REFLEXÕES SOBRE A CRISE DE COMUNICABILIDADE DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA: A MÚSICA É LINGUAGEM? O QUE DEVE COMUNICAR A MÚSICA?

Rogério Costa

rogercos@usp.br

Resumo: Neste trabalho procuramos levantar algumas questões relacionadas à idéia de se pensar a música enquanto linguagem. Muitos dos debates que acontecem sobre a suposta crise de comunicabilidade da música contemporânea tomam por base um certo tipo de abordagem linguística da prática musical. Na maior parte das vezes esta atitude desencadeia uma série de equívocos que se somam gerando posturas críticas mitificadoras em que se lamenta a perda de uma “idade de ouro” imaginária quando a música não se distanciava de seu público. Do nosso ponto de vista estas posturas se baseiam em premissas discutíveis e geram juízos equivocados no que diz respeito ao significado e à relevância da produção musical contemporânea. A idéia é colocar em jogo novas perspectivas que apontem para posturas mais objetivas e rigorosas menos afetadas por visões precárias sobre a natureza da prática musical.

Palavras-chave: Música; Linguagem; Língua; Fala; Comunicação: Comunicabilidade.

Abstract: In this article we discuss some questions related to the idea of considering music as a language. Many of the debates nowadays on the supposed crises of communicability of the contemporary music are based on linguistic approaches to musical practice. Generally, these attitudes produce a series of erroneous concepts which, in turn, generate mystified critical positions, such as the idea of an imaginary “golden age” when music was not far separated from the public. From our point of view this kind of thinking stem from misjudgement concerning the meaning and relevance of the contemporary music. The idea is to introduce new perspectives which can move toward more objective and rigorous approaches which are less affected by precarious ideas concerning the nature of musical practice.

Keywords: Music; Language; Speech; Communication; Communicability.

1. Música: língua ou fala?

Num sentido amplo podemos afirmar que a música é linguagem na medida em que todas as produções de cultura são formas de pensamento instauradas em contextos sociais, podendo se tornar signos e ser interpretadas. Mas que tipo de linguagem é a música? Examinemos uma definição de linguagem conforme uma formulação da linguística:

A linguagem é constituída pela distinção entre língua e fala ou palavra: a língua é uma instituição social e um sistema, ou uma estrutura objetiva que existe com suas regras e princípios próprios, enquanto a fala ou palavra é o ato individual de uso da língua, tendo existência subjetiva por ser o modo como os sujeitos falantes se apropriam da língua e a empregam (Chauí, 2002, p. 145).

Nesta definição se evidencia um dos problemas decorrentes da aplicação deste tipo de conceituação para as artes e, especificamente, para a música. Por um lado esta “estrutura objetiva que existe com suas regras e princípios próprios” (código, gramáticas, vocabulário, enfim, as partes constantes da linguagem, ou segundo algumas definições, suas invariáveis estruturais) diz respeito a uma suposta essência abstrata, necessária e suficiente para que se exerça a linguagem e para que haja comunicação e expressão. A velha questão platônica da separação entre a essência (mundo inteligível) e a aparência (mundo sensível) se revela aqui no dualismo entre uma estrutura subjacente e a pragmática. Neste caso existe um código com sua gramática e vocabulário anterior ou a priori à prática (práticas musicais específicas, músicas singulares). Esta - a prática - nada mais seria do que o conjunto de manifestações (aparências, atualizações) daquela. Partindo deste tipo de lógica, muitas vezes se constróem sistemas abstratos que se transformam - em contextos territoriais, acadêmicos, estéticos e pedagógicos

-em essências transcendentais da música. As categorias criadas e ligadas a estas práticas hegêmonicas (língua, sistemas, modos maiores) se tornam o padrão, o conceito, critério para a validade das manifestações artísticas. Concretizemos num exemplo: em certas situacões, o sistema tonal reduzido às suas constantes estruturais e suas categorias, tais como a direcionalidade, discursividade, linearidade acaba se tornando - em algumas perspectivas analíticas - uma referência transcendente para toda a prática musical. O filósofo francês Gilles Deleuze propõe a pragmática como um passo para a superação deste dualismo entre o que é constante/abstrato/língua e o que é variável/concreto/fala nas linguagens em seu texto sobre os postulados da linguística:

Mas a máquina abstrata não é universal ou mesmo geral, ela é singular…não possui regras invariáveis, mas regras facultativas que variam incessantemente com a própria variação, como em um jogo onde cada jogada se basearia na regra…Não há como distinguir, portanto, uma língua coletiva e constante, e atos de fala variáveis e individuais…A máquina abstrata não existe independentemente do agenciamento, assim como o agenciamento não funciona independentemente da máquina (Deleuze, 1997, p. 44).

Com relação às desterritorializações (modos menores, indisciplinas) que ocorrem na língua, Deleuze aponta o equívoco em se opor uma língua maior à língua menor enquanto duas realidades que se alternam e se antagonizam. Para ele a língua maior (“fato” majoritário) é “um fato analítico de Ninguém que se opõe ao devir-minoritário de todo mundo”. Isto é, a maioria é um fato abstrato analítico, conceitual que não tem existência concreta e o devir minoritário é o lugar do acontecimento e da variação contínua. Neste ponto, sem desvincular o devir individual do agenciamento coletivo Deleuze argumenta em favor de um devir minoritário enquanto autonomia da consciência:

Não é utilizando uma língua menor como dialeto, produzindo regionalismo ou gueto que nos tornamos revolucionários; é utilizando muitos dos elementos da minoria, conectando-os, conjugando-os, que inventamos um devir específico autônomo, imprevisto (idem,

p. 53).

Assim para Deleuze as linguagens são máquinas móveis singulares, se configuram na pragmática (nos agenciamentos maquínicos de conteúdo e de enunciação/expressão) e há dois tipos de tratamento da língua: um, consistindo em extrair dela constantes (modo maior/ padrão abstrato); outra, em colocá-la em variação contínua (modo menor/ devir minoritário concreto). Neste sentido, para Deleuze, investigar as estruturas abstratas da língua não significa separar os fatores presumivelmente linguísticos (por isto, constantes, estruturais) de fatores não-linguísticos (ligados então, somente à pragmática). Para ele o que conta é o agenciamento concreto:

Se a pragmática externa dos valores não-linguísticos deve ser levada em consideração, é porque a própria linguística não é separável de uma pragmática interna que concerne seus próprios valores…uma verdadeira máquina abstrata se relaciona com o conjunto de um agenciamento: se define como o diagrama deste agenciamento. Ela não faz parte da linguagem, mas é diagramática e sobrelinear. O conteúdo não é um significado nem a expressão de um significante, mas ambas são as variáveis do agenciamento (idem, p 33).

Se assim é, temos que o problema da comunicação ou da significação das músicas se coloca no contexto de seu agenciamento concreto e não a partir de uma suposta adequação de suas formas singulares concretas (significante/significado específicos) a alguma estrutura linguística apriorística. Por outro lado temos ainda que a música é (e, de resto, toda a arte), acima de tudo, terreno da invenção, da criação de perceptos, lugar das sensações e da polissemia e não lugar da comunicação unívoca. Vejamos

o que a filósofa Marilena Chauí nos diz à respeito das linguagens simbólicas:

A linguagem nos relaciona com o mundo e com os outros seres humanos. Mas como se dá esta relação?…A linguagem simbólica oferece sínteses imediatas, enquanto a linguagem conceitual procede por desconstrução analítica…a linguagem simbólica nos leva para dentro dela, arrasta-nos para o seu interior pela força de seu sentido, de suas evocações, de sua beleza, de seu apelo emotivo e afetivo; a linguagem conceitual busca convencer-nos e persuadir-nos por meio de argumentos, raciocínios e provas…a linguagem simbólica nos dá a conhecer o mundo criando um outro…a linguagem conceitual busca dizer o nosso mundo, decifrando seu sentido, ultrapassando suas aparências e seus acidentes…a linguagem cria, interpreta e decifra significações, podendo fazê-lo miticamente ou logicamente, simbolicamente ou conceitualmente (Chauí, 2002, p. 148 a 151).

Ainda neste mesmo texto lemos, sobre os fatores que fundamentam a linguagem (que nada mais é do que o agenciamento concreto):

Fatores socioculturais, que determinam a diferença entre as línguas e entre as linguagens dos indivíduos…fatores psicológicos que criam em nós a necessidade e o desejo da informação e da comunicação, bem como criam nossa capacidade para a performance linguística, seja ela cotidiana, artística, científica ou filosófica (idem).

A partir dos textos acima acreditamos poder afirmar que, se a música é linguagem, ela deve ser definida como linguagem simbólica ao lado de todas as outras linguagens artísticas e seu aspecto comunicacional não pode ser enfatizado uma vez que este é atributo das linguagens conceituais. A linguagem supõe uma capacidade para a “performance linguística”. Como afirmamos acima, na medida em que todas as manifestações humanas são passíveis de interpretações, a música se constitui enquanto um signo. As interpretações deste signo podem se dar a partir da construção de uma semiótica (que pode se pretender enquanto um instrumento científico de interpretação) ou de uma hermenêutica. Porém, o que muitas vezes acontece, numa análise musical de caráter positivista, é uma tentativa de se fazer ciência que é o lugar do silogismo científico e onde se procura encontrar a verdade demonstrando a ligação necessária entre o indivíduo (uma música específica em sua singularidade) a uma espécie (um modelo qualquer criado pela teoria, por exemplo, o sistema tonal) e o gênero (outro conceito mais abrangente ainda, constituído por atributos essenciais, por exemplo, a linguagem musical). Ora, este tipo de abordagem que acaba por gerar juízos supostamente científicos, despem a música de sua heteronomia dinâmica ao tentar inscrever cada indíviduo (as músicas singulares) numa estrutura estática apriorística (lugar das invariantes estruturais, ou seja, das essências). A análise formulada desta maneira corre o risco de aprisionar, capturar, regrar a arte.

2. Um substrato mais profundo: o devir molecular

Na arte criam-se novas realidades, o pensamento cria novas formas ou toma forma. A arte é uma manifestação/expressão do pensamento e de suas formas de estruturação. Por isto, se se quer investigar o substrato profundo do fazer musical (o que não deixa de ser um exercício de estruturalismo antropológico, como em Levi Strauss, ou em Chomsky e sua gramática gerativa) devemos nos debruçar no que há de comum entre as várias manifestações musicais – e que efetivamente as transcende – inclusive as não ocidentais e as do atual momento supostamente “babélico” da música contemporânea. E o que há de comum é o devir molecular – a pragmática – das energias postas em jogo nos vários agenciamentos (a máquina abstrata na expressão de Deleuze). Os problemas de se querer pensar na música enquanto linguagem surgem num contexto analítico de viés positivista, numa tentativa de uma musicologia analítica científica que centra o exame do objeto (no caso, o evento musical complexo singular) em sua suposta estrutura autônoma. Segundo Pedro Carneiro (Carneiro, 2001), “É o compromisso com o ideal de uma estrutura autônoma que nos torna míopes para a riqueza de toda heteronomia musical – percebida apenas no âmbito de um compromisso com uma pragmática musical”. Mais a frente neste texto, Carneiro estabelece um paralelo entre esta atitude analítica e a atitude de alguns linguistas:

O linguista, estando preso à idéia de invariantes estruturais … fecha a língua sobre si mesma …(e) os analistas musicais, comprometidos com o ideal de uma musicologia científica, fecham a música sobre si mesma. Ora, os analistas preocupam-se com as invariantes estruturais – supostamente – imanentes à música, porque as questões relativas a uma pragmática musical

ao acontecimento da música – são irredutíveis a qualquer método científico: o método pede um distanciamento, uma pragmática pressupõe envolvimento (Carneiro, 2001, p. 426).

Ainda no texto de Carneiro lemos:

Enquanto jogo, a arte revela um modo de estar no mundo, de reagir às resistências que o mundo impõe, de responder ao chamado dos valores da cultura e da tradição, enfim, de ver e de viver o mundo…a arte não pode, ou não deveria, ser percebida nos termos de uma estrutura que se revela a partir de suas constantes (idem, p. 429).

Dependendo da perspectiva que se adote quando se investiga a música enquanto linguagem, o que se revela são justamente estas categorias e estas constantes que acabam por aprisionar as manifestações musicais específicas em conceitos estáticos. Mesmo assim, levantemos algumas questões a respeito da música encarada como linguagem e examinemos alguns problemas que emergem neste contexto.

É um problema a falta de uma linguagem comum na música ocidental erudita a partir do início do século XX? Aparentemente sim, uma vez que o sentimento de isolamento e de falta de ressonância social dos trabalhos musicais contemporâneos é uma impressão mais ou menos generalizada. Já houve uma linguagem realmente comum na história? Sim:

o sistema tonal1, na Europa, de meados do século XVI até final do século XIX no contexto da música erudita e nos meios aristocráticos e burgueses. Nos meios populares europeus havia manifestações diversificadas (vide os atuais registros de músicas étnicas). O fato é que cada contexto histórico-geográfico (desde os microscópicos, como uma vila) produz coletivamente sua manifestação musical peculiar. Uma prática comum, mais extensiva, é resultado de alguma hegemonia/maioria provisória, como é o caso da padronização do canto da igreja levada a cabo pelo Papa Gregório na Idade Média.

Uma outra questão que deve ser levada em conta é o fato de que as sociedades contemporâneas são altamente complexas e fragmentadas cultural e socialmente. Não há comunidades urbanas coesas culturalmente, a não ser em torno de fenômenos de massa produzidos em larga escala com fins mercantilistas. Paralelamente a isto há uma grande segmentação das coletividades. Vários grupos altamente diferenciados e especializados em suas habilidades e gostos artísticos por vezes se misturam e interagem, mas na maior parte das vezes se segregam e não conhecem as manifestações mais experimentais das outras linguagens. Autênticos “revolucionários” em uma linguagem, chegam muitas vezes a ser “reacionários” ou conservadores naquelas que não conhecem direito2. Esse fato parece apontar para uma situação: a arte se tornou predominantemente coisa dos artistas e para os artistas. Isto é um problema? Num certo sentido sim e noutro não. O pensamento, a filosofia, a experimentação e a produção científica, a invenção sempre caminhou à frente do senso comum e da aplicação imediata. Por outro lembremos que - conforme já comentamos acima - já não há as comunidades supostamente homogêneas que constituiam os tecidos urbanos da Europa no período em que se deu uma relativa uniformização de uma prática comum. Se havia uma coletividade que definia uma linguagem enquanto prática comum, esta já não existe mais. O que é possível hoje é a multiplicidade de linguagens. Múltiplas linguagens, assim como são múltiplas as coletividades e as pragmáticas. A comunidade que aprecia a música “clássica” e que vai a concertos (incluindo aí os melômanos e os músicos que, muitas vezes não tocam e odeiam a música rotulada como contemporânea) estão ligados a uma tradição a que eles não conseguem – e nem querem – se desvincular. A respeito desta questão vale a pena citar a abordagem proposta por Michel Chion a respeito do efeito – muitas vezes negligenciado – do desenvolvimento das novas mídias e tecnologias sobre a música na atualidade. Para ele, o advento das tecnologias de gravação ocasionou, entre outros efeitos, a

ressureição de muitos séculos de música, tratados como um gigantesco campo de exploração; a criação de estilos de interpretação utilizando, conscientemente ou não, as potencialidades do microfone; e enfim, para se fazer justiça, a marginalização dos compositores contemporâneos da música erudita, que se veêm submetidos a uma concorrência imediata com os seus companheiros dos outros séculos…(Chion, 1994, p. 53).

O advento dos conservatórios, das academias, das escolas de música, que baseiam seus projetos de pedagogia num modelo herdado do romantismo, reforçam a reprodução e cerceiam a produção. Os organismos tais como a orquestra sinfônica e o ritual do concerto em certa medida também reforçam esta realidade.

Outra idéia vigente, a de que a história consagra aqueles que tem relevância ou validade real, tem novamente um fundo metafísico e idealista. A valoração de qualquer produção cultural está submetida à sua ressonância em determinados grupos hegemônicos. Provavelmente, vários compositores e artistas tão criativos ou mais do que aqueles que permanecem no Cânone, não estão ali incluídos por questões muito mais complexas do que a sua suposta qualidade artística. O que permanece é aquilo que algum grupo significativo escolhe – por uma série de razões – para permanecer. Não há critérios objetivos e absolutos (transcendentais, metafísicos) para julgar a produção de algum compositor. Há critérios metodológicos inter-subjetivos e estes podem não ser os mais “justos” aos olhos de alguma minoria. O que queremos dizer é que almejar a maioria não é necessariamente um valor. A maioria muitas vezes é poder, é exclusão, é homogeneização, é opressão. Quem é esta maioria? Como ela se configura?

Mas voltemos à questão colocada anteriormente: há constantes estruturais no modo de construção das “linguagens” musicais? Conforme Noam Chomsky: a simultaneidade, a discursividade, direcionalidade, a linearidade? Mesmo estas categorias podem ser colocadas em dúvida. Por exemplo, a música ritualística dos monges tibetanos não tem nada de discursivo (pelo menos nos moldes em que entendemos este termo no contexto do tonalismo ou da música ocidental). As músicas circulares, não direcionais dos Pigmeus também colocam em questão estas categorias. Na música contemporânea há muitas propostas diferentes sobre a estruturação das simultaneidades e, consequentemente, do tempo. Pensemos em Olivier Messiaen, John Cage, Charles Ives, Phillip Glass, Giacinto Scelsi, Gyorg Ligeti, Brian Ferneyhough, etc.

Examinemos a realidade atual: apesar da vigência hegemônica do tonalismo na história (bem restrita, histórica e geograficamente, por sinal) da música ocidental, o estranhamento que um jovem ou um leigo ocidental contemporâneo (não aquele que frequenta as salas de concerto, evidentemente) tem com uma obra de Beethoven ou uma obra de Varèse ou Schoenberg muitas vezes é o mesmo. Diríamos até, com base em experiências empíricas, que muitos jovens se identificam (e neste sentido, “entendem”) muito mais uma peça de Varèse ou Stravinsky do que uma de Monteverdi ou Mozart. É diferente quando esta mesma música aparece enquanto material para bricolagens de artistas pop da chamada pós-modernidade: DJ’s, Rappers, etc. Neste caso, espera-se que um beat techno sobre um Beethoven ou sobre um Varése deva ter efeitos igualmente dançantes.

3. Música. Não linguagem…

O que é linguagem afinal? Este termo nos remete ao universo da língua falada que é um instrumento do pensamento e que com ele estabelece interações fecundas. Podemos não pensar a música enquanto linguagem?

Uma questão importante e que se coloca como um problema na aplicação da categoria de linguagem à música é que o modelo utilizado é o da língua e este pressupõe, conforme é formulado pelo linguista F. Saussure, um sistema baseado na dupla articulação. Ora, a dupla articulacão quando aplicada à música (e às artes em geral) implica em pensar em elementos que não são significativos mas só distintivos (como são as letras na língua) e elementos significativos no contexto de uma linguagem. No tonalismo até que é possível, apesar de seu evidente reducionismo, aplicar este esquema quando se fala de acordes que só adquirem seu sentido no contexto do encadeamento (só o discurso então é que estabeleceria a função, o nexo,

o sentido dos eventos sucessivos. É a idéia explicitada por Schaeffer, do sonoro em função do musical e da escuta musical oposta à escuta reduzida). As notas isoladas de uma melodia, supostamente, também só adquirem seu sentido completo dentro do encadeamento. Por outro lado, podemos observar que na música erudita ocidental, em alguns ambientes (Debussy e os franceses por exemplo) foi ocorrendo uma gradual valorização do que seriam as unidades supostamente não significativas. É a verticalização: valorização das sonoridades dos acordes, do som desvinculado de seu contexto linguístico, molecularização (é assim que se chega, no limite, às propostas de P. Schaeffer de objeto sonoro e na música de G. Scelsi que propõe uma viagem por dentro do som). Neste contexto é que não há mais um predomínio da discursividade. A relação que se coloca entre o primeiro e o segundo nível de articulação é muito mais complexo. Não há na música unidades não significativas, puramente distintivas (como é o caso das letras na língua). E aqui podemos citar aquilo que o compositor Silvio Ferraz designa como “falibilidade comunicacional da música”. Segundo ele,

O compositor não lida com a estaticidade do signo, mas com sua dinâmica; ele opera diretamente com a distorção potencial de cada signo virtualmente envolvido em seu objeto…Assim, se na comunicação entre duas pessoas, o ruído é aquilo que diminui a eficiência do processo comunicativo, na música o objeto do compositor é justamente o ruído, aquilo que desvia a comunicação. Se na escuta cotidiana opera uma superfície de captação, registro e controle de dados, na escuta musical opera uma superfície de produção de signos. E não é difícil notar esta distinção, pois se na fala cotidiana o som chamasse a atenção para si mesmo estaríamos perdidos (Ferraz, 2001, p. 511).

Pensar a música enquanto linguagem numa analogia com a língua nos traz este problema: pensamos no som enquanto suporte de alguma coisa. O som deveria, assim, remeter a um texto (no caso da canção, da ópera, da música programática) ou a um sistema linguístico em que cada som se insere enquanto elemento não significativo de primeira articulação apto a se articular para gerar enunciados linguísticos comunicacionais.

Se remetermos a música a outra categoria de signo, conforme formulação de Charles S. Peirce, talvez encontremos relações mais férteis. Peirce fala de 3 tipos de signo: o símbolo, o ícone e o índice. O símbolo é arbitrário e totalmente convencionado. Dividido em significante, significado e referente, contendo em sua leitura muitas vezes, os níveis conotativo e denotativo. São as línguas (português, inglês, etc), o código morse, as placas de trânsito, etc. Os ícones são representações figurativas, metafóricas ou metonímicas do seu referente: as fotografias, as caricaturas, os totens, as imagens de deuses e divindades, etc. O índice é um signo que estabelece uma relação de contiguidade com seu referente. O exemplo clássico: fumaça é signo de fogo, as pegadas de um animal (marcas territoriais), etc. O índice não tem dupla articulação. Ele se apresenta por inteiro e sua interpretação/ compreensão (hermenêutica) depende da apreensão gestáltica do todo. A comunicação de sua “mensagem” está ligada a uma percepção racional e intuitiva. As artes possivelmente se enquadrariam mais adequadamente nesta categoria de linguagem indicial. As pinturas, as canções, as músicas de um povo são índices complexos e multifacetados.

4. Música. Não comunicação…

Pensemos agora quais são as relações entre a música (e a arte em geral) e o conceito de comunicação. Podemos partir do conceito de semióse em Nattiez para quem “a forma simbólica, não é intermediária de um processo de ‘comunicação’ que transmite a uma audiência significações intencionadas por um autor” (Nattiez, 2002). Neste sentido, nos parece que a comunicação quer gerar significados unívocos. Assim, um sinal vermelho quer dizer claramente: Pare. Pelo menos para aqueles que transitam no território do transporte urbano no ocidente – o que nos remete à teoria de regime de signos de Deleuze3. É óbvio que, conforme nos ensina Peirce, há toda uma rede de significações (interpretantes) que se pode constituir a partir de uma vivência específica de um receptor com este signo (o sinal vermelho). No entanto, nos parece claro que a geração deste signo está ligada a intenções pragmáticas diferentes daquelas que dão origem a objetos artísticos. Há, por trás da expressão deste signo, uma clara intenção unívoca, comunicacional. Tomando a comunicação como um processo desta natureza, temos que a música é um processo simbólico em que a dimensão da comunicação é um aspecto secundário, senão inexistente. Segundo Nattiez,

O poiético4 não tem necessariamente a vocação para se comunicar. Em sentido inverso, o “receptor” projeta sobre a forma simbólica configurações independentes das estruturas criadas pelo processo poiético. Essa teoria não é uma negação da comunicação. Ela é uma teoria do funcionamento simbólico que considera a comunicação nada mais do que um caso particular dos diversos modos de troca, uma das conseqüências possíveis dos processos simbólicos (Nattiez, 2002, p. 47 e 48).

Partindo destes pressupostos, acreditamos que as perguntas, “O que quer dizer está música? O que ela comunica? Para que serve?5,” muitas vezes manifestam um equívoco daqueles que se pretendem “observadores independentes, científicos e desinteressados” da realidade e que nesta condição suposta, colocam estas questões enquanto condição de verificação de legitimidade. Não que não se possa investigar os infinitos sentidos que se configuram a partir da interação entre uma manifestação musical e um público específico. Ora, as músicas existem e manifestam sua existência para determinados grupos. Adquirem seus significados e sentidos no contexto de determinados territórios. A música contemporânea tem um território de onde ela emerge e onde se configuram as suas redes de significado. Os processos simbólicos ligados a esta produção existem e se integram em regimes de signos, territórios onde eles adquirem sua pertinência.

Ainda é possível afirmar que se se supõe que a música comunica algo ela deve, à maneira de um signo linguístico, se colocar no lugar de algo (enquanto significante de um significado, enquanto forma de um conteúdo). E, por conta disto deve estabelecer uma semântica. De fato, segundo André Boucourechliev, existe uma grande diferença entre o sentido (singular e irredutível) e uma semântica:

Existe uma semântica musical elementar que pode engendrar a confusão na medida em que ela pode induzir àquilo que toma por seu sentido (e que ela não é). Ela funciona num nível muito precário e sobretudo muito geral, enquanto o sentido imanente é absolutamente singular e irredutível a um signo, uma fórmula/…/Entre as figuras mais usadas, podemos citar…o cromatismo descendente que conota indiferentemente a tristeza, o pesar e inversamente, as figuras ascendentes por intervalos largos, ritmicamente colocados em direção à nota aguda que conotam…o heroísmo, a vontade, a alegria…Se se deve compreender o sentido singular de tal ou qual música, isto não não quer dizer redirecioná-la para fora dela, nem a ‘traduzir’, mas estar com ela. Nós somos doentes de dois séculos de vã procura de uma significação, de um sentido racional da música cuja linguagem seria a portadora…Ora em música, nada é portador de outra coisa (Boucouchreliev, 1993, p. 11-12).

Talvez possamos também redimensionar o alcance do termo comunicabilidade num contexto territorial. A partir do conceito de território em Deleuze, todos os acontecimentos simbólicos são estratos territoriais. Todos os acontecimentos manifestam este território e o delimitam. São ritornelos territoriais. Se inserem dentro de regimes de signos. Neste sentido a pergunta, “para que serve tal manifestação?”, deve partir do pressuposto de que, se ela existe, ela é manifestação territorial e se inscreve no perpétuo devir que põe em relação de complementaridade os processos de territorialização e desterritorialização (levada a cabo pelos modos menores…). Na realidade a pergunta “para que serve?” talvez fosse melhor formulada da seguinte maneira: “de onde surge esta manifestação? A quem ela atinge? Porque ela existe?”. A partir destas perguntas pode-se erigir uma semióse (que não se confunde com a análise musical ou com a fruição estética). As avaliações sobre a suposta validade comunicacional de uma produção artística devem assumir os seus pressupostos éticos. Elas se fazem com base em escolhas racionais e conscientes diante das diversas posturas políticas. Assim, a validade comunicacional de uma obra qualquer deveria ser avaliada com base em critérios explicitamente metodológicos. Dizer que determinada música “não serve para nada” significa negar o que ela manifesta. Se ela existe, ela “serve” e manifesta algo (na realidade uma rede complexa de sentidos, sensações, etc.). Pode-se, no entanto, dizer que esta música não comunica aquilo que algum observador gostaria que ela comunicasse. Se sua ressonância é relativamente pequena (atinge um grupo restrito de pessoas: um pequeno território) isto não a deslegitimiza. Dependendo do ponto de vista, até muito pelo contrário. Uma característica do mundo contemporâneo globalizado é justamente uma fragmentação enorme dos territórios a partir do surgimento de inter-territórios onde se praticam tipos diversificados de manifestação simbólica. Este fato se opõe, de certa maneira, a uma homogeneização crescente do gosto popular médio mergulhado em certa produção rala da indústria de entretenimento. Está produção sim, responde a uma necessidade de reiteração retórica e se apoia numa comunicabilidade imediata baseada na utilização de linguagens e sistemas desgastados - porém plenamente justificados pela sua funcionalidade que nada mais fazem do que reforçar as membranas territoriais mais elementares de uma grande camada do chamado “mercado”. Aquilo que vende, comunica. E vice-versa. O mercado reforça: a produção deve se preocupar com sua comunicabilidade imediata (“quem não se comunica se estrumbica”, como diria um célebre comunicador televisivo).

Podemos, também, lembrar que em uma de suas obras mais importantes - Diferença e Repetição - Deleuze (Deleuze, 1988) se dedica a questionar o conceito de representação. Para ele, a representação aprisiona as vivências na estaticidade da interpretação do conceito. Para Deleuze, o que a representação capta é justamente o que supostamente se repete em cada acontecimento e não o que é diferente e, por isto, ela não capta o devir. Pensemos na natureza dos perceptos (gerados no contexto dos blocos de sensação): um pintor pinta uma paisagem, mas a sua paixão, o seu objeto, são as tintas, as cores e o pincel (os materiais e os procedimentos de sua linguagem sempre em contínua transformação). Sua paixão é, principalmente, o “como”. Sua paixão pelo material pré-composicional e pela composição em si é que o leva eventualmente à pintura abstrata. Ele não é apaixonado pela paisagem (ou também o é). Sua paixão é a construção plástica. A pintura comunica algo? Sim. Uma infinidade de coisas mas, o que cada pintura diferente da mesma paisagem propõe - a cada vez e a cada fruidor - é um mergulho particular nas sensações. A pintura não comunica a paisagem. Ela comunica, principalmente, a forma de pintá-la6. Há, ainda, uma infinidade de sentidos que podem ser atribuídos e configurados na relação que se estabelece entre o fruidor eventual e a pintura. Com certeza estes transcendem em muito a pergunta “o que quer dizer esta pintura?”. O conceito de “tornar pintura uma paisagem” (ou tornar sonora, por exemplo, a idéia, a impressão do mar, em Debussy) pode elucidar um pouco esta relação do pintor com a paisagem. A mesma paisagem pode “inspirar”, funcionar como um ponto de partida para uma pintura, para uma música, para uma obra literária, uma coreografia ou uma poesia. Cada artista, neste caso, apaixonado pelo seu “meio de expressão” (paixão pela cor, pelo som, pela palavra, pelo corpo, etc.) constrói um bloco de sensações que pode ser encarado, a nosso ver, equivocadamente, como uma tradução desta paisagem. Ou, o que nos parece mais adequado, este bloco de sensações deve ser vivenciado por aqueles que se defrontam com ele. Debussy não quer comunicar o mar…Ele quer que se ouçam os sons. E que, eventualmente, se tenha a sensação dos movimentos do mar: é uma música devir-mar. Obviamente, para o ouvinte, saber o título da peça, saber que Debussy era francês, saber que ele estava doente, conhecer jazz, ser brasileiro, burguês, etc., condicionam seu mergulho particular. O fato é que para ouvir as músicas de hoje é preciso estar disposto, tanto quanto para ouvir as músicas do passado, a fazer este mergulho: inicialmente na sensação e depois ir se aproximando do objeto de forma aberta e não preconceituosa.

Notas

1 Estamos aqui assumindo, apenas para efeito de demonstração, a atitude que pro

curamos criticar: a de tomar um sistema abstrato como referência transcendental

para todo um universo complexo de práticas diversificadas.

2 Parece óbvio, porém muitas veze negligenciado, o fato de que uma determinada vivência corporal molda uma forma de pensar específica. Melhor seria dizer que corpo e mente fazem uma unidade indissociável e que a prática em determinada atividade (por exemplo: o indivíduo é um bailarino ou coreógrafo) gera uma forma de pensar condicionada por este “território”: seus meios, seus materiais, suas formas de organização do espaço, do tempo, etc. Isto tudo faz com que um indivíduo que se dedica de maneira profunda a uma determinada prática adquira um modo de pensar sobre outras atividades atravessada por esta vivência.

3 O regime de signos é um ambiente onde a partir de processos de relacionamento complexo entre os agenciadores se constituem os significados.

4 Para Nattiez, a dimensão poiética diz respeito ao emissor e “mesmo que destituída de uma significação intencional, uma forma simbólica resulta de um processo criador passível de ser descrito ou reconstituido”(Nattiez, opus cit., p. 15)

5 Seriam diferentes as perguntas que delimitassem um território, um regime de signos: “O que pode significar esta música no contexto x para um público y, sob determinadas condições, etc, etc.

6 Obviamente a hermenêutica vai se incumbir de buscar interpretar os significados que emanam desta ou daquela obra, contextualizando o trabalho do artista em seu território específico. Evidentemente os temas e as formas de pintar ou de compor se inserem em complexos regimes de signos e neles adquirem parte de seus significados. No entanto é preciso atentar para a recepção destas obras em momentos distintos daqueles de sua produção: hoje vemos o passado com os nossos olhos.

Referências bibliográficas:

BOUCOURECHLIEV, André. Le Language Musical. Paris: Flamarion, 1993.

CARNEIRO, Pedro. Algumas reflexões sobre análise musical e escuta musical. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 13, 2001, Anais..., Belo Horizonte, UFMG. Vol. 2, p. 424 a 431, 2001.

CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2002.

CHION, Michel. Musiques, Médias et Technologies França: Flamarion, 1994.

DELEUZE, Gilles e Felix Guattari. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 2. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.

DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

FERRAZ, Silvio. Música e comunicação: ou, o que quer comunicar a música. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 13, 2001, Anais..., Belo Horizonte, UFMG. Vol. 2, p. 515 a 522, 2001.

NATTIEZ, Jean J. Proposta de análise tripartite. Revista Debate. Rio de Janeiro: n. 6, p. 43 a 48, 2002.

Rogério Costa - Graduado em Música (1982) na USP. Mestrado (2000) em musicologia na USP. Doutorado (2003) em Semiótica na PUC-SP. Atualmente, é professor do departamento de música da ECA-USP. Fundou e integrou durante 13 anos o grupo de música instrumental Aquilo del Nisso. Exerce intensa atividade de composição para teatro, dança e concerto. É diretor musical do grupo de dança Musicanoar/SP. É membro do trio Akronon, grupo que se dedica à investigação e à prática de livre improvisação em ambiente eletro-acústico.