MÚSICA, TEMPORALIDADE E FILOSOFIA EM ADORNO

MUSIC, TEMPORALITY AND PHILOSOPHY IN ADORNO

Igor Baggio (UNESP)

igor_baggio@hotmail.com

Resumo: Este texto visa salientar alguns pontos em comum que a reflexão de Adorno sobre a música guarda para com o projeto filosófico contido na Dialética negativa. Através da discussão de alguns conceitos musicais como variação em desenvolvimento, material musical e idéia musical, que Adorno toma de Schönberg, será efetuado um cruzamento entre os mesmos e algumas noções características ao modelo adorniano de dialética. Por fim, pretende-se sustentar que a experiência filosófica de Adorno, contida principalmente na Dialética negativa, só pode ser propriamente compreendida se interpretada levando-se em conta algumas discussões fomentadas pelo filósofo em relação à experiência da temporalidade constituinte da música de Beethoven e daquela da segunda escola de Viena. Palavras-chaves: Música moderna; Variação em desenvolvimento; Temporalidade; Dialética negativa; Filosofia crítica.

Abstract: This paper aim is to point out some common issues in Adorno’s reflections about music and the Negative Dialectic philosophical project. Trough the discussion of some musical concepts like developing variation, music material and musical idea, all Schönberg’s concepts, it will be done a discussion in parallel between these concepts and some notions characteristics to the Adorno’s model of dialectics. Finally, it will be sustained that the philosophical experience proper to Adorno and presented principally in Negative Dialectics can be properly understood only if interpreted in relation with some Adorno’s discussions about the temporality experience contained in the music of Beethoven and in that of the second viennense school. Keywords: Modern music; Developing variation; Negative dialectics; Temporality; Critic philosophy.

A relação entre música e filosofia foi, para Adorno, sempre uma relação de complementaridade e de determinação mútua. Quando do momento fatídico em que surge o questionamento sobre a possibilidade de uma filosofia após Auschwitz, o filósofo não vê outra saída senão a que se opõe a todo modelo anterior de filosofia que tivesse se constituído enquanto positividade sistêmica. Buscando no impulso mimético, presente na arte, a possibilidade de uma prelação objetiva no campo da teoria do conhecimento, Adorno advogará a favor da noção de que a filosofia precisaria ser composta (ADORNO, 2005, p. 42), tal qual uma composição musical. Por sua vez, a música deveria se constituir enquanto instância cognitiva e crítica. A tarefa filosófica presente na Dialética negativa, que consiste numa tentativa de se repensar a relação entre sujeito e objeto tendo em vista uma racionalidade crítica e autônoma, só pode ser propriamente entendida ao se lançar luz sobre esse modelo cognitivo híbrido constituído entre música e filosofia. Obviamente, Adorno não pensa em termos de uma “pseudo-morfose” entre música e filosofia, idéia criticada por ele como algo que desembocaria numa mera estetização da filosofia e que consistiria, a seu ver, apenas uma outra maneira de escapismo filosófico. Trata-se sim é de se reavaliar, em paralelo, a dialética entre forma e conteúdo, tanto no âmbito da construção do pensamento filosófico quanto no da criação artística. Assim, em seu ensaio de 1953, Sobre a relação contemporânea entre filosofia e música lê-se: “(...) uma análise do status atual da música em si deveria ser tão produtivo para um insight filosófico como, inversamente, a reflexão filosófica é inseparável da situação contemporânea da música” (ADORNO, 2002, p. 148).

Para se ter uma idéia mais concreta da constelação que Adorno visa colocar em movimento ao pensar a relação entre esses dois campos distintos, porém próximos do saber, examinemos por um momento a crítica aos projetos com perspectivas ontológicas que o filósofo lança mão, tanto no contexto da reflexão sobre a música, quanto naquele referente à filosofia de sua época. No ensaio citado acima, Sobre a relação contemporânea entre filosofia e música, Adorno questiona o reducionismo, o abstracionismo e a inevitável tautologia em que essas reflexões se enredam ao tentar isolar a essência da música enquanto algo não mediado historicamente. A seguinte passagem, do ensaio em questão, nos dará subsídios para compararmos a crítica feita por Adorno aos projetos ontológicos tanto no campo musical quanto no filosófico.

Se de fato a música, na observação de Schönberg, diz algo que pode ser dito apenas através da música, então ela assume como resultado uma qualidade que é ao mesmo tempo incompreensível e enfaticamente contingente. Nós iríamos ter que perguntar se inquirir sobre a raison d’être de qualquer coisa que é uma imagem e não realidade não nos levaria ao vazio; a arte como um todo se torna provavelmente não receptiva a esse contexto de explanações imanentes às quais perguntam a tudo o quanto existe para que mostre seu passaporte, o qual é nenhum outro que aquela mesma raison d’être. No final, é a raison d’être de cada arte estar indisponível para qualquer raison d’être, isto é, para a justificativa de sua própria existência de acordo com critérios de auto-preservação, não importando o quão altamente sublimado estes possam estar. (ADORNO, 2002, p. 138)

Na passagem acima citada, a inefabilidade da essência do ser musical enquanto algo ontológicamente posto se configura, assim, como um vazio que proíbe qualquer tentativa de explicação positiva quanto ao sentido dessa mesma essência tomada de maneira abstrata. No âmbito da filosofia, esse é exatamente o mesmo problema que Adorno aponta como presente na ontologia fundamental do ser heideggeriana, ponto de discussão preliminar no interior da obra Dialética negativa. O conteúdo e a forma da crítica dispensada ao discurso tautológico que resultaria dessa filosofia, é muito semelhante com o da citação acima. Adorno critica a ontologia de Heidegger, argumentando em torno da idéia de uma pretensão encantatória que o verbo Ser performaria no interior do discurso heideggeriano, pretensão esta que visaria substituir os possíveis sentidos da categoria ser pelo da palavra ser. Essa manobra que Adorno vê, ao longo da obra de Heidegger, é qualificada por aquele como uma tentativa de se fundar uma ontologia do ente (ADORNO, 2005, p. 119-122). Manobra que, no entender de Adorno, direciona a filosofia de Heidegger em direção à mitologia e à ideologia enquanto instâncias meramente afirmativas do contexto social heterônomo. É interessante a semelhança do teor dessa crítica com aquela efetuada por Adorno em alguns momentos tendo em vista os procedimentos composicionais de Stravinsky. Com uma construção amplamente amparada na repetição de células rítmicas em forma de ostinatos e na afirmação reiterada de fragmentos melódicos de caráter exóticos, obras como a Sagração da Primavera parecem ser entendidas por Adorno como versões musicais do projeto filosófico presente em Ser e tempo. Em ambos os casos

o sacrifício do sujeito enquanto instância auto-reflexiva é interpretado por Adorno como sendo tematizado de maneira aberta e afirmativa.

O que está em jogo na crítica às ontologias, tanto musicais quanto filosóficas é a qualidade do conteúdo temporal próprio às experiências filosóficas e estéticas em questão. Para contrapor o estatismo constitutivo de tais perspectivas ontologizantes, Adorno procura na música da tradição clássica austro-germânica um modelo cognitivo de caráter dialético a ser pensado juntamente com as categorias da Ciência da lógica de Hegel de maneira mutuamente determinante. Um dos frutos dessa tentativa adorniana, em pensar simultaneamente uma dialética no interior das formas musicais e no interior do discurso filosófico, são os fragmentos publicados postumamente sob o título Beethoven e a filosofia da música. Ali fica claro o quão importante se torna o tipo de experiência de constituição e dissolução temporal próprios à música de Beethoven, com seus princípios de manipulação motívica amparados em procedimentos de variação e de desenvolvimento, como uma instância modelar para Adorno no que diz respeito à construção de sua dialética negativa. A figura dialética da negação, por exemplo, é rastreada no interior das composições de Beethoven e descrita da seguinte forma:

[Em Beethoven] o conceito de negação como aquele que empurra o processo adiante pode ser precisamente compreendido. Ele envolve um deter-se de linhas melódicas antes que elas tenham evoluído em direção a algo completo e terminado, de maneira a impeli-las em direção à próxima figura. (ADORNO, 1998, p. 19)

Um pouco mais adiante, no mesmo texto podemos ler que: “Uma forma – a forma? – da negação em música é a obstrução, onde a progressão emperra” (ADORNO, 1998, p. 19). Em uma nota ao pé da página Adorno acrescenta que outra forma de negação na música seria a interrupção, que geraria descontinuidade. Ora, desde A atualidade da filosofia, primeira tentativa do autor de elaborar o seu projeto filosófico, a tarefa que Adorno se coloca em relação à dialética poderia ser propriamente descrita como o desenvolvimento desta em termos de uma dialética da obstrução, da interrupção e da descontinuidade.

A figura da não-identidade e, portanto a da negação, sobre a qual tal tarefa filosófica estará fundada norteará o sentido de uma ainda possível transcendência, vislumbrada por Adorno resultando do processo de constituição de uma dialética negativa junto à experiência filosófica. A não-identidade entre sujeito e objeto, ou, colocado de outra maneira, entre o conceito e a coisa terá que se apoiar em um recurso às artes tomadas como modelos de uma racionalidade informal que, contudo, opera a partir de construções de constelações materiais. Daí emergirá a diferença fundamental entre racionalização e formalização, ou construção, que será fundamental tanto para o modelo adorniano de dialética quanto para o entendimento do caráter próprio à aparência do discurso que visa dar conta desse modelo. Essa proposta coloca-se para Adorno como a possibilidade de uma filosofia auto-reflexiva, baseada nos problemas filosóficos herdados da tradição, sendo esses apreciados enquanto materiais que se põem resistindo ainda a uma meta-crítica. Por isso mesmo, retroativamente, a dialética hegeliana terá que ser purificada de seu caráter afirmativo via uma nova confrontação com Kant, bem como com Freud. Da mesma forma,

  1. o materialismo vulgar precisará ser purificado via uma confrontação com
  2. o real, que se mostra em Adorno enquanto uma constelação de objetos essencialmente fragmentada e contingente.

No âmbito da história da música, a não-identidade entre sujeito e objeto será interpretada por Adorno como uma não identidade entre forma e conteúdo. O filósofo situará o ponto no qual entende que a dissolução das normas formais, aceitas tacitamente pelos compositores do passado como algo dado, começa a se transformar a partir da irrupção do primado da expressão e da reflexão subjetivas enquanto momentos constitutivos das obras. Esse ponto da história da técnica musical determinará para Adorno a natureza do seu conceito de material musical e está claramente delimitado na seguinte passagem da Filosofia da nova música:

O passo da organização musical à subjetividade autônoma realizou-se graças ao princípio técnico do desenvolvimento. No início do século XVIII, o desenvolvimento constituía uma pequena parte da sonata. A dinâmica e a exaltação subjetiva cimentavam-se nos temas expostos uma vez e aceitos como existentes. Mas com Beethoven o desenvolvimento, a reflexão subjetiva do tema, que decide a sorte daquele, converte-se no centro de toda a forma. Justifica a forma, mesmo quando esta segue preestabelecida como convenção, já que volta a criá-la espontaneamente. Auxilia-o um meio mais antigo que, por assim dizer, havia ficado para trás e somente numa fase mais tardia revelou suas possibilidades latentes; frequentemente na música ocorre de resíduos do passado chegarem ao estado atual da técnica. E aqui o desenvolvimento se lembra da variação, (ADORNO, 1974, p. 51)

Com Beethoven a prioridade do desenvolvimento frente à mera variação dos motivos musicais passa a constituir o lócus da expressão subjetiva autônoma dos compositores, ao mesmo tempo em que dá início ao movimento de dissolução dos esquemas formais tradicionalmente aceitos até aquele momento, estabelecendo assim, de uma vez por todas, a não-identidade entre forma e conteúdo musical enquanto progresso técnico, na medida em que possibilitava, a partir de então, uma maior autoconsciência por parte dos compositores em relação aos seus procedimentos criativos tomados como meios de produção. No momento historicamente avançado, no qual se encontra Adorno, em relação aos meios de produção estéticos, a música da segunda escola de Viena despontará como a que trabalha com

o material musical historicamente mais avançado, justamente por incorporar de maneira crítica a herança advinda do estado de coisas descrito na citação acima. O termo cunhado por Schönberg de developing variations (variação em desenvolvimento) e utilizado por este para descrever o procedimento composicional característico principalmente da música de Brahms, mas que remonta à ruptura frente aos modelos formais clássicos em Beethoven descrita na citação acima, aparece nos escritos de Adorno sobre música como o meio pelo qual a consciência dos compositores alemães, em relação às suas forças de produção, se colocou à frente na história em relação aos seus colegas franceses. Esse argumento é central para todo o desenvolvimento posterior da reflexão filosófica de Adorno sobre a música. Toda a idéia de uma estética musical que se pretende materialista dependerá do sucesso argumentativo em torno dessa questão. Da mesma maneira, toda a concepção da natureza da dimensão temporal inerente à música em sua essência enquanto uma forma de linguagem dependerá de tal conceito.

No que diz respeito às possibilidades de uma filosofia meta-crítica, essa deve, segundo Adorno, assumir a herança herdada da tradição filosófica do idealismo alemão, transformando-a. Tal modelo de filosofia deve pensar a sua relação com o passado como fizera à música de Schönberg, isto é, assumindo a essência temporal própria ao seu discurso e passando a encarar o seu conteúdo como um material historicamente determinado e não mais como algo incondicionado e disponibilizado simplesmente a partir da criação de novas categorias. É por isso que Adorno pensa em partir da tradição filosófica para se colocar posteriormente contra ela. Assim, os projetos filosóficos que imaginariam poder dar um salto por sobre a história e por sobre as determinações desta em relação aos seus conteúdos, em direção a um estado anterior de proximidade entre homem e natureza, ou entre homem e sociedade, estariam, na realidade, caminhando em direção a sua própria impossibilidade enquanto filosofia. A seguinte passagem da Dialética negativa está concebida segundo essas idéias.

A historicidade interna do pensamento é inseparável do conteúdo deste e por tanto da tradição. Do contrário, o sujeito puro, perfeitamente sublimado, seria o absolutamente desprovido de tradição. Um conhecimento que satisfizesse por completo ao ídolo dessa pureza, a atemporalidade total, coincidiria com a lógica formal, seria tautologia; nem sequer haveria já lugar para uma lógica transcendental. A atemporalidade a que a consciência burguesa, talvez como compensação de sua própria mortalidade, aspira é o cúmulo da sua obcecação. (ADORNO, 2005, p. 60)

Tal atemporalidade, que Adorno atribui à consciência burguesa, faz eco às reflexões de Lukács em História e consciência de classe. A partir da incorporação dos mecanismos objetivos próprios à divisão do trabalho, no mundo capitalista, ao nível da consciência subjetiva, o elemento temporal constituinte dessa se vê transfigurado em um vazio espacial preenchido por momentos fragmentários de natureza objetiva como aqueles, o que impede a constituição de uma consciência subjetiva verdadeiramente autônoma. Essa pseudo-morfose (termo muitas vezes utilizado por Adorno para se referir à inversão de qualidades entre fenômenos diferentes) do tempo em espaço é tematizada numa passagem da obra de Lukács aonde este cita e comenta Marx nos seguintes termos:

O tempo perde assim o seu caráter qualitativo, mutável, fluído: fixa-se num continuum exatamente delimitado, quantitativamente mensurável, cheio de “coisas” quantitativamente mensuráveis (os “trabalhos realizados” pelo trabalhador, reificados, mecanicamente objetivados, separados com precisão do conjunto da personalidade humana) num espaço. (LUCÁKS, 1974, p. 104)

A reificação da dimensão temporal no interior da consciência dos sujeitos é investigada por Adorno enquanto manifestando-se no próprio mecanismo identificador necessário às formações de conceitos. O momento de identidade necessário a toda operação cognitiva se transforma assim, para o filósofo, em uma “proto-forma de ideologia” (ADORNO, 2005,

p. 144) quando não reconhece seu momento contrário, a não-identidade, como necessário. No tocante à música, Adorno identificará exatamente

o tipo de fenômeno descrito por Lukács manifestando-se como elemento maior da construção musical de Debussy e Stravinsky, ao mesmo tempo em que começa a interpretar a música da segunda escola de Viena, composta sob o princípio da variação em desenvolvimento, enquanto uma espécie de auto-crítica e antídoto do mesmo fenômeno.

Claro está, na Dialética negativa, que Adorno não pode e nem visa descartar o momento da identidade do interior do seu modelo cognitivo. A guinada pretendida se estabelece como uma manobra que parte dos momentos de identidade em direção a um procedimento sintético dos mesmos concebido agora de maneira qualitativamente diversa. Adorno visa ilustrar, por meio da noção de síntese por constelações, um mecanismo diverso daquele da síntese entre conceitos por meio da figura da identida-de entre sujeito e objeto. Essa última faria violência ao objeto na medida em que, ao impor uma identidade deste em relação ao sujeito, deixa de fora da equação justamente a diferença qualitativa que faz do objeto o que ele é, contentando-se com a mera repetição do sujeito. O conhecimento do objeto, nesse caso, nada mais seria que o conhecimento das próprias faculdades lógicas inerentes ao sujeito. Como opção, a síntese não-violenta que Adorno tem em mente só será possível se concebida nos mesmos termos aos de uma síntese estética, ativa por parte do sujeito e que não abdica da qualidade material própria aos objetos. Em um ensaio de 1934 intitulado O compositor dialético, Adorno descreve a relação de Schönberg com o material musical nos seguintes termos:

Em Schönberg a contradição entre rigorosidade e liberdade não resta já superada no milagre da forma. Essa contradição se transforma em energia produtiva; a obra não transmuta a contradição em harmonia, de maneira que uma vez e outra volta a evocar, para outorgar-lhe duração, a imagem da contradição, em traços cheios de rugas cruéis: “Fragmento, como tudo” (...). (ADORNO, 1985, p. 52)

É justamente essa “energia produtiva” proveniente das contradições reais, externas ao pensar filosófico, que Adorno parece pretender resgatar em sua filosofia. No trecho acima citado, a palavra harmonia é interpretada como a figura da identidade entre forma e conteúdo que é rechaçada por Schönberg. No momento histórico de então, ao sujeito do compositor não seria mais lícito tomar a contradição em um nível puramente subjetivo, rapidamente resolvendo-a através da síntese lógica e formal; a postura responsável de Schönberg, em relação ao material musical, configura-se no momento em que o compositor assume a contradição como algo real, objetivo, não subsumindo esta no interior de um pensamento meramente ordenador. A presença de um substrato social heterônomo, no interior do conteúdo do material estético, impediria que artistas autônomos afirmassem tal heteronomia como sendo a natureza em si da obra, exigindo, por outro lado, um desdobramento do conteúdo heterônomo através de processos composicionais dinâmicos e auto-reflexivos em direção ao estabelecimento de obras verdadeiramente autônomas. Os choques e as contradições materiais próprias ao real não são resolvidas, porém, seriam incorporados de maneira crítica pelas peças musicais aforismáticas do período expressionista.

Como dito anteriormente, a dialética negativa de Adorno não visa ignorar o momento reservado à identidade no movimento conceitual, mas sim estabelecer uma relação deste com seu momento outro, ou seja, com o não-idêntico. Dessa forma, lê-se o seguinte na segunda parte da Dialética negativa:

Com sua crítica, a identidade não desaparece; muda qualitativamente. Nela vivem elementos da afinidade do objeto com seu pensamento. É hibris que a identidade exista, que a coisa se corresponda com seu conceito. Mas seu ideal não haveria simplesmente que desprezá-lo: na recusa de que a coisa não é idêntica ao seu conceito vive também o anseio deste de que possa chegar a sê-lo. (ADORNO, 2005, p. 145)

Essa afinidade do objeto com o conceito é vislumbrada por Adorno como uma afinidade de caráter mimético passível de ser instaurada junto aos processos de identificação conceitual. Nesse sentido, uma possibilidade de transcendência cognitiva é vislumbrada por Adorno partindo-se do plano de imanência referente aos mecanismos identificadores mesmos. Uma transcendência na imanência ou, colocado de outra forma, uma não-identidade na identidade. Com essa concepção do momento transcendental a ser instalado no interior mesmo do pensar, alcançamos o âmago da problemática concernente à qualidade da transcendência ainda possível de ser tematizada pela filosofia no contexto histórico pós-metafísico.

O conceito positivo de razão, que Adorno tem em mente, implica em uma teoria da linguagem capaz de traduzi-lo adequadamente. Assim como na arte, o momento da expressão material próprio à linguagem torna-se central para o projeto filosófico adorniano. Será a partir desse nível de imanência lingüística que a lógica da dissolução em forma de constelações se apresentará como possibilidade de transfiguração da consciência reificada, em outra emancipada. A dialética entre essência e aparência se vê, assim, pendendo para o lado da aparência como forma de liberação das essências dos conteúdos objetivos. Isso é descrito na Dialética negativa como uma salvação do momento retórico no interior do discurso filosófico. Para Adorno só dessa forma a filosofia conseguiria legitimar a sua pretensão em alcançar os conteúdos mesmos presentes nos fenômenos. A relação mimética que esse tipo de discurso filosófico guardaria para com seus objetos constitui o elemento utópico presente no argumento adorniano.

Adorno resgatará, também, esse momento retórico do interior das formas estéticas. A categoria da expressão própria ao discurso estético se vê, dessa forma, incorporada junto à teoria do conhecimento. Adorno apostará no equilíbrio entre o momento lógico-formal e o momento transcendental próprio à experiência estética, como ponto central para a constituição do seu anti-sistema. Assim como na música radical, reivindicada por Adorno ao longo de quase toda a sua vida, o elemento expressivo era entendido como o núcleo a partir do qual se articularia a concepção formal; na filosofia pretendida pela Dialética negativa, torna-se igualmente central essa relação de não-identidade entre os momentos expressivos e formais. Apesar de não-idênticos os momentos expressivos e formais serão entendidos por Adorno como mutuamente determinados.

A liberdade da filosofia não é nada mais que a capacidade para contribuir a dar voz a sua falta de liberdade. Se o momento expressivo aspira a mais, degenera em concepção de mundo; quando renuncia ao momento expressivo e ao dever de exposição, se assimila à ciência. Expressão e rigor não são para ela possibilidades dicotômicas. Necessitam-se mutuamente, nenhuma é sem a outra (ADORNO, 2005, p. 28)

A mesma idéia de uma passagem do momento conceitual da identidade próprio ao sujeito em direção ao momento material não-idêntico próprio ao objeto também pode ser encontrada descrita de maneira mais concreta na Filosofia da nova música, justamente em relação à noção de variação em desenvolvimento. Nesse contexto, ao sujeito do compositor é facultado vislumbrar uma possibilidade de ultrapassar a relação reificada com seu objeto, o tempo, através de uma auto-reflexão da dimensão temporal imanente à obra via o procedimento da variação enquanto forma de desenvolvimento.

A variação se dinamiza, mesmo quando conserva não obstante idêntico o material que lhe serve de ponto de partida, o que Schönberg chama “modelo”. Tudo é sempre “o mesmo”. Mas o sentido desta identidade se reflete como não-identidade. O material que serve como ponto de partida está feito de tal maneira que conservá-lo significa ao mesmo tempo modificá-lo. Esse material não é em si, mas é somente em relação com as possibilidades do todo. A fidelidade às exigências impostas pelo tema significa que também este se modifica profundamente a todo momento. Em virtude desta não-identidade da identidade, a música readquire uma relação absolutamente nova com o tempo em que se desenvolve cada vez. O tempo já não lhe é indiferente, porque na música não se repete segundo o seu capricho, mas se transforma continuamente. E, por outro lado, já não é escrava do tempo entendido como mera entidade, porque nestas modificações se mantém idêntica (ADORNO, 1974, p. 51)

Se Adorno ouvia na música de Beethoven um símile muito forte da dialética hegeliana, é no tipo de relação com o material herdado da tradição musical própria a Schönberg que o filósofo vai ouvir o seu próprio modelo de dialética. No que diz respeito aos procedimentos composicionais e aos caracteres expressivos característicos da música burguesa do passado, Schönberg manteria a mesma postura que Adorno pretende manter em relação ao material conceitual e significativo herdado do idealismo alemão. As figuras da totalidade e do absoluto, tão importantes tanto para a música de Beethoven quanto para a filosofia de Hegel são substituídas, em Schönberg e em Adorno, pelas figuras do fragmento e do contingente. Para Adorno, a relação ambivalente que a música de Schönberg mantinha em relação ao sistema tonal, entendido em sua segunda natureza como uma espécie de linguagem, será a mesma que o filósofo manterá para com a linguagem filosófica reificada advinda dos sistemas idealistas. Enquanto Schönberg se utilizava do procedimento da variação em desenvolvimento para colocar em movimento os gestos petrificados da tradição, Adorno, em sua concepção da dialética irá efetuar o mesmo via sua construção sintética por constelações. A noção de uma filosofia composta surge nesse momento do argumento de Adorno de maneira explícita.

Mas com as composições em questão poderia suceder algo parecido ao que sucede com seu análogo, as musicais. Subjetivamente produzidas, estas só são alcançadas ali aonde a produção subjetiva desaparece nelas. O contexto que esta cria – precisamente a “constelação” – se faz legível como signo da objetividade: do conteúdo espiritual. O semelhante à escritura de tais constelações é a conversão em objetividade, graças à linguagem, do subjetivamente pensado e juntado. (ADORNO, 2005, p. 159)

Adorno fala com conhecimento de causa, já que se dedicou seriamente à composição musical no período entre 1925 e o final da década de quarenta. Justamente o período aonde o filósofo-compositor se dedica a pôr em prática, em seus ensaios filosóficos, o procedimento de construção de constelações. É assim que Buck-Morss (1979) pode afirmar:

Adorno não escrevia ensaios, ele os compunha, e ele era um virtuoso no instrumento dialético. Suas composições verbais expressam uma “idéia” através de uma seqüência de reversões e inversões dialéticas. As frases desenvolvem-se como temas musicais: eles quebram-se, se-parando-se e dobram-se de volta para si em um espiral de variações contínuas. (p. 101)

Outro conceito schönberguiano que Adorno pode ter levado em conta para suas reflexões sobre a dialética é o de Musikalische Gedanke (idéia musical). Nos escritos de Schönberg, esse conceito aparece designando noções diferentes, acabando por tomar um caráter obscuro em alguns momentos. Mas o que se pode depreender com segurança, dessa que é sem dúvida a principal noção teórica no âmbito da composição musical para Schönberg, é justamente a não-identidade que tal idéia musical guardava para com a composição musical nela baseada. Mais do que a totalidade da aparência da obra terminada, esse conceito possui ao longo dos escritos teóricos de Schönberg um papel transcendental inegável (COVACH, 1992,

p. 103-118). De qualquer forma, isso é importante aqui, na medida em que a “idéia” de cada ensaio de Adorno também possui um caráter transcendental que é concebido por Adorno sob o signo de uma totalidade perdida, e que não é apreendida enquanto aparência de totalidade no próprio ensaio filosófico que visa dar conta dela. Para que a verdade dessa “idéia” eminentemente fragmentária possa emergir, torna-se necessária uma reconstrução mimética da mesma, através das construções conceituais e, principalmente, de uma posterior decifração dessas constelações via uma re-construção ativa por parte do sujeito. A possibilidade de se captar a essência daquela realidade a partir de um suporte discursivo mostra-se aqui como aquela transcendência na imanência tematizada acima. Tal transcendência, como não podia deixar de ser, guarda muitas semelhanças com o tipo de transcendência estética discutida por Adorno em seus escritos sobre arte e principalmente na Teoria estética.

As obras musicais do período expressionista de Schönberg, Berg e Webern eram interpretadas por Adorno como constituídas a partir de uma mediação mimética destas para com a lógica própria aos movimentos objetivos da realidade empírica. Isso possibilitava a essas obras introjetarem e transcenderem as contradições reais em sua forma de modo a estabelecerem em seu interior um conteúdo de verdade. A mesma possibilidade é vislumbrada por Adorno em relação à filosofia. Salvar a aparência do real no interior do discurso filosófico passa a se constituir na necessidade maior para um pensamento que se pretende materialista em sentido estrito. Já que o caráter positivo e meramente afirmativo da realidade está vetado ao discurso filosófico, resta a esse estabelecer como seu destino provisório um movimento de constituição e dissolução conceitual que guarda um parentesco muito íntimo com a forma de composição daquelas músicas idealizadas de acordo com o princípio da variação em desenvolvimento e brevemente discutidas ao longo deste texto. Nessas obras, o que estava em jogo para Adorno era justamente a dialética entre o sentido da forma e o sentido da expressão. Na filosofia, é essa dialética entre forma e expressão que possibilitará a Adorno argumentar em torno da junção materialismometafísica. A seguinte passagem do último capítulo da Dialética negativa ilustra o sentido híbrido característico do projeto meta-crítico que Adorno tem em mente como única possibilidade para que uma filosofia responsável continue a existir.

Nem sequer levada ao extremo é a negação da negação uma positividade. Kant chamou à dialética transcendental uma lógica da aparência: a doutrina das contradições em que forçosamente se enreda todo tratamento do transcendental como algo positivamente cognoscível. Não torna obsoleto seu veredicto o esforço de Hegel em vindicar a lógica da aparência como a da verdade. Mas a reflexão não se interrompe com o veredicto sobre a aparência. Consciente de si mesma, esta deixa de ser a antiga. O que a essência finita diz sobre a transcendência é a aparência desta, ainda que, como bem se preveniu Kant, uma aparência necessária. Daí a incomparável relevância metafísica que tem a salvação da aparência, objeto da estética. (ADORNO, 2005, p. 360)

A irredutibilidade do momento negativo, isto é, a não subsunção da negação da negação em uma positividade se transforma na marca maior do modelo dialético adorniano. Os signos referentes à coisa e ao algo são tomados por Adorno enquanto signos do real, a possibilidade de se salvar a aparência de um momento histórico marcado pelo horror do holocausto. Em meio à barbárie, a transcendência almeja à salvação da aparência; não como mera tarefa filosófica, mas sim como responsabilidade humana contra o esquecimento. Valorizar o objeto junto à experiência cognitiva significa para Adorno estabelecer uma nova possibilidade de sentido para as figuras da negatividade e do real. Essas apenas poderão ser entendidas propriamente, se tomadas enquanto momentos que almejam uma dimensão ética diversa do formalismo próprio ao imperativo categórico kantiano. É assim que Adorno pode afirmar no último capítulo da Dialética negativa: “Hitler impôs aos homens em estado de não-liberdade um novo imperativo categórico: orientar seu pensamento e sua ação de tal modo que Auschwitz não se repita, que não ocorra nada parecido” (ADORNO, 2005, p. 334).

Referências:

ADORNO, Theodor Wiesengrund. Beethoven: the philosophy of music. Trad. Edmund Jephcott. Stanford: Stanford University, 1998.

_______. Dialéctica negativa – La jerga de la autenticidad. Trad. Alfredo Brotons Muñoz. Madrid: Akal, 2005.

_______. El compositor dialéctico. In: _______. Improptus: serie de artículos musicales impressos de nuevo. Trad. Andrés Sánchez Pascual. Barcelona: Laia, 1985.

_______. Filosofia da nova música. Trad. Magda França. São Paulo: Perspectiva, 1974.

_______. On the contemporary relationship of philosophy and music. In: LEPPERT, Richard. (Org.). Essays on music. Trad. Susan H. Gillespie. Berkeley: University of California, 2002.

BUCK-MORSS, Susan. The origin of negative dialectics: Theodor W. Adorno, Walter Benjamin, and the Frankfurt institute. New York: The Free, 1979.

COVACH, John. Schönberg and the occult. Theory and practice: Journal of the music theory society of New York state, New York, n. 17, p. 103-118, 1992.

LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Trad. Telma Costa. Porto: Escorpião, 1974.

Igor Baggio – Bacharel em piano pela UFRGS e mestrando em musicologia na UNESP sob a orientação da Profa. Dra. Lia Tomás, onde desenvolve sua pesquisa que está centrada nos escritos sobre música de Theodor Adorno e nas composições deste autor para canto e piano (Lieder).