MUSICIAN-PROFESSOR: A COMPLEX MATTER
Scheilla Glaser
glaserscheilla@ig.com.br
Marisa Fonterrada
marisatrench@uol.com.br
Resumo: Este artigo tece considerações a respeito do ensino do piano e da formação do músico professor em São Paulo. Apresenta resultado de pesquisa concluída em 2005, que abordou
o assunto partindo de pressupostos pedagógicos contidos em cursos de música. A pesquisa foi fundamentada filosoficamente no Pensamento Sistêmico, segundo Vasconcellos (2002), e em Carl Rogers para o estudo do ensino centrado no aluno. A metodologia utilizada foi diferenciada para cada segmento da investigação, amparando-se na definição de método por Fachin (2002). Palavras-chave: Ensino do piano; Músico-professor; Carl Rogers; Aprendizagem significativa.
Abstract: The following article develops considerations of both piano teaching and the education of the music teacher in São Paulo, Brazil. It shows the results of a research concluded in 2005 that had as its starting point pedagogic assumptions present in music programs. The research was based on the theory of Systemic Thought, by Vasconcellos (2002) and on Carl Rogers’ study of the student-centered teaching. The methodology applied was particularized to each analyzed segment, using Fachin’s method definition (2002). Keywords: Piano teaching; Musician/teacher; Carl Rogers; Significant learning.
Este estudo foi desenvolvido no Instituto de Artes da UNESP, na linha de pesquisa: Abordagens históricas, estéticas e educacionais do processo de criação, transmissão e recepção da linguagem musical. A dissertação “Instrumentista & Professor: contribuições para uma reflexão acerca da pedagogia do piano e da formação do músico-professor” (GLASER, 2005) foi defendida em novembro de 2005.
O tema desta pesquisa partiu de observações preliminares a respeito do dia-a-dia do músico profissional e da sua experiência com a prática do ensino do instrumento na cidade de São Paulo. Questionamentos a respeito da formação do músico-instrumentista e das dificuldades em obter um tipo de formação completa, que prepare o músico para tocar e lecionar, foram companheiros de 20 anos de atividade profissional da pesquisadora e contribuíram para a escolha dos assuntos tratados neste estudo. Notou-se informalmente que, embora desejem realizar mudanças estruturais no processo de ensino-aprendizagem, boa parte dos músicos, apesar de bem intencionados não consegue efetivar essas mudanças porque continuam recaindo sobre os mesmos pressupostos pedagógicos utilizados nos cursos tradicionais, nos quais realizaram sua formação. Apresentam um discurso inovador, mas no cotidiano, a essência de sua prática permanece acorrentada a uma visão de ensino-aprendizagem há muito ultrapassada e em desacordo com a experiência que os alunos de música trazem da escola formal.
Haveria a necessidade de um curso preparatório para o professor de instrumento? A formação desse professor faz parte do curso de bacharelado em instrumento? É possível separar a figura desses dois profissionais
– instrumentista e professor? Para responder a essas questões, foi necessário encontrar dados que corroborassem a afirmação inicial de que é comum ao instrumentista profissional exercer regularmente a função de professor na cidade de São Paulo, embora não tenha sido preparado para isso durante a formação acadêmica.
O pensamento que move esta pesquisa considera o professor uma pessoa em sala de aula, capaz de desenvolver seu trabalho a partir de seu repertório interno, intelectual e emocional. Por isso, considera que suas concepções de ensino se manifestam em suas atitudes e em sua maneira de conduzir o relacionamento com o aluno no processo de ensino-aprendizagem. Como afirma Sulami Pereira Guedes, ao falar de professores: “Suas atitudes, a linha filosófica pela qual se orienta, a ideologia que professa, a corrente psicológica em que se apóia, tudo isso influencia em alto grau o processo educativo do qual faz parte” (GUEDES, 1978, p. 50).
O professor de instrumento musical é o músico instrumentista, embora sua formação no curso de Bacharelado seja direcionada exclusivamente para a execução musical. Neste curso, a grade curricular não costuma prever a inclusão de conteúdos pedagógicos em acordo com a situação profissional do futuro instrumentista-professor, como exemplifica Débora Nieri (2004) em seu estudo, ao falar das grades curriculares dos cursos de Bacharelado na cidade de São Paulo. Pela formação específica dirigida para a formação do músico executante, pelo pouco contato com outras áreas do conhecimento, como Pedagogia ou Psicologia, pela ausência de disciplinas voltadas ao ensino do instrumento e pela pouca bibliografia específica a respeito do assunto disponível no Brasil, é comum o músico ter dificuldades em complementar sua formação. Em São Paulo, não se encontram cursos específicos de pedagogia do instrumento e as opções mais acessíveis de complementação pedagógica na área musical não tratam especificamente do ensino do instrumento musical, sendo usualmente direcionadas para Educação Musical em geral.
Essas dificuldades são detectadas por muitas escolas de música, que pedem por mudanças e têm solicitado a seus professores de instrumento musical que adotem pressupostos pedagógicos diferentes daqueles que vivenciaram como alunos. No entanto, pela ausência de subsídios e informações que os levem a refletir a respeito da prática pedagógica de seu instrumento e das mudanças conceituais em termos de questões psicopedagógicas que os ajudem a compreender melhor o processo de ensino-aprendizagem, a tendência predominante continua a ser a reprodução do mesmo modelo de ensino que experenciaram quando alunos, conscientes ou não de estar procedendo desta maneira.
Com o intuito de refletir a respeito dessas questões e contribuir para a sua solução, elegeu-se como objetivo principal da pesquisa compreender a presença de concepções pedagógicas, suas relações conceituais e seus desdobramentos em estratégias presentes nos programas de ensino de algumas escolas, em especial nos seus cursos de piano, para, a partir desta compreensão, refletir acerca da necessidade ou não de o instrumentistaprofessor ter formação pedagógica. No caso de a pergunta ser respondida afirmativamente, outra questão, decorrente da primeira seria descobrir como ele poderia adquirir competência pedagógica.
Como metodologia adotada para atingir esse objetivo, foi realizado um estudo de programa de curso de piano, em duas etapas. Em primeiro lugar, buscou-se conhecer uma escola que adota o modelo de ensino conhecido como “tradicional” pelos pianistas. Em seguida, procurou-se a aproximação com quatro cursos de piano ministrados em diferentes escolas da cidade de São Paulo, que tinham como característica comum estarem em processo de mudança de estratégia pedagógica, ou que já tivessem, recentemente, passado por alterações recentes em seu programa de ensino.
No desdobramento da pesquisa, surgiram objetivos secundários, como: realizar estudos a respeito das tendências pedagógicas encontradas nas escolas que foram objeto deste estudo, para compreender seus pressu-postos; pesquisar na bibliografia da área musical quais recursos pedagógicos e teóricos eram oferecidos ao pianista; realizar uma reflexão sobre os resultados encontrados.
As abordagens das diferentes problemáticas contempladas na pesquisa exigiram a utilização de metodologias particulares, compatíveis com cada caso que estava sendo estudado. Essa diversidade de escolha está em acordo com as indicações apresentadas em Fachin (2002), para quem, “de acordo com a natureza específica de cada problema investigado, estabelece-se a escolha dos métodos apropriados para se atingir um fim, que é o saber”. O autor prossegue, explicando que “ o método é considerado válido quando a sua escolha se baseia, principalmente, em dois motivos: a) natureza do objeto a que se aplica; e b) objetivo que se tem em vista” (FACHIN, 2002, p.27). A visão de mundo adotada e que ofereceu suporte à metodologia utilizada e à reflexão proposta na conclusão, seguiu os princípios do Pensamento Sistêmico, tal como exposto por Maria José Esteves Vasconcellos (2002). A partir dessa linha, a conjuntura presente no ensino do instrumento musical foi pensada como um todo organizado, composto por elementos em estados de interação. Isso está de acordo com o que diz a autora: “É a interação que, constituindo o sistema, torna os elementos mutuamente dependentes: cada parte estará de tal forma relacionada com as demais, que uma mudança numa delas acarretará mudanças nas outras” (VASCONCELLOS, 2002, p. 199). Sem destacar todos os elementos que fazem parte do sistema, a partir dos dados obtidos, e considerando-se a interação mencionada, foi possível estabelecer algumas implicações por dedução.
De acordo com a abordagem sistêmica, professor, aluno, programa de curso e escola de música foram considerados elementos integrantes de um todo, de uma unidade, a qual foi pensada como um sistema aberto, que sofre influência significativa das mudanças presentes na sociedade. Embora admitindo a organização sistêmica dos cursos de Música, com este estudo não se pretendeu explorar tal organização em todas as suas implicações, restringindo-se seu campo de ação à busca da compreensão de algumas relações internas do sistema, a partir do exame dos programas de curso e propostas pedagógicas das escolas. Assim, mesmo reconhecendo que o reflexo do sistema recai sobre o aluno, este estudo foi direcionado para a compreensão da rede de pressupostos pedagógicos presente no ensino do instrumento e seus efeitos no que se refere à filosofia de trabalho do professor, atentando-se para os resultados sobre o aluno por dedução alcançada a partir dos dados obtidos.
Todo instrumentista musical é potencialmente um professor de seu instrumento.
Como a formação do músico-instrumentista é direcionada para a execução, mas uma grande parte dos músicos leciona seu instrumento, não é incomum surgirem dificuldades no trato com os alunos e na condução da metodologia dos cursos, principalmente nos primeiros anos de trabalho. Como o estudante do curso de Bacharelado em Música – habilitação em instrumento não é preparado para lecionar, tende a repetir o modelo ou os modelos de ensino com os quais teve contato durante o período de formação. Isso até pode dar certo em alguns casos, mas, muitas vezes, gera desajustes e conflitos entre professor e aluno, que talvez pudessem ser evitados, caso o instrumentista professor estivesse mais bem preparado para enfrentar esse tipo de situação.
O instrumentista musical precisa ter uma formação sólida em conhecimento de repertório e técnica de execução, o que é oferecido pelos cursos de Bacharelado e por isso ele é o profissional mais adequado para transmitir essas informações às gerações futuras. Para suprir o descompasso entre habilidade de tocar e lecionar, e a falta de conhecimento pedagógico motivada pela ausência da formação pedagógica nos cursos de Bacharelado, algumas escolas de Música têm exigido que seus professores de instrumento completem sua formação em cursos de licenciatura. Todavia, os cursos de licenciatura são direcionados para o ensino de Música em escolas de nível fundamental e médio, o que representa um universo muito diferente da prática do ensino do instrumento e trabalham com outros objetivos, que não a formação do instrumentista professor.
O professor da disciplina Música na escola formal trabalha com classes coletivas e está vinculado a um calendário escolar anual, enquanto
o professor de instrumento vive uma situação bastante diferente nas escolas específicas de música, ministrando, em geral, aulas individuais, de téc-nica e interpretação musical ao instrumento, por um período de tempo que costuma se prolongar por anos. Além disso, existem questões específicas, importantes para o professor de instrumento, mas não necessariamente para os professores de uma escola de ensino fundamental e médio. Referi-mo-nos ao conhecimento de repertório do instrumento musical disponível para todos os níveis de alunos, da história da pedagogia do próprio instrumento, e do conhecimento de psicologia direcionado para um trabalho individual com o aluno por um período de muitos anos (no caso do piano, em geral 9 a 12 anos, dependendo da escola).
Conscientes dessa lacuna em sua formação, alguns músicos a complementam com cursos de extensão na área da Educação, outros criam maneiras pessoais de conduzir o ensino-aprendizado do instrumento musical, muitas vezes desenvolvendo trabalhos intuitivos que apresentam resultados positivos sem a necessidade de conhecimento teórico específico. Entretanto, em uma observação informal nota-se que grande parte dos músicos professores repete o mesmo modelo recebido sem realizar modificações significativas, pois o seu repertório de ações pedagógicas é limitado. Em se tratando do pianista, ainda existe a agravante ênfase dos cursos de formação valorizando quase exclusivamente o repertório solista. Diferente de instrumentistas de cordas e sopros que são preparados desde cedo para a prática em conjunto, os pianistas costumam ser direcionados para o repertório solista, devendo apresentar apenas este repertório nas provas, preferencialmente memorizado. Com isso, o perfil de aluno mais tímido, com dificuldade de memorização ou que apresenta forte característica de personalidade direcionada para a prática em orquestra, música de câmara e acompanhamento de cantores e outros instrumentistas, muitas vezes não é valorizado o suficiente para que ele mantenha o interesse pelo curso.
Enquanto professores de educação musical têm se movimentado na busca de renovações na estruturação da prática da música nas escolas,
o professor de instrumento caminha mais lentamente, dedicando-se, quase que exclusivamente, à passagem de informações técnicas e repertoriais ao aluno. Como o estudo da música tem a particularidade de quase sempre ser iniciado na infância e na adolescência, quando o professor (e/ou o curso) ocupa-se apenas do desempenho técnico-instrumental sem outras preocupações, acaba por influenciar o aluno a pensar de maneira semelhante.
A pesquisa teve como objeto de estudo o ensino do piano, mas ao afirmar que o instrumentista é potencialmente um professor abarca um universo compartilhado por outros instrumentistas. Para confirmar tal afirmação, foi realizada uma enquete com instrumentistas de quatro grandes conjuntos profissionais da cidade para saber se a porcentagem deles que leciona seu instrumento é significativa. A consulta foi realizada com músicos da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo e Orquestra da Rádio e Televisão Cultura de São Paulo (extinta após a pesquisa). Como estes conjuntos são ligados ao Serviço Público, para facilitar o acesso aos músicos dessas instituições contou-se com o auxílio de alguns deles que concordaram em colaborar como intermediadores entre a pesquisadora e seus colegas. A pergunta foi: você leciona ou já lecionou seu instrumento? O resultado apontou que, de 330 músicos consultados, 242 tem experiência como professor de seu instrumento, o que representa 73,3% do total. Este percentual permite afirmar que a prática pedagógica é presente na atuação dos instrumentistas profissionais da cidade.
Com relação aos pianistas, não foi possível realizar procedimento semelhante, porque seu número nos conjuntos instrumentais profissionais é muito pequeno e, por isso, pouco representativo. Embora boa parte se apresente publicamente como instrumentista solista e camerista, poucos ocupam essa função em alguma instituição, sendo que as ofertas de emprego no mercado de trabalho são maiores para a carreira de pianista-professor, já que existem poucas vagas disponíveis para pianistas nos grandes conjuntos musicais e também não são muitas as oportunidades para sua atuação como ensaiadores de coro, ópera, ballet e co-repetidores (embora este mercado de trabalho esteja em crescimento).
A alternativa para mostrar as mesmas evidências encontradas junto aos demais instrumentistas na classe dos pianistas foi buscar alguns nomes que servissem de exemplo de pianistas que exercem a função de professor. Esse exemplo é validado pela notoriedade dos profissionais mencionados, conhecidos não só por suas carreiras de intérpretes, mas também pelo seu trabalho didático, como, por exemplo: Ana Claudia Agazzi, Amaral Vieira, Amílcar Zanni, André Rangel, Attílio Mastrogiovanni, Belkiss Carneiro de Mendonça, Caio Pagano, Cláudio Richerme, Eduardo Monteiro, Eudóxia de Barros, Fernando Lopes, Flávio Augusto, Gilberto Tinetti, Gloria Machado, José Eduardo Martins, Maria Elisa Risarto, Maria Emilia Moura Campos, Maria José Carrasqueira, Marina Brandão, Miguel Laprano, Nahin Marum, Olga Kiun, Sonia Muniz e Yara Ferraz. Todos eles reconhecidamente considerados bons intérpretes e professores.
Corroborando essas afirmações, encontraram-se, em Stewart Gordon (1995), dados afirmativos de que a situação nos Estados Unidos é semelhante. Falando a respeito da carreira do músico, esse autor afirma que, nos Estados Unidos, a maior parte dos músicos profissionais atua em performance e ensino. Ele, ainda, defende a posição segundo a qual as contribuições à sociedade são maiores na carreira que busca conciliar ambas as atividades, e informa que cerca de 95% dos músicos americanos depende do ensino como renda salarial (GORDON,1995, p.3). Essas afirmações vão ao encontro dos dados recolhidos nas enquetes e mostram que ser instrumentista-professor é uma peculiaridade presente na prática profissional do músico em diferentes paises, confirmando que, embora tocar e lecionar sejam atividades completamente diferentes, elas são habitualmente exercidas pelo mesmo profissional. Em artigo publicado em 1998, Ana Lúcia Louro explica que o professor de instrumento musical “desafia a tradicional divisão entre Bacharelado e Licenciatura, uma vez que exigiria em sua formação a busca de um equilíbrio entre competências pedagógicas e músico-instrumentais” (LOURO, 1998, p. 106).
O modelo de ensino mais presente no aprendizado da música erudita dos alunos que hoje atuam como professores, no caso do piano, refere-se a um conjunto de procedimentos que caracterizou o ensino do repertório de música erudita escrita para este instrumento e é denominado tradicional pelos próprios músicos. Ele descende dos conservatórios franceses e inclui um programa de estudo semestral ou anual, contendo métodos e peças considerados de aprendizado obrigatório. Nestes programas, os métodos e peças a serem estudados são agrupados previamente por graus de dificuldade, sendo estabelecida uma vinculação entre aqueles que devem ser ministrados simultaneamente. Neste ensino, privilegia-se a execução solo, de memória e, preferencialmente, de peças que demonstrem a aquisição de destreza motora. Embora os músicos chamem a esse modelo ensino tradicional, por sua vinculação à tradição musical, comumente ele se aproxima da abordagem de ensino denominada Behaviorista2. Uma característica deste modelo é a ênfase no programa de curso, que coloca professor e aluno na posição de executores de um planejamento previamente determinado. Porém, em alguns casos dos cursos tradicionais de piano a ênfase não é posta no programa totalmente estabelecido, mas o poder decisório em relação a questões referentes ao processo de ensino-aprendizagem cabe ao professor, aproximando-se da corrente de ensino tradicionalista.
São exemplos de cursos tradicionais de piano aqueles semelhantes aos estabelecidos no início do século XX, em especial ao adotado na época no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Este, tornou-se uma referência largamente utilizada na cidade por escolas e professores particulares durante décadas. Atualmente este arquétipo de ensino vem sofrendo questionamentos, ajustes e mudanças estruturais. Contudo, mesmo questionando o modelo, muitas escolas e professores que imaginam estar desenvolvendo novas propostas pedagógicas continuam trabalhando sobre as mesmas bases, pois pelo desconhecimento dos pressupostos que estão seguindo e pela dificuldade em explicar sua própria filosofia de trabalho, acabam encaminhando o ensino para uma direção divergente daquela que intencionavam. Isto define a repetição de modelo não consciente, mencionada anteriormente. O que caracteriza este ensino tradicional? Que pressupostos pedagógicos contém intrinsecamente?
Como a estrutura do curso considerado “Tradicional” foi elaborada em um momento histórico diferente do que vivemos agora, as transformações sociais ocorridas na sociedade paulistana nas últimas décadas passaram a ser sentidas nas escolas de música e, mesmo as mais antigas e tradicionais, tiveram necessidade de rever suas concepções de curso. Por isso, para compreender com clareza qualquer modificação subseqüente à adoção de um programa de curso organizado sob a concepção do modelo pianístico tradicional, foi importante entender os pressupostos pedagógicos contidos nessa estrutura. Para isso foi feita uma análise de um programa de curso de piano tradicional3, associando suas características às abordagens de ensino utilizadas na área da educação. Para dispor de subsídios para realizar esta análise, a pesquisadora freqüentou o curso Revisitando as teorias de ensino-aprendizagem, ministrado na COGEAE/PUC em São Paulo.
Os resultados da análise mostraram que os programas pertencentes ao modelo conhecido como ensino tradicional de piano não seguem uma linha pedagógica única, no que se refere aos conceitos da área da educação. Pelo exame, detectou-se a presença de características pertencentes às abordagens de ensino behaviorista e tradicionalista e peculiaridades pertencentes a ambas, o que está em acordo com os modelos europeus herdados e também com as características de grande parte das escolas de ensino fundamental do início do século passado.
Em alguns pontos da análise, a diferença entre as abordagens é clara, como o foco do curso no Programa de Ensino e na utilização de contingências positivas de reforço, fatores ligados ao Behaviorismo, ou quando se verifica a rigidez da relação tempo/aprendizagem e o exame no padrão “sorteio de pontos”, exigindo o preparo do aluno para reproduzir na prova todo o conteúdo estudado no semestre ou ano, que apontam para a tendência Tradicionalista. Em outros aspectos, porém, não é possível definir exatamente a abordagem, como em relação à posição submissa do aluno diante do processo de ensino-aprendizagem, pois é uma característica presente no Behaviorismo e no Tradicionalismo. Ambas as abordagens também visam à transmissão de um conteúdo previamente determinado (pelo professor ou pelo programa), cujo domínio resulta na aprovação do aluno e na passagem para uma etapa subseqüente.
No curso estudado, o papel do aluno é realizar o programa prescrito, preferencialmente sem alterações ou questionamentos. O papel da escola é o de transmissora de informações, de instrução, mantendo valores e princípios considerados os mais adequados para difusão de um repertório específico, sem pretender transformar as atitudes musicais do aluno diante da música e da sociedade em relação às gerações anteriores. A respeito do professor, percebe-se que ele apresenta papéis distintos em diferentes momentos. Sua função essencial é cuidar do cumprimento da programação, utilizando como recurso as contingências de reforço necessárias (uma posição behaviorista), mas há momentos em que seu papel é guiar, conduzir e decidir o que é melhor para o aluno (abordagem tradicionalista), como no momento de escolher os estudos e peças que ele deve efetivamente aprender, a partir dos métodos estabelecidos e da relação de peças propostas no programa. Nesses cursos de ensino tradicional de piano, também é comum
o professor determinar e direcionar todos os passos do aluno, num procedimento similar ao dos treinadores esportivos.
Esses dados foram obtidos no procedimento de pesquisa; estabelecido esse ponto de partida, a pesquisa foi ampliada para outra direção, conduzida pelas seguintes questões: existem cursos de música erudita com histórico de ensino tradicional que estejam mudando suas estratégias? Há mudanças nas tendências pedagógicas? Existe uma tendência dominante? Que saberes são necessários ao professor que colocará as modificações em prática? Para responder a tais questões, foram feitas pesquisas em quatro escolas importantes da cidade, representativas no meio musical e responsáveis pela formação de novos músicos: Conservatório Musical Souza Lima, Centro de Estudos Musicais Tom Jobim (também conhecido como ULM), Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, e Escola Municipal de Música de São Paulo.
Sabedora do interesse dessas escolas em promover mudanças significativas na estrutura de seus cursos, e com a meta de conhecer as modificações ocorridas nos cursos de piano em relação aos programas tradicionais utilizados anteriormente por elas, a pesquisadora, além de consultar os programas e as estratégias de curso, procurou os responsáveis pela elaboração do novo programa de ensino nessas escolas. No Conservatório Souza Lima, o responsável era o Profº Miguel Laprano; na ULM, a responsável pelas informações foi a professora e coordenadora do curso, Profª Marina Brandão. As informações a respeito do Conservatório Dramático e Musical foram obtidas com o diretor da escola, Sr. Julio Navega. Na Escola Municipal de Música houve um depoimento escrito pelo conjunto de professores de piano4. As consultas se deram de outubro de 2004 a fevereiro de 2005. Como guia, foram estabelecidas as seguintes perguntas: Por que foi necessário fazer um novo programa (ou estratégia) de curso? Quando
o novo programa entrou em vigor? Quais as mudanças mais significativas (importantes na sua opinião) em relação ao programa anterior? Que critérios foram levados em consideração na elaboração do novo programa? O que se procurou atender? Acrescente o que achar necessário para que se compreenda o seu ponto de vista e os motivos que influenciaram suas decisões.
Pelas dimensões deste artigo, não é possível detalhar as mudanças ocorridas em cada escola, mas as modificações implantadas ou em processo de implantação têm como denominador comum a busca de um afastamento dos programas tradicionais adotados anteriormente, a revisão do processo de avaliação e uma movimentação importante no sentido de se proporcionar ao aluno um ensino com programas particularizados que possam atender a individualidade de cada um. Verificou-se que as escolas adotaram soluções diferentes, mas as mudanças pedagógicas convergem para o que se poderia chamar de tendência a um ensino dirigido para o aluno, capaz de oferecer condições para uma maior participação ativa deste no processo de ensino-aprendizagem, embora esta ainda seja incipiente.
Como o resultado apontou um interesse geral em direcionar o estudo para o aluno, entendeu-se a necessidade de compreender teoricamente
o que define a metodologia conhecida como ensino centrado no estudante, para verificar se suas bases teóricas podem ser reconhecidas nessa prática. As leituras mostraram que a modificação do foco de curso no programa ou no professor para o foco do curso no aluno, implica colocar-se diante da situação de ensino/aprendizado a partir de premissas muito diferentes das adotadas no ensino tradicional e comportamentalista, ou seja, significa que o professor deve abraçar outros pressupostos pedagógicos, que não aqueles já mencionados. Para compreender a diferença entre esta matriz e as anteriores, estudou-se a teoria de ensino centrada no aluno, de Carl Rogers (1902-1987), que se caracterizou, na área educacional, como reação ao tradicionalismo e behaviorismo. Rogers é o principal autor do século XX estudado na área da Educação quando se pretende considerar o aluno como ponto central da proposta pedagógica, na situação de ensino-aprendizagem.
Rogers aborda a educação em termos do potencial de autonomia que o aprendiz tem para aprender. A perspectiva humanista de ensino apresentada por esse autor considera o aluno como um ser humano integral e “por considerar que cada aluno traz para a escola suas próprias atitudes, valores e objetivos, a visão humanista centraliza-se no aluno. Assim, sua preocupação básica torna-se a de adaptar o currículo ao aluno” (Gil, 1997,
p. 26). Embora as bases desta maneira de pensar o ensino sejam encontradas em autores anteriores, como Comenius, Lock, Rousseau, Pestalozzi, Froebel e Montessori, foi a psicologia humanista, principalmente na figura de Carl Rogers, que deu um grande incentivo a esta orientação voltada para a liberdade de aprender.
A educação centrada no aluno, dentro da concepção rogeriana, deriva da terapia centrada na pessoa5. Nesta abordagem, o terapeuta atua como um facilitador do processo, partindo da premissa de estar presente na relação terapêutica como ser humano, com suas emoções e reações, e aceitar o outro como um ser humano integral. A transposição deste tipo de relacionamento para a sala de aula resultou na abordagem de ensino centrada no aluno e no conceito de professor como facilitador do aprendizado. A base da relação ensino-aprendizagem proposta por Rogers pensa a aprendizagem como fonte de crescimento pessoal que ajuda o indivíduo a adquirir cada vez mais consciência de si próprio, e o professor como um facilitador da aprendizagem, que coloca como foco principal o aluno e não o conteúdo. Dentre outros assuntos, sua teoria prioriza a percepção individual do aluno e o relacionamento pessoal entre ele e professor, valoriza a congruência do professor e dá grande importância ao processo de auto-avaliação do aluno. Na pesquisa, após um estudo minucioso dos conceitos rogerianos, a transposição dessas premissas para a situação de ensino-aprendizagem do piano se deu pelo método dedutivo, aplicado nas mesmas situações analisadas no programa de curso tradicional de piano.
Com a aplicação desses princípios à situação de ensino/aprendizagem do piano, foi possível estabelecer que, para adotar um ensino direcionado para o aluno, ao invés de centrado no programa, são necessárias modificações filosóficas e conceituais por parte do professor. A conclusão indica que para haver uma mudança verdadeira de um modelo para o outro, os professores necessitam modificar, também, sua maneira de pensar
o ensino, pois não é suficiente que as escolas alterem as estruturas de seus cursos, se o profissional que atuará diretamente com o aluno permanecer estacionado numa concepção de ensino diferente da proposta. De acordo com Rogers, as mudanças mais importantes são pessoais, conceituais, relacionadas com a visão de ser humano e do papel do processo de ensino-aprendizagem no seu desenvolvimento psíquico.
Esse argumento reforça o discurso inicial, que teve como eixo a preocupação com a formação do instrumentista-professor. Como a maior parte dos modelos experienciados está ligada aos pressupostos adotados anteriormente nas escolas (em grande parte das vezes, tradicionais e behavioristas), a não existência de um processo reflexivo dificulta a adaptação do professor às novas contingências.
No discurso das pessoas responsáveis pelos novos programas de curso de piano nas escolas ficou evidente a preocupação em manter o aluno interessado e/ou comprometido com seu próprio aprendizado. Os entrevistados indicam a existência de um descompasso entre as necessidades dos jovens e a maneira pela qual o processo de ensino-aprendizagem estava sendo conduzido. O processo de ensino-aprendizagem utilizado durante décadas não levava as necessidades de crianças e jovens em consideração. Por isso, parece ser importante que o professor interessado em atender às necessidades do aluno considere alterações sociais que provocaram mudanças no comportamento do jovem. Alguns autores que tratam deste assunto são: Outeiral (2003), Kehl (2004) e Tiba (1998).
Para compreender melhor de que modo as transformações sociais influenciam as atitudes de professores e alunos de piano, é importante que se volte por um momento à história desse ensino. No século XVIII, quando a tradição do teclado começava a se configurar, não existia o conceito de adolescência no sentido atual. Era esperado que a criança desenvolvesse suas habilidades e estivesse pronta para iniciar uma atuação adulta na sociedade, o mais cedo possível. Conhecer esse fato ajuda a entender a valorização da precocidade, na medida em que sugere que a criança que se desenvolve mais rapidamente tem um lugar mais facilmente garantido na sociedade. Esta idéia, porém, está em desacordo com o mundo contemporâneo, principalmente em uma grande metrópole como São Paulo. Hoje em dia, a configuração da adolescência como “tempo de espera” entre a criança e o adulto, tempo este que foi se alargando ao longo das décadas, dilui a importância da precocidade infantil como garantia de conquistas na vida adulta.
O conceito de adolescência é historicamente recente e se configura na sociedade efetivamente após a 1ª Guerra Mundial. “O conceito de adolescência, que se estende em certos países até o final da juventude (hoje em dia não hesitamos em chamar adolescente a um moço de 20 anos), tem uma origem e uma história que coincidem com a modernidade e a industrialização” (Kehl, in: Novaes, 2004, p.90). Ainda segundo KEHL (2004), o “modelo” do adolescente paulistano é inspirado no do americano e o jovem ganhou um novo status na sociedade capitalista, na medida em que começou a ser visto como consumidor potencial. Com o passar dos anos e o aumento de tempo escolar, esse período de vida passou a ser cada vez mais associado a um período de espera.
A título de exemplo, verificou-se que, como adulto, o professor está sujeito à confrontação, situação necessária para o desenvolvimento do adolescente, e que, às vezes, essa relação estabelecida entre o jovem e seu professor é interpretada como dificuldade de relacionamento. A compreensão de que a confrontação é parte natural do processo de crescimento (amadurecimento) do indivíduo pode ajudar muito na atividade pedagógica. Segundo TIBA (1998, p.56), o adolescente é diferente da criança porque quer descobrir as coisas do seu modo, desejando conquistar sua independência. Seu prazer no aprendizado está mais relacionado com a conquista pela autonomia e com a busca da própria identidade do que com a pura aquisição de saber. Quando o adulto o obriga a aprender por obediência,
o adolescente sente-se tratado como criança e ferido em sua auto-estima e, como resultado, pode se recusar a aprender. A tendência das escolas de música em aumentar a responsabilidade e a participação do jovem diante de seu processo de ensino-aprendizagem evidencia o reconhecimento desse fator, mas, ainda assim, é o professor que efetiva ou não essa participação em sala de aula.
Esta incursão à questão do adolescente na atualidade mostra a existência de uma interligação entre as propostas escolares e a sociedade, que não pode ser desconsiderada pela escola e pelo professor.
Embora o dito até então tenha reforçado a necessidade de ampliação do conhecimento do professor de piano pela aproximação com as áreas da Psicologia e da Pedagogia, isso não o exclui da responsabilidade diante da área específica do ensino musical, e, preferencialmente, em relação ao seu instrumento. Tendo em vista os assuntos levantados a respeito da pouca ou nenhuma preparação do bacharel em piano para lecionar seu instrumento durante sua formação universitária e a dificuldade em encontrar cursos de extensão que tratem desse assunto na área musical, pesquisou-se a existência de uma bibliografia capaz de suprir essa lacuna. Inicialmente, em bibliografia nacional, foram encontrados livros e artigos que, de alguma maneira, abordam ou mencionam as questões apresentadas, mas não foi encontrado nenhum livro que tratasse com profundidade da prática de ensino numa perspectiva relacionada a pressupostos pedagógicos e/ou noções de conhecimento de Psicologia da Educação.
Da literatura estrangeira, é importante mencionar The art of teaching piano (AGAY, 2004), cujo capítulo V é dedicado aos aspectos pedagógicos do ensino, abordando desde a capacitação necessária à formação do professor de piano, até o estudo do relacionamento professor-aluno. O livro é direcionado para o aspecto metodológico (como fazer) mas, mesmo assim, oferece muitas possibilidades de reflexão a respeito do processo de ensino-aprendizagem do piano. O conhecido The well-tempered keyboard teacher (UZLER; GORDON; MACH, 1995) aborda o mesmo tema, em especial, no seguimento O uso prático de teorias de aprendizagem. E muito interessante o livro Etudes for piano teachers: reflections on the teacher’s art, (GORDON, 1995), uma reunião de artigos que aborda vários aspectos do ensino e da prática do piano.
Além do estudo de bibliografia pedagógica especializada, um outro enriquecimento ao tratamento da questão da formação do pianista-professor pode ser obtido com o estudo da experiência de outros pianistas-professores. Para aprofundar esse assunto, estudaram-se depoimentos de pianistas do século XIX e XX registrados bibliograficamente, como os de Liszt e Chopin, Gilels, Arrau e Pachmann. Por esse estudo, descobriu-se que a idéia de padronização incorporada aos conservatórios ao longo do tempo por razões sócio-culturais não foi compartilhada por muitos pianistas-professores, que desenvolveram atividades didáticas que privilegiavam a individualidade, a capacidade e as características particulares de cada aluno. Isso mostra que as modificações buscadas pelas escolas estudadas não são, em princípio, uma novidade absoluta, mas a aproximação de uma corrente de ensino pianístico mais próxima do ensino humanista, com características de personalização do curso em função do aluno, há muito existente. Embora alguns desses professores tenham se utilizado de práticas não mais aceitas, conhecê-las enriquece sobremaneira os recursos do professor atual, tanto no que se refere à sua atividade direta com o aluno, quanto às suas reflexões pessoais.
Diante dos dados levantados foi possível relacionar as dificuldades encontradas no ensino que apresenta características uniformizadoras e controladoras aos problemas gerados pelo pensamento de tendência analítico-tecnicista, dominante no mundo atual. Partindo do humanismo de Rogers e chegando ao humanismo de Morin, que tem uma concepção sistêmica da educação com sua proposta de pensar a vida e o ensino integrados, corrente por ele denominada pensamento complexo, percebe-se que as necessidades de mudanças nas escolas são uma conseqüência de mudanças mais profundas emergentes na sociedade ocidental.
Para os conceitos mais modernos da Pedagogia, didática é uma elaboração particular do professor. Esta elaboração é complexa e construída a partir da reunião de uma série de subsídios e contribuições, que partem do material didático disponível para uso, do conhecimento do professor na área específica, das diferentes influências sofridas por personalidades importantes em sua vida profissional e que lhe servem de exemplos, da linha pedagógica preferida, e até de sua filosofia de vida. Exatamente por causa dessa complexidade, a proposição de lecionar baseando-se apenas na vivência pessoal obtida como aluno, sem uma rede de outros recursos complementares, torna-se reducionista. No caso do músico, o aluno jovem geralmente está mais interessado em tocar bem, concentrado e ocupado com seu próprio processo de aprendizagem e poucas vezes apresenta condições de perceber o processo que vivencia sob uma perspectiva que o leve a compreendê-lo em todas as suas facetas.
Essa dificuldade em perceber o conjunto de inter-relações presentes na situação de ensino do instrumento musical também está amparada no alto direcionamento para a especialização em todas as áreas do conhecimento, resultando em um processo educativo presente na sociedade que é conteudista e voltado para a instrumentalização. O indivíduo cresce imerso num ambiente que lida com os saberes de maneira isolada e se acostuma a pensar de forma unilateral, não se habituando a articular pensamentos em rede e a relacionar fatores menos óbvios, interligados em diversas situações de vida. Isso vale para disciplinas escolares, para relacionamentos pessoais e profissionais, e também para percepções de contextos, como é o exemplo das inter-relações existentes na conjuntura do ensino instrumental.
Pensadores do século XX questionaram a hiper-especialização e, dentre eles, Edgar Morin solicita o retorno ao ensino humanista. Este humanismo é entendido sob um princípio que concebe a realidade como uma teia de interligações complexas, a qual precisa ser percebida e apreendida como tal. O resultado dessa maneira de pensar é a adoção de uma perspectiva de ensino que considere a educação de forma abrangente. A especiali-zação em uma área do conhecimento não é necessariamente um problema, a crítica é sobre a “especialização que se fecha sobre si mesma, sem permitir sua integração na problemática global ou na concepção de conjunto do objeto do qual ela só considera um aspecto ou uma parte” (MORIN, 2002a, p.41). Segundo ele, a especialização exagerada acaba levando o indivíduo a se desligar do que não parece absolutamente prático e necessário, dificultando a percepção das relações existentes entre saberes interligados ao conhecimento de um assunto, e que ampliam a visão de mundo, ao invés de diminuí-la. A alta especialização do músico desde a juventude muitas vezes leva a esta “especialização fechada”, que causa uma cegueira em relação a outros aspectos da vivência musical. A relação do discurso de Morin com o tema da pesquisa está na viabilidade de, por meio dele, ser possível conceber uma formação abrangente para o pianista, que considere sua atuação como professor na graduação e que considere em todo o processo de sua formação desde a infância, os aspectos da atuação pianística além da prática solista.
A análise de um programa de curso tradicional de piano levou à compreensão de que este se baseia em pressupostos bastante questionados pelos educadores em geral. O estudo das modificações propostas em cursos que o estão substituindo indicou que existe um forte interesse em valorizar os aspectos humanistas do ensino e aumentar a participação ativa do aluno no processo de ensino/aprendizagem. As escolas possibilitam que isso aconteça mediante mudanças estruturais e aumento de poder decisório do professor, mas efetivamente, é o professor em sala de aula que terá ou não condições de aumentar o comprometimento do aluno (pois ele pode adotar uma posição autoritária e permanecer nos moldes anteriores). Ao estudar os pressupostos que norteiam um ensino humanista, utilizando a teoria rogeriana como objeto de estudo, conclui-se que certas mudanças só acontecem quando o professor está consciente das mudanças conceituais que precisa empreender se desejar verdadeiramente mudar sua estratégia de trabalho.
Aceita-se como fato que a atuação do bacharel em instrumento como professor de seu próprio instrumento é uma peculiaridade da área musical, que difere neste aspecto de muitas outras áreas do conhecimento. Verificou-se como é complicado encontrar subsídios para recolher informações necessárias à prática pedagógica do ensino musical, pela falta de disciplinas específicas nas universidades, de cursos sobre o assunto e de bibliografia específica em português. Para criar a rede de conhecimentos que a atividade e a sociedade pedem hoje, o recurso existente é a incursão em muitas áreas do conhecimento para realizar analogias que venham a ser úteis e/ou uma segunda graduação em licenciatura em música, o que leva muitos anos de estudo e nem assim aborda assuntos característicos, como a história da pedagogia do instrumento musical.
A especialização apenas em tocar não parece ser condizente com as necessidades da sociedade, como ficou evidente nas enquetes das orquestras e no discurso de Gordon (1995). Morin, por usa vez, ajuda a unir
o quebra cabeças e perceber que as mudanças educacionais que pipocam na sociedade em geral são uma reação às condições de hiper-especialização da sociedade pós-moderna e, ao mesmo tempo, uma solicitação dessa mesma sociedade, pelo colapso de pressupostos anteriores em diferentes contextos. Os desdobramentos desse pensamento atingem muitas as áreas do conhecimento, e percebe-se a existência de uma nova dinâmica humanista em construção na sociedade que influencia grupos sociais na mesma medida em que é influenciada por eles.
Então, se foi notado no início da pesquisa que escolas de música da metrópole paulistana apontam a existência de uma tendência em direção a um ensino que não privilegie os conteúdos e se aproxime de um perfil humanista, motivada, em parte, por solicitações internas (como, por exemplo, a preocupação com a desistência de alunos, ou com a necessidade de lhes proporcionar um encaminhamento em acordo com uma possível opção pela profissão de músico), presume-se que essas escolas, na condição de sistemas, não comportam mais uma relação de ensino-aprendizagem calcada em características behavioristas, mesmo que alguns de seus membros não estejam conscientes ou não compartilhem disso. Pensando-as como organismos “vivos” que interagem com a sociedade, num complexo formado por pessoas (professores, alunos, funcionários) e componentes burocráticos (exigências legais, supervisão de órgãos públicos e outros), as escolas procuram formas alternativas de relacionamento entre seus elementos internos e entre elas e a sociedade.
Considerando que a falta de informação desencadeia a tendência do músico-professor em repetir automaticamente o processo de ensino vivenciado e dificulta a reflexão e a adoção de atitudes que tenham bases conceituais profundas e conscientemente vinculadas a uma determinada filosofia de trabalho, é válido e importante que exista uma complementação no curso de bacharelado em instrumento que vislumbre essas questões.
Se todo músico executante é potencialmente um professor de seu instrumento e boa parte dos músicos exerce regularmente essa função, é importante apreciar a possibilidade de um tipo de formação profissional que considere ambas as atividades. Mesmo que os cursos de bacharelado não tenham condições de realizar modificações a curto prazo por questões acadêmico-administrativas e/ou provenientes de órgãos reguladores, pode-se estimular a inclusão de disciplinas optativas, ou o fomento de cursos de extensão universitária voltados para a pedagogia do instrumento musical.
Em vista do que foi apresentado, sugere-se que a inclusão de disciplinas optativas no curso de Bacharelado em Música, ou a oferta de cursos de extensão universitária nos moldes do que já acontece em diversas outras áreas, podem ser opções mais úteis para a formação do futuro professor de piano do que a freqüência a um segundo curso universitário (Licenciatura em Música) ou a realização da complementação pedagógica oferecida em cursos na área da Educação. Os motivos para esta preferência foram esclarecidos no decorrer do estudo e levam em consideração, principalmente, a falta de ligação dos conteúdos destes cursos com a realidade cotidiana que
o professor de instrumento vivencia.
1 O termo complexo está sendo empregado no sentido de algo que abrange vários elementos. 2 Na abordagem de ensino behaviorista o conhecimento deve ocorrer por meio de
uma experimentação planejada. É pressuposto que o estudante receba um programa
cuidadosamente elaborado, por meio do qual pretende-se que ele adquira o conhecimento
em foco. 3 O programa escolhido foi o do Conservatório Musical Heitor Villa-Lobos (1979), por se
encontrar impresso, e a confirmação de seus moldes de aplicação e utilização atuais foi feita
com a diretora da escola, por telefone. 4 A saber: Alex Sandra Grossi, Marisa Lacorte, Maria Elisa Risarto, Margarida Fukuda, Renato
Figueiredo e a pesquisadora, Scheilla Glaser. 5 Também chamada da terapia centrada no cliente ou, em algumas traduções, no paciente.
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Scheilla Glaser – Bacharel e Mestre em Música (UNESP), Especialista em Fundamentos Psicopedagógicos da Arte e da Comunicação (Mackenzie). Na área da educação e da psicologia, complementou seus estudos freqüentando cursos de extensão na COGEAE, PUC/SP, e no Instituto Sedes Sapientiae (São Paulo). Desde 1999 leciona piano na Escola Municipal de Música de São Paulo. É pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Musical (GEPEM) do Instituto de Artes da UNESP.
Marisa Trench de Oliveira Fonterrada – Professora do Programa de Pós-graduação em Música do Instituto de Artes da UNESP. Livre Docente em Técnicas de Musicalização, Doutora em Antropologia, Mestre em Psicologia da Educação, Bacharel em Música. Tem se dedicado ao estudo e à pesquisa em Educação Musical, em especial no que se refere à adequação da população brasileira à experiência musical de diferentes naturezas. Tem desenvolvido estudos a respeito da importância do ambiente sonoro na formação do músico.