A EDuCAçãO MuSICAl SOb A PERSPECtIvA DA PEDAgOgIA HIStóRICO-CRítICA

music educatiOn frOm a histOricaL-criticaL PegadOgy PersPectiVe

Kátia Simone Benedetti (IA-UNESP) katiabenedetti@yahoo.com.br

Dorotea Machado Kerr (IA-UNESP)

dkerr@uol.com.br

Resumo: A partir da perspectiva teórica da Pedagogia Histórico-Crítica, este trabalho apresenta a Educação Musical escolar como um espaço social mediador entre as práticas, escutas e conhecimentos musicais cotidianos e os não-cotidianos, construídos e acumulados historicamente pelas sociedades humanas. O objetivo deste trabalho é apresentar uma possível fundamentação teórica para delimitar a importância da educação musical inserida na escola fundamental, enquanto disciplina destinada a garantir a formação integral das crianças e o enriquecimento de suas relações com a música. Trata-se de uma reflexão de natureza teórica que aponta para a importância de se observar as especificidades dos conhecimentos cotidianos e dos não-cotidianos, além da absoluta importância da educação formal e, em específico, da Educação Musical escolar no desenvolvimento e formação do ser humano. Palavras-chave: Educação no cotidiano; Pedagogia histórico-crítica; Educação musical.

Abstract: This work, from of theorist perspective of Historical-Critical Pedagogy, presents the school Music Education like a social mediator environment between the practices, listening and musical everydaylife knowledges and the not-quotidian, which are constitution and accumulated, throughout the centuries of History, by the human societies. The purpose is to present a possible theorist foundation to define the importance of Music Education insert in the elementary school, like a subject destined to guarantee the whole children formation and the enrichment of their relations with the music. It is a theorist reflection that indicates the importance of observation of the quotidian and not-quotidian knowledges characteristics, moreover of complete importance of formal education and, in specific, of school Music Education on human development. Keywords: Learning in everydaylife; Historical-critical pedagogy; Music education.

Introdução: a natureza específica da educação escolar

Muito se tem discutido a respeito do conflito entre as práticas musicais cotidianas dos alunos e as “de dentro da escola” (SOUZA, 2000; SUBTIL, 2008). Contudo, segundo a perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica, não é necessário estabelecer uma oposição entre essas práticas musicais, mas sim abordá-las como partes do mesmo processo formador do ser humano (BENEDETTI & KERR, 2010), partes que têm papéis e lugares diferenciados em seu desenvolvimento psicossocial e cognitivo e que ne-cessitam ser consideradas em sua especificidade. Este texto, fundamentado nos pressupostos da Pedagogia Histórico-Crítica (DUARTE, 1992, 2007; SAVIANI, 1989, 1997), apresenta a Educação Musical como um espaço social mediador entre as práticas musicais cotidianas e as escolares, ressaltando sua relevância como disciplina no Ensino Fundamental, na medida em que seu propósito não é impor práticas musicais pré-determinadas, mas sim tornar-se um espaço de geração de novas carências e motivações musicais nas crianças, de educação estética formadora e transformadora do ser humano.

Segundo Duarte (2007), a educação escolar, enquanto atividade social deliberada, deve ter como principal função fazer a mediação entre as objetivações das esferas cotidiana e não-cotidianas da vida social humana e, dessa forma, mediar as relações entre as motivações particulares de cada indivíduo e as objetivações do gênero humano:1 “gênero humano é uma categoria que expressa a síntese, em cada momento histórico, de toda a objetivação humana até aquele momento” (DUARTE, 2007, p. 26). Assim, a educação formal como introdutora, na dimensão do viver e pensar cotidianos, das formas de pensamento e conhecimento historicamente desenvolvidas e acumuladas pela humanidade, pode (e deve) impulsionar e concretizar o processo de humanização2 dos sujeitos sociais. Nessa perspectiva, a educação tem como principal objetivo reproduzir em cada ser humano individual os atributos da essência humana,3 isto é, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pela sociedade. Dessa forma, segundo esta visão, é a prática educativa deliberada que têm maiores condições de desenvolver ao máximo as potencialidades do vir-a-ser humano.

Segundo Duarte (2007, p. 58) o objetivo do trabalho educativo é:

“[...] estabelecer conscientemente a mediação entre o cotidiano do aluno e as esferas não-cotidianas da vida social. Isso não significa pretender anular o cotidiano do aluno, o que seria, por si só, impossível. O que se pretende é que o aluno possa se relacionar conscientemente com esse cotidiano, mediado pela apropriação dos conhecimentos científicos, artísticos, ético-filosóficos e políticos”.

Sendo assim, embora não exista vida social humana sem vida cotidiana, a redução da existência do homem a essa esfera social seria equivalente à sua redução ao reino pragmático e funcional das necessidades imediatas de sobrevivência humana (alimentação, sono, sexo). A bagagem de conhecimento espontâneo do cotidiano e suas formas de pensamento devem ser consideradas pela educação formal como seu alicerce afetivo-cognitivo; contudo, elas não são as únicas, e não são suficientes para o máximo desenvolvimento humano.

Afirmar que o trabalho educativo deve produzir nos educandos necessidades de ordem superior pode ser confundido com elitismo ou com a defesa da superioridade de uma cultura sobre outra. Entretanto, para os adeptos dessa teoria educacional, não se trata de valorar objetivações representantes das diferentes sociedades e/ou grupos étnicos e/ ou camadas sociais; trata-se sim de buscar a transcendência da dimensão imediata, pragmática e egocêntrica do viver cotidiano, por meio do desenvolvimento motivações sociais, genérico-humanas (e, portanto, artísticas, científicas, filosóficas, éticas, morais), em direção à integração consciente do educando no movimento maior da historicidade humana. Duarte (2007, p. 60) esclarece que essas necessidades não-cotidianas (de teorização científica, de reflexão filosófica, de configuração artística da realidade, de análise política) não são totalmente estranhas ao pensamento cotidiano e à realidade cotidiana e concreta do aluno. Mas cabe ao processo educativo formal incitá-las e desenvolvê-las. Para ele, o resultado do trabalho poderá se constituir num processo dialético de superação das formas cotidianas de pensamento por incorporação das formas não-cotidianas, processo cuja essência é a catarse – momento em que a consciência humana se transforma e realiza o movimento de superação de formas espontâneas de pensamento e conhecimento em direção a formas não-cotidianas (historicamente constituídas). Baseando-se nessa perspectiva é que este texto sugere uma abordagem dialética que permita um constante movimento entre as escutas, práticas, repertórios e conhecimentos musicais cotidianos dos alunos em direção a práticas musicais desconhecidas, historicamente constituídas. Embora utilizando a bagagem cultural e musical dos alunos como base fundamental do processo educativo, a Educação Musical, assim pensada, não se limita a reproduzir acriticamente os mesmos conteúdos que as vivências musicais cotidianas oferecem às crianças e aos jovens.

As teorias do cotidiano e a pedagogia histórico-crítica: concepções

conflitantes

Ao utilizar os pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural de Vigotski, no que se refere à constituição e desenvolvimento do psiquismo humano, somados aos conceitos de cotidiano, não-cotidiano, indivíduo para-si e particular de Heller, Duarte (2007) propõe um novo olhar sobre as relações entre cotidiano, conhecimento cotidiano e educação formal. Seu discurso apresenta um conteúdo oposto àquele dos discursos pedagógicos pós-modernos, que podem ser radicais em suas críticas à educação formal e à transmissão de conteúdos objetivos e universais (APPLE, 1994; CERTEAU, 1994; GIROUX, 1994; CANDAU, 2002; PAIS, 2003 e 2007; MORIN, 2007). Muitos desses discursos consideram o cotidiano, com suas vivências e aprendizagens espontâneas, suficiente para a formação e desenvolvimento pleno dos indivíduos; atribuem também valorações especiais ao julgar que as vivências e aprendizagens informais são mais significativas do que as escolares/formais. Defendem a necessidade de que os processos educativos sejam abordados em sua historicidade e que o educando deve ser visto como sujeito sócio-histórico. No entanto, justamente ao defender o cotidiano como critério principal e prioritário para fundamentar o processo educativo, tais autores deixam de considerar que a espontaneidade, a concretude e o pragmatismo das experiências imediatas, se tornados exclusivos no processo ensino-aprendizagem, podem também obscurecer, ao invés de revelar, a historicidade desse processo, da sociedade e do próprio aprendente. Ao buscar a historicidade da prática educativa e da formação do educando apenas na dimensão subjetiva e imediata dos significados partilhados do aqui-agora cotidiano; ao considerar o aqui-agora como a única manifestação de historicidade do processo educativo e da constituição dos sujeitos, esses discursos perdem de vista a historicidade maior, não-imediata, construí-da ao longo dos séculos de história social e, com ela, as possibilidades de transformação e manifestação do vir-a-ser dos indivíduos. Assim, reduzem a escola a ser mais um espaço social para as formas cotidianas de pensar e de agir e, dessa forma, não só não contribuem para resolver os problemas educacionais, como reforçam o domínio do senso comum na prática educativa. Ao contrário, Duarte defende que os critérios norteadores da prática educativa devem ser fundamentados nas objetivações das esferas não-cotidianas, representantes do gênero humano. Segundo sua visão, somente dessa maneira o trabalho educativo terá condições de desenvolver e enriquecer os seres humanos com necessidades e motivações sociais não-imediatas.

Nessa perspectiva, Duarte (2003, p.14-15) afirma que as propostas pedagógicas pós-modernas revelam, em seu cerne, cinco pressupostos aos quais denomina de “ilusões da sociedade do conhecimento”. O primeiro deles refere-se à defesa de que o conhecimento nunca esteve tão acessível como nos dias atuais. A presença e difusão mais extensas das novas tecnologias da informação no cotidiano atual não significam, per se, que as pessoas tenham mais acesso às diversas formas de conhecimento produzidas pela humanidade. Para se ter acesso a qualquer tipo de conhecimento, não são necessárias somente condições e recursos externos, mas, principalmente, condições internas: motivação, consciência, senso de valor e necessidade em relação aos diversos tipos de conhecimento disponíveis. A partir da existência da necessidade de conhecimento, o ser humano poderá usufruir do acervo de conhecimento socialmente disponível; mas, para chegar até aí, é necessário que não esteja empobrecido em suas necessidades não-imediatas, não-cotidianas.

No campo musical, como afirmam Iazzetta (2001) e Gohn (2007), o fato de que as tecnologias de criação e reprodução sonoras tenham tornado a música um elemento onipresente na vida cotidiana de nossa sociedade não significa que hoje as pessoas tenham mais acesso ou mais conhecimento sobre a diversidade de músicas e práticas musicais existentes no mundo atual e em épocas passadas. Pelo contrário, as novas tecnologias – e com elas a mídia televisiva – podem até exercer papel limitante sobre as motivações musicais das pessoas, permitindo que lhes falte vontade de conhecer

o diferente, aquilo que está além das paradas de sucesso e dos programas televisivos do momento (Subtil, 2008). Por se encontrar em todo e qualquer lugar e a toda hora, a música deixa de ser entendida como um objeto ou prática cultural enriquecedora, passando a padronizar comportamentos. Decorre do exposto que um dos caminhos para a Educação Musical hoje, em nosso país, seria o de criar novas motivações e possibilidades musicais para os alunos, ampliando sua bagagem musical que, via de regra, é fortemente configurada e limitada pelos padrões midiáticos. A Educação Musical pode, inclusive, ter como perspectiva resgatar junto às crianças e jovens o prazer e a riqueza das práticas musicais tradicionais, coletivas, de nosso país.

A segunda ilusão da “sociedade do conhecimento”, segundo Duarte, refere-se à crença de que não é necessário adquirir conhecimentos teórico-objetivos, pois esses seriam inúteis sob o ponto de vista pragmático do mercado de trabalho; o mais importante seria a aquisição de competências para acessar, no cotidiano, os saberes necessários para a sobrevivência, para a garantia de competição no mercado de trabalho atual. Essa ilusão, transposta para a área da Educação Musical, parece aproximar-se da classificação dualista: “formação popular versus formação erudita”, ou ainda “teoria versus prática”. Enquanto a “formação informal ou popular” é identificada como a mais adequada às necessidades do mercado de trabalho – músicos mais maleáveis, práticos, que “tocam de ouvido”, sem exigência do estudo formal – os músicos formados para a música de concerto são identificados como aqueles que precisam de condições específicas e institucionalizadas para fazer música, como a criação e manutenção de orquestras, conjuntos e outros. Entretanto, essa forma de ver o problema não ajuda a Educação Musical formal: se o ensino formal apresenta falhas que limitam a prática musical, é necessário que se busque e identifique tais falhas para saná-las, ao invés de rejeitar a educação formal por inteiro. Se o ensino tradicional/escolar de música pode, realmente, formar músicos seriamente deficientes em relação às práticas musicais espontâneas, por outro lado, é inegável que o conhecimento formal de música pode enriquecer sobremaneira a compreensão sobre a linguagem musical e suas nuances, abrindo novas possibilidades de criação e performance, inclusive, para músicos informais. E não é raro pessoas com experiência musical prática sentirem-se limitadas em seus conhecimentos e buscarem o ensino formal de música para ampliar seus horizontes. Sendo assim, não basta criticar e negar o ensino tradicional de música, mas sim realizá-lo com qualidade.

A terceira e a quarta ilusões da sociedade do conhecimento, segundo Duarte, referem-se à negação da objetividade e da universalidade dos conhecimentos humanos. A ilusão seria a de que não existem conhecimentos objetivos a serem transmitidos, pois todo conhecimento seria uma construção subjetiva de cada sujeito social, uma narrativa pessoal construída a partir das relações simbólicas intersubjetivas e da negociação de significados partilhados. Por conseguinte, se todo conhecimento é uma construção subjetiva, então todos os conhecimentos têm o mesmo valor, inclusive na escola, e, portanto, não se pode mais falar em seleção de conteúdos para o currículo, pois esta seria uma postura elitista, anticulturalista. Hierarquizar conteúdos seria o mesmo que considerar um conhecimento mais valioso e digno de estar no currículo que outro. Mas, uma vez que a função social da escola é socializar o saber sistematizado, historicamente constituído (SAVIANI, 1997), seria um equívoco tentar conceber um currículo no qual os diversos tipos de saber (saber formal/sistematizado, saber espontâneo/fragmentado) adquiram o mesmo peso, pois, nesse caso, o trabalho escolar seria descaracterizado. E, ao se observar a situação do ensino público brasileiro, parece que esse discurso contra a escola não faz sentido, pois a prática escolar parece não se diferenciar muito das práticas cotidianas extra-escolares, baseadas no senso-comum e no pensamento acrítico. A escola parece estar imersa no cotidiano e nas suas formas de pensamento e conhecimento,4 no senso comum e na seminformação5 e não o contrário.

Por isso, entende-se que defender a escola como instituição social específica, cujo trabalho deve ser não-cotidiano, destinado a transmitir conhecimentos e formas de pensamento (teórico-crítico, filosófico, artístico) historicamente constituídos pela humanidade, não implica uma postura elitista que desconsidera a produção de conhecimento de todas as classes sociais. A produção do conhecimento humano é realizada ininterruptamente por todas as classes e grupos sociais. Contudo, a elaboração do conhecimento humano (essa sim, tarefa específica da escola, do ensino formal) é um processo intencional e sistematizado, realizado pelo trabalho educativo. Nessa perspectiva, os conhecimentos cotidianos e aqueles pertencentes às culturas populares fazem parte da produção de saber, tal como as práticas musicais cotidianas, por exemplo, e aquelas que são expressão de culturas populares locais, com séculos de tradição. Mas elaborar e teorizar o saber é outro processo, que exige uma prática e um espaço social específicos. Nisso consiste a especificidade da educação formal como instância social destinada a dar acesso aos instrumentos de elaboração do saber e de domínio das linguagens expressivas das artes.

No que se refere à área da Educação Musical, tal perspectiva manifesta-se, muitas vezes, por meio da rejeição ao ensino de música da tradição erudita européia/ocidental, considerada como música do passado e da elite. Manifesta-se, também, na concepção de que nenhuma música (ou tipo de música) é mais artística que outra e que, portanto, os currículos da educação formal, via de regra, impõem aos alunos conhecimentos e práticas musicais das elites (NARITA, 2004; GROSSI, 2008). Contudo, defender um ensino sistematizado e a transmissão de determinados conhecimentos e práticas na Educação Musical, por meio de um currículo, não implica a defesa do ensino tradicional e exclusivo de música erudita européia, nem tampouco a adesão à “metodolatria” (BENEDICT & SCHMIDT, 2008) ou, ainda, a negação das músicas das culturas populares. É uma questão de não se perder de vista a especificidade da educação escolar e de se questionar como as formas cotidianas de pensamento e ação podem agir no processo de ensino-aprendizagem formal e no próprio discurso acadêmico que valida/legitima ou invalida os conteúdos, as metodologias e os currículos da educação escolar.

Os autores ligados à Pedagogia Histórico-Crítica defendem a existência de conhecimentos objetivos historicamente constituídos que devem ser transmitidos de geração em geração, principalmente pela escola. Para Saviani (1997, p. 11-12), os sujeitos sociais necessitam apropriar-se dos conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade e por isso a educação formal deve tomar como referência e como matéria-prima de sua atividade o saber objetivo, elaborado e sistematizado. Tal como Vigotski, Saviani (1997,

p. 94-95) defende que a bagagem de conhecimento cotidiana dos educandos deve ser o ponto de partida do processo de educação escolar, mas não seu ponto de chegada. Mesmo reconhecendo que não existem conhecimentos desinteressados, ou que a prática educativa pode se tornar um instrumento de opressão e obscurecimento das consciências, esses autores não deixam de apontar que os conhecimentos objetivos, clássicos,6 universais, acumulados no decorrer da história da humanidade necessitam ser transmitidos:

A questão reside, portanto, no que significa considerar o indivíduo e o conhecimento como essencialmente sociais. Significa, dentre outras coisas, considerar que o indivíduo não pode elaborar seu conhecimento individual a não ser apropriando-se do conhecimento historicamente produzido e socialmente existente. [...]. Nesse sentido, reconhecer a historicidade do ser humano significa, em se tratando do trabalho educativo, valorizar a transmissão da experiência histórico-social, valorizar a transmissão do conhecimento socialmente existente. (Duarte, 2007, p. 92-93).

Uma das críticas direcionadas aos conceitos da Pedagogia Histórico-Crítica baseia-se na dicotomia “saber ou cultura erudita” versus “saber ou cultura popular”. Seus críticos acham que, ao considerar o saber erudito/clássico como critério de seleção de conteúdos do currículo, os adeptos da Pedagogia Histórico-Crítica estão desconsiderando a cultura ou o saber popular, estes sim mais autênticos e relevantes para “o povo”. Mas, segundo Saviani, se todo saber é histórico, o fato de as classes dominantes se apropriarem de uma parcela desse saber não o torna, necessariamente, um saber dominante, uma vez que: “[...] nem todo saber erudito é puramente burguês, dominante, nem a cultura popular é puramente popular” (SAVIANI, 1997, p. 94). Por isso Saviani sugere a superação das dicotomias “saber popular versus saber erudito”, “saber inferior versus superior”, “saber verdadeiro/autêntico versus artificial”, remetendo-nos à questão do ponto de partida e de chegada da educação escolar.

A quinta ilusão seria a concepção idealista da educação e da formação dos indivíduos, que fornece uma interpretação da realidade social a partir da ação individual dos sujeitos sociais na dimensão da vida cotidiana e não a partir de perspectiva sócio-histórica. Nessa perspectiva, as guerras seriam, por exemplo, o resultado do despreparo das pessoas em lidar com as diferenças culturais e não o resultado de interesses que atuam em um nível social (político-econômico) que estão muito além da atuação individual dos sujeitos particulares. Por isso, segundo Duarte (2006a, p. 50), sob o discurso multicultural que defende a aceitação das diferenças ou a aceitação do outro, encontra-se um elemento ideológico de “[...] legitimação de uma sociedade desigual, injusta, exploradora e excludente”. Segundo ele, as pedagogias do “aprender a aprender” e “das competências”, ao adotar um discurso que identifica as desigualdades sócio-econômicas com diferenças sócio-culturais, estão, na verdade, contribuindo para enfraquecer a consciência crítica dos indivíduos, enfraquecendo as motivações de luta por uma sociedade menos injusta e desigual. Duarte (2003) vai mais longe ao considerar as pedagogias “do aprender a aprender” e “das competências” como pedagogias adaptadoras e não-críticas, que tornam os sujeitos sociais adaptados à realidade social. Essas pedagogias, fundamentadas na lógica pragmática e funcional da sociedade capitalista de consumo (treinamento e adaptação ás necessidades de mão-de-obra do mercado de trabalho), não formam sujeitos aptos a questionar e a transformar a realidade.

Sob a perspectiva da Educação Musical, muitos dos discursos multiculturalistas defendem as manifestações musicais locais e cotidianas, rejeitando intervenções do ensino formal e a conseqüente ampliação desse universo cultural local sob o temor de que ele seja descaracterizado pelos conteúdos da cultura de elite (DAYRELL, 2002; MAGRO, 2002; FIALHO, 2003 E 2004). Mas pode-se questionar que, ao se rejeitar a transmissão de novos conhecimentos aos alunos, está-se contribuindo para limitar a própria capacidade de expressão cultural desses alunos, a qual só poderá ser enriquecida pela aquisição de novos conhecimentos. O acesso e a apropriação de novos conhecimentos, por parte de membros de culturas e grupos locais, é geralmente um elemento esclarecedor e enriquecedor da consciência que esses membros têm de sua própria cultura e de suas origens e não um elemento descaracterizador. Além disso, essa atitude parece ignorar a permanente transformação das produções culturais humanas que incorporaram e trocam, incessantemente, elementos de outras culturas, inclusive das culturas de elite. Nesse sentido, nenhuma cultura local é pura. Dessa forma, muitos dos atuais discursos em educação parecem contribuir para descaracterizar o ensino formal, ao transformá-lo em mais uma situação cotidiana. Para Duarte (2006, p. 99) essa perspectiva está minando a importância da escola como instituição especificamente voltada para a educação ao dissolver as diferenças entre o processo de educação/aprendizagem escolar e o processo espontâneo de educação/aprendizagem do cotidiano. O mesmo acontece na Educação Musical quando, ao se criticar as falhas do ensino tradicional de música, acaba-se por enaltecer de maneira ingenuamente otimista o conhecimento e as práticas musicais cotidianas.

Dessa discussão, uma questão pode surgir: por que a Educação Musical formal vê-se criticada por selecionar e transmitir conteúdos aos alunos, enquanto outros poderes, como a mídia, cujos interesses estão longe ser se educativos, o fazem diariamente? As atividades midiáticas não podem ser vistas como uma forma de submissão das culturas musicais do país a um processo de universalização ou homogeneização, segundo padrões globais de produção musical? Por que a imposição musical midiática, não diretamente ligada a interesses pedagógicos ou educativos, mas a interesses financeiros, não é considerada, também, um elemento opressor e limitante da formação dos alunos? Por que o conhecimento musical cotidiano midiático seria menos desrespeitoso aos alunos e à sua cultura musical local que o conhecimento musical adquirido na vida escolar?

Algumas tentativas de repostas podem ser encontradas em Duarte (1992) quando este afirma que a essência do processo de humanização está na dialética do processo de objetivação/apropriação e que a contradição nele existente está também no cerne das questões pedagógicas. Assim, para desenvolver as máximas possibilidades de desenvolvimento humano, a ação educativa deve dar acesso aos conhecimentos/objetivações constituídos historicamente pela humanidade, contudo, a apropriação dessas objetivações nem sempre acontece de forma crítica e consciente. Por isso os autores aqui abordados não deixam de considerar a educação formal como instância social potencialmente reprodutora de ideologias, mas, mesmo assim, consideram que seu potencial transformador não deve ser desacreditado.

No campo da música como conhecimento e prática, essa lógica pragmática e funcional tem fundamentado práticas musicais escolares que insistem em reproduzir práticas musicais cotidianas, sob o argumento de que isso seria respeitar os conhecimentos, gostos e preferências musicais dos alunos, além de aproximar a Educação Musical da realidade multifacetada e multicultural de nosso país. Explorar e conhecer a bagagem de conhecimento musical cotidiano e explicitar aos alunos a dinâmica do seu processo criativo pode ser um caminho para se sair do impasse pedagógico que a adoção da linha histórico-social desvenda, mas reproduzi-lo acriticamente, não. É necessário não só valorizar a bagagem musical cotidiana, mas também estimular processos de recriação e organização desse conhecimento.

Talvez, como aponta Duarte (2006a, p. 97), a desconsideração elaborada por muitos autores pós-modernos sobre as raízes marxistas da obra de Vigotski e de seus seguidores quando forçam uma aproximação entre essa corrente e o construtivismo7 pode levar à divulgação de aproximações que não apenas carecem de fundamentação e coerência teórica, mas que também levam à deturpação da abordagem historicizadora e marxista de Vigotski, transformando-a em um relativismo cultural condizente com

  1. o multiculturalismo e o pós-modernismo. Isso porque nessas abordagens

  2. o social e o cultural são reduzidos à idéia da existência de uma cultura própria ao grupo social ao qual pertence o aluno, sua cultura imediata, cotidiana. Mas, para Vigotski, a dimensão social na formação dos indivíduos de maneira nenhuma se reduz à dimensão das interações e vivências coletivas e imediatas do cotidiano, mas sim está atrelada à dimensão sócio-cultural histórica que caracteriza o desenvolvimento das sociedades humanas. Nessa perspectiva é que a escola, enquanto espaço social mediador entre as dimensões cotidiana e não-cotidiana da vida social humana, tem como finalidade “[...] colocar os indivíduos nessa relação

direta, intencional e ativa com as objetivações genéricas para-si” (DUARTE, 2007, p. 67).

O problema da valoração dos conhecimentos e aprendizagens espontâneos/cotidianos, segundo a perspectiva histórico-crítica

Partindo das “cinco ilusões da sociedade do conhecimento”, Duarte aponta, ainda, alguns posicionamentos valorativos que certas pedagogias assumem em relação ao conhecimento e seu lugar ou função no processo de ensino-aprendizagem formal. O primeiro seria a defesa de que as aprendizagens espontâneas que os indivíduos realizam por si mesmos são mais desejáveis e mais importantes para seu desenvolvimento que as aprendizagens ocorridas por meio do processo de transmissão/apropriação de conhecimentos.8 Contudo, sob a perspectiva da Psicologia do Desenvolvimento de Vigotski (Leontiev, Luria e outros), essa premissa pode ser refutada, uma vez que, segundo a psicologia russa, o fator essencial do processo aprendizagem-desenvolvimento é o processo de transmissão/apropriação das objetivações sociais historicamente constituídas.9 Logo, as aprendizagens realizadas consciente e intencionalmente, por meio do processo de transmissão/ apropriação, podem ser tão ou mais significativas, do ponto de vista do desenvolvimento psicointelectual, que as aprendizagens espontâneas.10 Por isso, segundo Duarte (2006a, p. 124), o caráter educativo de todo e qualquer processo de apropriação não deve ser visto – como o fazem as pedagogias pós-modernas – como justificativa para minimizar a prática educativa formal, para se retirar dela sua especificidade, sua natureza não-cotidiana.

O segundo posicionamento seria a crença de que é mais importante ao aluno desenvolver um método de aquisição e descoberta de conhecimentos do que se apropriar de conhecimentos já descobertos e elaborados historicamente. Mas, sem se apropriar de uma bagagem de conhecimentos construídos, como o indivíduo terá condições para desenvolver ou mesmo chegar a compreender a questão metodológica da produção de conhecimento? A bagagem de conhecimentos prévios de uma pessoa, bem como a facilidade e a familiaridade com que ela é capaz de acessá-los e relacioná-los, é que possibilita a base para o desenvolvimento do pensar crítico-reflexivo e lógico-analítico. Relacionado a esse posicionamento valorativo também existe a crença de que se apropriar de conhecimentos objetivos tolhe o desenvolvimento da criatividade do aluno.11 Duarte (2006, p. 121) opõe a essa concepção o seguinte argumento: se o processo dialético de objetivaçãoapropriação é o processo que move a realidade humana e, com ela, o ser humano, então esse processo, que é dinâmico e criativo em sua natureza, não pode engendrar a estagnação da criatividade. Segundo Saviani (1997), a apropriação não só não impede o desenvolvimento dos sujeitos sociais, como é um fator imprescindível para que isso ocorra: é condição para a liberdade e não o oposto. Por isso, o desenvolvimento só se dá quando o saber sistematizado e as novas formas de comportamento dele decorrentes são apropriados e internalizados pelo educando: quando aprendemos a ler e a escrever, essas ações motoras e mentais passam a constituir uma segunda natureza em nós, tornando-se partes naturais integrantes do nosso ser.12

O terceiro posicionamento valorativo considera que as atividades escolares, para serem efetivamente educativas, devem estar sempre em consonância com os interesses dos alunos. Essa questão deve ser cuidadosamente analisada, pois parece conter, em si mesma, aspectos contraditórios. A bagagem de conhecimento cotidiano dos alunos constitui a base afetivocognitiva sobre a qual deve se assentar o processo de educação formal. Vigotski (2002; 2004) defendia a necessidade de que a educação formal considerasse a bagagem prévia de conhecimento do aluno e, a partir dela, fosse capaz de trazer seu interesse e sua motivação para o processo de ensino-aprendizagem formal. Contudo, ressaltava o fato de que uma das principais funções da prática educativa escolar reside justamente na tarefa de guiar e conduzir os interesses do aluno das práticas, atividades e formas de conhecimento espontâneas do cotidiano para as teórico-reflexivas. Portanto, ainda que a bagagem de conhecimento cotidiano integre a dimensão inicial do processo de ensino aprendizagem escolar, o trabalho educativo deverá transcender essa bagagem para introduzir o novo e, por isso, a prática educativa não poderá estar, em todos os seus momentos e fases, atrelada aos interesses dos alunos. Crescimento intelectual demanda esforço e dedicação. Nem sempre é possível aprender apenas brincando. E não se pode dizer que, em cem por cento dos casos, as atividades lúdicas são mais eficientes que as não-lúdicas para promover aprendizagens efetivas nos alunos.

Essa afirmação não significa a rejeição aos aspectos lúdicos que possam existir no processo de ensino-aprendizagem em geral e no de músi-ca em particular; mas o processo de ensino-aprendizagem formal não pode pretender ser integralmente lúdico, em todos os seus momentos e fases, por temor de se tornar opressor ou desrespeitoso em relação aos interesses dos alunos. Sempre existirá a necessidade de um mínimo de sistematização, de organização e, principalmente, de condução por meio de metodologias e de conteúdos curriculares. A defesa de que o processo de ensino-aprendizagem deva ser sempre prazeroso e baseado nos interesses dos alunos parece ser mais um reflexo da lógica pragmática e funcional que rege o nosso cotidiano, lógica essa que alimenta um desejo social coletivo de busca pelo entretenimento em qualquer âmbito de nossas vidas.

No que se refere à Educação Musical, essa concepção ainda pode levar à idéia de que a aprendizagem e a prática musical devem ser sempre lúdicas para não se tornarem adestradoras. Assim, as práticas musicais escolares acabam se tornando meros apêndices da prática escolar em geral: tornam-se atividades para acalmar ou relaxar as crianças, atividades de lazer cuja finalidade é distrair, divertir ou, no máximo, enfeitar as festas escolares. É inegável que a música, por si só, tem um componente lúdico intrínseco: o ser humano cria música porque gosta, porque ela o faz sentir-se bem, porque lhe dá prazer. Contudo, em um processo educativo formal, a dimensão lúdica das práticas musicais deverá ser uma de suas dimensões, mas não a única, e, talvez, nem a principal. Se os próprios educadores musicais só puderem conceber a música e as práticas musicais atreladas ao aspecto lúdico; se eles próprios não puderem reconhecer os momentos do processo educativo em que a música e as práticas musicais devem ser abordadas em sua dimensão artístico-formadora, então o lugar do ensino de música não será mesmo a escola.

Considerações finais

A partir do exposto, pode-se indagar: quais seriam os condicionantes do processo educativo. As ideologias das classes dominantes? A sistematização da instituição social escola? Não caberia uma boa parcela nesse condicionamento à própria natureza do pensar cotidiano? O problema da assimilação passiva e da reprodução acrítica de conhecimentos na escola não estaria, então, mais relacionado à onipresença das formas de pensamento e conhecimento do senso comum na escola, por parte de professores e alunos, do que à questão da transmissão/apropriação de conhecimentos? Esta última, característica específica da espécie humana, não deveria, portanto, ser negada como o fundamento básico de todo processo educativo, seja ele formal ou informal; o que deve ser observado é a maneira incompleta e ineficiente como essa transmissão/apropriação é feita, na maior parte dos casos... Não é a transmissão/apropriação de conhecimentos que poderá tornar as crianças dependentes, não criativas ou não-autônomas, mas a má qualidade do ensino e a pobreza dos vínculos professor-aluno e aluno-conhecimento. Assim, é mais pertinente fazer crítica às práticas pedagógicas equivocadas e insensíveis do que às metodologias de ensino de música propriamente ditas.

Parece que os discursos acadêmico-educacionais, atualmente, ao reiterarem as formas cotidianas de existência humana estão tentando criar estratégias educacionais que “se adaptem” (e adaptem os educandos) às circunstâncias e demandas do viver cotidiano, ao invés de transformá-las ou mesmo superá-las. Por outro lado, pode-se questionar que, se o cotidiano é a dimensão básica da vida social humana, por que não considerá-lo como melhor parâmetro para a educação formal? O cotidiano das sociedades urbanas capitalistas ocidentais parece não oferecer as melhores condições para o máximo desenvolvimento das potencialidades humanas, afinal, é comum estar permeado por problemas como violência, exclusão, preconceito, intolerância, condições subumanas de sobrevivência.

Muitos educadores musicais parecem pressionados a tentar adequar seus conhecimentos e ações às novas demandas musicais impostas pela mídia tecnológica, deixando de reconhecer que a disciplina música também pode ser espaço de reflexão e de crítica acerca da relação indivíduo-música nas sociedades atuais. Seria o caso de se estudar e procurar entender como o viver cotidiano nas nossas sociedades tem influenciado e modificado o desenvolvimento da capacidade de ouvir, de fazer música coletivamente na infância e de se relacionar com as práticas musicais diversas já produzidas pela humanidade.

Não seria o caso de a Educação Musical escolar ser um espaço de redescoberta da música e de criação de novas formas e práticas, como elemento formador e potencialmente propulsor do desenvolvimento afetivocognitivo das crianças e jovens? Que as possibilidades músico-tecnológicas atuais devam ser utilizadas é um dos desafios e objetivos da Educação Musical, mas sem nunca perder o sentido crítico que o conhecimento lógico e histórico pode proporcionar. Muitas práticas musicais, como o canto coral, os grupos instrumentais, parecem ter sucumbido diante do cotidiano midiatizado de hoje. Assim, a história anda; as transformações não deixam de ocorrer. Mas poderia a escola redescobrir ou reler essas práticas musicais coletivas? Como diz Duarte (2006), para que o cotidiano pudesse ser um bom critério para a organização do ensino formal, ele não poderia ser nem alienado, nem tão injusto e excludente.

Assim, parece muito pertinente que os educadores musicais criem formas alternativas de vivência musical ao retomar certas práticas tradicionais. Partir do conhecimento musical cotidiano do aluno parece-nos ser não só um caminho, mas uma necessidade. Contudo, permanecer nesse nível de conhecimento e reproduzi-lo acriticamente na escola pode descaracterizar a Educação Musical e contribuir para minimizar ainda mais seu espaço e importância dentro do ensino formal.

A crítica aos métodos rígidos e descontextualizados de ensino musical e aos procedimentos fechados é procedente. Também é procedente a crítica a professores incompetentes; ao ensino de música baseado no único ideal de formar de instrumentistas/solistas/intérpretes; ao ensino de música desconectado da vivência cotidiana das crianças; à utilização da música erudita européia como único critério de seleção de conteúdos; ao desrespeito e à desconsideração pelas diversas práticas musicais que a humanidade produziu em diferentes sociedades e épocas. Entretanto, o que não é pertinente confundir e identificar as falhas ideológicas (humanas) que ocorrem na produção e instituição das práticas pedagógicas com as situações formais ou sistematizadas de Educação Musical como um todo, com a escola enquanto instância social necessária à transmissão de novos conhecimentos e práticas.

Alguns autores (como Carvalho 1999) apontam a existência no cotidiano de um estado de alienação ou esquizofrenia musical,13 estado que se caracteriza por hábitos de escuta não-conscientes e relações empobrecidas com a música e com as práticas musicais, inclusive porque estas se apresentam, para a maioria da população, cada vez mais desconectadas de seus contextos de produção e execução (contextos sócio-culturais de performance). Talvez aí resida a importância de se tornar a Educação Musical escolar o espaço social destinado a construir – por meio da releitura do papel da música na sociedade – uma escuta e uma relação com as muitas práticas musicais da sociedade de forma que essas possam ser integradoras e formadoras do ser humano.

Notas

1 Baseando-se nas idéias de Agnes Heller, Duarte (1992 e 2007) propõe a categoria de gênero humano como um dos critérios norteadores da prática pedagógica histórico-crítica. Ele considera que a formação da individualidade humana implica a formação/apropriação e reprodução da genericidade humana no indivíduo. Por isso a visão Pedagógica Histórico-Crítica posiciona-se sempre em relação às possibilidades de vir-a-ser do homem, as quais não se limitam à dimensão imediata e pragmática do viver cotidiano. Segundo Saviani (1997, p. 17): “[...] a natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida sobre a base da natureza biofísica. Conseqüentemente, o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto de homens”.

2 Ver Duarte (1992) e Mello (2000).

3 Essa concepção de “natureza ou essência humana” advém da obra de Marx e, posteriormente, foi fundamentada pela psicologia sócio-histórica marxista de Vigotski e seus seguidores. Na área da educação, essa concepção sócio-histórica da formação e desenvolvimento do ser humano fundamenta os pressupostos da Pedagogia Histórico-Crítica.

4 Como ressalta Mello (2000), a prática educativa, uma prática social não-cotidiana, tem sido equivocadamente (ou alienadamente?) fundamentada na linguagem cotidiana e no senso comum, ao invés de ser fundamentada no pensamento crítico-reflexivo, e justamente nisso residiria o núcleo das dificuldades de se transformar a situação educacional brasileira: “Ao se tratar de forma óbvia uma situação não-cotidiana (no caso, a prática educativa escolar), limita-se o processo de pensamento que é necessário à compreensão da situação” (Mello, 2000, p. vii).

5 Zuin (2001), ao refletir sobre a ação nociva da indústria cultural sobre os processos educativos, define o conceito de seminformação, baseando-se em Adorno: “Compreende-se o conceito de seminformação justamente pela tentativa de oferecimento de uma formação educacional que se faz passar pela verdadeira condição de emancipação dos indivíduos quando, na realidade, contribui decisivamente tanto para a reprodução da miséria espiritual como para a manutenção da barbárie social. E o contexto social no qual a barbárie é continuamente reitera é o da indústria cultural hegemônica” (Zuin, 2001, p. 10).

6

Saviani (1997, p. 23) define: “Clássico, em verdade, é o que resistiu ao tempo. É nesse sentido que se fala na cultura greco-romana como sendo clássica, que Descartes é um clássico da filosofia, Dostoievski é um clássico da literatura universal, Machado de Assis um clássico da literatura brasileira etc. Ora, clássico na escola é a transmissão-assimilação do saber sistematizado”.

7 Como, por exemplo, nas abordagens que se auto-denominam sócio-construtivismo ou interacionismo construtivista. Para isso, ver a obra de Duarte (2006a) da página 100 a 114.

8 Duarte (2003, p. 8).
9 Duarte (2006, p. 124).
10 Isso não significa afirmar que Vigotski e os psicólogos russos defendessem o ensino

tradicional baseado na “transmissão” impositiva de conhecimentos prontos. Para Vigotski, a apropriação de conceitos científicos, por exemplo, que deve ser realizada na e pela educação escolar, não é um processo que se baseia somente na assimilação passiva e na memorização. Pelo contrário, é um processo que exige intensa elaboração cognitiva por parte do aprendente e que, por isso, é um processo ativo e não passivo, sendo que o erro do ensino tradicional está no fato de ignorar isso, acreditando que a assimilação e a memorização por si só são suficientes. (ver Mello, 2000, p. 23).

11

É necessário sim que se verifique a qualidade do processo de transmissão e apropriação dos conteúdos objetivos, pois, do contrário, esse processo pode mesmo se tornar mecânico e não-significativo.

12 Nas palavras de Mello (2000, p. 7-8): “Ao contrário do animal, cuja herança é exclusivamente biológica, o homem, ao nascer, traz consigo uma única aptidão: a de criar aptidões a partir da apropriação da experiência sócio-histórica, o que implica que novas aptidões psíquicas se formem no decurso do desenvolvimento sócio-histórico do homem. Estas aptidões podem torna-lo um homem ‘rico de necessidades’ (Marx, 1978, p. 44) que superam o nível imediato da sobrevivência e se aproximam das máximas possibilidades alcançadas pelo desenvolvimento humano”.

13 Segundo Carvalho (1999): “Sintetizo brevemente minha posição da seguinte forma: nos contextos sociais em que a juventude participa cotidianamente de circuitos de tradições musicais e performances próprios, ela pode sem dificuldade absorver esse padrão musical midiático empobrecido, resignificá-lo e submete-lo a reapropriações e releituras idiossincráticas, rebatidas nos horizontes das tradições coletivas em que já foram iniciadas. Por outro lado, essa desmusicalização pode ser devastadora para a sensibilidade estética em formação quando essa cultura de massa descomprometida com o esforço pela superação do horizonte do banal na linguagem artística passa a ser a única referência para uma juventude urbana criada com baixíssima exposição à diversidade musical, á música ao vivo, ás tradições regionais ou à educação musical formal. [...] A esquizofrenia auditiva a que me referi antes parece resolver-se nessa nova sensibilidade massificada, na medida em que nem exige qualquer definição precisa de arte musical e nem uma conexão real (isto é, existencial) entre a música e os músicos”.

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Kátia Simone Benedetti - Mestre em educação musical pelo Instituto de Artes da UNESP, educadora musical da rede municipal de ensino de Itatiba, psicóloga, com especialização em psicopedagogia.

Dorotea Machado Kerr - Doutora, livre docente e professora adjunta do Departamento de Música do Instituto de Artes da UNESP - SP.