorfoses mais importantes do tema ‘b’, destaco a ocorrência dos temas “líricos” que oferecem contraste temático ao 1º movimento.
4. Temas “líricos”
O caráter lírico de um tema numa composição em forma de sonata foi comentado e avaliado por Schoenberg, em Fundamentos da Composição Musical:
Sob a influência de Schubert, os teóricos começaram a chamar o tema secundário de Gesangthema, ou seja, “tema lírico”. [...] Esta nomenclatura possui curiosa influência sobre a imaginação dos compositores, sugerindo a criação de melodias mais e mais cantabili. O caráter lírico, ou cantabile, é resultante de uma construção livre, intimamente ligada àquela da música popular. A “liberdade” consiste em não ter em conta quase nenhum dos elementos típicos, com exceção daqueles rítmicos, negligenciando, então, as profundas implicações temáticas, e incrementando a riqueza de conteúdo através da multiplicação de temas. (SCHOENBERG, 1993, p. 222-223)
A necessidade de um tema de caráter lírico parece ter sido importante, também, para a concepção de forma sonata de Villa-Lobos, porém o caráter multiforme de seu tema ‘b’, associado ao projeto cíclico da obra, o levou a conter a “multiplicação” de temas pela estratégia de oferecer reapresentações variadas do mesmo tema. Significativamente, a textura de acompanhamento na aparição dessas versões temáticas evoca o padrão rítmico característico do samba (Exemplo 8 e 10).
Exemplo 8: Trecho do tema “lírico” 1. A inversão do tema ‘b’ no vl. I serve de contraponto.
A apresentação truncada do tema ‘b’ no primeiro movimento é compensada pela inclusão de três momentos homofônicos, em que se ouvem duas melodias de caráter mais expressivo: o primeiro desses momentos ocorre no Desenvolvimento, entre os c. 35-44 (letra de ensaio C). Não fossem as indicações de dinâmica, poder-se-ia supor que a melodia estaria a cargo do 1º violino, mas é a sequência de tercinas do 2º violino que está destacada para ser tocada forte, em primeiro plano (Exemplo 8). Ainda assim, a linha do 1º violino está em inversão com relação ao tema ‘b’ e a própria linha do 2º violino também guarda certa afinidade com esse mesmo tema.
O segundo momento homofônico ocorre antes da Recapitulação, em que o solo de violoncelo está fortemente impregnado de elementos do tema ‘b’ (Exemplo 9). A intervenção da viola acaba por interromper o fluxo melódico, que não é levado a um clímax. O terceiro trecho homofônico apresenta outra melodia expressiva (Exemplo 10). A figuração de acompanhamento nos três casos é semelhante, explorando um ritmo sincopado que até pode sugerir a figuração rítmica característica do samba carioca.
Exemplo 9: Variante do tema ‘b’ no cello, c. 67-74, I movimento.
Exemplo 10: Redução do 2º ‘tema lírico’, tocado por vl. I e vla. A parte do vl. II soa oitava acima em relação ao escrito. O acompanhamento de vl. II e vlc. sugere a figuração rítmica de samba.
Assim, são essas transformações texturais que acabam por demarcar o papel do tema ‘b’ como protagonista do primeiro movimento, enquanto o tema ‘a’ atua alternadamente como elemento melódico principal ou secundário.
5. O scherzo: transformações motívicas e sonoridades “impressionistas”
No segundo movimento do Quarteto nº 2, intitulado scherzo, é onde Villa-Lobos explora rápidos arpejos e combinações entre o uso das surdinas e dos sons harmônicos. No entanto, a métrica em compasso binário e o caráter não chegam a evocar o humor de Beethoven, nem o tom macabro/burlesco de Franck ou o exotismo de Debussy e Ravel em seus scherzos.10 Villa-Lobos tentou caracteriza-lo por meio de timbres e figurações, mas em minha opinião o caráter de scherzo ficou melhor definido a partir do seu Quarteto nº 3.
A partir do “3º Quarteto”, os efeitos pizzicato [...], as pesquisas tímbricas, prenunciam a série de scherzos subsequentes, onde melhor se exercitaram a fantasia e a fértil imaginação do Autor. Alguns desses scherzos [...] figuram entre os melhores da série de dezessete quartetos [...] (ESTRELLA, 1970, p. 14)
Estrella reconhece no Quarteto nº 2 os “efeitos timbrísticos etéreos, criando uma atmosfera fantástica” (idem, p. 28), que muitos consideram “impressionista”, em analogia aos compositores franceses da época. A textura inicial do Scherzo faz lembrar um trecho do 4º movimento do quarteto de Cesar Franck (letra S), com os rápidos arpejos da viola (Exemplo 11).
Exemplo 11: Trecho do Finale do Quarteto de Cordas de César Franck.
O tema do Scherzo villalobiano é apresentado sob a figuração de ostinato (a cargo de vl. I e vlc.) como um cânone à 5ª entre 2º violino e viola (Exemplo 12). Há afinidade temática entre esse tema e o tema cíclico ‘b’ do primeiro movimento, uma espécie de variação desenvolvida do tema ‘b’ apresentado no Allegro non troppo.11
Exemplo 12: Cânone entre violino e viola. O ostinato foi omitido.
O ostinato, inicialmente tocado pela viola e dobrado pelo violoncelo em sons harmônicos, remete discretamente à cabeça do tema ‘a’ do primeiro movimento (Exemplo 13).
Exemplo 13: Comparação entre o ostinato do Scherzo e o tema ‘a’ do 1º movimento.
6. Estrutura formal do scherzo
Apesar de não fazer uso de áreas tonais claramente definidas, nem apresentar um caráter marcadamente humorístico, o scherzo do Quarteto nº 2 de Villa-Lobos estabelece algumas analogias com a forma tradicional.
Vê-se então que a orquestração desse movimento desempenha um papel decisivo na compreensão de sua estrutura formal. Nas seções A, somente o instrumento mais grave, participante do ostinato, toca em harmônicos. Nas seções B, não só a densidade do ostinato é reduzida para um único instrumento como também não há o efeito de sons harmônicos. Na seção C (“Trio”), os dois instrumentos tocam o ostinato com sons harmônicos.12 Como resultante, temos na seção C uma sonoridade mais brilhante e menos encorpada e nas seções B, uma sonoridade mais cheia e escura. Portanto, a questão do timbre não deve ser considerada meramente como “efeito” porque define a própria estrutura formal da obra.
Tabela 2: Descrição formal do segundo movimento do Quarteto de Cordas nº 2 de Villa-Lobos.
Compasso |
Seção |
Descrição |
1-47 |
A1 |
Ostinato em arpejos, tocados por vl. I (sons naturais) e vlc. (harmônicos). Cânone entre vla. e vl. II. Tema, variante de ‘b’, apresentado em cânone por violino e viola. |
48-83 (ensaio B) |
B1 |
Variante do tema ‘a’ (1º mov.). Textura homofônica. Os arpejos são retomados, mas apenas por um instrumento de cada vez, sem uso de harmônicos. |
84-111 (C) |
C |
Realiza uma diminuição do tema apresentado em cânone na seção A. Tal procedimento pode ser interpretado como uma analogia ao “Trio” do scherzo tradicional. O ostinato é tocado por vl. II e vlc., ambos em harmônicos. |
106-129 (D) |
A2 |
Reapresenta o tema da seção A, mas a entrada da viola já recebe o contraponto do violino desde o início. O arpejo é tocado por vl. II (sons naturais) e vlc. (harmônicos). |
130-169 (E) |
B2 |
Reapresentação de B, mas em ordem invertida: o arpejo (sem harmônicos) em um único instrumento (vl. II) antecede o trecho totalmente homofônico. Os dois últimos compassos fazem uma breve transição para a seção seguinte. |
170-201 (F) |
A3 |
O arpejo agora é tocado por vl. II (sons naturais) e vla. (em harmônicos). O vlc. apresenta o tema em sua região aguda, seguido em cânone pelo vl. I. |
202-217 |
Coda |
Desaceleração do ostinato, inicialmente em colcheias, depois em semínimas. |
7. Andante: recorrências temáticas
O terceiro movimento começa com um enigmático acorde aumentado, seguido por um tema arioso que evoca sutilmente o perfil melódico do tema ‘a’. O caráter lírico da passagem faz lembrar a Canção de Amor de Floresta do Amazonas (1958).
Inicialmente tocado pelo 1º violino, o tema é tratado em cânone pela viola, a partir do terceiro compasso (Exemplo 14). Tal disposição textural parece ressoar o Scherzo precedente, porém a elaboração é densamente polifônica. A partir do compasso 7 a distância entre as entradas diminui e o intervalo de imitação se altera e o cânone se esvai até o compasso 11. Isso faz com que a trama não seja devidamente evidenciada e as demais notas soam como “preenchimento”, o que Villa-Lobos cuidadosamente evitou repetir em quartetos posteriores, mas que nesse contexto denota certa insegurança.
Exemplo 14: Redução do início do III movimento, enfatizando a imitação entre vl. I e vla.
A partir da letra A há uma citação explícita do tema do scherzo (Exemplo 15), variante do tema cíclico ‘b’. A citação, destacada pela dinâmica ff no 1º violino, é ainda reforçada pela alteração no andamento (“Più mosso”).
Exemplo 15: Citação do tema do Scherzo (2º mov.) no Andante (3º mov.), c. 17-20.
Na letra B ocorre o retorno ao tema inicial do Andante, com uma breve referência temática na letra C, onde a viola toca o tricorde Ré-Dó#-Do (tema ‘b’). Mas é na letra D (Exemplo 16) que a recorrência dos temas fica mais evidente, com o tema ‘a’ passando do cello para o 2º violino. Além disso, nas partes do 2º violino e viola há recorrência do tricorde Maior-menor (em destaque no Exemplo 16).
Exemplo 16: Reaparição dos temas ‘a’ (vlc. e vl. II) e do tricorde M-m (vla.) no Andante.
O 3º movimento termina com a reminiscência do tema cíclico ‘a’ (desde a letra D) no violoncelo, concluindo solitário com a nota Dó. As linhas de viola e 1º violino enfatizam a ambiguidade modal do tricorde maior-menor nos três compassos finais, tocando as notas Mi e Ré#.
8. Finale: síntese temática
No quarto movimento (Allegro deciso/ Presto/ Prestíssimo) há a recapitulação dos temas apresentados, com a condução para um final de natureza apoteótica, expressa pela própria aceleração do andamento. No entanto há algumas indefinições que prejudicam o design formal da peça, onde se sente a dificuldade para integrar o reaproveitamento dos temas cíclicos com a inclusão de novos materiais temáticos que dão personalidade própria ao último movimento.
Franck construiu seu Finale com os quatro instrumentos abrindo o movimento em uníssono, pontualmente entrecortado por reminiscências dos temas dos movimentos anteriores.13 Debussy empregou a recordação do tema por meio de uma introdução, mas com outra técnica. A esse respeito Marianne Wheeldon oferece algumas reflexões interessantes:
Uma solução comum é reapresentar os temas dos movimentos iniciais em uma introdução: com esse procedimento, a maior parte do trabalho de recordação temática pode ser prontamente viabilizado. Mas no final das contas esse expediente, confinando o retorno dos temas à introdução, apresenta alguns perigos. Não há oportunidade para interação entre as ideias novas e as anteriores e o catálogo de citações pode parecer superficial em sua execução. Além disso, a cadeia de reminiscências pode criar uma narrativa musical desconjuntada, devido às frequentes paradas e retomadas necessárias para a recordação temática. (WHEELDON, 2009, p. 10)
Villa-Lobos manteve o processo de variação contínua inserindo os temas em novo contexto harmônico. O movimento inicia com a apresentação de uma figuração homofônica de caráter ibérico14 (tanto na figuração como na fórmula de compasso composto), e por um motivo em quartas descendentes que ainda não havia sido explorado nos demais movimentos (Exemplo 17). A difícil fusão entre o material novo e a reapresentação das ideias temáticas dos movimentos anteriores é o cerne do desafio composicional desse movimento.
Exemplo 17: Motivo introdutório do movimento final do Quarteto nº 2 de Villa-Lobos.
A figuração “ibérica” alterna o papel de motivo principal e secundário ao longo de todo o Allegro deciso. Tal estratégia não oferece muitas possibilidades de definir contraste, o que não contribui para a proposta do movimento, que parece ser a de um rondó. No entanto insufla agitação e energia de modo a promover integração com os materiais temáticos dos movimentos anteriores.
Isso pode ser ilustrado em relação ao que segue à introdução, vista na Exemplo 17. Depois de algumas alusões ao tema cíclico ‘b’ o 1º violino apresenta uma melodia derivada desse mesmo tema e a figuração inicial transforma-se em acompanhamento (Exemplo 18).15
Exemplo 18: Redução dos c. 17-19, entrada da melodia derivada do tema ‘b’.
Se há evidente contraste produzido pela mudança de textura, o efeito se perde na chegada à seção seguinte com o retorno à figuração inicial (c. 28, letra B). A Tabela abaixo ilustra a sucessão de saídas e retornos do Allegro deciso.
Tabela 3: Descrição formal do quarto movimento do Quarteto de Cordas nº 2 de Villa-Lobos.
Compasso |
Seção |
Tonalidade/Figuração |
1-16 |
A1 (introdução) |
Centro tonal ambíguo (Lá? Mi?), “ibérico”. |
17-27 |
B1 |
Melodia no vl. I, derivada do tema ‘b’. Acompanhamento “ibérico”. |
28-35 |
A2 |
Retorno, levando a uma figuração em “ziguezague” com função de prolongamento do baixo em Dó. |
36-49 |
C |
Melodia no vl. I, com alguma derivação do tema ‘b’. Começa e termina em Dó. |
50-57 |
A3 |
Versão “em Dó” do tema “ibérico” de abertura. |
58-66 |
D |
Figuração tratada em imitação, do vl. I ao vlc., passando por todos os instrumentos. |
67-81 |
E |
Melodia na vla., entrecortada pela figuração “ibérica”. |
82-133 |
B2 |
Variação da melodia da seção B, passando por todos os instrumentos. Conclui com solo de cello com acompanhamento “ibérico” na viola. |
134-145 |
Transição |
Sequência baseada no material de abertura, conduzindo melodicamente, no vl. I, de Ré# a Lá. |
146-161 |
A4 |
Repetição variada de A1. |
162-172 |
B3 |
Repetição de B1. |
173-192 |
A5 |
Seção com função de Coda para o Allegro deciso. Leva a uma grande pausa que separa do Presto. Conclui no acorde Maior-menor de Dó, com sétima Maior. |
Percebe-se nesse quadro sinótico acima a estrutura geral de rondó, porém a sensação da escuta solapa o contraste entre as seções, já que predomina a ideia de variação contínua do motivo ibérico, em diversos contextos harmônicos e alternando entre os planos principal e secundário da textura. As reminiscências temáticas são habilmente introduzidas por entre as variações texturais.
O movimento é sucedido pelo Presto, cujo centro está definido em Lá menor. Estrella observa que “horizontal e verticalmente, o ‘presto’ está construído sobre o intervalo de terça” (ESTRELLA, 1970, p. 31). O material é distribuído em duas camadas: os violinos tocam o acompanhamento, no compasso em 10/8;16 viola e cello tocam a melodia em 2/4, dobrada em décimas, derivada do tema cíclico ‘a’ (Exemplo 19).
Exemplo 19: Início do Presto no IV movimento do Quarteto nº 2 de Villa-Lobos.
O Presto pode ser subdividido como mostra o esquema abaixo, onde se vê o papel importante da distribuição das camadas texturais entre os instrumentos. O par viola-cello inicialmente toca a melodia, cabendo aos violinos o acompanhamento; durante a transição esses pares se misturam e finalmente na Coda os pares retornam à configuração inicial, porém com papéis trocados.
Tabela 4: Descrição formal do final do quarto movimento do Quarteto de Cordas nº 2 de Villa-Lobos.
Compasso |
Seção |
Tonalidade/figuração |
Instrumentação |
1-16 |
A1 |
Lá, melodia derivada do tema cíclico ‘a’. |
Vla. + vlc. (melodia); vl. I e II (acompanhamento) |
17-56 |
B |
Sem centro definido, uso de sequências. |
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57-68 |
A2 |
Lá, idem A1. |
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69-82 |
Transição |
Sem centro definido. |
Vl. I + vlc. (melodia); vla. + vlc. (acomp.) |
83-121 |
C |
Fá, com caráter de Coda da seção. |
Vl. I e II (melodia); vla. + vlc. (acomp.) |
A seção conclui com trinados na viola e no cello, levando direto ao Prestissimo, onde o tema ‘a’ é harmonizado homofonicamente. O esquema de harmonização é simples, durante quase toda a seção se mantém com o dobramento em oitavas da melodia (vl. I e vlc.) entre as quais os demais instrumentos completam acordes aumentados com 7ª maior acrescentada (a fundamental fica na viola, ver Exemplo 20). Os quatro instrumentos tocam sul ponticello o que dá a essa seção final certo sabor impressionista17 e que retoma em certo sentido o caráter fantástico do Scherzo.
Exemplo 20: Redução harmônica do tema ‘a’ no IV movimento, Prestissimo: tema dobrado nas extremidades (vl. I e vlc.), formando acordes aumentados com 7ª Maior.
Considerações finais
Procurei demonstrar ao longo do texto a estrutura cíclica adotada no segundo quarteto de Villa-Lobos, bem como algumas de suas estratégias na realização dessa composição. O Quarteto nº 2 apresenta grande ampliação da forma com relação ao quarteto anterior, mas ainda evidencia certa insegurança na inter-relação entre forma, material harmônico, desenvolvimento motívico e direcionalidade harmônica. O equilíbrio entre esses elementos ainda não é plenamente atingido, será no Quarteto nº 3 que Villa-Lobos evidenciará maior domínio nesse campo.
A caracterização dos movimentos não representa ainda a realização mais plena do que Villa-Lobos viria a obter nesse campo. O Scherzo ainda não consegue impor sua natureza, apesar de evocar uma atmosfera “fantástica”; o Andante apresenta certo acúmulo de material temático que sobrecarrega a melodia, não obstante oferecer momentos bastante intensos; o Rondó do finale não estabelece contrastes nítidos entre as seções e talvez convença mais como scherzo do que o próprio 2º movimento. Observado com o mesmo rigor, o 1º movimento se ressente de falta de maior definição entre regiões temáticas e de desenvolvimento, embora se possa apreciar a engenhosidade na escolha dos temas e no contraste de tratamento entre eles, parecendo conciliar as estratégias cíclicas de Debussy e Ravel.
Assim pode-se apreciar o esforço e talento de Villa-Lobos na construção de uma obra cíclica em larga escala. Muito provavelmente foi através do Cours de Composition Musicale de d’Indy que ele assimilou e desenvolveu à sua maneira os princípios franckianos, demonstrando sua vontade de atualizar seu arsenal técnico e estético. Entre os inegáveis méritos da obra está o fato de que os temas se impõem e podem ser seguidos ao longo de toda a peça, mesmo diante de ousadas transformações texturais e tratamentos timbrísticos. A difícil síntese do 4º movimento mostrou sua habilidade em justapor elementos novos às recordações temáticas.
Por isso o Quarteto nº 2 se tornou um marco no desenvolvimento técnico do compositor, demonstrando maior ambição com relação à forma do que no primeiro quarteto18 além de antecipar a realização mais amadurecida desse projeto composicional no terceiro quarteto. Muito provavelmente Villa-Lobos estudou os quartetos de Franck, Debussy e Ravel para assimilar os elementos que pode identificar como potencialmente renovadores e com eles forjar seu próprio estilo dentro desse meio de expressão.
Indício dessa transformação de meios técnicos e estéticos na música villalobiana é o uso dos eixos de simetria que coordenam as ações harmônicas no 1º movimento, explorando a ambiguidade modal dos tricordes maior-menor. Villa-Lobos começava então a esboçar algumas das estratégias que caracterizaram seus métodos de organização harmônica em obras posteriores, adaptando princípios tradicionais de contraponto e harmonia e assimilando elementos da música folclórica (modalidade, não temperamento) e atonal (ou pós-tonal). Esse ecletismo lhe proporcionou a concepção de obras com sonoridade tão diversa como a série dos Choros, com suas superposições mais cruas e radicais, e das Bachianas Brasileiras, onde há o resgate de estruturas tonais e melódicas.
O ciclo de quartetos de cordas, desde a composição do Quarteto nº 2, apresenta elementos que podem ser compreendidos dentro desses dois modelos. Porém, além de aspectos estruturalistas, o quarteto de cordas converteu-se num gênero cujas peculiaridades históricas e estilísticas conferem camadas adicionais de significação e expressividade. Villa-Lobos manteve constante diálogo com esse gênero e sua tradição.
Notas
1 A pesquisa “Processos composicionais de Villa-Lobos: uma análise de seus quartetos de cordas” é financiada pela FAPESP, junto ao Departamento de Música ECA/USP.
2 Segundo Macdonald (2001): “[...] Beethoven (An die Ferne Geliebte, Sonata para piano em Lá maior, Op. 101), Schubert (Trio para piano em Mi b maior; Fantasia em Dó maior para violino e piano) e Berlioz (Sinfonia fantástica) lançaram as bases sobre as quais Mendelssohn, Schumann, Liszt e Franck deram grande importância aos princípios cíclicos, associados à bem conhecida aplicação da transformação temática e à vontade de obter maior continuidade entre movimentos separados, sendo todos métodos de obtenção de coesão mais forte em formas com vários movimentos [...]”.
3 Correa do Lago (2005, p. 66-67) apresenta algumas evidências do contato mais aprofundado de Villa-Lobos, entre 1914-17, com a obra de Debussy e outros compositores franceses “modernos” como D’Indy e Ravel, período em que se insere a composição do Quarteto nº 2. Guérios (2003, p. 105-6) observa que Villa-Lobos teria sido “[...] um dos primeiros brasileiros a utilizar as técnicas de um compositor que quebrou as regras estabelecidas da arte musical erudita, [...] Debussy”, mas certamente, ao compor seu quarteto (1893), Debussy ainda prestava tributo ao formato cíclico de Franck.
4 Essas referências temáticas feitas por Peppercorn estão comentadas e ilustradas mais adiante neste texto, ao redor das Figuras 12 e 15.
5 O Quarteto nº 1 (1915) de Villa-Lobos é praticamente uma suíte em seis movimentos, que alternam a forma binária ou ternária simples. Nesse quarteto a forma é ampliada principalmente por meio da repetição integral de seções, com algumas variações. Um depoimento da violinista Mariuccia Iacovino mostra a recepção dessa obra em 1943 pelo Quarteto Iacovino: “[...] fui procurar o Maestro Villa-Lobos para dizer-lhe que queríamos tocar um quarteto seu em um dos concertos [...]. Para minha surpresa, indicou-me o Quarteto nº 1, obra da mocidade, não editada, inteiramente desconhecida entre nós naquela ocasião, obra da qual não ouvira referências. Fiquei desapontada [...]. Recebi o Primeiro Quarteto, manuscrito, levei-o para casa passei os olhos na partitura: tratava-se não propriamente de um Quarteto e sim de uma ‘Suíte’ para Quarteto de Cordas. Mostrei-a aos meus colegas. A reação foi a mesma” (IACOVINO, 1977, p. 163).
6 A observação é interessante, apesar de exageradamente determinista (“sempre que concebe uma melodia [...] irá [...] repeti-la no mesmo instrumento”), já que o próprio exemplo oferecido demonstra uma exceção a essa “regra”, pois o tema migra da viola para o cello. Na obra de Villa-Lobos podem-se encontrar casos ainda mais variados, como o tema do 1º movimento do Quarteto de Cordas nº 8 (1944) que foi empregado na parte vocal da Dança, 2º movimento das Bachianas Brasileiras nº 5 (1945, sobre texto de Manuel Bandeira). Há ainda a questão da gestualidade, associada ao perfil rítmico e melódico em temas de outros quartetos de cordas de Villa-Lobos como, por exemplo, o tema inicial do Quarteto nº 4 (1917) levando essa figuração para Dó menor ou em outras tonalidades, como na Cantilena do Quarteto nº 1, no Adagio do Quarteto nº 11 (1947), etc.
7 Neste texto serão livre e alternadamente empregadas as abreviaturas “vl. I” e “vl. II” (respectivamente 1º e 2º violinos), “vla.” (viola) e “vlc.” (violoncelo ou cello), bem como os nomes completos desses instrumentos.
8 Segundo Charles Rosen, a forma-sonata foi modificada no Romantismo em relação à textura, por meio de “uma das mais características invenções dos anos 1830 [...] que pode ser chamada de acompanhamento heterofônico”, onde o acompanhamento é “uma versão dobrada da mesma linha” (ROSEN, 1988, p. 388-390). Villa-Lobos parece partir desse dispositivo para superpor os temas, transformando o tema inicial em “acompanhamento” ou “contraponto” do tema recém-introduzido.
9 Essa referência poderia servir como fundamentação de uma tópica para esse tipo de melodia, usando sua ocorrência em Debussy como precedente histórico na escrita moderna para quarteto de cordas. Assim, o caráter de “reminiscência” ou “evocação”, pode ser atribuído à reaparição desse mesmo gesto no quarteto de Villa-Lobos. Autores como Leonard Ratner, em Classic Music: expression, form and style (Schirmer Books, 1980) e Robert Hatten, em Musical meaning in Beethoven: markedness, correlation and interpretation (Indiana University Press, 2004) exploram as correlações entre estrutura e significado na música do século XVIII e XIX de maneira inspiradora para o estabelecimento dessas mesmas possíveis correlações aplicadas à música do século XX.
10 A definição de Scherzo por Tovey enfatiza sua personalidade: “movimento rápido derivado do minueto e usado no lugar do mesmo nas formas de sonata [...]. O termo também é empregado para definir o caráter da obra. Haydn inicialmente o usou assim, com o advérbio scherzando, como movimento central de uma sonata de juventude em Dó# menor, e depois no lugar do minueto no conjunto de seis quartetos conhecidos como ‘Gli Scherzi’ ou ‘Quartetos Russos’ (Op. 33).” Mais adiante: “Beethoven não usa o título Scherzo, a menos que a obra tenha humor” (TOVEY, 1956, p. 200-ss).
11 SCHOENBERG (1993, p. 35-42) apresenta didaticamente as possibilidades da chamada técnica de “variação progressiva” [developing variation], que pode ser aplicado analogamente ao caso aqui estudado.
12 Cabe enfatizar que não há qualquer denominação de “Trio” na partitura. Esta é uma proposição interpretativa e analítica de minha inteira responsabilidade.
13 Wheeldon conta que “de acordo com seu aluno Pierre de Bréville, Franck prontamente admitiu que o Finale da Nona Sinfonia de Beethoven foi fonte de inspiração tanto para sua sinfonia como para seu quarteto” (WHEELDON, 2005, p. 647-8).
14 Tal figuração evoca o 2º movimento do quarteto de cordas de Debussy (Assez vif et bien rythmé) e o 2º movimento do quarteto de Ravel (Assez vif – Très Rythmé). Ambos têm caráter de scherzo e são caracterizados pelo compasso 6/8 e hemiola.
15 Tal melodia já foi apresentada à Figura 4 e curiosamente se assemelha em ritmo e textura a um dos temas do 2º movimento do quarteto de Ravel (vl. I, letra A).
16 Em relação a essa fórmula de compasso parece ter havido alguma confusão. O correto seria grafar 5/8 ou 10/16. Em um manuscrito consultado na biblioteca do Museu Villa-Lobos (manuscrito FG94, doado pela Família Guimarães, p. 9) a parte da viola apresenta a relação correta: 5/8 x 2/4.
17 O que evoca o 4º movimento do quarteto de Ravel (Vif et agité), o qual apresenta o tema em uníssono e trêmulo.
18 Esse aspecto formal não desmerece a obra, nem estabelece um juízo de valor negativo sobre ela. Mariuccia Iacovino comentou ainda: “[...] quando tocamos pela primeira vez o Primeiro Quarteto, não poderíamos imaginar que, após tocar tantas vezes os últimos Quartetos (o 17º principalmente), voltaríamos a tocar repetidas vezes e com tanto agrado o primeiro da série de Quartetos, que talvez seja o filho mais belo do Mestre” (IACOVINO, 1977, p. 164).
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Revista Música Hodie, Goiânia - V.12, 273p., n.1, 2012
Recebido em: 04/02/2012 - Aprovado em: 14/03/2012
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