Mário de Andrade: two contemporary views
Sonia Ray (Ed. - UFG)
soniaraybrasil@yahoo.com.br
Primeira Audição apresenta duas faces contemporâneas da produção musical brasileira: a música tradicional coletada in loco em três regiões do país (Sudeste, Nordeste e Norte) pelo grupo A BARCA e a canção brasileira composta por Camargo Guarnieri na interpretação de Ângela Barra (canto) e Marina Machado (piano). Ambos os trabalhos inspirados pela obra de Mário de Andrade (1893-1945).
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Primeira Audição (Premiere) presents two contemporary sides of Brazilian Musical production: traditional music recorded in loco in three different regions of the country (Southeast, Northeast and North) by the group A BARCA, and Camargo Guarnieri´s Brazilian songs performed by Ângela Barra (voice) and Marina Machado (piano). Both works were inspired by the legacy of Brazilian poet, musician and writer Mário de Andrade (1893-1945).
A viagem da Barca pelo Brasil envolveu uma longa preparação dos músicos do grupo e da equipe de suporte, além de muitas equipes de produção local. Por dois meses (dezembro de 2004 a fevereiro de 2005), a Barca viajou mais de 10.000 km por 9 estados brasileiros, do Pará a São Paulo, através do Projeto Turista Aprendiz, patrocinado pela Petrobras. Cerca de 30 comunidades foram visitadas, desde quilombos e aldeias indígenas até periferias das grandes capitais, passando por pequenas cidades ribeirinhas, litorâneas e sertanejas. O projeto foi inspirado em relatos de viagem e depoimentos de Mário de Andrade. As faixas aqui apresentadas são algumas entre as centenas de raras peças musicais do acervo da Barca que não compuseram a primeira coletânea recém lançada pelo grupo. (Vide a seção resenha) As notas sobre estas faixas foram extraídas do diário de viagem da Barca, gentilmente cedidos pela coordenadora do Projeto Turista Aprendiz, Renata Amaral, para a Música Hodie. A ficha técnica completa das faixas 1 a 13 pode ser acessada no site www.musicahodie.mus.br ou www.barca.com.br
A coletânea de 12 poemas intitulados Os Poemas da Negra (1929), de Mário de Andrade inspiraram e serviram de matéria prima para Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993) compor o ciclo de canções homônimo para canto (soprano) e piano no período entre 1934 e 1975. Os poemas revelam a preocupação constante de Mário em explorar o Brasil (a natureza,
o povo, as peculiaridades regionais) e a escrita poética. Guarnieri conheceu Mário em 1928 e desde então passou a reverenciá-lo como seu mestre. Mais tarde se tornariam amigos e parceiros. A gravação aqui apresentada foi feita do Auditório Belkiss Carneiro de Mendonça, na Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás, dia 29 de março de 2004, durante o recital de defesa de Mestrado em Música da pianista Marina Machado.
ACERVO BARCA PROJETO TURISTA APRENDIZ:
EXCERTOS SELECIONADOS PARA MÚSICA HODIE
1. Carimbó - Os Quentes da Madrugada da Irmandade de São Benedito, de Santarém Novo - PA
21/12/04 -Alvorada. 5 da manhã. Início oficial da Festa do Carimbó da Irmandade de São Benedito. Chegamos à casa do festeiro do primeiro dia, que será juiz do mastro e da bandeira. Choupaninha avarandada na palhoça, na mesa o café doce, o beiju chica e cachaça, gengibre e batidas em garrafão de cinco litros esvaziado rapidamente, simétricos à animação crescente e o giro das saias. Quase nenhum porre, as vozes boas, as mãos plenas. Primeiro dia é de promessa precisada de cumprir, não entra no pilouro, filho de um caboquinho caprichoso curado pelas graças do santo preto... E os tambores soberanos.
2. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Justinópolis, de Ribeirão das Neves - MG
30/1/05 - Festa de aniversário congadeira. Na hora de guardar os tambores, Dirceu me chamou pra perto dele. Fiquei lá, sem saber pra o quê ele tinha me chamado. Puxou um canto de parabéns. Adelmo puxou outro, o capitão mais novo... Edinha, Nenzinha e Luíza trouxeram um rosário e me vestiram com ele. Por último, seu Zezé me abençoou. Me senti sendo batizada no Rosário. É sem nenhuma possibilidade de dúvida a maior emoção que senti nos últimos anos. Não lembro de outro momento que tenha me deixado tão comovida. A comunidade é mesmo um fenômeno, faixas, panfletos, comida, alta produção e o povo mais animado e caprichoso do mundo. Dia de emoção, o presente lindo para a Ju, todos chorando com o canto ancestral do seu Zezé, o agudo lâmina do congo entrando direto no coração.
3. Redandá - Candomblé Angola, de Embu Guaçu - SP
12/2/05 -Chegamos ao Redandá às 22h30. A casa é uma beleza. Uma sala grande enfeitada com gravuras acima das janelas e portas, cadeiras de palha, os tambores. Um corredor, todo enfeitado de palha verde e flores, sai da lateral direita da sala, uma singeleza e um capricho que já dão a medida do cuidado com as coisas dos santos nesse lugar... Fomos recebidos por Exu Onan, anfitrião poliglota de olhos muito vivos, mas quem viria gravar era seu Marujo, caboclo chefe da casa, guerreiro quilombola que viveu em Palmares, trazendo histórias e cantigas. Demoramos a começar, embalados na prosa e no pirão de banana delicioso que prepararam para nós. O pequeno Ramsés coordenava tudo, dando instruções e explicando a todos – esta é a máquina de voz... De início ressabiado com os microfones, seu Marujo por fim se esqueceu deles e cantou com a voz de seus 400 anos, luminosa, inquebrável. Certa hora mandou parar tudo, cantou uma cantiga longa sobre gerar e parir, olhando no olho de cada mulher, e a casa toda veio abaixo em lágrimas. A cantoria entrou pela madrugada, chegou seu Araribóia, outros caboclos foram vindo, e lá pelas tantas o jeito foi desligar tudo e cair na dança, e o samba na senzala continuou até a barra do dia.
4. Reisado dos Irmãos, de Juazeiro - CE
06/01/05 -Foi uma surpresa a força daquilo, o Quilombo. Acertamos em cheio nesse Dia de Reis. Esse Quilombo é festa rochedo, páreo para carnaval e São João, vários grupos na rua naquele solão de matar, desde bem cedo. A melhor parte foi o Reisado dos Irmãos. O maior agito na rua, as ‘almas’ fazendo estardalhaço. De repente, o Cícero bota fogo na zabumba e só ele instaurava um clima furioso de excitação. Avante! Me sinto num filme de guerra medieval, meio sobrenatural, com aquelas figuras negras e mascaradas abrindo caminho a golpes de chicote, os guerreiros correndo com seus peitorais e espadas, era guerra, não tinha dúvida. Avançávamos em tensão rumo ao trono da rainha, aos gritos e estalos de chicote. O cenário era um capricho só, vários andares de palhas, plantas e cetim, para onde sobem a rainha e a pequeníssima princesa. O grupo se divide entre os que defenderiam a rainha e os que iriam raptá-la, e a briga foi feia. Duelavam de verdade batendo as espadas com ritmo e violência, e a assistência torcia nervosa palpitando na luta. Enfim raptam a rainha, era o jeito, e todos então cantam e dançam juntos, reisado é bom...
5. Povo Kariri Xocó, de Porto Real do Colégio - AL
22/01/05 -Chegamos à aldeia dos Kariri-Xocó e estamos num quintal delicioso com cerquinha de galhos de árvores, mangueiras, muitas plantas. Eles estão se arrumando, com pinturas diferenciadas no corpo, cada um faz a sua. Gravação meio às pressas, pois eles precisavam voltar para o ritual do Ouricuri, de onde não poderiam ter saído. Mas vieram para cantar, e cantaram mesmo. Os torés foram fortes, coisa séria. O canto das mulheres é bem agudo e sai totalmente sem força, por cima da cabeça, vertical. Parece mesmo um agudo da coluna pra cima. As vozes sempre abertas procuram nas pareias aquela textura de harmônicos que encaixa os timbres, sempre muito agudo para puxar potência, e da gama toda das pareias femininas e masculinas vem um som muito poderoso. Thomas observou que eles parecem procurar os batimentos de afinação que produzem como que um zumbido que dá o maior barato. A ressonância das vozes é poderosa, incisiva, atua como se fosse tambor nos nossos esqueletos ouvintes.
6. Tambor de Taboca da Casa Fanti Ashanti, de São Luís - MA
29/12/04 - Pai Euclides, produtor artístico experiente, já tinha as dezesseis músicas do repertório do tambor de taboca selecionadas, datilografadas e em ordem... Ô gente boa de música! Em uma hora tínhamos um disco pronto sem mais. Dentre todos os mestres que convivo, Pai Euclides é dos que mais me impressiona. A vocação plena do sacerdote, a memória assombrosa, o talento de artista demais. Dançarino de graça e elegância, artesão refinado, figurinista, bordador, compositor inspirado, e a voz... Meu Deus! Onde vibra tanto harmônico naquela caixa torácica tão pequena? O jeito com que ele lança a frase para o agudo e vai deixando as notas caírem dançando que nem folha no vento, num dengo de matar! Repete nunca do mesmo jeito, alonga a nota, pairando sobre o pulso. Respiro sua voz e me sinto plena. (Penso que são vários artistas: ele, seu Tabajara, Balanço, Corre Beira, o temível Jaguarema... talvez carregar muitos espíritos marque na memória corporal um repertório mais vasto, e exercite ferramentas outras que o artista de uma alma só não pode experimentar).
7. Samba de Roda e Boi de Roça da Quixabeira, de Lagoa da Camisa -BA
23/1/05 - Depois do almoço apimentado na casa do Véio, fomos para casa de dona Budu, sua mãe, para a gravação do samba de roda. Dona Budu dá um show de samba no pé. Ela tem um jeitinho diferente de dançar, uma puxadinha de pé pra trás que ninguém tem. Ela e sua companheira de microfone têm um jeito especial de bater palma. Quando não estão batendo, ficam roçando uma mão na outra. Espera, ritmo, atenção. Coro feminino cantando “amor de longe, benzinho”. Muitas quadrinhas... Uma das coisas mais lindas nas pareias, além do próprio correr das vozes, são os espaços de silêncio, de suspensão entre uma estrofe e outra. Eles esperam calmos até o momento de cantar de novo. E demoram para isso o tempo que for necessário.
8. Cantadeiras do Souza, de Jequitibá - MG
28/01/05 - Aquela casa da Dona Marli parecia um cenário. Uma locação de casa de fazenda, os arreios, ferramentas, varandinha, fogão a lenha. Tudo ali era bem acabado e harmonioso. Sitiozinho de sonho para preguiçar macio, samambaia na varanda, roseiras no jardim mimado, o riachinho manso. Uma delicadeza, como a música delas. Impressionava como fazia sentido, estava tudo no lugar. Aquelas senhorinhas fazendo uma coisa muito sofisticada com uma naturalidade absoluta. Todas irmãs e primas, as vozes timbradas desde o útero. Tudo pleno. Ali deu muito dó de sair correndo. As encomendações de alma eram de prender a respiração, não dava para entender de onde saía aquele som de órgão que ia se transformando no ar, entrecortada pela voz espectral do seu Juvercino, que aumentava mais ainda a tensão. (Imaginava a própria alma encomendada pelas trombetas dos anjos)...
9. Sítio de Pai Adão, Xangô do Recife - PE
16/01/05 - Manuel Papai apresenta a casa pra gente num longo passeio pelo lugar. Primeiro nos levou até Iroko, a árvore sagrada que protege o sítio. Uma gameleira imensa, de mais de 150 anos, frondosa e cheia de histórias. Um tronco que vai crescendo de forma que parecem que são vários troncos retorcidos que saem do chão e vão se torcendo e assim se apoiando pra poder ir mais alto. A gravação começou às 13h. Mãezinha começa puxando os cantos e Manuel Papai vai sutilmente regendo a entrada do coro e dos ilus. Maria do Bonfim dança. Dá pra ver o que era ela dançando quando moça. Concentrada em seu passo, do qual só vemos hoje o gesto leve dos braços... dançantes, divinos.O toque dos ilús é de uma força descomunal. Assusta, vibra os ossos de um jeito que as elocubrações espirituais ficam para depois, tão intensa é a sensação física. Seu Malaquias dobrando o ilu grave é de chorar. Uma elegância, força, maestria, coisa de vida inteira e mais outras, ali, concentradas. Fico hipnotizada com aquele improviso tocado de corpo inteiro, certeiro, dança de árvore enraizada fundo. Só isso já tinha valido a viagem.
10. Cocos da Paraíba, Pilar e Alagoa Grande - PB
08/01/05 -No começo muitíssimo tímidos, os dois irmãos. De repente chegou de enxurrada, uma paixão com que eles fizeram esse som que não faziam há tempos! Ela com a necessidade do canto como o que mais sabe e gosta de fazer. A partir de um momento fica doida pra dançar, começa a se mostrar. “Eu saí de casa pra cantar / Deixa o sol descer / Eu saí de casa pra cantar”. Mas se cansa. Senta, respira e recomeça com o canto forte igual. Parece que na próxima ela não terá mais voz, tamanho é o canto. Mas isso não acontece e ela canta infinitamente! “Tenho 55 anos e não sinto uma dor no corpo. E olha que eu tive 24 filhos”. Dona Odete é bonita, corpo todo certinho e forte. Braços, peitos, “quando a gente sua é que a saúde chega”. Dona Odete continua impressionando a todos que estão ali. Ela mantém o registro rascante da voz no grave e no agudo. Isso torna o agudo algo poderosíssimo. No talo. Quando conversa, muda. É toda recatada, lacônica, não se alonga na prosa, mas vai lá adiante na poesia. Conta do marido atual, que a deixou porque ela foi lá cantar. Ele é neto do outro que morreu. Não sabe ler nem escrever, aprendeu a cantar coco com
o pai, “de pequena”.
11. Cocos da Paraíba, Pilar e Alagoa Grande - PB
09/01/05 -Caiana dos Crioulos é uma beleza. Montanhas pra todo lado, roças e casinhas pregadas em vários pontos dessa paisagem: uma azulzinha lá embaixo, uma branca lá no alto, láááá longe outra. Descemos o morro para chegar na sede da associação organizada pelas mulheres da comunidade. Elza e Cida na coordenação. Nos esperavam com a comida pronta e curiosidade. Cada um falou de si, sentados assim em bancos à volta da sala. Tentei dizer a importância que tinha pra mim visitar aquela comunidade. Só tentei... A apresentação começou por volta das 19h30. Elas cantaram cocos pra gente. Depois cantamos alguns cocos e forrós pra elas dançarem animadíssimas umas com as outras. Saímos de lá às 22h. Chegada em João Pessoa, 1h45. Pessoal ainda foi jantar. Preferi ir dormir. Sonhar com uma Caiana melhor ainda, com água, mais escolas, saneamento básico, fartura...
12. Bumba Boi de Costa de Mão Brilho da Sociedade, de Cururupu - MA
25/12/04 – NATAL -A forma de posicionar o pandeirão e o jeito de bater são o que diferencia em primeiro lugar a história do toque de costa de mão. Mas, além disso, ele é mais cadenciado. E a voz de seu Edmundo nesse universo sonoro que junta de uma maneira singular a precisão da batida com a constante impressão de que o tempo foi deixado de lado. A voz de seu Edmundo é isso, a suspensão no tempo, ela vai, vai, vai... Seu Edmundo é de fato dos maiores artistas que conheço, toadas lindas, um coro masculino denso e firmado, cheio de harmônicos, a batucada lenta e vigorosa, toda terra, toda chão, que vai organizando a gente por dentro, e a voz dele passeando em toda tessitura, serenando acima do bem e do mal, encanto total.
13. A Barca, de São Paulo - SP
31/01/05 - Todos sabíamos que aquilo não se repetiria, e o alívio e a saudade já batiam, juntos. Conversamos muito, nos gostando, rindo, lembrando belezas e trapalhadas. Lembrei do Dirceu do congado falando da falta que sente dos companheiros quando não estão em festa, e do peso que isso tem. Elemi Oxum é uma toada do candomblé do Maranhão para Oxum, a deusa da fertilidade e das águas doces, aprendida pelo grupo na Casa Fanti Ashanti.
CICLO OS POEMAS DA NEGRA (1929) Camargo Guarnieri (1907-1993) e Mário de Andrade (1893-1945)
Ângela Barra, canto e Marina Machado, piano
A Barca – Formada por André Magalhães (bateria e percussão), Ari Colares (percussão), Chico Saraiva (violão), Juçara Marçal (voz), Lincoln Antonio (piano), Marcelo Pretto (voz), Renata Amaral (contrabaixo elétrico), Sandra Ximenez (voz) e Thomas Rohrer (rabeca e saxofone). www.barca.com.br Projeto Turista Aprendiz – Renata Amaral (coordenação), Lincoln Antonio e Renata Amaral (direção musical), André Magalhães (produção musical), Patricia Ferraz (direção de produção), Ernani Napolitano (engenheiro de som), Angélica Del Nery e Olindo Estevan (vídeo e fotografia) e Flecha e Bessa (motoristas). Marina Machado – Mestre em Música - Performance em Piano pela Universidade Federal de Goiás. É professora de acompanhamento ao piano na mesma instituição. Ângela Barra – Doutora em Música - Performance em Canto pela Indiana University, EUA. É professora de Canto na EMAC-UFG.