EDUCAÇÃO PIANÍSTICA: O RIGOR PEDAGÓGICO DOS CONSERVATÓRIOS*

Pianistic education: The pedagogic rigour of the conservatories

Rita de Cássia Fucci Amato (FMCG e UNESP)

fucciamato@terra.com.br

Resumo: O presente trabalho apresenta reflexões sobre o rigor pedagógico dos conservatórios musicais brasileiros no século XX, enfatizando o Conservatório Musical de São Carlos, instituição que adotou a linha pedagógica do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo – que, por sua vez, estabeleceu um paradigma de educação pianística no Estado de São Paulo. O modelo europeu de ensino do piano foi amplamente divulgado nessas instituições, privilegiando os repertórios musicais dos séculos XVIII e XIX. Alguns aspectos da incorporação e reprodução desse modelo europeu podem ser visualizados: o primeiro está ligado ao conteúdo do ensino e dos métodos, com metas objetivas no processo de aprendizagem; o segundo refere-se ao comportamento social e cultural. O terceiro aspecto está relacionado ao prestígio da instituição ‘conservatório’, seu valor institucional, representado pela expedição de diplomas oficialmente reconhecidos. Palavras-chave: Educação Musical; Pedagogia do Piano; Conservatórios Musicais; Brasil.

Abstract: The present work aims to discuss ideas about the pedagogic rigour of the Brazilian musical conservatories in the 20th Century, emphasizing the ‘Conservatório Musical de São Carlos’, an institution that adopted the pedagogical system of ‘Conservatório Dramático e Musical de São Paulo’ – which, in its turn, established a piano education paradigm for the State of São Paulo. The European piano teaching model was throughly disclosed in these institutions, favoring 18th and 19th-century musical repertoire. Some aspects of the incorporation and reproduction of that European model can be identified, such as: the teaching approach, with its contents and methods; aspects connected to social and cultural behaviors; and aspects related to the prestige of the conservatories, its institutional value, represented by the issuing of officially recognized diplomas. Key-words: Music Education; Piano Pedagogy; Musical Conservatories; Brazil.

Introdução

O presente artigo tem como objetivo a análise das posturas pedagógicas referentes ao processo de ensino-aprendizagem do piano adotadas nos conservatórios brasileiros no século XX, com o intuito de alargar a compreensão e vislumbrar as delicadezas e as nuances de tal processo. A instância selecionada para essa investigação foi o Conservatório Musical de São Carlos (CMSC), instituição essencialmente pianística que desenvolveu atividades entre 1947 e 1991, em São Carlos-SP, utilizando-se do programa de ensino do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Esse programa era constituído dos seguintes níveis: Curso Preliminar (onde eram adquiridas noções musicais elementares), Curso Fundamental (do 1° ao 5° anos), Curso Geral (6° e 7° anos), Curso Superior (8° e 9° anos do Curso Geral) e Curso de Virtuosidade (com duração de dois anos). Em todos os níveis constavam as matérias complementares, o perfil das provas e o programa mínimo. Eram realizadas provas bimestrais, um exame semestral e outro anual. O aluno apresentava no mínimo 10 exercícios técnicos e 2 peças (todas originais, não eram aceitas transcrições para piano de peças originalmente escritas para outros instrumentos e edições facilitadas) no primeiro semestre e, ao final do ano, 20 exercícios e 4 peças. Os alunos que tocavam nos recitais apresentavam, além do programa, as peças exclusivas para o recital, sempre executadas de memória.

Esseplano estabeleceuuma divisão metodológica noensinodopiano, referente aos estudos técnicos, aos métodos e à execução de obras musicais. A liberdade do professor era respeitada com relação à escolha de números dos estudos e peças, sempre privilegiando a execução de obra de compositores europeus, porém compositores brasileiros também faziam parte do repertório nacional. A ampliação das opções das peças musicais encontrava-se também registrada no mesmo programa, de acordo com o parecer técnico dos professores do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.

Na presente análise, o rigor pedagógico incorporado e reproduzido pelos conservatórios será examinado quanto a três aspectos fundamentais:

o primeiro está ligado ao conteúdo e aos métodos de ensino; o segundo refere-se ao comportamento social e cultural dos alunos dessas instituições; o terceiro aspecto diz respeito ao prestígio dessas instituições e ao seu valor institucional, mensurado pelo diploma reconhecido e talentos vigorosamente desenvolvidos.

A investigação tem, pois, um caráter exploratório, buscando oferecer uma visão ampla do objeto de estudo e fornecer subsídios para a análise de instituições educativo-musicais e seus respectivos padrões de ensino. Para a realização do estudo, além da análise documental do plano de ensino de piano do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo (adotado pelo Conservatório Musical de São Carlos - CMSC), foram realizadas entrevistas com onze ex-alunos e ex-professores do CMSC. As entrevistas procuraram abordar ao máximo o período de funcionamento da entidade e os aspectos pedagógico-musicais por ela adotados. A análise dessas fontes de informação deu-se por meio de uma pesquisa bibliográfica pertinente aos temas inventariados e suas inter-relações.

1. Sobre o Programa de Ensino de Piano

É na abordagem tecnicista da educação que se encontram fundamentos para entender e refletir sobre o ensino musical realizado nos conservatórios. Nessa concepção, a aprendizagem é realizada com a perspectiva de metas e objetivos a serem alcançados e a avaliação possui extrema relevância no processo. Na pedagogia tecnicista adotada pelos conservatórios, a qual não se define como um método de ensino musical criativo e sensível, professor e aluno ocupavam uma posição secundária, de executores de um programa cuja concepção, planejamento, coordenação e controle estavam a cargo de especialistas habilitados. Ao professor competia a responsabilidade de transmitir os saberes e conhecimentos durante o processo de aprendizagem e ao aluno competia adquirir as habilidades necessárias para a execução instrumental. Com essa intenção, os programas davam primazia à prática instrumental e os conteúdos eram compartimentados em disciplinas organizadas de modo linear, em seqüências e fragmentos (Esperidião, 2003).

Nessa perspectiva, fica evidente a constatação de que o currículo, constituído de diretrizes técnicas (harmonia, contraponto, fuga etc.) e repertório situado no barroco, classicismo e romantismo, era priorizava a música européia dos séculos XVIII e XIX. Os conteúdos e repertórios musicais europeus eram os mais executados, em uma atitude de desconhecimento ou falta de interesse pela produção musical contemporânea. A ausência de contemporaneidade da perspectiva musical pôde provocar um descolamento da real atividade do músico, que era formado sem uma finalidade definida dentro do tipo de sociedade que a ele se apresentou cotidianamente. A predominância do aspecto técnico-instrumental em relação aos demais conteúdos era claramente estabelecida, relevando o papel de destaque que a virtuosidade e a performance possuíam na formação oferecida.

O programa padrão dos estabelecimentos de ensino musical que estavam sob a fiscalização do COA (Conselho de Orientação Artística) foi elaborado pelo professor Samuel Archanjo dos Santos, com a finalidade de padronizar e orientar o currículo destes estabelecimentos em razão da grande expansão musical no estado de São Paulo. Faz-se importante mencionar que o elenco de disciplinas desse plano já se fazia presente no Con-servatório Imperial e, posteriormente, no Instituto Nacional de Música, excetuando-se pequenos ajustes que denotam a influência dos professores italianos na vida musical paulista, em um projeto de europeização do plano padrão (Esperidião, 2003).

O programa do ensino de piano analisado foi concebido como uma grade curricular que compartimentava os conhecimentos teóricos e o fazer musical por meio das seguintes subdivisões: estudos1, sonatas e sonatinas, provas de exame e disciplinas complementares.

2. Pedagogia Pianística

No início do século XIX, o aumento significativo de pianos e pianistas na Europa e a ampliação das possibilidades técnicas do piano levaram a uma reflexão sobre o ensino de piano. Muitos pianistas passaram a se dedicar à educação pianística e a partir dessa busca por metodologias mais eficientes, novas pedagogias pianísticas foram criadas. Muzio Clementi (1752-1832) destacou-se ao a publicar, na Inglaterra, uma Introduction to the art (1801) e, posteriormente, seu Gradus ad Parnassum (1819-1820).

Outro compositor com preocupações pedagógicas foi o alemão Johann Baptist Cramer (1751-1858). Contemporâneo de Beethoven, aluno de Clementi e dono de uma técnica pianística admirável, Cramer escreveu Estudos para pianoforte em 42 exercícios nos diferentes tons, “calculados para facilitar o progresso dos que se propõem estudar esse instrumento a fundo” (Helffer; Michaud-Pradeilles, 2003, p.88). Aluno de Beethoven, Hummel e Clementi, Karl Czerny (1791-1857) foi outro pianista cujo enfoque didático levou à composição de estudos técnicos dedicados a todas as faixas etárias. Com uma ampla visão pedagógica, Czerny preocupava-se com a independência dos dedos, com a extensão total das teclas e com a questão do legato, entre outras. As reflexões sobre os rumos da pedagogia pianística são bem delineadas por Helffer e Michaud-Pradeilles (2003).

A pedagogia do piano lança-se em duas direções: a da tomada de posse de um teclado cada vez mais extenso, o que supõe os deslocamentos mais rápidos possíveis para dar a impressão de estar em todos os registros ao mesmo tempo; e também a de uma luta contra o peso inevitável da tecla, para conservar, a despeito da força a exercer, o máximo de rapidez e flexibilidade. Eis aí as razões imperativas que fazem aos poucos entrar em jogo não mais apenas o dedo, mas a mão, o antebraço, depois o braço e mesmo o resto do corpo. Há portanto ligações íntimas entre aperfeiçoamento do instrumento, sua prática e a escrita das obras, sejam estas música pura ou música de aprendizagem. (p. 90)

Esse breve relato das preocupações e das criações pedagógicas é relevante para o entendimento da concepção dos programas de ensino de piano adotados pelos conservatórios, os quais se baseavam na prática de exercícios técnicos para o domínio gradual do instrumento e para o controle e conhecimento proprioceptivo do aluno. A proposta da conquista progressiva dos controles de coordenação, leitura musical, agilidade, competência muscular, no programa analisado, estava impressa nas páginas do curso fundamental e geral.

3. Análise do Programa: o Repertório Europeu

Como instituições educativo-musicais de influência européia, os conservatórios brasileiros priorizavam o estudo dos compositores daquele continente. Segundo o relato de uma ex-professora do Conservatório Musical de São Carlos, o ensino de piano nessa entidade dava-se da seguinte maneira:

[...] no pré, o aluno tinha que aprender as duas claves de sol na 2° linha e a de fá na 4° linha e ter uma leitura musical razoável. Nos anos seguintes, tinha que estudar 20 (peças) exercícios, incluindo no mínimo 4 peças originais: 2 brasileiras e 2 estrangeiras. Nesses estudos o aluno tocava: Bach, Czerny, Chopin, Liszt, Mozart, Haydn e outros, além de estudos de velocidade, oitavas, técnicas e escalas. O curso era de 9 anos sem o pré e cada ano com programa específico; eram feitas provas bimestrais e um exame semestral e outro anual. A prova do 1 semestre era feita no início de julho ou no final de junho. O aluno tinha que apresentar no mínimo 10 exercícios e 2 peças, todas originais e no final do ano, 20 exercícios e 4 peças. Os alunos que tocavam nos recitais teriam que apresentar além do programa, as peças exclusivas para o recital e decoradas (ENTREVISTADA 4 apud Fucci Amato, 2004).

Assim, desde o curso fundamental, a preocupação estava centrada no programa mínimo, que estabelecia 15 estudos, sendo 10 de Czerny (do 1° ano ao 4°) e 5 outros estudos a escolher. O alemão Cramer era adotado no 5° e no 6° ano, também com 10 estudos. Já no 7° ano, o escolhido era Clementi, com seu Gradus ad Parnassum. No curso superior (8° e 9° anos), a escolha recaia sobre os estudos op. 10 e op. 25 de Chopin e os estudos transcendentais de Liszt.

O entendimento do caráter dos estudos escritos por Chopin e Liszt revela-se com características diferenciadas em relação aos compositores anteriormente citados.

Quando grandes compositores põem-se a escrever Estudos, o aspecto didático é imediatamente esquecido. Pouco importa que, nos “Estudos” de Chopin (Op. 10, 1833; Op. 25, 1836), cada Estudo seja dedicado a uma dificuldade particular – cromatismos, terças, sextas, oitavas etc. –, retém-se apenas o conjunto e o caderno forma um todo compacto, como se fosse uma coletânea de variações. Isso é verdade (talvez em menor grau) em relação a Liszt em seus “Estudos de execução transcendente baseados em Paganini” (1840). Liszt afirma-se um grande músico romântico sobretudo na versão definitiva dos “12 Estudos de execução transcendente” (1852), sem esquecer seus “Estudos de Concerto”. (Helffer: Michaud-Pradeilles, 2003, p. 91)

A forma sonata e sonatina (sonata breve, fácil ou “ligeira”) eram contempladas desde o início do curso fundamental e fazem parte de toda estrutura curricular até o 9° ano. As sonatas do austríaco Joseph Haydn (1732-1809) compunham especialmente o programa de piano do 3° e 4° anos, revelando uma atitude pedagógica de contemplar a época clássica da produção pianística. O momento era de transição da escolha entre cravo e o piano, indicada pelo compositor e também referendada pelas notações relativas a um sistema diversificado de dinâmica e de acentos (indicações de valor das intensidades ou de alteração rápida ou lenta das mesmas). Algumas das 17 sonatas do também austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) integravam o currículo do 3° ao 5° anos.

O estilo clássico encontrou nas características do piano o que era necessário ao seu desenvolvimento. Com Mozart, que é virtuose e apaixonado pelo instrumento, o piano chegou à maturidade. [...] A virtuosidade de Mozart é realmente a primeira a ser estritamente pianística. Mozart está atento a toda a extensão do teclado e sabe utilizá-la. Para isso, emprega um mecanismo baseado nas escalas e nos arpejos que Beethoven irá retomar e amplificar. [...] Mas Mozart serve-se da virtuosidade somente dentro dos limites do plano muito estrito que parece ter estabelecido para cada obra. Ele permanece sempre muito aquém das possibilidades do instrumento de sua época. [...] À medida que ele escreve, essa sobriedade aumenta, o que se deve ao aprofundamento de seu universo interior e também à descoberta de Bach e Haendel, descoberta que o leva a introduzir mais contraponto mesmo em suas obras de piano. (Helffer; Michaud-Pradeilles, 2003, p. 61-2)

Ludwig van Beethoven (1770-1827) era privilegiado com a execução de sua produção de sonatas (32, sendo algumas delas mais executadas que outras) a partir do 3° ano. Esse repertório contribuiu de maneira significativa para o crescimento das possibilidades do piano pela precisão das indicações e das novas possibilidades de execução desse instrumento, já que, segundo Helffer e Michaud-Pradeilles (2003), Beethoven realizou uma interação entre sua escrita pianística e o avanço no processo de fabricação do instrumento, passando a contemplar: a utilização de toda extensão, em especial as notas extremas; a evolução do trinado; a utilização freqüente das possibilidades dos pedais; o aperfeiçoamento do sistema de acentuação (reforço ou não da pulsação do compasso); o aumento das notações qualitativas e de tempo. O compositor passou, a partir de então, a ser reportado como um visionário na escrita pianística.

Por sua vez, as composições de Johann Sebastian Bach (16851750) eram exigidas desde o 2° até o 7° ano do curso fundamental: o início era realizado com obras de fácil execução, seguidas de invenções a duas e três vozes, suítes inglesas e francesas, partitas e O Cravo bem temperado (volumes 1 e 2). Ressalta-se que o piano é o instrumento que tanto permite a execução igualitária das vozes quanto a preponderância de uma delas em relação às outras, o que não era tão destacadamente eficiente nos dois teclados do cravo. Já o estudo das composições bachianas é de notável valor para a independência das mãos (vozes) e para o entendimento do complexo jogo polifônico – riqueza ímpar da obra de Bach.

O compositor húngaro Béla Bartók (1881-1945) com seu Mikrokosmos, distribuídos em 6 livros e compostos entre 1926 e 1939, estava presente desde o 2° até o 9° ano do curso de piano. Esta obra de Bartók guarda semelhanças com a produção de Bach no sentido de que ambas são destinadas ao ensino da técnica pianística em um crescendo técnico e estrutural, sendo que no caso do Mikrokosmos, esse crescendo inclui a linguagem musical moderna, com o aproveitamento total do piano e de suas possibilidades de expressão.

A execução de peças de compositores românticos foi decisivamente a vertente principal dos concertos e audições patrocinados pela instituição analisada, o Conservatório Musical de São Carlos (CMSC). O polonês Frédéric Chopin (1810-1849) teve sua produção pianística muito executada e estimada por todos os estudantes, integrados nessa concepção educacional inspirada nos moldes europeus. O piano de Chopin foi concebido com a relevância da linha melódica bastante ornada, conjugada ao acompanhamento de grande significância e sutileza harmônica, com uma fina mistura de romantismo e virtuosidade.

Suas linhas horizontais cantam espontaneamente, pela escolha dos intervalos e das relações de ressonância que se estabelecem entre as notas da melodia e das partes secundárias, como se Chopin sentisse intuitivamente os harmônicos dos sons. [...] Ele age sobre a natureza dos acordes, sobre sua disposição nos diferentes registros, sobre seu desenrolar que tende a ser muito arpejado, enfim sobre repartição entre as duas mãos, eventualmente intercaladas entre si. [...] O resultado não é mais apenas uma melodia acompanhada, mas um instrumento inteiramente melódico e transparente que entra em vibração como um ser vivo, de forma menos ponderada, mais instintiva do que fizera Beethoven. [...] Se o piano de Mozart remete à ópera, o de Beethoven à sinfonia ou ao quarteto, o de Schubert ao “Lied”, uma obra de Chopin remete apenas ao piano. (Helffer; Michaud-Pradeilles, 2003, p. 78-9)

O húngaro Franz Liszt (1811-1886) foi outro grande compositor romântico e virtuose que associou intimamente a prática do instrumento e a escrita. Elaborou composições com estruturas em grande escala (forma sonata estendida, com peças de vários movimentos sendo unificadas) e condensou uma base temática em uma obra inteira, concebendo o piano como uma orquestra, em uma rica gama sonora, implantando a sua técnica transcendental e inovando com sua criação harmônica.

Liszt sabe escrever passagens de virtuosismo que parecem girar em torno de um eixo de notas, escalonadas em todos os registros, como uma espécie de corrida de revezamento. É preciso ainda notar a abundância de saltos (“Mazeppa”, “Primeira Mefisto-valsa”), trinados, “tremolos”, notas repetidas. Liszt vale-se também de linhas cromáticas ou diatônicas da mão direita ou da mão esquerda, com sucessões de notas duplas em todos os gêneros. [...] a virtuosidade jorra como uma espécie de acréscimo, sem ser incompatível com um máximo de expressão e de emoção, o que é sublinhado por numerosas indicações em italiano. (Helffer; Michaud-Pradeilles, 2003, p. 80-81)

Outras grandes expressões do romantismo estavam presentes no programa de ensino, como Felix Mendelssohn (1809-1847), Robert Schumann (1810-1856) e Johannes Brahms (1833-1987). O alemão Mendelssohn mostrou influência de Bach, Haendel, Mozart e Beethoven, respectivamente, na técnica fugal, no ritmo e nas progressões harmônicas, na caracterização dramática (formas e texturas) e na técnica instrumental. A partir de 1825, desenvolveu uma percepção própria e original, em uma ligação acentuada com estímulos outros que não os musicais – literários, históricos e emocionais. Já para Schumann, o piano tornou-se seu confidente, em que sua produção sonora foi a imagem de um mundo interior conturbado, com buscas de sonoridades, de polirritmias e de polifonias.

A segunda metade do século XIX foi selada com a densa personalidade de Brahms, que utilizou a extensão total do piano e o transformou definitivamente em uma orquestra, conservando, no entanto, sua sonoridade específica. Na produção de Brahms observa-se uma preocupação com a didática do piano, através de exercícios técnicos, como, por exemplo, estudos com notas duplas e para a mão esquerda.

A escola francesa de piano (final do século XIX até 1945) também participava do programa de ensino pianístico, tendo dentre os seus representantes Gabriel Fauré (1845-1894) e Claude Debussy (1862-1918).

Na história da escrita do piano, das origens até a morte de Brahms, há uma predominância da cultura germânica; isso se reconhece mesmo em Chopin. No final do século XIX, porém, há um deslocamento do centro de gravidade da criação musical, centro que parece se estabelecer em Paris mas sem abandonar completamente Viena ou Berlim. [...] A produção pianística de um Fauré inspira-se em Chopin e em Schumann, e é sintomático que ele queira mostrar a Liszt sua primeira obra conseqüente, a “Ballade” cuja versão original é escrita apenas para piano. [...] Em Debussy destaca-se tudo o que é ressonância. Ele parece ter tomado de Chopin a arte das mãos que se sobrepõem para fazer soar os acordes e de Schumann uma maneira de cruzar as mãos que transforma as sonoridades. Sabe também desenvolver harmônicos de modo a fazer ouvir como Chopin, sons não escritos [...]. (Helffer; Michaud-Pradeilles, 2003, p. 109-111)

A Espanha era representada pelos seus compositores Manuel de Falla (1876-1946), Isaac Albéniz (1860-1909), Joaquín Turina (1882-1949) e Enrique Granados (1867-1916) na educação pianística promovida pelos conservatórios. Falla recebeu influências de Dukas, Debussy, Ravel, Stra-vinsky e Albéniz, culminando no desenrolar de seu estilo próprio, o qual utilizava o canto primitivo (cante jondo) da Andaluzia e modernas elaborações harmônicas. Um dos expoentes da música espanhola, o compositor e pianista Albéniz impulsionou uma escola nativa de piano, com sua maioria de obras dedicada ao instrumento solo. A Suíte Ibéria (1906-8) é sua obra mais apreciada, exigindo técnica refinada numa construção de harmonia ousada e evocações instrumentais. Granados, por sua vez, obteve grande sucesso com a suíte para piano Goyescas (1911), que contém uma série de estudos de puro virtuosismo, inspirada em pinturas de Goya. Joaquín Turina, em seu turno, também escreveu canções e inúmeras peças para piano, refletindo delicadeza e espírito sevilhano.

Dois representantes da escola russa eram sugeridos no programa oficial de ensino a partir do 7° ano: Rachmaninov e Prokofieff. Sergei Rachmaninov (1873-1943) compôs várias obras para piano fiéis ao mais puro romantismo, herdado de Tchaikovsky e de seus professores (melodia lírica expandida de pequenos motivos, espectro amplo de linhas e formas, nostalgia e melancolia predominantes). Sergei Prokofiev (1891-1953) escreveu 9 sonatas para piano, além de outras obras para esse instrumento.

O estudo desses compositores reflete a predominância do repertório pianístico europeu no estudo de piano promovido pelos conservatórios no Brasil. A preocupação com o rigor pedagógico no desenvolvimento técnico das habilidades dos estudantes de piano também era um fator de importância para essas instituições, já que o programa de ensino por elas seguido, além de prever um desenvolvimento gradual dessas habilidades, abrangia obras compostas com a finalidade estritamente pedagógica.

4. Análise do programa: o repertório nacional

Apesar da predominância da produção pianística européia nas suas práticas pedagógicas, pode-se constatar que os compositores nacionais também ocupavam lugar de destaque no ensino de piano promovido pelos conservatórios no Brasil. Segundo as entrevistas realizadas junto aos docentes e discentes do Conservatório Musical de São Carlos, o repertório era composto principalmente pelos compositores Camargo Guarnieri, Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1948) e Francisco Mignone (1897-1986). Outros compositores presentes com freqüência no repertório dos conservatórios eram Henrique Oswald (1852-1931) e os precursores do nacionalismo musical: Alberto Nepomuceno (1864-1920), Ernesto Nazareth (1863-1934), Francisco Braga (1868-1945) e Barroso Neto (1881-1941).

Heitor Villa-Lobos, criador da música verdadeiramente nacional e sua maior expressão composicional, esteve constantemente presente nos recitais e concertos promovidos pelo conservatório estudado (CMSC). O repertório de obras de Villa-Lobos era executado em todos os anos do curso de piano. A sua obra para piano, com destacada solidez, surpreende ao revelar novos modelos de mecânica pianística e dificuldades rítmicas não convencionais, sempre com a intenção de efeitos sonoros ímpares.

Desde as “Danças africanas”, em que seu estilo se concretizou, vemos essa preocupação rítmica se acentuar gradativamente em obras de todos os gêneros. Sempre originalíssimo, evitando a rotina a todo o custo, Villa-Lobos foi muito pessoal em seus primeiros experimentos no terreno pianístico, e já em 1920, ao compor “A lenda do caboclo”, vêmo-lo enveredar decididamente pelo campo da música nacionalista, que abordara na “Prole do bebê nº 1” Desde então, sua obra pianística adquiriu personalidade inconfundível, conquistando o ouvinte por seus timbres sedutores e ritmos desusados, e interessando o técnico com a feitura arquitetônica complexa e esmagadora do “Rude poema.” (Mariz, 2000, p. 166)

O compositor escreveu grande quantidade de obras com inspiração na vida infantil: em 1912, três séries: Brinquedo de roda (6 peças), Petizada (6 peças) e 1ª Suíte infantil (5 peças); em 1913, 2ª Suíte infantil (4 peças); em 1914, Fábulas características (3 peças); em 1918, Prole do bebê n° 1 (8 peças); em 1919, Histórias da carochinha (4 peças) e Carnaval das crianças brasileiras (8 peças); em 1921, Prole do bebê n° 2 (9 peças); em 1925, Cirandinhas (12 peças); em 1926, Prole do bebê n° 3 (9 peças) e Cirandas (16 peças); em 1929, Francette et Piá (9 peças) e Momo precoce, para piano e orquestra; em 1940, Saudades da juventude (10 peças), depois orquestrada.

As três suítes Prole do bebê são de relevância acentuada na obra pianística de Villa-Lobos: a primeira refere-se às bonecas, em seus temperamentos mais contraditórios; a segunda, aos bichinhos; e a terceira, aos esportes. A Lenda do cabloco, escrita em 1920, é um dos seus maiores su-cessos e sintetiza toda a atmosfera nacionalista. Rude poema, por sua vez, é uma das obras de maior complexidade da literatura pianística contemporânea. Saudades das selvas brasileiras, escrita em Paris no ano de 1927, reflete a brasilidade de Villa-Lobos em dois momentos: o primeiro, com um ritmo obstinado do ambiente selvagem, entrecortado com um lamento, e o segundo, mais alegre. Três miniaturas de expressão pianística também integram sua obra: as Três Marias, que formaram uma tríade de atmosfera límpida. Outro conjunto de obras de mérito pianístico é o Ciclo brasileiro, composto por 4 peças datadas de 1936:

Ressaltamos, na série, a excelência da realização de Villa-Lobos ao esboçar, num desenho rítmico de quiálteras, os golpes compassados da enxada do “Plantio do caboclo”; ao expor, de maneira tão feliz, aquele painel sertanejo, com toda a sua dolência, nas “Impressões seresteiras”; ao construir uma peça tão variadamente descritiva como a “Festa no sertão”; ao pintar a dança sensual do índio branco. Em ritmo binário, no qual as mãos se intercalam para depois delinear-nos um tema de grande beleza rítmica e melódica, esta peça encerra todo o ciclo com uma modulação ascendente acelerada e brilhantíssima. Esta série tem a mais alta importância e o ciclo é dedicado à Mindinha. (Mariz, 2000, p. 169)

Integrante da segunda geração nacionalista, encontrava-se no programa de ensino o nome de Oscar Lorenzo Fernandez, fundador do Conservatório Brasileiro de Música (no Rio de Janeiro, em 1936) e importante colaborador de Villa-Lobos no Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. Compôs peças para piano solo, das quais de destacaram-se os Três estudos em forma de sonatina, a Valsa suburbana, as três Suítes brasileiras e a Sonata breve. As indicações das obras Lorenzo Fernandez estiveram presentes no programa desde o início do curso de piano.

Outro líder da segunda geração nacionalista (indicado a partir do 5° ano) era Francisco Mignone, o qual, nas reflexões de Mariz (2000), possivelmente foi o músico brasileiro mais completo – compositor, professor, regente, virtuose do piano, acompanhador, orquestrador, intérprete de música de câmara, poeta e intelectual. Sua valorosa contribuição para o piano são as 12 Valsas de esquina (1938-42), as quais retratam muito bem o clima dos chorões das primeiras décadas do século, além de outros tipos de valsas notadamente brasileiras. Mignone compôs Prelúdios, Lendas sertanejas, Estudos transcendentais, outra série de 12 Valsas-choro (1946-1955), 12 Valsas brasileiras e, todas em tons menores e para piano e orquestra, três Fantasias brasileiras e o Concerto (1958).

Pertencente à terceira geração nacionalista, Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993), professor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, regente, compositor e, precedido por Villa-Lobos, detentor do maior conjunto de obras musicais, o qual culminou em um alto desenvolvimento do movimento nacionalista, encontra-se com destacada importância no programa oficial de ensino de piano. Suas composições, que contêm exemplares essenciais da arte musical brasileira para o piano, são: 50 Ponteios (1931-1959), Toccata (1935), Dança negra (1946), estudos, valsas, improvisos, 7 sonatinas e Sonata (1972), sugeridas nos três últimos anos do programa oficial.

Outro nome de destaque presente no programa oficial é César Guerra Peixe (1914-1985), violinista e compositor que escreveu algumas obras para piano: Miniaturas, Prelúdios tropicais e Sugestões poéticas.

O cearense Nepomuceno, principal figura da música brasileira até aproximadamente 1920, compôs a Série brasileira, com vertente nacionalista considerada pioneira, apesar de todas as críticas que esta recebeu. As composições Confidência, Valsa lenta, Serenata antiga e Romance, de Francisco Braga, integravam o 6° ano do curso de piano. Algumas obras de Barroso Neto (ou Barrozo Netto) também estavam presentes no referido programa.

Outros compositores, tais como Henrique Oswald e João Seppe, também se encontram no programa de ensino, demonstrando a relevância dada ao estudo da produção pianística nacional nos conservatórios musicais, os quais, todavia, não priorizavam a produção contemporânea.

Todavia, nenhuma alteração nesse programa estritamente erudito era permitida. Um ex-aluno da instituição declara que “não se incursionava, jamais, pelo jazz, pela improvisação, pela música popular de consumo. Quando muito um Ernesto Nazareth e olhe lá!” (ENTREVISTADO 9 apud Fucci Amato, 2004).

Quanto ao compositor Ernesto Nazareth (1863-1934), deve-se mencionar aqui a discussão sobre sua música ser considerada erudita ou não. Mariz (2000), baseado em afirmações de Mignone e outros compositores, decide incluir Nazareth no rol de clássicos, devido à sua contribuição à expressão nacionalista. Nazareth, porém, não integrava o programa oficial de educação pianística, mas era executado, provavelmente fora dos recitais, guardadas as restrições impostas muitas vezes impostas pelos conservatórios e seus padrões. Sua obra consta de “tangos brasileiros” (mais de 90), com inovações rítmicas e com inovações formais, valsas e polcas.

5. A importância da performance

A complexidade do estudo do piano merece algumas reflexões acerca da necessidade do domínio específico de conhecimentos musicais e técnicos imprescindíveis à execução deste instrumento. A formação de um intérprete é consolidada por matérias teóricas e práticas musicais, em um processo de sofisticação e burilamento concretizado a partir de muitos anos de estudo.

Dominar os conhecimentos musicais, desenvolvê-los na própria experiência, vivenciá-los a ponto de poder expressá-los com fluidez necessária à boa interpretação de uma obra, é tarefa bastante complexa. Igualmente difícil é o domínio dos movimentos necessários à execução do instrumento, de acordo com a interpretação desejada. (Azevedo, 1991, p. 9)

Em relação aos aspectos ligados ao aprendizado do piano, Azevedo (1991) revela a delicada postura que o professor deve assumir diante de um elenco de importantes considerações e como seu conhecimento, não só musical, é imprescindível para a gestão de alunos capazes:

É no estudo analítico da técnica que não se pode prescindir de um embasamento adequado em ciências físicas e naturais, em especial a Fisiologia, a Mecânica e a Acústica. [...] A interpretação musical, por sua vez, não dispensa estudos intelectuais apurados, tais como o estudo das maneiras de se fazer um fraseado num compositor clássico ou num compositor romântico, o que pode significar uma pausa em Beethoven ou em Chopin, a ornamentação característica de diferentes compositores, as características dos diferentes estilos, e mais uma infinidade de detalhes importantes e indispensáveis. (Azevedo, 1991, p. 12-13)

O autor prossegue suas elaborações acrescentando que o estudo da técnica pianística envolve inegavelmente diversos aspectos filosóficos, sociológicos e psicológicos, que, quando estudados, podem fornecer diversos subsídios para o estudo do instrumento e para a resolução dos diversos aspectos técnicos e educacionais que podem se apresentar nessa realidade.

De fato, o mundo da docência pianística é de uma complexidade que muitas vezes foge da compreensão leiga, a qual considera o aprendizado artístico como algo fácil, desde que se tenha talento. Discorda-se de tal visão, já que o estudo do piano requer horas e horas de dedicação, o cumprimento de programas, a abstenção de lazer, envolvimento e, principalmente, a busca de professores competentes, possuidores do “saber/ fazer” musical.

Os conservatórios musicais eram escolas tradicionais de influência européia e revelavam como objetivo, durante toda a sua existência, a qualidade performática de seus alunos, privilegiando uma técnica requintada para a interpretação do repertório de grandes mestres da música erudita. Os depoimentos de ex-alunos do Conservatório Musical de São Carlos apontam para posturas variáveis quanto às apresentações públicas. Nessa perspectiva, a entrevistada 6 (apud Fucci Amato, 2004) declara:

Eu tocava em tudo que era apresentação. [...] depois de formada, eu fiz mais três anos, que era o aperfeiçoamento. No primeiro ano, eu participei de um concurso em Campinas. Eu lembro que o ano inteiro foi preparação para esse concerto, porque tinha que tocar tudo de cor.

Já no caso da entrevistada 5 (apud Fucci Amato, 2004), a declaração evidencia um certo temor ao se apresentar em público, pois nível de exigência e perfeição mantido pela instituição era muito alto no entendimento de alguns alunos: “Mas eu não gostava muito de apresentações, porque ela era muito brava, e tinha que sair tudo perfeito, a gente ficava muito tensa”.

Por outro lado, segundo a entrevistada 3 (apud Fucci Amato, 2004), a severidade presente no preparo para as apresentações era de grande relevância para o aperfeiçoamento técnico do aluno e proporcionava grande prazer estético quando uma interpretação de qualidade era obtida.

No entendimento de Tagliaferro, citada por Leite (1999), a responsabilidade e a intensidade na execução musical (especialmente em recitais) possuem um valor incalculável, tanto no que se refere à idealização correta de um compositor, quanto na sua incompreensão e possível arruinamento de sua obra. Dois caminhos se apresentam ao intérprete; a sua escolha é, portanto, fruto de informação e formação musical adequada. Assim, segundo a artista, primeiramente o intérprete deve, antes de estudar a obra, definir seu estilo e seu gênero, preparando-se com o “espírito” adequado para a execução de tal peça; segue-se a essa fase o estudo da obra, sem a transgressão de estágios, tomando-se conta das regras de ritmo e compasso e das armações de arquitetura musical, construindo-se, arduamente, o edifício sonoro. Desse modo, a pianista conclui, o artista pode enunciar seus sentimentos da forma almejada.

O processo de maturação musical ocorre paulatinamente, dia após dia, envolvendo a elaboração de preciosos detalhes da execução pianística. A assimilação das minúcias musicais requer tempo e silêncio. Leite (1999) coloca que, após a obtenção de uma técnica de interpretação sólida, o amadurecimento interior do trabalho técnico e da construção musical se torna essencial. O autor acrescenta ainda que, a partir desse período de reflexão subconsciente, pode-se aperfeiçoar a interpretação a fim de torná-la cônscia e tecnicamente elaborada de maneira global.

Essas concepções acerca da execução musical foram cuidadosamente escolhidas no intuito de mostrar o refinamento a que se pode chegar em uma interpretação pianística e todos os cuidados de preparação a que se submete um artista. Mas fica a pergunta: essa preparação é só para os grandes virtuoses? Acredita-se que não, pois o preparo adequado para uma performance sempre requer ajustes técnico-musicais, independentemente do nível técnico do intérprete, e o dá a convicção de ser capaz de realizar tal interpretação.

6. O poder institucional no ensino de piano

Os conservatórios, como escolas expedidoras de diplomas registrados, permitiam a distinção dos estudantes de piano “oficialmente reconhecidos” e o estabelecimento de “taxas de convertibilidade entre o capital cultural e o capital econômico, garantindo o valor em dinheiro de determinado capital escolar” (Bourdieu, 1979, p. 78-9). Nesse sentido, a objetivação do capital cultural sob a forma do diploma produz benefícios materiais e simbólicos, que, dependendo de sua raridade, podem ser mais ou menos rentáveis. No caso dos alunos dos conservatórios, a raridade estava ligada essencialmente ao prestígio e, no caso das alunas, era tido como um “dote” agregado a outras valorações da época (Fucci Amato, 2005).

Esse grau de coesão é abordado por ELIAS e SCOTSON (2000) como fonte de diferenciais de poder entre grupos inter-relacionados, os estabelecidos e os outsiders. Na interpretação dos autores, um establishment é um grupo que se identifica e é reconhecido como uma “boa sociedade”, influente, melhor e construída sobre os pilares da tradição, da autoridade e da influência, presentes decisivamente nessa identidade social. Por outro lado, os outsiders são concebidos como os não membros de tal sociedade, aglutinados num agrupamento heterogêneo e difuso com relações interpessoais de menor intensidade que os establishment.

A partir dessa reflexão, é possível classificar os conservatórios e seus alunos como established, naquele momento em que as condições sociais foram propícias a incorporá-los como padrão de educação pianística, conferindo prestígio e distinção, em contraposição aos alunos dos professores particulares de piano.

No entanto, a categorização dos grupos estabelecidos passa por um carisma grupal, no qual todos os que estão inseridos nessa relação participam desse carisma e se submetem às regras mais ou menos rígidas desse grupo, bem destacadas por Elias e Scotson (2000), com o sacrifício da satisfação pessoal em prol do fortalecimento e coesão da coletividade.

A disciplina rigorosa e o estudo com afinco e dedicação também estão incluídos na participação do carisma grupal, diferindo os alunos dos conservatórios de outros estudantes de música, como, por exemplo, os estudantes de música popular. Para essa categoria − estudantes de música popular − os estudos eram entendidos como amadores, pois os mesmos não necessitavam de conhecimento teórico musical (leitura de partituras), podiam “tocar de ouvido” e improvisar, princípios abomináveis dentro da cultura musical dos conservatórios àquela época (Fucci Amato, 2005).

O aclaramento da rede de configurações dos alunos dos conservatórios pertence a reflexões historicamente datadas, devido à flexibilidade das relações sociais e suas novas e possíveis configurações que se estabelecem no decorrer do tempo. Uma figuração estabelecidos-outsiders é mutável dependendo da dinâmica da sociedade, a qual pode provocar alternâncias na forma como os indivíduos estão inseridos nela, o que, nas palavras dos autores Elias e Scotson (2000, p. 36), revela “uma complexa polifonia do movimento de ascensão e declínio dos grupos ao longo do tempo”.

Outras mediações lançam intensidade na história dos conservatórios, ainda na perspectiva sociológica, com as considerações complexas de Bourdieu (1974, 1983, 1986, 1996, 1998), que concebe a sociedade sob duas formas indivisíveis: por um lado, as instituições revestidas na forma física de monumentos, livros, instrumentos etc. e, por outro lado, as disposições adquiridas, as maneiras duráveis de ser e de fazer que se encarnam nos corpos – habitus. Nessa perspectiva o autor chama atenção para a dificuldade de estabelecer padrões de análise individual, pois esse corpo socializado é uma das existências da sociedade e não se opõe a ela (BOURDIEU, 1983).

A exposição temática bourdieuniana principal para o entendimento polifônico da trajetória dos alunos e professores dos conservatórios faz referência à transmissão do capital cultural no seio familiar e às suas conseqüências na vida dos indivíduos. BOURDIEU (1974, 1983, 1986, 1996, 1998) acrescenta que as condições de cultivo de hábitos e atitudes promovidas pela família acompanham o desempenho escolar, cultural e profissional de seus filhos com acentuada relevância.

Nessa perspectiva, o processo de desigualdade que se estabelece frente à escola e à cultura são, muitas vezes, tratados como naturais e não como socialmente criados. O entendimento de BOURDIEU (1974, 1983, 1986, 1996, 1998) é que a família transmite a seus filhos um sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados - ethos – e um certo capital cultural que contribui para a definição de atitudes referentes ao capital cultural e à instituição escolar.

7. Considerações finais

Os conservatórios foram projetos possíveis a partir dos quadros socioculturais estabelecidos principalmente a partir da metade do século XX, pois, como instituições educativas que serviam e recrutavam os seus alunos de forma rigorosa, atendendo aos objetivos das camadas sociais que eram capazes de dar respostas eficazes, estes estabeleceram um dos eixos fundamentais para a construção e permanência de toda instituição privada. Evidenciam-se nesse sentido alguns aspectos referentes às redes de configurações sócio-culturais estabelecidas entre os alunos e professores dessas instituições, com âncoras na tradição, na autoridade e na influência, instituindo dessa forma uma sociedade de prestígio e distinção.

Seguindo um plano de ensino de piano que adotava uma postura metodológica austera, com métodos definidos ao longo dos nove anos de estudo de piano, refletindo a densa informação que era passada ao estudante, quer abordando aspectos musicais, quer aspectos especificamente relativos à técnica pianística, a pedagogia adotada resultava em uma execução musical de qualidade: grande conquista desejada por todas as escolas de música.

A referência que o ensino de piano passa a ter com a criação dessas instituições foi alterada no próprio “status” que passou a ser conferido a esse ensino em contrapartida ao proporcionado por professores particulares. Essas categorias distintivas se constituem em:

  • Reconhecimento da instituição nas instâncias superiores da Educação, com a concessão de diplomas registrados;
  • Uma nova ordenação e organização do tempo em anos, com cumprimento mínimo de programa, com avaliações regulares dos conteúdos prático-teóricos e ensino de disciplinas complementares;
  • Uma nova organização espacial: a entidade passa a ser um prédio com endereço definido, salas apropriadas para o ensino de piano e matérias teóricas, sala de administração etc.

Nessa perspectiva, o espaço escolar e o tempo educativo expressam na sua materialidade um sistema de normas reguladoras, como ordem, disciplina, controle e vigilância, que são inerentes ao rito educativo-musical. Todo esse processo permite desvelar as intrincadas redes de configuração socioculturais do mundo do estudo do piano naquele momento histórico, fortemente marcado pela aceitação de padrões musicais europeus.

Todavia, como afirma esperidião (2003), as concepções pedagógicas advindas dos padrões europeus acarretaram na formação musical dos alunos nos conservatórios, uma desvinculação da realidade e do mundo do trabalho que: os descontextualiza da contemporaneidade da linguagem musical, estabelece uma dicotomia entre música erudita e popular e uma fragmentação do saber musical, separa a prática da teoria e conserva o despreparo dos professores quanto a concepções educacionais e metodologias inovadoras pertinentes à realidade social e cultural do país.

Já em relação às práticas educativo-pianísticas atuais, cabe reafirmar que existe uma grande variedade em relação aos conceitos pedagógicos, que vêm sendo inovados por algumas entidades e mantidos ou aperfeiçoados por outras. A elaboração metodológica similar àquela utilizada nos conservatórios, baseada na execução (performance), é administrada atualmente nas universidades e nas escolas de música, demonstrando que

o “modelo europeu” de ensino pianístico possui seus adeptos.

Um exemplo dessa postura pedagógica é a Escola Nacional de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ENM/UFRJ). Destaca-se que, nesse processo de formação do intérprete, pode existir uma preocupação exagerada com o adestramento técnico, e as condições para uma reflexão maior acerca do valor de um concertista como agente cultural ficam prejudicadas, inclusive quanto às questões pedagógicas decorrentes dessas performances. Nesse sentido, o objetivo de criar público apreciador e consumidor de música erudita deveria ser encarado com maior atenção e dedicação (Ramalho, 1995).

Outro exemplo atual no ensino pianístico é o Conservatório Brasileiro de Música (CBM), uma das mais importantes e antigas escolas particulares especializadas no ensino de música do Rio de Janeiro e também de todo o Brasil. Diferentemente da Escola Nacional de Música, o Conservatório é pioneiro em cursos de formação de professores de iniciação musical, educação musical e musicoterapia, experimentando novas propostas pedagógicas, com o intuito de suprir a formação tradicional que era empreendida nos conservatórios do passado (ramalho, 1995).

A leitura que se permite realizar diante dessas duas instituições é que o rigor metodológico dos antigos conservatórios traz colaborações eficazes e relevantes na formação do instrumentista. Por outro lado, essa mesma concepção pedagógica não preenche expectativas de outros tipos de músicos, com destinos variados, especialmente no caso de professores dos mais diversos níveis de ensino. Cabe assim destacar a positividade da complementação realizada entre a diversidade do Conservatório Brasileiro de Música e o destino “unívoco” da Escola Nacional de Música com relação aos saberes pedagógico-musicais.

Notas

* O presente trabalho deriva-se da tese de doutorado: “Memória Musical de São Carlos: retratos de um conservatório”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos (PPGE/ UFSCar), área de concentração: Fundamentos da Educação, em março de 2004, contando com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) - processo n° 00/02290-6. Segundo Helffer e Michaud-Pradeilles (2003), o estudo é uma peça destinada ao trabalho de uma simples dificuldade técnica e o exercício consiste em repetir essa mesma dificuldade sem uma preocupação compositiva.

Referências

AZEVEDO, C. R. O. A técnica pianística numa abordagem científica. 1991. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo.

BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.

_______. L´illusion biographique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris,

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ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

ESPERIDIÃO, N. Conservatórios: currículos e programas sob novas diretrizes. 2003. Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, São Paulo.

FUCCI AMATO, R. C. Um estudo sobre a rede de configurações sócio-culturais do corpo docente e discente de um conservatório musical. Ictus, Salvador, n. 6, p. 29-40, dez. 2005.

_______. Anexo B: Entrevistas. In: _______. Memória Musical de São Carlos: retratos de um conservatório. 2004. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. p. 210-301.

HELFFER, C.; MICHAUD-PRADEILLES, C. O piano. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2003.

LEITE, E. R. Magdalena Tagliaferro: testemunha de seu tempo. 1999. v. 1. Tese (Doutorado em Comunicação) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo.

MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

RAMALHO, Georgina Maria Charpinel Gama. Afinando o piano: um estudo sobre o caráter criativo ou reprodutivo na formação do músico. 1995. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

Rita de Cássia Fucci Amato – Doutora e mestra em Educação pela UFSCar, especialista em Fonoaudiologia pela EPM/ UNIFESP e bacharel em Música com habilitação em Regência pela UNICAMP. Teve a sua dissertação (“Santo Agostinho: ‘De Musica’”) financiada pela CAPES e a sua tese (“Memória musical de São Carlos: Retratos de um Conservatório”) pela FAPESP. Aperfeiçoou-se com Lutero Rodrigues (regência) e Leilah Farah (canto lírico). Estudou piano com Antonio Munhoz, Antonio Bezzan e Amilcar Zani. É professora da Faculdade de Música Carlos Gomes.