AUTOCITAÇÕES NO PROCESSO COMPOSICIONAL

DE BRUNO KIEFER

Luciane Cardassi

luciane.cardassi@terra.com.br

Resumo: O presente artigo discute a autocitação como uma estratégia composicional importante na música do compositor Bruno Kiefer (1923-1987). O objeto deste estudo foi um grupo de 21 obras para diversas formações instrumentais compostas entre 1970 e 1983 nas quais foram identificados os sete tipos de autocitações aqui discutidos. As peças escolhidas compartilham a temática tríplice “terra”, “vento” e “horizonte” em seus títulos, numa referência às concepções irrigadas da poesia de Carlos Nejar (1939) para a música de Kiefer (Cardasssi, 1998). Através do processo de autocitação Kiefer produz nestas 21 peças um corpo composicional unitário e evidencia convicção nas suas idéias musicais.

Palavras-chave: Música brasileira; Bruno Kiefer; Composição; Análise musical; Autocitações.

Abstract: The present article discusses the self-quotation strategy as an important one found in the music of composer Bruno Kiefer (1923-1987). The object of this study was a group of 21 works for a variety of timbric combinations written between 1970 and 1983, in which the seven types of self-quotation here discussed were identified. These compositions bear titles that refer to specific poetic ideas “earth”, “wind” and “horizon”, as a reference to the concepts irrigated from the poetry of Carlos Nejar (1939) to the music of Kiefer (Cardassi, 1998). Through the process of self-quotation, Kiefer creates in these 21 works a compositional body of unity and makes evident the conviction on his musical ideas.

Keywords: Brazilian music; Bruno Kiefer; Composition; Musical analysis; Self-quotation.

Introdução

Entre 1996 e 1998 realizei pesquisa sobre a música do compositor Bruno Kiefer (Baden-Baden, 1923 - Porto Alegre, 1987), com ênfase em um grupo de 21 peças compostas durante a década de 70 e que trazem nos títulos referência direta à temática tríplice “terra”, “vento” e “horizonte.” A investigação analítica dessa porção específica da produção de Kiefer me conduziu à obra de Carlos Nejar (Porto Alegre, 1939), poeta contemporâneo do compositor, pois a poesia de Nejar constitui a fonte das idéias poéticas irrigadas para a música de Kiefer. A partir da evidente afinidade temática e expressiva entre a música de Bruno Kiefer e a poesia de Nejar, pude traçar um paralelo entre a obra desses dois artistas riograndenses, o qual me permitiu trazer à tona uma importante estratégia composicional até então inexplorada na obra de Bruno Kiefer (Cardassi, 1998). Apesar da relevância do estudo entre a relação criadora entre os dois artistas, este não será aprofundado no presente trabalho, o que será concentrado no processo de autocitação em Kiefer. O presente artigo pretende demonstrar que Kiefer reutiliza trechos musicais idênticos em várias de suas composições, configurando um processo de autocitação, através da análise desse grupo de peças escritas entre 1970 e 1983.

1. Citação e autocitação em processos composicionais

Tomar emprestado trechos de obras consagradas historicamente, seja através de citações diretas ou de alusões menos evidentes, é um recurso bastante utilizado por compositores de diferentes épocas e estilos, especialmente no século XX. Podemos mencionar a música de Charles Ives (1874-1954), em que as citações constituem fonte de investigação analítica até os dias de hoje, tal a importância que esse aspecto assume na obra do compositor. Segundo Burkholder (apud Block, 1996), as citações, na música de Ives, configuram o centro da composição, e podem ter sido escolhidas pelo compositor por razões musicais ou simbólicas, nunca por motivos meramente ilustrativos.

Como na obra de Ives, as citações na música de George Crumb (1929) são utilizadas, em algumas obras, como centro do processo composicional, como podemos observar na obra Night of The Four Moons para contralto e quatro instrumentistas (1969), em que Crumb faz citações diretas do compositor barroco J. S. Bach e dos compositores românticos F. Schubert e

F. Chopin. No mesmo período, Luciano Berio (1925-2003) incorpora à sua Sinfonia para octeto vocal e orquestra (1968-9), trechos da Sinfonia em Do Menor (Ressurreição) de Mahler. Uma passagem repetitiva da Sinfonia nº 7 de Beethoven foi a citação escolhida por John Corigliano (1938) para sua Fantasia on an Ostinato, obra para piano escrita em 1985. A citação literal ocorre apenas na seção final da obra, mas fica evidente o manejo do tema beethoveniano através de procedimentos minimalistas durante toda a peça. Mais recentemente, no Brasil, pode-se mencionar o Estudo Paulistano (1998) para piano de Celso Loureiro Chaves (n.1950), no qual o compositor faz citação, ora direta, ora transfigurada, da ópera Peter Grimes de Benjamin Britten. Assim, pode-se dizer que a citação de obras já consagradas pode ser vista como uma maneira do compositor se referir ao seu background musical, ou mesmo um modo de investir algum significado em sua música.

No grupo de peças analisadas, Kiefer não faz citação de obras alheias, mas reutiliza trechos de sua própria música, muitas vezes de forma literal, configurando um processo de autocitação. Esse recurso de autocitação também foi utilizado por outros compositores, sem limites de gênero ou estilo musical. Mahler reutilizou, em suas sinfonias, trechos de obras anteriores, o que representaria um documento de caráter autobiográfico do compositor (Simms, 1986).

O caráter autobiográfico que parece acompanhar o processo de autocitação pode ser evidenciado também na música popular. Tomemos a música de Caetano Veloso como exemplo. Ao ouvirmos Caetano cantando Você é minha (1998), somos imediatamente remetidos à outra canção sua, Você é linda, escrita duas décadas antes. Essa referência não se dá apenas pela semelhança entre os títulos e os textos das duas canções, mas principalmente por similaridades intrinsecamente musicais: a linha melódica e as harmonias. Em Você é minha, Caetano parece utilizar pontualmente o recurso composicional da autocitação, como uma breve referência nostálgica, ao passo que na música de Bruno Kiefer da década de 70, o processo de autocitação constitui uma das peculiaridades mais importantes na definição do estilo do compositor. É principalmente o processo de autocitação em Kiefer, através dos vários trechos que ocorrem de forma intensa e imediata nas suas peças, o que as torna “tão maravilhosamente identificáveis - elas são ninguém mais, elas são Bruno Kiefer” (Chaves, 1983).

2. Identificação e análise das peças escolhidas

O processo de autocitação na música de Kiefer será discutido a partir da individualização de sete idéias musicais, aquelas mais recorrentes e evidentes nas 21 peças analisadas. As peças escolhidas compartilham a temática tríplice “terra”, “vento” e “horizonte” em seus títulos, numa referência às concepções irrigadas da poesia para a música de Kiefer (Cardasssi, 1998), e que compõem algumas das autocitações.

As peças são as seguintes: Ventos Incertos (1970) para flauta doce e piano; O vento é quando? das Canções do Vento nº 2 (1971) para voz grave e piano – com poema de Carlos Nejar; Vem o Vento (1973) para voz aguda e quatro violoncelos – com poema de Carlos Nejar; Quando os ventos chegarem (1974) para coro misto a quatro vozes – com poema de Carlos Nejar; Sertão: Mistério (1972) para violino, viola, violoncelo, piano e instrumentos complementares de percussão (agogô, reco-reco e caixa de fósforos); Poema do Horizonte I (1972) para violino e violoncelo; Poema do Horizonte II (1972) para quarteto de cordas; Poema do Horizonte III (1975) para flauta, oboé, clarinete, corne-inglês e fagote; Poema do Horizonte IV (1976) para dois violinos, violoncelo e piano; Poemas da Terra I a V (1976) para conjunto de flautas-doce; Campeadores (1973) para coro e orquestra, com poema de Carlos Nejar; Poema Telúrico (1975) para orquestra sinfônica; Poema do Horizonte V (1977) para piano e orquestra de cordas; Terra Selvagem (1971) e Lamentos da Terra (1974) ambas para piano solo; Vendavais - Prenúncios (1971) para dois pianos; e Terra Sofrida (1983), para dois violões.

No âmbito deste trabalho, “idéia musical” deve ser entendida como a somatória de um gesto musical com o contexto em que esse gesto ocorre e a função desempenhada por ele, configurando trechos musicais de diferentes dimensões. As idéias musicais foram classificadas em sete, para melhor identificação e referência no presente trabalho. São elas: Idéia nº 1 - repetição de acordes, Idéia nº 2 - utilização de registro médio-grave, Idéia nº 3 cromatismo ascendente e descendente, Idéia nº 4 - movimento em oitavas ou sétimas, Idéia nº 5 - gestos, Idéia nº 6 - arpejos ascendentes e Idéia nº 7

-repetição incisiva de notas.

2.1 Idéia nº 1: repetição de acordes

Ocorre em Terra Selvagem (1971), para piano, e Vendavais Prenúncios (1971) para dois pianos. Trata-se da repetição de acordes enfatizando os intervalos de segunda menor e oitava, com insistência no padrão rítmico curta-longa com acento no valor curto sempre na cabeça do tempo, quase sempre em crescendo (às vezes com accelerando):

Exemplo 1: Terra Selvagem (1971). Compassos 114-121.

Exemplo 2: Vendavais - Prenúncios (1971). Compassos 97-101.

As ocorrências desta idéia são freqüentemente alternadas com trechos de caráter percussivo percorrendo diferentes registros do instrumento, em níveis elevados de intensidade. O caráter eminentemente agressivo desta idéia, e sua função de produzir momentos predominantemente rítmico-percussivos, “gerando certo grau de obsessividade” (Gandelman, 1997), são compartilhados em todas as suas ocorrências.

2.2 Idéia nº 2: utilização de registro médio-grave

A idéia n.º 2 ocorre em Campeadores (1973) para coro e orquestra em Poema Telúrico (1975) para orquestra sinfônica. Esta idéia se caracteriza pela utilização de registro médio-grave, níveis reduzidos de intensidade e insistência nas mesmas alturas ou nos mesmos intervalos, como as segundas menores, seja através de notas em staccato nos instrumentos de sopro, seja em trêmulo no tam-tam:

Exemplo 3: Campeadores (1973). Parte II - Tempo de Ansiedade. Compassos 76-81.

Exemplo 4: Poema Telúrico (1975) 2. Sentimentos Erráticos -B. Compassos 77-81.

Em Campeadores existe uma única manifestação dessa idéia, na seção que corresponde ao centro da parte II, Tempo de Ansiedade. Em Poema Telúrico o compositor reutiliza essa idéia em três citações, praticamente idênticas àquela de Campeadores, inclusive com similaridades de alturas. Todas as recorrências, em ambas as peças, produzem momentos de grandes contrastes de intensidade e de caráter com as seções que as precedem e sucedem, e revelam a mesma função: gerar uma atmosfera de ansiedade.

2.3 Idéia nº 3: cromatismo ascendente e descendente

Esta idéia ocorre em Campeadores (1973) para coro e orquestra e em Poema Telúrico (1975) para orquestra. São caminhos cromáticos ascendentes e descendentes em tercinas de semicolcheias, em níveis elevados de intensidade, no registro agudo de instrumentos de sopro:

Exemplo 5: Campeadores (1973). Parte II - Tempo de Ansiedade. Compassos 58-61.

Exemplo 6: Poema Telúrico (1975) 2. Sentimentos Erráticos -B. Compassos 10-15.

O contexto em que ocorre esta idéia nas duas obras é o mesmo: ela interrompe trechos com pouca atividade rítmico-melódica, no registro médio-grave, em níveis reduzidos de intensidade. Em ambas as citações resultam momentos de surpresa e intensificação do caráter dramático, em conseqüência da interrupção do discurso musical.

2.4 Idéia nº 4: gestos em oitavas ou sétimas ascendentes

Esta idéia recorre em Lamentos da Terra (1974) para piano; Poema do Horizonte IV (1976) para piano, dois violinos e violoncelo; e em Poema do Horizonte V (1977), para piano e orquestra de cordas. Caracteriza-se por um movimento em oitavas ou sétimas, resultando em uma espécie de sombra da condução melódica das figuras mais longas:

Exemplo 7: Lamentos da Terra (1974). Compassos 1-6. Exemplo 8: Poema do Horizonte IV (1976). Compassos 40-48.

Exemplo 9: Poema do Horizonte V (1977) II. Luminoso. Compassos 184-188.

O caráter expressivo e a função de gerar momentos de relaxamento são mantidos nas três ocorrências desse motivo melódico exclusivo do piano. Nas duas primeiras, a intensidade piano intensifica o lirismo dessa idéia. Em Poema do Horizonte V, os níveis elevados de intensidade não comprometem seu caráter lírico; sendo uma peça para piano e orquestra de cordas, os níveis de dinâmica são proporcionalmente maiores - o piano precisa “falar mais alto”, em especial no registro agudo, como neste caso, para ser ouvido.

2.5 Idéia nº 5: gestos em oitavas descendentes

Esta idéia, exclusivamente pianística, ocorre em: Ventos Incertos (1970) para flauta e piano; Terra Selvagem (1971) para piano; na canção O vento é quando? (1971) para baixo e piano; e em Lamentos da Terra (1974), para piano. São gestos breves, com insistência nos intervalos de oitava e segunda menor ocorrendo alternadamente, em movimento descendente, em níveis elevados de intensidade e andamento rápido:

A função desta idéia está sempre relacionada à fragmentação do discurso, na maioria das vezes de caráter lírico, ou, no caso de Terra Selvagem, em trecho de caráter rítmico-percussivo. São intervenções de caráter agressivo que provocam o aumento da tensão nas peças. O aspecto disjuntivo inerente a esta idéia é evidenciado pelo próprio compositor ao colocá-lo entre barras duplas.

A idéia n.º 5 compartilha a insistência nos intervalos de oitava (neste caso também de sétima) e segunda menor apontada na idéia n.º 4. A função desempenhada pelas duas idéias são, entretanto, antagônicas. Na idéia n.º 5 a função é de interrupção do discurso, aumentando a atmosfera de tensão do trecho, enquanto na idéia n.º 4 a função é lírica, promovendo momentos de aparente relaxamento.

2.6 Idéia nº 6: arpejos ascendentes

Ocorre em Sertão Mistério (1972) para piano, violino, viola, violoncelo e instrumentos complementares de percussão (reco-reco, agogô e caixa de fósforos); Lamentos da Terra (1974) para piano; e Poema do Horizonte V (1977) para piano e orquestra de cordas. São gestos em arpejos ascendentes, sempre na parte do piano, percorrendo vários registros, freqüentemente em intensidade forte:

2.7 Idéia nº 7: repetição incisiva de notas

Ocorre em Vendavais - Prenúncios (1971) para dois pianos; Vem o Vento (1973) para soprano e quatro violoncelos: Campeadores (1973) para coro e orquestra; e em Terra Sofrida (1983) para dois violões. Trata-se de uma repetição incisiva de notas alternando três e dois valores rítmicos:

Enquanto em Vendavais: Prenúncios essa idéia ocorre em primeiro plano, sendo trabalhada insistentemente, e constituindo um dos materiais principais da obra, em Vem o Vento a repetição de notas ocorre de maneira descontínua, intercalada pelo silêncio, sempre associada a outros gestos. Em Campeadores a idéia é bastante similar àquela de Vem o Vento, principalmente quanto às alturas absolutas e à relação intervalar. Nessas três ocorrências, a função desempenhada pela idéia é a mesma: intensificar a atmosfera de tensão e tumulto. Já em Terra Sofrida, obra de 1983, esta idéia rítmica básica, em manifestação residual, é transfigurada, imbuindo-se do caráter lírico que prevalece naquele trecho:

No grupo de peças de Kiefer de que trata este trabalho constata-se que algumas vezes as autocitações são idênticas, outras vezes as semelhanças convivem com pequenas variações de altura, intensidade, duração ou timbre. As autocitações com diferentes níveis de similaridades podem ser compreendidas tanto como manifestações embrionárias de uma idéia que, fertilizada, alcança sua forma madura em alguma obra posterior, quanto como manifestações em eco, em peça escrita alguns anos mais tarde. No primeiro caso, evidencia-se a busca do compositor pela forma ótima de cada idéia, denotando tanto a coerência de pensamento quanto a determinação de um compositor obstinado. No caso das manifestações em eco, estas seriam decorrência de um trabalho de garimpagem do compositor, que resgata uma idéia e a transfigura, inserindo-a em contexto diverso daquele estabelecido na sua forma ótima. Na verdade, esse tipo de procedimento composicional, quando ocorre, preserva a origem etimológica da idéia (ex. 19).

Independentemente de seu grau de semelhança, as várias citações de cada idéia compartilham do mesmo caráter e função, e ocorrem em contextos também semelhantes. Dessa forma, as idéias e suas recorrências geram “ambientes” sonoros, seja de tensão e ansiedade, agressivo, seja de relaxamento, épico ou misterioso, que conferem unidade interna a esse grupo de peças de Bruno Kiefer.

Algumas citações ocorrem em peças contíguas, escritas no mesmo ano ou com um breve hiato entre elas. Essas citações locais se contrapõem às citações de longo curso, que ocorrem após maiores lapsos de tempo e traçam relações de maior envergadura entre as peças. Ao reutilizar materiais musicais semelhantes, nas citações locais, e especialmente naquelas de longo curso, independentemente do grau de semelhança entre suas ocorrências, Kiefer acaba por criar um contexto unitário subjacente ao grupo de peças aqui em estudo.

A intenção do compositor em entrelaçar essas peças de tal forma a constituir um corpo musical unitário, consolidado através do processo de autocitação, é afirmada ainda por outras constatações, como o parentesco entre as citações exclusivas do piano. A maioria das idéias utiliza recursos técnicos e tímbricos específicos desse instrumento. O piano é, sem dúvida, o instrumento primordial na música de Kiefer no que se refere à criação das autocitações, que são irradiadas posteriormente para os demais instrumentos.

Além do processo de autocitação, apresentado e discutido ainda mais detalhadamente no capítulo 5 de minha dissertação de Mestrado (Cardassi, 1998), serão discutidas agora algumas outras particularidades do corpo de obras de Kiefer da década de 70 de que trata este trabalho, também bastante importantes na definição do estilo do compositor.

No que toca à escolha dos intervalos, o compositor faz uso insistente da terça menor e da segunda menor, além do trítono, o que fica evidente percorrendo os exemplos musicais apresentados. Ainda com relação à terça menor ela ocorre associada sobretudo a um movimento descendente, em valores curta-longa. Essa idéia é tão recorrente no grupo de peças em estudo, que passa a configurar uma espécie de autocitação recorrente entre as demais autocitações.

A freqüente fragmentação do discurso seria outra peculiaridade da música de Kiefer da década de 70, obtida através do uso recorrente da fermata, que interrompe a elaboração das idéias musicais, especialmente quando associada ao silêncio. O silêncio é de fato um dos elementos de articulação e interrupção do discurso musical mais utilizados por Kiefer nessas obras, que elaboram uma espécie de “rítmica do silêncio” (Gerling, 1991).

Conclusão

Através do processo de autocitação, Kiefer investe esse conjunto de peças de um alto nível de redundância composicional, o que confere um caráter unitário ao conjunto de peças e denota o pensamento consistente do compositor. Ao reutilizar idéias musicais de maneira idêntica ou com pequenas alterações, Kiefer faz uso de estratégias composicionais aglutinadoras e evidencia a intenção de recorrência a seus próprios materiais sonoros. Os trechos musicais que transitam pelas várias obras, e muitas vezes por instrumentos diversos, são um reflexo do manuseio constante desses materiais. As idéias autocitadas por Kiefer no grupo de peças aqui em estudo são um dos pontos de maior relevância para a definição de seu estilo pessoal de composição nos anos 70.

A análise dessa parte da produção de Kiefer nos permitiu evidenciar algumas das ferramentas composicionais às quais o compositor recorreu, identificando seu vocabulário composicional, e principalmente os seus “momentos musicais” concentrados no processo de autocitação. Esses “momentos” atuam na obra de Kiefer como uma rede que abraça as 21 peças aqui analisadas, e que passam assim a constituir um unidade de grande coesão e coerência dentro da produção musical de Bruno Kiefer. Sabendo ainda que as autocitações mantêm constantes seu contexto e função a cada ocorrência, poderíamos inferir que o compositor investiu esses seus momentos de algum significado, o que, entretanto, ultrapassa as fronteiras deste artigo.

Referências bibliográficas

BLOCK, Geoffrey. Ives: Concord Sonata. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

CARDASSI, Luciane. A música de Bruno Kiefer: “terra”, “vento”, ‘horizonte” e a poesia de Carlos Nejar. Dissertação (Mestrado em Música) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1998.

CHAVES, Celso Loureiro. O todo do espelho a partir dos cacos. Zero Hora, Porto Alegre, 8 abr. 1983, p. 3.

GANDELMAN, Saloméa. 36 Compositores Brasileiros. Obras para piano (1950/1988). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.

GERLING, Cristina Capparelli. Traços característicos na música para piano de Bruno Kiefer. Revista Opus. Porto Alegre, v. 3, n. 3, p. 75-80, set. 1991.

SIMMS, Bryan. Music of the Twentieth Century. Style and Structure. New York: Schirmer, 1986.

Luciane Cardassi - pianista. Doutora em Música - Contemporary Piano Performance - pela Universidade da California em San Diego e Mestre em Música/Piano pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Recebeu bolsa CAPES em ambos os cursos. Seu primeiro CD, Prelúdios em Porto Alegre, lançado em 1998, registra a produção para piano de oito compositores contemporâneos de Porto Alegre. Luciane reside atualmente em São Paulo.