INTERDISCIPLINARIDADE: UMA PRIORIDADE PARA O ENSINO MUSICAL

INTERDISCIPLINARITY: A PRIORITY FOR MUSIC TEACHING

Sonia Albano de Lima (FMCG/UNESP)

soniaalbano@uol.com.br

Resumo:Trata-sedeumtextoteóricoemqueseprojeta:aconceituaçãodotermointerdisciplinaridade, a exposição breve de uma pretensa metodologia interdisciplinar, os pressupostos básicos para a realização de uma pesquisa e de um agir interdisciplinar e sua aplicabilidade no ensino musical. A fundamentação teórica da pesquisa encontra-se nos ensinamentos de Ivani Fazenda,

Y. Lenoir e G. Fourez, entre outros. Palavras-chave: Interdisciplinaridade; Ensino musical; Pesquisa.

Abstract: The present work is a theoretical text where the following aspects are described: the conceptualization of the term interdisciplinarity, a brief exposition of an alleged interdisciplinary methodology, the basic presuppositions for the carrying out of both a research and an interdisciplinary action as well as its applicability in music teaching. The theoretical foundation for the research can be found in the knowledge transmitted by Ivani Fazenda, Y. Lenoir and G. Fourez, among others. Keywords: Interdisciplinarity; Music teaching; Research.

A interdisciplinaridade consolida-se na ousadia da busca, de uma busca que é sempre pergunta, ou melhor, pesquisa. [...] Explicitar o movimento a partir das ações conduziu-nos a uma nova construção, não diria epistemológica, pois não parte do logos, do apenas refletido, mas, do ontológico que atinge o ethos da ação. Compreender os motivos que me conduzem à valorização de uma ação permitiu-me intuí-la, revelála e talvez superá-la.

Fazenda, 1994, p. 9-10

1. Definindo a interdisciplinaridade

Muito se tem dito sobre interdisciplinaridade na educação contemporânea, no entanto, o conceito ainda se mantém difuso, dando origem a inúmeros questionamentos, principalmente na área de música. Por ser a música uma arte multidisciplinar, os educadores musicais pressupõem sempre estar agindo sob bases interdisciplinares, o que muitas vezes não é real. Sendo assim, é importante que se tenha bem definido o significado da palavra interdisciplinaridade, o seu sentido para a educação, e qual a sua abrangência para o ensino e a pesquisa musical, a fim de que se possa fazer uso correto desse manancial, que dia-a-dia se integra à epistemologia contemporânea. Citando Maria Cândida Moraes:

Sabemos que fundamentos e bases teóricas claras são vitais tanto nos processos de macro como de micro-planejamento de programas e projetos educacionais. Uma base conceptual clara e competente, a respeito do que seja o processo de construção do conhecimento, permite uma reflexão multidimensional sobre a prática pedagógica, o desenvolvimento do espírito crítico, além de colaborar para o desenvolvimento de uma prática docente de caráter um pouco mais filosófico. Por outro lado, ajuda também a conceber a melhor forma de operacionalização dos projetos, cuja essência certamente se materializará na concepção dos aspectos psico-pedagógicos presentes nos processos de ensino e de aprendizagem. Qualquer projeto educacional, independente da área e do nível ao qual se destina ou da clientela a ser beneficiada, requer clareza epistemológica a respeito de como ocorre o processo de construção do conhecimento e a aprendizagem. (2003, p. 17)

Projeta-se para este artigo a conceituação do termo, a exposição breve de uma metodologia interdisciplinar e os pressupostos básicos para a realização de uma pesquisa e de um agir interdisciplinar. Apesar de se tratar de um texto teórico, ele alicerça as bases de um procedimento presente em todo processo educacional contemporâneo. Hoje, mais do que nunca, percebemos a necessidade de um ensino voltado para a formação integral da personalidade humana, para o desenvolvimento intelectual, psicológico, sócio-cultural e ecológico do homem. O mundo cada vez mais se apresenta complexo, desafiante, globalizado, com forte evolução tecnológica. Há, contudo, uma defasagem acentuada do ensino em relação às necessidades profissionais e culturais da sociedade. A fragmentação cognitiva fez nascer um caos sócio-político que inviabiliza um viver tranqüilo e saudável. Tudo parece estar à beira do caos, apesar da excessiva racionalidade presente na contemporaneidade. Há uma instabilidade geral tanto por parte das instituições, organizações, como também por parte do indivíduo. Assim, torna-se primordial rever os paradigmas epistemológicos atuais, criar novas ferramentas cognitivas para o aprendizado, capacitar o homem de forma que ele possa criar uma nova ética, um novo sentido de cidadania e coletividade:

Ao reconhecer que a aprendizagem resulta de mudanças estruturais que o organismo segue em congruência com as mudanças do meio, isto indica que o comportamento adequado envolve uma visão relacional de mudanças estruturais, implicando o que acontece nos dois sistemas e não apenas o que ocorrer em um deles. [...] estas teorias destacam que o processo de conhecer e de aprender são autopoiéticos que envolvem a totalidade do ser humano, implicando, portanto, o envolvimento de toda a corporeidade. Em especial, destaca o papel das emoções e dos sentimentos na maneira como as competências humanas evoluem, destacando, inclusive, as suas influências na qualidade das ações e reflexões, bem como na expressão do comportamento humano, (Moraes, 2003, p. 23)

Só diante desse quadro é que a educação poderá auxiliar o homem a se conciliar novamente com o mundo, contribuindo para a sua transmutação. São necessárias novas bases epistemológicas e é nesse momento histórico que surge a interdisciplinaridade, levando em consideração toda essa problemática. Ela não se assemelha em nada à multidisciplinaridade e muito menos a pluridisciplinaridade1. Ela na verdade, consubstancia-se como uma categoria de ação que tem como meta a transmutação humana para um viver futuro plausível em um mundo igualmente transmutado.

O conceito de interdisciplinaridade tem cerca de cem anos. Mesmo não sendo uma ciência, a interdisciplinaridade adveio de uma necessidade científica. Surgiu da compulsão de existir uma interação dinâmica entre as ciências. Veio substituir uma ordem hierárquica das ciências veiculada por Augusto Comte2, viabilizando a existência de sistemas funcionais de ação dentro de uma heterogeneidade científica. Era importante estabelecer uma seqüência organizada na comunicação do saber, partindo do centro das estruturas disciplinares para o seu entorno, cuidando de integrar e comunicar as disciplinas e de fazê-las mais conectadas com as necessidades sócio-culturais.

Para a obtenção de um aval epistemológico, a interdisciplinaridade levou em conta algumas prioridades, entre elas:

Re-explorar as fronteiras das disciplinas científicas e as zonas intermediárias existentes entre elas, cuidando de organizar os saberes científicos e as parcelas de contribuição de cada uma das disciplinas.
Integrar os saberes disciplinares e colocá-los de forma a contribuir nos processos de apreensão do real em constante mutação, resolvendo os problemas do mundo contemporâneo, caracterizado por uma extrema complexidade.
Inserir o ser humano no mundo de uma forma holística, não heliocêntrica e nem panteísta3.
Cuidar da atividade profissional cotidiana, o que fez da interdisciplinaridade uma categoria de ação, e não uma nova ciência.
Portadora de um sentido mais sociológico, ela deveria promover a integração social do saber aplicável, com a formulação de programas que articulariam o seu exercício.

A interdisciplinaridade intensamente presente na segunda metade do século XX, surge em uma sociedade complexa, que precisa resolver de forma satisfatória as exigências sociais, políticas e econômicas que se constituem em forças não científicas e transcendem a própria neutralidade científica, atuando em um mundo eminentemente técnico e dinâmico com

o compromisso de promover uma remodelação social.

Aos poucos o positivismo conduziu a humanidade para o engessamento epistemológico, impossibilitando a abertura de novos saberes, novas disciplinas. Era importante uma inter-relação dinâmica entre as disciplinas para a constituição de um novo sistema científico. Sob essa perspectiva, a interdisciplinaridade impõe-se pela exigência de se criar um outro método de análise do mundo, uma vez que as disciplinas isoladas não podiam mais responder satisfatoriamente aos problemas da sociedade contemporânea.

Sempre buscando o desenvolvimento integral do ser humano e sua melhor adequação na sociedade, a interdisciplinaridade contempla três vertentes básicas. A primeira prioriza os aspectos epistemológicos da questão, visa a construção de uma teoria interdisciplinar. Busca uma síntese conceitual, a unificação do saber científico, a super-ciência e promove uma reflexão cognitiva dos saberes disciplinares em interação. É chamada de interdisciplinaridade acadêmica, localizada mais intensamente na França e presente nas propostas científicas de Y. Lenoir e G. Fourez, entre outros.

A segunda vertente americana, identificada no pensamento de J. Klein, busca respostas operacionais para as questões sociais ou tecnológicas sob a perspectiva das proximidades instrumentais, requer uma saber imediatamente útil, promove uma pesquisa funcional. Se a primeira vertente está pautada em um princípio teórico, a segunda é de ordem instrumental, operacional. O comprometimento da primeira é com a pesquisa dos sentidos, da concepção, da compreensão que permite o reconhecimento dos saberes interdisciplinares. A segunda posiciona-se sobre as questões sociais empíricas, sobre a atividade instrumental.

A terceira posição, a brasileira, dirige-se para o professor introjetado na sua pessoa e no seu agir. Essa linha tem sido bastante enfocada pela pesquisadora Ivani Fazenda. Ela visa construir uma metodologia de trabalho educacional que se apóia na análise introspectiva da própria docência e das práticas de ensino, de maneira a permitir o ressurgimento de aspectos do ensino e da docência que ainda são desconhecidos. Na contemporaneidade é importante contarmos com um ser humano inclinado a analisar suas experiências e a maneira como essas experiências se apresentam no cotidiano escolar – daí sua aproximação com a fenomenologia. Essa aproximação fenomenológica coloca a crença na intencionalidade, na necessidade do auto-conhecimento, na inter-subjetividade e no diálogo escolar. Ela obriga o futuro professor ou o professor em exercício a se conhecer melhor e conhecer mais intensamente as suas práticas. Se a concepção francesa está orientada para o saber e a americana para o sujeito operacional, a brasileira concentra-se no ser humano que ensina.

Essas três vertentes se aplicadas isoladamente, descaracterizam uma ação interdisciplinar. Na verdade são caminhos a serem compartilhados em maior ou menor escala, priorizando sempre uma ação que busca o sentido, a função e a intencionalidade no objeto investigado.

A integração é, sem dúvida, um dos caminhos da interdisciplinaridade, mas não o único. Do ponto de vista educacional ela se processa quando dois ou mais componentes curriculares possibilitam a construção de conhecimento, permitindo uma mudança nos métodos de ensino e nas práticas pedagógicas, em uma perspectiva mais filosófica do que integrativa. Ela não se confunde com a multidisciplinaridade que se materializa e se esgota nas tentativas de trabalho conjunto entre disciplinas, onde cada uma trata de temas comuns sob sua própria ótica, articulando bibliografias, técnicas de ensino e procedimentos de avaliação. Na verdade, a multidisciplinaridade é uma justaposição de disciplinas. Não visa um projeto específico. Já, a integração teoria e prática de que trata a interdisciplinaridade refere-se à formação integral na perspectiva da totalidade. O pensamento crítico que inspira a discussão interdisciplinar leva ao aprofundamento da compreensão sobre essa relação, colocando como de fundamental importância, a definição da prática que se pretende relacionar à teoria.

Sob a ótica de Marília Freitas de Campos Pires (1998, p. 177) a interdisciplinaridade é mais do que a compatibilização de métodos e técnicas de ensino, é uma necessidade e um problema relacionado à realidade concreta, histórica e cultural, constituindo-se assim como um problema ético-político, econômico, cultural e epistemológico.

A interdisciplinaridade apareceu para promover a superação da super especialização e da desarticulação entre a teoria e a prática, como alternativa à disciplinaridade. Na educação ela se manifesta enquanto possibilidade de quebrar a rigidez dos compartimentos em que se encontram isoladas as disciplinas dos currículos escolares. Pires, reportando-se a Follari, diz que a interdisciplinaridade é uma etapa superior das disciplinas, disciplinas essas que se constituem como um recorte amplo do conhecimento de uma determinada área. É uma necessidade metodológica legítima e necessária. É a busca da integração para além da troca de informação sobre objetivos, conteúdos, procedimentos e compatibilização de bibliografia entre docentes, pois é uma tentativa de maior integração dos caminhos epistemológicos, da metodologia e da organização do ensino nas escolas.

Dessa forma, a idéia de integração e de totalidade que perpassa tanto o conceito de multidisciplinaridade quanto o de interdisciplinaridade tem referenciais teórico-filosóficos diferentes e inconciliáveis. A interdisciplinaridade possibilita conciliar conceitos pertencentes às diversas áreas do conhecimento com a finalidade de promover novos conhecimentos ou novas sub-áreas. Com o processo de especialização do saber perpetuado pelo cientificismo, a interdisciplinaridade foi uma resposta benéfica para a excessiva compartimentalização do conhecimento. Ela permite uma verdadeira remodelação epistemológica, tendo em vista o seu interesse em combater a fragmentação do conhecimento instaurada desde a revolução industrial e a necessidade de se introduzir no mercado, mão de obra especializada. A multidisciplinaridade não tem esse embasamento epistemológico, restando-lhe apenas a função de justapor conhecimentos.

A revisão histórico-crítica dos estudos sobre interdisciplinaridade realizada por Ivani Fazenda constata a inviabilidade de se construir uma única, absoluta e geral teoria da interdisciplinaridade. É importante explicitar as fases e as contradições próprias desse movimento, indicando as principais dicotomias que dele emergem e a forma como os estudos e as pesquisas sobre a interdisciplinaridade vêm enfrentando tais dicotomias (FAZENDA, 1994, p. 14). A educadora admite que a década de 1960 inaugura o início dos estudos sobre o assunto. Os teólogos e os fenomenólogos buscam encontrar um sentido mais humano para a Educação, não em oposição ao cartesianismo, mas como a busca de compreensão do humano em outros aspectos que não apenas os racionais. O sentido da palavra pronunciada, a necessidade de ouvir são questionamentos incorporados às pesquisas de Paulo Freire, Wittgenstein, Carnap, entre outros. Não obstante, Heidegger, Dilthey, Ricoeur, Gadamer trabalham com a hermenêutica recuperando o sentido do ser.

Na década de 1980, de uma antropologia filosófica passa-se para uma antropologia cultural. No Brasil, Darcy Ribeiro e Otávio Ianni buscam

o sentido de uma cultura brasileira, aquilo que nos constituiu enquanto povo. Gramsci e Marx revelam o sentido da história, a compreensão da Dialética como princípio e método. Piaget e Vigotsky orientam o construtivismo. A palavra é construída e desconstruída. Os fenomenólogos são isolados na academia, uma vez que as propostas de subjetividade foram consideradas de somenos importância. De uma filosofia da história presente em Georges Gusdorf, parte-se para a historicidade pessoal de Dominicé, Pineau, Nóvoa. Continua uma interdisciplinaridade voltada para o estudo da palavra. Nasce o pensamento complexo com Edgar Morin. Coloca-se em cheque o conceito de ciência, buscando-se o seu sentido humano sob o olhar de Gusdorf. Nega-se o quantitativo em razão do qualitativo.

Na década de 1990 já começa a se explorar a subjetividade sob o ponto de vista da reflexão com Foucault, Guatarri, Delleuze, entre outros. Ricoeur reifica a fenomenologia. Maturana e Varella estudam o sentido do ser a partir de sua própria natureza. Morin, Dussele, Freire ensaiam uma ética do existir. Ricoeur decifra símbolos e metáforas. Há uma releitura de Vigotsky, Freud e Jung. Caminha-se da leitura do eu para a leitura do nós. As histórias de vida não são mais caminhos, mas, suportes. A palavra é soberana. No Brasil, a década marca a possibilidade de explicitação de um projeto antropológico de educação em suas principais contradições (FAZENDA, 1994, p. 35).

2. Procedimentos metodológicos interdisciplinares

No tocante à metodologia, pressupõe-se, como nas demais ciências, que uma epistemologia interdisciplinar requereria um método próprio de investigação, uma diretriz metodológica. Entretanto, não existem métodos suficientemente padronizados ou disciplinados para serem utilizados concretamente e de modo prático na interdisciplinaridade. Gerard Fourez admite que a falta de um ensino da prática interdisciplinar impede a criação de uma metodologia interdisciplinar: “é necessário que a prática interdisciplinar torne-se uma disciplina que possa ser ensinada a todos, porém, ela é pouco ensinada, seja no nível secundário, seja nas universidades” (Fourez, 2000). Não bastasse essa afirmativa, Fazenda (2003, p. 5051) aponta vários obstáculos que impediram essa implantação: obstáculos epistemológicos, metodológicos, materiais e quanto à formação.

Na verdade, a implantação de uma metodologia interdisciplinar exige mudanças sociais profundas nas estruturas institucionais, psico-sociológicas e culturais. Seria necessária uma reforma estrutural do ensino, das disciplinas e do cotidiano escolar em função do sujeito que ela pretende formar. A transmissão do saber disciplinar deveria ser substituída por uma relação dialógica, onde todas as posições individuais deveriam ser respeitadas. Os espaços coletivos para essa prática também precisariam ser repensados. Portanto, é um processo de aplicação lenta, daí a importância dos registros, da memória retida, das histórias de vida, da documentação, dos programas de mestrado, do arquivo, das parcerias e das vivências.

Não obstante, essas reformas não poderiam ser implantadas sem uma reflexão filosófica. A filosofia consubstanciou-se o instrumento primordial para essa edificação. Só ela poderia conferir à interdisciplinaridade o caráter de totalidade coerente. Ela seria o elo que solidificaria todas as propostas epistemológicas e que superaria as dicotomias ensino/pesquisa, domínio real/domínio irreal, teoria/prática.

O filósofo não está ligado a nenhuma ciência em particular. Reflexivo, porque remonta à ação, afastando-se dela para apreendê-la em sua totalidade. O distanciamento da ação possibilita ao filósofo adquirir uma visão sintética da realidade. O não-comprometimento com as partes, o poder de análise reflexiva e síntese, característica da atitude filosófica, podem levar os integrantes do processo interdisciplinar a novas revelações e conseqüentes reformulações de seus objetivos. (Fazenda, 2003, p. 44)

Só com essa reflexão filosófica é que a interdisciplinaridade poderia se preocupar com a verdade do homem enquanto ser do mundo e não apenas com a integração de disciplinas, como faz a multidisciplinaridade e a pluridisciplinaridade. A filosofia conferiria à interdisciplinaridade a dialogicidade, a intersubjetividade, presentes na hermenêutica que procura a um só tempo interpretar, explicar e compreender o mundo. Diante disso, ela utilizaria a educação como uma excelente ferramenta, como a forma mais segura de compreender e modificar o mundo:

A proposta interdisciplinar é de revisão e não de reforma educacional e consolida-se numa proposta: reconduzir a educação ao seu verdadeiro papel de formação do cidadão [...] Uma proposta de interdisciplinaridade no ensino procura reconduzir o professor a sua dignidade de cidadão que age e decide, pois é na ação desse professor que se encontra a possibilidade da redefinição de novos pressupostos teóricos em Educação. Sediando seu saber, o educador poderá explicar, legitimar, negar e modificar a ação do Estado, condicionando sua ação aos impasses da sociedade contemporânea. (Fazenda, 2003, p. 64-65)

Além da dimensão filosófica, as dimensões sociológica e antropológica também precisariam ser estudadas na interdisciplinaridade de forma inter-relacionada, considerando o jogo de ambigüidades existentes entre os três patamares e a expectativa em superá-los.

Observa-se que ao invés de uma metodologia única, a interdisciplinaridade foi utilizando procedimentos metodológicos básicos. O primeiro deles é o discurso interdisciplinar com características ligadas a maiêutica4

exercício do dinamismo do perguntar e do questionar, mecanismo esse que se autoprocessa e se alimenta, por meio de perguntas que se sucedem em um elevado grau de compromisso com a elucidação do questionamento levantado. Essa dinâmica maiêutica progride e avança na solução do objeto a ser pesquisado, na direção do aprofundamento, do detalhamento e da abertura e transgride os procedimentos de direcionalidade e a busca imediata de resultados presentes nos questionamentos convencionais.

Outro procedimento interdisciplinar reside no reconhecimento das competências, incompetências, possibilidades e limites da própria disciplina e de seus agentes, no conhecimento e na valorização suficientes das demais disciplinas e dos que a sustentam. Daí a importância de indivíduos capacitados para a escolha da melhor forma e sentido da participação e, sobretudo, no reconhecimento da provisoriedade das posições assumi-das, no procedimento de questionar. Uma abordagem interdisciplinar não despreza a contribuição das disciplinas, ao contrário, ela apela aos saberes especializados, visando esclarecer a situação concreta e complexa a qual se encontra. O que caracteriza a abordagem interdisciplinar é a utilização metódica das contribuições das diversas disciplinas com a finalidade de conceitualizar as situações singulares, geralmente definidas por um contexto e projetos, ou seja, o bom uso das especialidades e dos saberes especializados (FOUREZ, 2000).

A liberdade científica que se alicerça no dialogo e na colaboração também se consubstancia em um procedimento interdisciplinar importante. Fundamenta-se no desejo de inovar, de criar, de ir além e se exercitar na arte de pesquisar, não objetivando apenas uma valorização técnico-produtiva ou material, mas possibilitando uma ascese humana, na qual se desenvolva a capacidade criativa de transformar a concreta realidade mundana e histórica em uma aquisição maior de educação em seu sentido lato, humanizante e liberadora do próprio sentido de ser-no-mundo.

Tais condutas interdisciplinares fazem da interdisciplinaridade um processo de capacitação de sujeitos interdisciplinares em contínua evolução e dão à educação um patamar diferenciado.

Diversamente de uma prática multidisciplinar ou disciplinar, a prática interdisciplinar nasce de uma vontade constituída e tem na dúvida, um componente básico da reflexão. Ela sempre busca suprir uma necessidade sócio-cultural. Essa busca pressupõe um fim almejado pelo homem e um engajamento com o processo produtivo. Nesse sentido, é importante que o sujeito da ação perceba-se como ser que acumulou experiências de vida e que observe as intenções que determinarão ou direcionarão o seu agir pessoal, particular, individual. Só assim ele terá condições de adquirir novas formas de perceber, conhecer e agir em outras determinantes. Essa atividade não pode ser realizada apenas pelo docente implicado. Ela deve contar com a intermediação de coordenadores pedagógicos, leituras adicionais, depoimentos de outras práticas e a participação dos membros integrantes do grupo, entre outros.

Por isso as trocas de experiências são fundamentais em um trabalho interdisciplinar - os registros, as recorrências, os fracassos. É uma prática comum a criação de projetos coletivos, com detalhamento, coerência e clareza para que as pessoas envolvidas sintam o desejo de se incorporar a ele. Esses projetos coletivos pressupõem a presença de projetos pessoais de vida no seu tempo e no seu espaço. À medida que eles se revelam ao grupo integram o inconsciente coletivo, para que o resultado colhido não se transforme em um simples gerador de opiniões, mas, um fundamento do saber. O diálogo constante entre a prática e a teoria, a dúvida como elemento formador, a pesquisa como propulsora do avanço cognitivo são metas interdisciplinares.

Em artigo publicado, Antonio Joaquim Severino aponta as causas pelas quais o ensino superior brasileiro vem se empobrecendo, apesar de ser priorizado pelas políticas públicas:

Tenho por hipótese que a principal causa, “intra-muros”, do fraco desempenho do processo de ensino/aprendizagem do ensino superior brasileiro parece ser mesmo uma enviesada concepção teórica e equivocada postura prática, em decorrência das quais pretende-se lidar com o conhecimento sem construí-lo efetivamente mediante uma atitude sistemática de pesquisa, a ser traduzida e realizada mediante procedimentos apoiados na competência técnico-científica.[...] é preciso ainda ter presente o papel intencional do conhecimento: única ferramenta dos homens para a construção do sentido de sua ação individual e coletiva. Mas mesmo para esta nova situação, impõe-se a exigência da educação. (Severino, 1996, 61-63)

Percebe-se então, que o sentido de um trabalho interdisciplinar está na sabedoria de aprender a intervir no mundo sem destruir o construído. A importância de rever o velho para torná-lo novo ou tornar novo o velho é outro procedimento interdisciplinar. Nos manuscritos de aula de Ivani Fazenda intitulado Cuidados na elaboração de princípios5 a autora aponta para a importância de olhar os fenômenos sob múltiplos enfoques, questionar e investigar conceitos, habituar-se ao exercício da ambigüidade. Para ela a lógica interdisciplinar é a da invenção, da descoberta, da pesquisa, da produção científica, gestada em um ato de vontade, em um desejo planejado, crivado de liberdade. Um professor acostumado à prática interdisciplinar, passa a identificar aspectos próprios do conhecimento do homem, percebe que a coisa a conhecer não se esgota nela mesma, vivencia a possibilidade de se deixar conduzir por outras dimensões que não apenas as concretas, ou racionais, privilegiando aspectos subjetivos do conhecimento humano. A aprendizagem interdisciplinar coloca em dúvida a racionalidade dos ensinos ou didáticas, analisa os processos, a afetividade, o efeito da força e a força dos efeitos, as dimensões sociais e institucionais, as estratégicas organizacionais, a articulação de saberes, toda e qualquer proposição que tenha a diversidade como princípio.

3. A pesquisa interdisciplinar

De posse desses procedimentos metodológicos, a interdisciplinaridade tem na pesquisa a sua maior aliada. Esta visa construir representações científicas precisas, utilizando os resultados das disciplinas. Enquanto a pesquisa disciplinar aborda as situações por meio da generalização construída do ponto de vista particular do paradigma disciplinar, a pesquisa interdisciplinar estuda cada situação em sua singularidade. A pesquisa interdisciplinar contém a marca registrada do pesquisador:

O exercício da marca registrada envolve uma viagem interior, um retrocesso no tempo, em que o autor ao tentar descrever a ação vivenciada em sua história de vida, identifica-se com seu próprio modo de ser no mundo, em que encontra sua própria metáfora interior. Assim, percebe-se pescador aquele que tece a rede, que a constrói, que sabe sobre sua função, sobre as formas e finalidade com que ela possa ser utilizada, tem muito claro o propósito com que será lançada e, principalmente, tem consciência do produto inusitado que possa pescar (bota ou peixe), e que por isso, sobretudo, sabe que sua tarefa consiste em aproveitar, transmutar tanto a “bota” em peixe, quanto o peixe em bota, desvelando o valor próprio, não exclusivo de cada um, e, portanto, interdisciplinarmente percebido. (Fazenda, 1994, 116)

A investigação interdisciplinar, diversamente de outros procedimentos de pesquisa, não se norteia nos métodos, mas nos vestígios. Daí

o trabalho deste pesquisador estar sempre voltado para a sua prática pedagógica. Na reflexão dessas práticas, ele busca a construção de um novo conhecimento, seja prático ou teórico:

[um] olhar interdisciplinarmente atento recupera a magia das práticas, a essência de seus movimentos, mas, sobretudo, induz-nos à outras superações, ou mesmo reformulações. Exercitar uma forma interdisciplinar de teorizar e praticar Educação, demanda, antes de mais nada,

o exercício de uma atitude ambígua. Tão habituados nos encontramos à ordem formal convencionalmente estabelecida, que nos incomodamos ao sermos desafiados a pensar a partir da desordem ou de novas ordens que direcionam provisórias e novas ordenações. O sentido de ambigüidade em seu exercício maior impele-nos ao mesmo tempo a encontrar o caos e a buscar a matriz de uma ordem, de uma idéia básica de organização. (Fazenda, manuscrito s/d)

É na pesquisa interdisciplinar que o cotidiano escolar pode ser transmutado. Ela exige dos seus participantes, uma filosofia de ação que viabiliza a troca, o diálogo, a transgressão consciente, a parceria, o desapego aos valores já superados, a inclusão de outros, de forma crítica e criativa.

Considerações finais

Finalizando o texto, resta-nos uma grande inquietação: Poderíamos integrar esses valores no processo de ensino/aprendizagem musical, considerando-se a música uma arte multidisciplinar? Teríamos como dirigir as nossas ações pedagógicas para resolver problemas filosóficos, sociológicos e antropológicos atinentes à área?

Isso parece provável, se pensarmos em um ensino musical que caminhe para um amplo processo de humanização. Não poderíamos falar de uma prática musical interdisciplinar que não pensasse a música sob essa ótica. Sendo assim, problemas importantes da sociedade passariam a gerir as pesquisas musicais interdisciplinares, quais sejam: a inclusão do ensino musical na formação integral do indivíduo; ensino musical voltado para todas as faixas etárias e sociais em seus diversos escalões e nas suas múltiplas aplicabilidades; a projeção de um ensino musical que considere de forma integrada, o trabalho, a sociedade e a cultura; o estudo comparativo de nossos saberes musicais com o saber musical de outras comunidades como um processo de valorização da nossa cultura; o ensino musical previsto nos projetos sociais; a análise e inclusão de parcerias direcionadas para o ensino musical; um olhar voltado para as práticas musicais como possibilidade de criação de novos conhecimentos na área; a análise atenta das relações entre a formação do professor e o contexto cultural em que ela intervém; o estudo atento do cotidiano escolar sob uma perspectiva de melhoria do ensino musical; a implantação da pesquisa em todos os setores de ensino musical como projeto social de produção de conhecimento, entre outros. Sob esse crivo, novos valores seriam agregados à pedagogia musical, trazendo modificações profundas para a área.

Notas:

1 Pluridisciplinaridade é a prática que consiste em examinar as perspectivas de diferentes disciplinas sobre uma questão geral, ligada a um contexto preciso sem ter como objetivo a construção da representação de uma situação precisa.

2 Filósofo francês (1798-1857), caracterizado pelo impulso que deu ao desenvolvimento de uma orientação cientificista do pensamento filosófico, atribuindo à constituição e ao processo da ciência positiva importância capital para o progresso de qualquer província do conhecimento.

3 Panteísmo – Doutrina segundo a qual Deus é real e o mundo é um conjunto de manifestações ou emanações. Deus é a soma de tudo quanto existe, ele é a natureza do mundo, identificando a causalidade divina com a causalidade natural. Holísmo – Uma variante da doutrina da evolução emergente, que consiste na inversão da hipótese mecanicista. Considera que os fenômenos biológicos não dependem dos fenômenos físico-químicos, mas ao contrário. Popper acredita que o holismo é a tendência dos historicistas em sustentar que o organismo social, assim como o biológico, é algo mais que a simples soma dos seus membros e é também algo mais que a simples soma das relações existentes entre os membros. A força holística tende a reunir em conjuntos cada vez mais abrangentes o que foi dissociado pela mente humana, criando progressivamente aquilo que chamamos de interdisciplinas (Weil et alium, 1993, p. 28)

4 In: Abbagnano, 2000, p. 637. Arte da parteira; em Teeteto de Platão, Sócrates compara seus ensinamentos a essa arte, porquanto consistem em dar à luz conhecimentos que se formam na mente de seus díscípulos: “Tenho isso em comum com as parteiras: sou estéril de sabedoria; e aquilo que há anos muitos censuram em mim, que interrogo os outros, mas nunca respondo por mim porque não tenho pensamentos sábios a expor, é censura justa”.

5 Manuscrito de sala de aula com 6 páginas, s/d, não publicado pela autora.

Referências:

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Sonia Albano de Lima – Diretora e coordenadora pedagógica dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação lato sensu em Música e Educação Musical da Faculdade de Música Carlos Gomes em São Paulo. É professora colaboradora do curso de Pós-Graduação em Música do IA-UNESP. Doutora em Comunicação e Semiótica, área de Artes - PUC-SP. Pós-graduada em práticas instrumentais e música de câmara (FMCG). Especialização em interpretação musical e música de câmara com Walter Bianchi (FMCG). Bacharel em Direito (USP). Autora de livros e artigos científicos em anais, revistas e mídia.