A APRENDIZAGEM DA PERFORMANCE MUSICAL E O CORPO

Patrícia Pederiva

pat.pederiva@uol.com.br

Resumo: O artigo trata da relação corpo-músico instrumento, no contexto da aprendizagem da performance musical. Primeiramente, traça-se um panorama das recentes pesquisas que abordam o tema, enfocando o tratamento corporal e o adoecimento do músico. Em segundo lugar, são colocados os referenciais teóricos que admitem uma aprendizagem que considere o corpo como a sua base essencial. Após, são introduzidos o conceito de corporeidade, esquema corporal e imagem corporal, revelando a importância do conhecimento do próprio corpo, quando se trata de aprendizagem. Por fim, são demonstradas as pesquisas, principalmente no campo da psicologia da música, que são referência sobre o uso do corpo neste contexto.

Palavras-chave: Performance musical; Corpo; Aprendizagem.

Abstract: This article discusses the relationship body-performer-instrument into the learning context of musical performance. First, we have an overview of recent research on this issue, focusing the body treatment and the musician’s sickness. Following, the author sets theoretical references for a learning process that considers body as an essential foundation. Then she introduces the concepts of corporality, body scheme, and body image, showing the importance of acknowledging our own body, when we deal with the learning process. Finally, there are presented updated research, especially on the field of music psychology that studies the awareness of body into this context.

Keywords: Musical performance; Body; Learning.

Introdução

O desequilíbrio existente na relação que envolve o músico, seu corpo e seu instrumento em sua prática, tem sido evidenciado por diversas investigações. Pesquisa realizada por Costa (2003) por exemplo, constatou que a organização do trabalho dos músicos, as relações hierárquicas, a pressão temporal, os picos de demanda, o número insuficiente de violistas na orquestra, a inexistência de folgas e de revezamento, que possibilite maior descanso dos músicos, poderiam estar contribuindo significativamente para a presença de dor relacionada ao tocar.

Primeiro instrumento de trabalho de um músico, o corpo é solicitado como um todo na atividade musical (Costa, 2003, p. 37) o que apontam diversos autores (Andrade e Fonseca 2000, Deutsch, 1999; Costa, 2003; Galvão e Kemp, 1999; Silva, 2000; entre outros). Observa-se que durante o aprendizado de instrumentos musicais, a formação do intérprete é delineada em função da técnica musical. Esquece-se que o músico é um ser-humano possuidor de um corpo que abrange o físico, o cognitivo e o emocional. Trata-se o intérprete como se este fosse uma “máquina de fazer música”. O corpo como conseqüência dessa percepção é fragmentado em função dos objetivos a serem alcançados: a decodificação do símbolo, o domínio técnico do instrumento e da expressão musical.

Em artigo onde trata do risco da profissão do músico, Costa (2002) afirma que no Brasil, as ações preventivas ainda não contemplam os músicos em formação, o que já ocorreria em outros países que já utilizam vários tipos de orientação como, por exemplo, a Eutonia ou a Técnica Alexander. Já em pesquisa realizada com harpistas, Silva (2000) alerta para a necessidade de estudos sobre o corpo, pois, o harpista possuiria diversos problemas corporais, variando entre uma baixa resistência para o estudo, até dores e desvios ósseos.

Ray (2001) por sua vez, ressalta a importância do aspecto corporal relacionado a tocar um instrumento, com fundamentos emprestados das artes marciais, propondo a identificação e o domínio dos elementos que interagem em uma performance artística. Andrade e Fonseca (2000) desenvolvem reflexão sobre a utilização do corpo na performance dos instrumentos de cordas, sugerindo que a formação do músico deveria ser pensada como a formação de um atleta, tendo em vista que tocar um instrumento demanda um alto preparo físico e psicológico para a execução da tarefa. Galvão e Kemp (1999, p. 129) afirmam que pesquisas que se referem a um sentido corporal de espaço e movimento, são ainda campos pouco explorados, podendo ter grandes implicações para o ensino-aprendizagem de instrumentistas.

As questões relativas à aprendizagem motora também foram contempladas em pesquisa realizada por Lage et al (2002). Os autores afirmam que o estudo da aprendizagem motora seria de particular interesse tanto para o intérprete, quanto para o professor de música, pois, por meio da compreensão e da aplicação de conhecimentos que regem o movimento, poder-se-ia buscar uma diminuição significativa dos erros de performance, bem como um controle maior da variabilidade dos movimentos corporais.

Os autores asseveram que restam ainda muitas carências nas interfaces da performance musical com áreas como a Medicina, a Psicologia, Física e as Ciências do Esporte.

1. Aprendizagem e corpo

Os motivos psicológicos e as ocasiões corporais entrelaçam-se porque não há movimentos em um corpo vivo que sejam uma eventualidade absoluta em relação às intenções psíquicas, como também não existem atos psíquicos que não tenham origem, ou pelo menos seu germe ou seu esboço geral nas disposições fisiológicas. A união entre alma e corpo se realiza a cada instante no movimento da existência. A atividade postural e a atividade sensório motora são o ponto de partida da atividade intelectual no desenvolvimento da criança. O movimento é a expressão e o primeiro instrumento do psiquismo. A ação recíproca entre funções mentais e funções motoras são o que o autor esforçou-se por demonstrar ao longo de sua obra (Fonseca, 1995).

Para Wallon (1995), o movimento é um dos meios que o ser vivo dispõe para atuar sobre seu ambiente. O ato insere-se no instante presente por meio do movimento. Do momento imediato, transforma-se em técnico ou simbólico, referindo-se ao plano da representação e do conhecimento. A adaptação entre o mundo exterior e as estruturas motoras está intimamente ligada ao exercício de centros nervosos que asseguram a regulação fisiológica do movimento. A imagem do objeto seria uma segunda etapa, pertencendo esta, a níveis mais ou menos elevados da representação intelectual ou perceptiva.

A percepção adquire lugar através da ação, cuja organização e cofunção atingem as mais complexas formas de atividade psíquica superior (Fonseca, 1995). O ato mental projeta-se em atos motores e a palavra é precedida pelo gesto. O movimento se integra à inteligência à medida que a atividade cognitiva progride. O ato motor e a inteligência ao integrar-se, são internalizados. A criança torna-se mais autônoma à medida que desenvolve a dimensão cognitiva do movimento.

A aprendizagem humana põe em desenvolvimento planos motores que reclamam conexões sensoriais simples, para mais tarde constituírem planos motores mais complexos. Para uma nova aprendizagem ou uma nova praxia, a criança necessita programar a sua atividade, requerendo, para o efeito, uma seqüencialização ordenada de sub-rotinas e hábitos modulares que a constituem.

O cérebro, órgão de aprendizagem, está baseado em uma hierarquia onde novas aquisições (psíquicas) se juntam às antigas (motoras), alcançando uma nova alteração e uma nova propriedade. As novas aprendizagens estão baseadas em aquisições e informações já integradas no cérebro, onde a noção do corpo ocupa um lugar extremamente significativo.

Grande parte do processamento da informação que substancia a aprendizagem pode ser considerada como conscientização interna do corpo, uma certa forma de integração psicomotora sobreposta a uma integração sensorial, que lhe serviria de suporte. A evolução da aprendizagem é algo muito estruturado, aonde uma combinação de estruturas neurológicas vão se organizando de forma cada vez mais complexa. Essas condições de estruturação ocorrem igualmente nas áreas sensoriais e motoras (Fonseca, 1995, p. 201).

Gardner (1994), afirma existir uma inteligência corporal nos seres-humanos que abrange o controle dos movimentos do corpo e a capacidade de manusear objetos com habilidade. Em propósitos funcionais ou expressivos, à habilidade de uso do corpo existe integrada a habilidade de manipulação de objetos. A dissociação entre mental (reflexivo), e físico (ativo), não foi deste modo estabelecida em diversas outras culturas, não sendo um imperativo universal. A atividade mental também pode ser encarada como um meio, onde o fim é a ação a ser executada. A ação do cérebro deve ser igualmente conceituada como um meio para o refinamento adicional do comportamento motor, um direcionamento maior para futuras ações e geral adaptação e valor para a sobrevivência.

O sistema perceptual e o sistema motor apresentam sutil interação na atividade motora. Movimentos motores passam continuamente por um processo de refinamento e regulação, de feedback altamente articulado, comparando a meta pretendida e a posição real dos membros ou partes do corpo em determinados momentos. O corpo também é recipiente do senso de Eu do indivíduo. Mais do que meramente uma máquina, carrega sentimentos, aspirações e a entidade humana. Este corpo especial, que se modifica perpetuamente, influencia pensamentos, comportamentos e relações humanas.

Para Fonseca (1995), a evolução de criança é constituída pela conscientização e pelo conhecimento cada vez mais profundo de seu corpo, a criança é o seu corpo, pois, por meio dele, elabora todas as suas experiências vitais, organizando assim a sua personalidade. A noção de corpo é uma integração superior, onde se encontram dados intra e interneurosensoriais mobilizando memórias neuronais indispensáveis ao desenvolvimento das aquisições de aprendizagem psicomotora e simbólica.

A noção de corpo pode ser comparada ao alfabeto, um atlas do corpo; mapa semântico com equivalentes visuais, táteis, quinestésicos e auditivos (lingüísticos); uma composição de memórias de todas as partes do corpo e de todas as suas experiências. Em outros termos, trata-se de uma síntese perceptiva. Como mapa do corpo, torna-se indispensável para “navegar” no espaço, como alfabeto, indispensável para comunicar e aprender. Ponto de referência espacial, instrumento de realização e criação, alicerce da estrutura do Eu, entre outros, o corpo denota uma construção biopsicosocial, um produto final das experiências agradáveis e desagradáveis da vida.

Uma noção primeiro intuitiva da qual decorre uma auto-imagem sensorial interior, passando posteriormente a uma noção especializada lingüisticamente, transcorre da reprojeção aferente de todos os músculos, tendões e articulações, do tato, e do sentido quinestésicos. A noção ou imagem do corpo é estruturada a partir de estímulos periféricos e das preferências do movimento corporal, resultando em processos de transdução e de análise, desde as informações táteis e quinestésicos, cujo produto final resulta na síntese e no armazenamento de posturas corporais, de padrões de movimento de direcionalização objetal e envolvimental, entre outros, dependentes da experiência cultural e de aprendizagem.

A noção de corpo, por meio da experiência cultural, integra o emocional, o afetivo, o mágico, o fantástico, o objetivo e o subjetivo. Em uma palavra, a noção de corpo transforma-se na noção do psíquico. Com bases nesses dados, o corpo transforma-se em um instrumento do pensamento e da comunicação. Reconhece-se o que se é, nele e com ele. O corpo, em síntese, um objeto psicológico e um construto psicológico (Fonseca, 1995, p. 182).

Desde as comunicações básicas, primitivas e vitais, que subentendem o inesgotável diálogo tônico mãe-filho, até os confortos táteis, que retratam a vinculação essencial do ser humano a outros seres humanos, passando pela imitação e pela comunicação não verbal universal, o corpo, sede da consciência, é o habitáculo emocional e racional da inteligência. Estruturalmente, é o centro da linguagem emocional e interior que antecede a apropriação da própria linguagem falada.

A noção de corpo sintetiza, dialeticamente, a totalidade do potencial de aprendizagem, não só por envolver um processo perceptivo polisensorial complexo, como também por integrar e reter a síntese das atitudes afetivas vividas e experimentadas significativamente. Encarada nesta perspectiva, a noção de corpo possui a capacidade de tornar-se um dispositivo essencial ao desenvolvimento da aprendizagem, e conseqüentemente da personalidade, na medida em que pode ser objeto de estudo de inesgotáveis recursos para compreender as relações corpo-personalidade (Fonseca, 1995

p. 183).

2. Corporeidade

Introduzir o conceito de corporeidade implica em conceber os valores presentes na construção do conhecimento sobre o corpo (Moreira, 2003, p. 87). Os valores que sustentam os conhecimentos existentes sobre tal objeto não suportam o conceito da corporeidade. Tais valores englobam

o corpo como objeto mecânico, como objeto de rendimento, como corpo alienado e como objeto especializado.

Como corporeidade, compreende-se o corpo como um corpo sujeito existencial. Contempla-se o sensível o inteligível e o motor. Trata-se de um corpo que busca qualidade de vida. Valores como conservação, cooperação, qualidade e parceria substituem os valores de competição, quantidade e dominação quando se trata de corporeidade. É uma mudança de valores, mais do que uma mudança de estratégias.

Segundo Freitas (1999, p. 53), inserido nas relações histórico-culturais de seu meio, o ser-humano é um indivíduo único e capaz de testemunhar sua própria experiência, construindo sua vivência singular na complexa rede de inter-relações. Como corporeidade, o corpo humano não termina nos limites que a anatomia e a fisiologia lhe impõem, sendo construído nas relações sócio-históricas e trazendo em si a marca da individualidade.

O corpo estende-se pelos instrumentos criados pelo homem, por meio das roupas e da cultura, entre outros. Ao conferir-lhes significado e utilização, o corpo passa por um processo de aprendizagem construtor de hábitos. Expressivo e significativo não é uma simples coleção de órgãos nem uma representação na consciência, tampouco ainda, um objeto exterior que se possa explorar. É uma permanência que se vivencia. O corpo humano é, acima de tudo, um ser intencional que se move em direção a um objeto. Com o corpo, no corpo, desde o corpo e através do corpo, o ser-humano é presença e espaço na história (Sérgio, 1995, p. 22). Por meio de sua motricidade, surgida como emergência da corporeidade, denuncia quem está no mundo, intencionalmente.

3. A importância do conhecimento do corpo: esquema corporal e imagem corporal

Merleau-Ponty (1999, p. 147) define esquema corporal como uma maneira de exprimir um corpo inserido no mundo. Segundo Freitas (1999,

p. 20), a expressão “esquema corporal”, foi utilizada pela primeira vez por Bonnier em 1905, que a concebeu como a soma de todas as sensações vindas de dentro e fora do corpo. Este termo foi adotado pelos neurologistas a partir da escola britânica de neurologia que distinguia os termos esquema e imagem.

O termo imagem corporal, traduzido como conceito e vivência que seria construído sobre o esquema corporal, traz consigo o mundo humano das significações. Na imagem estão presentes os afetos, os valores e a história pessoal marcada por gestos, no olhar, no corpo que se move, que repousa e que simboliza. O esquema corporal (Freitas, 1999, p. 27), é uma estrutura geneticamente necessária à qual viria somar-se a imagem do corpo.

A imagem corporal é uma reconstrução constante do que o indivíduo percebe de si e das determinações inconscientes que carrega de seu diálogo com o mundo. Schilder (1994, apud Freitas, 1999, p. 28), utiliza

o termo esquema quando se refere a processos neurológicos e, imagem ao se referir a processos psicológicos e sociológicos.

As ações para as quais um conhecimento particular é necessário são imperfeitas quando o conhecimento do próprio corpo é também incompleto e imperfeito. Existe uma estreita relação entre o lado perceptivo da vida psíquica e as atividades motoras. Problemas perceptivos provocam uma alteração na ação. Como uma noção mais ou menos consciente de nosso corpo, a noção de corpo compreende uma dinâmica postural, posicional e espacial, que põe cada indivíduo em contato com o mundo exterior.

O conhecimento de alguém sobre seu próprio corpo é uma necessidade absoluta. Sempre deve haver o conhecimento de que se está agindo com o próprio corpo, que se tem que começar o movimento com o corpo, que se tem que usar determinada parte do corpo. Este plano também deve incluir o objetivo de cada ação, pois há sempre um objeto em direção a qual a ação é dirigida. Tal objetivo pode ser o próprio corpo, ou um objeto do mundo externo.

Para efetuar uma ação, deve-se saber alguma coisa sobre a qualidade do objeto com o qual se intenciona agir. Apesar de não muito clara, isto pressupõe a imagem do membro ou do corpo com a qual se realiza o movimento. O conhecimento meramente intelectual é insuficiente. Tanto a percepção visual quanto a imagem visual seriam necessária para o início de um movimento, contudo, mesmo com pessoas sem imagens visuais, em um sentido restrito, são ainda capazes de realizar um movimento com os olhos fechados.

Para Schilder (1999), pensamentos visuais são comuns em pessoas normais. Seres-humanos utilizam-se de representações visuais e acústicomotoras de acordo com as circunstâncias. Mas, os sentidos isolados não existem. Freqüentemente pessoas “intencionam” objetos que se apresentam por meio de suas qualidades, sejam visuais, táteis ou acústicas. O embrião do plano, bem como o plano em si, tem a intenção de serem transformados em um movimento completo. O autor afirma acreditar não existir separação entre o funcional e o orgânico. A mente e a personalidade seriam entidades tão eficientes quanto o organismo. Os processos psíquicos teriam raízes comuns com outros processos realizados no organismo. Percepção e a ação, expressão e impressão formariam uma unidade.

Schilder (1999, p. 7) assegura existir uma experiência imediata de unidade de corpo, que é percebida, sendo mais do que uma percepção. Trata-se do “esquema corporal”, uma imagem tridimensional que todos teriam de si mesmos. O autor denomina-a também de “imagem corporal”, com o fim de indicar que não se trata de sensação, nem de imaginação. É uma apercepção corporal, que embora chegue através dos sentidos, não se constitui uma percepção. A apercepção seria uma “versão gestáltica” da percepção.

Apesar de existirem figurações e representações envolvidas, não seria uma representação apenas. Poderia surgir na consciência por meio de imagens, porém, freqüentemente, permanecem fora da consciência central. Neste local, formam os esquemas, seus próprios modelos organizados. Qualquer mudança postural que se reconhece, entra na consciência por meio de uma relação anterior, algo já acontecido.

Por meio de constantes alterações de posição constrói-se um modelo postural pessoal, constantemente modificado. Neste esquema plástico, cada postura ou movimento é registrado, criando uma relação com cada novo grupo de sensações evocadas pela postura alterada. Tão logo a relação esteja completa, o reconhecimento postural imediato acontece.

O poder de projetar o reconhecimento de postura até a extremidade de um instrumento segurado pela mão, do movimento e da localização além dos limites do próprio corpo, se deve à existência desses esquemas. Tudo aquilo que participa do movimento consciente de cada corpo, é acrescentado ao modelo da própria pessoa, tornando-se parte desses esquemas.

Com base na Gestalt, a psicologia moderna contrasta o todo, que seria mais do que a soma das partes individuais, com a subconexão de partes que se somam. Daí o postulado que permitiria a participação de funções orgânicas correlacionadas a funções psíquicas superiores nas qualidades funcionais características da experiência psíquica, englobando assim, os processos orgânicos nas Gestalten (SCHILDER, 1999 p. 10). Para Schilder, o estudo da imagem corporal se refere à vida psíquica. Impressões não existem sem uma expressão, tampouco não existe percepção sem ação. Podem existir, contudo, impressões independentes de uma ação. Deve-se abordar, no estudo da imagem corporal, o problema psicológico central da relação entre as impressões dos sentidos e os movimentos e em geral. Experimentando uma percepção existe sempre uma personalidade, pois o ser humano é emocional. Como personalidade, é ainda um sistema de ações e tendências para a ação.

Quando se percebe ou se imagina um objeto, ou quando se constrói a percepção deste objeto, não se age apenas como um aparelho perceptivo.

Schilder (1999) considera ainda, que a topografia do modelo postural do corpo, serve como base para as atitudes emocionais para com este. O modelo postural está em constante autoconstrução e destruição interna. Este é o significado de desenvolvimento em relação às estruturas psíquicas. Do mesmo modo que emoções e ações são inseparáveis da imagem corporal, os modelos postural de cada corpo se encontra também intimamente ligado ao modelo postural de outros corpos, pois existem conexões entre modelos posturais de seres humanos semelhantes.

Na construção do conhecimento de nosso corpo, a sensibilidade postural desempenha um papel importante na possibilidade de construir o conhecimento da relação entre as diferentes partes da superfície em conexão com a capacidade de localização; na existência de uma conexão entre as partes co corpo, fisiológica e psicologicamente; na imaginação e na percepção visual que enfatizam a similaridade tátil dos pontos simétricos. As imagens visuais conscientes e as percepções ocorrem como uma pequena parte do funcionamento na esfera visual. A localização das impressões e imagens táteis seria um processo independente da simples percepção do toque. O modelo postural do corpo é um produto gestáltico de nossa psique.

4. A performance musical e o corpo

A performance musical exige uma alta demanda de trabalho corporal. No tocante à atividade humana é uma das que exigem maior habilidades motoras finas. Segundo Magill (2000, p. 8), tais habilidades requerem controle de músculos pequenos, principalmente, os músculos envolvidos na coordenação mãos-olhos, que exigem um alto grau e precisão no movimento de mão e dos dedos.

As demandas corporais pertinentes à atividade musical costumam ocasionar freqüentes problemas em músicos, tal como síndrome do superuso, distonias focais e stress psicológico. Gabrielsson (1999) apresenta extensivos dados sobre a síndrome do superuso em músicos de orquestra sinfônica e em alunos de instrumentos musicais nas escolas de música. O Medical Problems of Performing Artists e o International Journal of Arts Medicine demonstram uma ampla evidência da grande quantidade de casos neste campo. A incidência entre os músicos de orquestra, por exemplo, se encontra na faixa de 50%, enquanto nas escolas de música, entre 10 e 20% sobre a síndrome do superuso em músicos de orquestra sinfônica e em escolas de música. A síndrome é causada por fatores genéticos, de técnica musical e intensidade e tempo de prática. Suas características principais são dor persistente nos ligamentos e juntas durante o seu uso excessivo. A localização física do problema, em cada músico, depende da demanda exigida por cada instrumento, como por exemplo, a mão direita para os pianistas, a mão esquerda pra os guitarristas, e problemas ligados ao aparelho respiratório, no caso dos instrumentistas de sopro. O autor recomenda que para cada 25 minutos de prática, haja 5 minutos de descanso.

No ano de 1887, a pane dos pianistas começa a ser estudado por Poor. Em 1932 surge a primeira publicação sobre distúrbios no aparelho músculo-esquelético dos músicos, por K. Singer. Costa (2003), relata que sintomas como nervosismo, tremores, taquicardia, palpitações, hipertensão arterial, falta de ar, sudorese na palma das mãos, boca seca, náusea, micção imperiosa, são manifestações somáticas encontradas na atividade musical, sintomas físicos decorrentes de descarga adrenergética excessiva.

Gabrielsson (1999, p. 501) define a performance musical como um tema que pode ser tratado de diferentes maneiras. Alguns manuais de psicologia da música acercam-se da performance musical, discutindo questões de interpretação e técnica sob vários aspectos e diversas abordagens. Os processos motores também fazem parte do estudo da performance musical. Embora a questão sobre o processo motor seja um assunto central em performance musical, é ainda um tema que requer um maior aprofundamento. Neste setor, Sidnell (op. cit) tem se destacado por realizar pesquisas sobre eficiência da prática motora, memória motora, propriocepção, (idéia do movimento em relação a informação sensorial), transferência de habilidade motora, e aplicação de modelos motores.

Wilson e Roehmann (apud por Gabrielsson, 1999, p. 516) destacam a complexidade do comportamento humano em música, não crendo que se possam solucionar os problemas desta área, em futuro próximo. Costa (2003

p. 1), por outro lado, destaca a criação de centros de pesquisa e atendimento, no Brasil, destinados à saúde do músico. A literatura sinaliza dados alarmantes, evidenciando o adoecimento expressivo de músicos o que estaria contribuindo para abreviar suas carreiras. Haveria também entre músicos, uma cultura silenciosa da dor, como se esta fizesse parte da profissão. A autora alerta ainda, para a necessidade de gerenciar as exigências da tarefa e dos limites psicofisiológicos existentes em cada músico.

O Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, unidade da Fundação Oswaldo Cruz, no Recife, criou em 2001 um serviço especializado que atende a músicos e atores que apresentem problemas nos ossos e músculos. Além de desenvolverem técnicas de reabilitação dirigidas a esses profissionais, os responsáveis pelo serviço fazem campanhas preventivas. Estudos realizados em diversos países, indicam que 75% dos instrumentistas são portadores de algum dos chamados distúrbios osteomusculares relacionados com o trabalho. Muitos perdem a capacidade de tocar (Pereira, 2002).

A medicina das artes performáticas tem crescido no mundo desde 1980. A partir desta data é que se voltou a atenção para a necessidade de uma medicina da música, quando renomados pianistas resolveram falar publicamente sobre os problemas que afetavam suas habilidades na performance. Um certo medo por parte dos músicos em falar de seus problemas, o receio em prejudicar a carreira, ou ainda experiências de colegas que haviam recebido tratamentos inadequados contribuíram para

o início da pesquisa nesta área (Brandfonbrener & Kjelland 2002 p. 84).

Costa (2003) relata que existe um alto estresse ocupacional na profissão de músico. Do período de formação ao ingresso no mercado de trabalho evidencia-se o medo de palco e os incidentes musculares ocasionados pelo uso excessivo da musculatura. O tensionamento, ou seja, a excessiva tensão muscular em instrumentistas, pode ser causada pela alta carga de estresse predispondo à ansiedade.

Para Brandfonbrener & Kjelland (2002, p. 92), a atividade requer um bom condicionamento físico, alongamentos específicos e pausas sistemáticas. Músicos e educadores deveriam efetuar maiores questionamentos e críticas positivas sobre o que pode ser feito quanto à saúde do músico. É imprescindível estabelecer meios para avaliar suas necessidades físicas e psicológicas, buscando reaprender hábitos e habilidades motoras.

Costa (2003 p. 49) chama a atenção dos responsáveis pelo ensino de instrumentos para a questão da dor no período de formação de músicos, afirmando que o ensino ocupa uma posição chave quanto a esclarecimentos sobre este assunto junto a alunos. As cobranças de desempenho por parte de professores resultam em períodos intensos de estudos e demanda psicológica por parte dos alunos, contribuindo para o surgimento de dores e desconfortos. O período de formação denuncia a falta de orientação de professores sobre tensões, uso excessivo de força e incorreções posturais.

O fazer musical envolve o desenvolvimento total do corpo, conclamando o sentido aural, tátil e da consciência kinestésica. (“sensação” de espaço e movimento). Trabalhar em uma perspectiva integralizada, causará mudanças altamente positivas na performance musical. (Lieberman, 1991). Ao buscar os meios para alicerçar compromissos satisfatórios integrando as circunstâncias físicas, químicas e biológicas do organismo, bem como sua realidade afetiva e relacional imersas da realidade social, estar-se-á edificando o processo básico de saúde (Costa, 2003).

A prática musical envolve o desenvolvimento e a manutenção de aspectos técnicos, aprendizado de novas músicas, memorização, interpretação e preparação para performances. (Barry e Hallan, 2002). A prática capacita o músico para habilidades físicas e cognitivas.

Brandfonbrener & Kjelland (2002) afirmam que a interação física e psicológica do músico com o repertório musical, a performance técnica e as questões específicas de cada instrumento poderiam ser fatores geradores de problemas físicos em músicos. Alertam que a prevenção deve fazer parte da rotina, antes que se necessite de tratamentos, mas, que ainda serão necessárias muitas pesquisas que visem esclarecer a prática musical, tal como a identificação de fatores de risco em sua atividade.

Apontam também para a necessidade de colaboração entre a medicina e a educação musical. Os autores asseguram que a melhor maneira de prevenir problemas deveria ser trabalhar preventivamente nos primeiros anos de educação musical no instrumento. Tal processo se daria com o desenvolvimento de bons hábitos de postura nos alunos, um estilo saudável de vida, atitudes positivas, técnica eficiente, evitando excessivas repetições, cuidando da fadiga e tensão e mantendo exercícios de rotina desde as primeiras lições no instrumento.

A excessiva tensão muscular e emocional freqüentemente inseparáveis a que os músicos se expõem e são expostos, são importantes fatores de risco. Rotinas básicas de aquecimento como yoga, método feldrenkais, exercícios de consciência corporal, entre outros, ajudam, mas não parecem ser ainda suficientes para resolver o problema, já que as causas que originam estes fatores ainda estão por serem esclarecidas.

Costa (2003, p. 26) descreve que o estudo da práxis interpretativa e da fisiologia da execução musical, é um dos aspectos fundamentais que fazem parte da pedagogia de instrumentos musicais. A formação de um intérprete envolve intensamente o desenvolvimento sensório-motor. Controle corporal, destreza motora e habilidades de execução são somadas a esta atividade. Professores necessitam estar alerta quanto a sinais que alterem a prática, pois a educação deve ser considerada como um fator de cautela, tendo em vista que as bases motoras e posturais são adquiridas no período da formação do aluno.

Brandfonbrener & Kjelland (2002) declaram que é necessário chamar a atenção de educadores para este tema, o qual faz parte do processo de educação musical no instrumento. Professores e pais devem desenvolver uma consciência de todas as variáveis que afetam a prática musical, ampliando métodos de desenvolvimento físico e psicológico para a saúde de jovens músicos.

Lieberman (1991) traça o contorno de um trabalho preventivo no ensino de instrumentos musicais, quanto a problemas de ordem corporal. A autora assegura que professores de instrumento costumam demonstrar uma postura “ideal” para tocar, onde o aluno, em pé, ou sentado, dependendo do instrumento, deve permanecer estático. Isto impede uma perfeita oxigenação do organismo, restringindo a consciência e um feedback dos músculos. O objetivo deve ser o de aprender a utilizar a gravidade, distribuindo continuamente o peso do corpo, quase imperceptivelmente, buscando consciência dos músculos que estão sendo utilizados na tarefa. As causas mais comuns de dor, são a utilização de um novo instrumento ou uma nova técnica, atividade muscular excessiva, repetição demasiada, utilização de força inadequada, stress psicológico (no caso de medo em competições, apresentações, frustração), tocar cansado ou lesionado, entre outros fatores.

Quando os sinais do corpo são ignorados, os problemas aparecem. É necessário monitorar constantemente as tensões presentes no corpo. O controle respiratório pode ser um grande aliado para este fim, já que, oxigenando as células pode se reverter o processo da dor, iniciado pela descarga de ácido lático no organismo. Uma boa respiração contribui para a inibição desta substância, dificultando assim a presença da dor. O aquecimento muscular também é um outro aliado à prevenção de desconfortos físicos.

Conclusão

O “olhar” sobre o corpo pode ser direcionado a partir de diversas perspectivas. Nós, músicos, necessitamos explorá-las, reelaborando o nosso fazer. Seja a partir do estudo do desenvolvimento motor, da aprendizagem motora, ou ainda da corporeidade (uma perspectiva mais integralizada), é preciso repensar a prática musical. A formação do músico e do professor de música ainda não contempla tais noções. Tal desconhecimento poderia estar gerando os diversos problemas apresentados por estes profissionais. Abre-se um campo riquíssimo para a pesquisa em música, a ser explorado. Os referencias teóricos utilizados no campo da aprendizagem da performance musical demonstram existir no campo de reflexão e prática musicais, um grande distanciamento acerca da reflexão de como o corpo pode ser considerado em sua integralidade, no processo ensino-aprendizagem de instrumentos musicais em relação a teorias que já delimitam bases para uma ação concreta.

A reflexão sobre a prática estabelecida revela um corpo mecanizado e alienado, uma aprendizagem “sem corpo”. Ainda há muito que pesquisar, mas é visível a necessidade de interagir com outros campos esclarecedores de conhecimento a respeito da questão humana, do corpo e das relações estabelecidas a partir de então, para que o fenômeno vá sendo aos poucos desvelado.

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Patrícia Pederiva é mestranda em Educação da Universidade Católica de Brasília, sob a orientação do professor Dr. Afonso Galvão. É também professora de violoncelo no CEP - Escola de Música de Brasília. Em 2003 aprovou e publicou diversos artigos sobre a relação músico-corpo-instrumento, na ABEM, ABEM CO, Seminário de Pesquisa em Música em GO e, em julho de 2004, apresentou o artigo Body and Perception: feeling and perceiveing sounds na conferência da ISME, International Society of Music Education, em Tenerife, Espanha.