STRAVISNKY: O PROGRESSO DE UM MÉTODO
Edward T. Cone (Trad. Antenor F. Corrêa e Graziela Bortz)
Resumo: No presente texto apresenta-se a tradução integral do artigo Stravinsky: the Progress of a Method de autoria do teórico norte-americano Edward T. Cone (1917-2004). Precede o texto original uma pequena introdução elaborada pelos tradutores, na qual ressaltam-se aspectos históricos envolvidos no artigo original de Cone, bem como o impacto que o respectivo trabalho ocasionou na musicologia norte americana do pós-guerra. Para além dessa importância histórica, justifica-se esta tradução pelo significativo conteúdo teórico que comporta, pois aborda interessante recurso composicional incorporado à valiosa ferramenta de análise musical. Palavras-chave: Stravinsky; Estratificação; Edward Cone; Análise musical.
Abstract: This paper is essentially a translational work, where the Stravinsky: the progress of a method original article by Edward T. Cone is translated into Portuguese. There is a short introduction to the original text pointing out historical features related with its first publication, and concerning its impact over the post-war American musicology. Beyond the historical relevance, this translation is justified by the theoretical content in itself, since dealing with interesting compositional resources and helpful analytical devices. Keywords: Stravinsky; Stratification; Edward Cone; Musical analysis.
No ano de 1962 deu-se a primeira edição de uma das mais prestigiosas revistas sobre música: Perspectives of New Music. Neste número inaugural constava o ensaio “Stravinsky: the progress of a method” de autoria do grande teórico norte-americano Edward T. Cone (1917-2004). Esse trabalho receberia nova publicação dez anos depois, na coletânea de artigos Perspectives on Schoenberg and Stravinsky (1972, p. 155-164), editada por Benjamin Boretz e pelo próprio Cone. Foi neste ensaio que Cone apresentou pela primeira vez seu conceito de estratificação como recurso para a análise das obras de Stravinsky.
Estratificação, segundo Cone, é o processo composicional empregado por Stravinsky na maioria de suas obras, e consiste em uma espécie de construção em camadas ou áreas musicais justapostas no tempo. Essas camadas são separadas por rupturas no fluxo discursivo, sofrendo uma espécie de “editoração”, sendo novamente “emendadas” na parte subseqüente desse método, batizada por Cone de conexão. Esse processo possui uma terceira parte na qual todos os estratos apresentados no decurso musical são unificados, conduzindo a obra à sua resolução. Esta última fase foi chamada de síntese e constituía-se como a parte do método responsável pela coerência estrutural da obra. Cone apresentou seu modelo tendo por base a análise de fragmentos de três obras de Stravinsky: Sinfonias para Instrumentos de Sopros (dedicada à memória de Claude Debussy), Serenata em A (para piano solo) e Sinfonia dos Salmos.
Para além da proposta original e do conteúdo apresentados no trabalho de Cone, este texto é um marco da nova abordagem metodológica que se instituía na musicologia norte-americana dessa época. Esta nova maneira analítica instaurou a atitude positivista no tratamento das obras musicais e influenciou toda geração de teóricos ligados ou não à música de vanguarda. As repercussões dos artigos da Perspectives of New Music, juntamente com o recém inaugurado Journal of Music Theory (vinculado à universidade de Yale), foram analisadas por teóricos e musicólogos hodiernos. Anthony Gritten, por exemplo, considera que “a análise de Cone da Sinfonias para instrumentos de sopro apresentada no Progress of a Method foi, retrospectivamente, o momento pivô no desenvolvimento da teoria musical e da análise na América do pós-guerra” (GRITTEN, 1998, p. 4). Também Kerman, no capítulo Análise, Teoria e Música Nova do seu famoso livro Musicologia (1987), ofereceu uma descrição panorâmica, mas aprofundada desse momento especial vivido pela musicologia norte americana.
O início do pensamento científico e a subseqüente tomada da análise musical como método investigativo, à maneira positivista, teve como elemento impulsionador a inauguração das duas revistas mencionadas, bem como o teor dos artigos que eram veiculados, sendo significativo para
o momento não só aspectos musicais que assinalavam, mas principalmente, a maneira como a pesquisa era desenvolvida e os resultados expressos. Neste sentido, fica evidenciado o porquê da influência exercida pelo artigo de Cone sobre os teóricos norte-americanos, independentemente de se concordar com suas proposições analíticas para o confrontamento da obra de Stravinsky.
Por conta dessas características, o artigo de Cone permanece como valiosa fonte histórica e importante recurso analítico. Seus aspectos históricos lançam luz sobre um período de transição vivido pela musicologia norte-americana que encontraria também repercussão no plano internacional. Essa incorporação do pensamento positivista à música pode ser verificada, inclusive, atualmente. Basta para sua comprovação uma rápida apreciação dos métodos escolhidos para condução de trabalhos acadêmicos na área de música. Os aspectos técnicos apresentados por Cone, por sua vez, constituem uma boa opção para a análise de peças não só de Stravinsky, mas de quaisquer compositores que façam uso de procedimentos composicionais baseados em descontinuidade do discurso, rupturas súbitas do fluxo musical e métodos de bricolagem.
Acredita-se, assim, que a tradução deste artigo, pouco conhecido pelos estudantes brasileiros, terá dupla validade na medida em que lança luz sobre tópicos históricos e técnicos. O texto original segue dividido em cinco partes. As referências desta introdução se encontram no final do texto.
I
Durante muitos anos, era moda acusar Stravinsky, bem como Picasso, de inconsistência artística: de abarcarem uma série de procedimentos ao invés de conquistarem um estilo próprio. Hoje em dia, torna-se cada vez mais claro que Stravinsky, como Picasso, foi notavelmente consistente em seu desenvolvimento estilístico. Cada fase aparentemente divergente foi uma manifestação superficial de um interesse que conseqüentemente conduziu à ampliação e a uma nova consolidação dos recursos técnicos do artista.
Isso não significa que todas as questões relacionadas aos métodos de Stravinsky estejam resolvidas. Algumas de suas características mais marcantes continuam intrigando e, conseqüentemente, fica difícil explicar porquê alguns de seus grandes sucessos realmente surtem efeito. O fato é que eles causam impacto. Assim, este ensaio tentará lançar alguma luz sobre como esse efeito ocorre, por meio do exame de uma dessas características: as aparentes descontinuidades que tão freqüentemente interrompem
o fluxo musical.
Desde a Sagração da Primavera, as texturas usadas por Stravinsky ficaram sujeitas a repentinas interrupções, afetando quase todas as dimensões musicais, sejam elas dimensões instrumental e de registro, rítmica e de dinâmica, harmônica e modal, linear e motívica. (Quase todas elas podem ser encontradas, por exemplo, nos doze primeiros compassos da Sinfonias para Instrumentos de Sopro). Tais modificações poderiam ser notadas em qualquer contexto, mas o são especialmente por causa de outras peculiaridades do estilo de Stravinsky. Uma mudança de acorde, após uma longa e contínua harmonia estática, surge como um choque; o mesmo ocorre com um salto melódico inserido em uma linha que se move predominantemente por graus conjuntos; assim como um novo contexto de andamento sucedendo um ritmo metricamente persistente.
Poder-se-ia argumentar que tais pontos de interrupção em partituras como A Sagração da Primavera e As Bodas são concebidos como analogias às ações ocorrentes no palco e, portanto, possuem origem principalmente extra musical e pragmática. Mesmo assim, nenhum dos trabalhos para palco apresenta uso tão consistente, e musicalmente funcional, desse artifício como a “abstrata” Sinfonias para Instrumentos de Sopro, podendo indicar que, independentemente de sua origem, o método tinha importância musical para ele. O fato dele não o haver abandonado sugere ter sido esse um método musicalmente necessário.
Sob exame, o ponto de interrupção prova ser somente a característica imediatamente mais óbvia da técnica básica de Stravinsky, que compreende três fases por mim denominadas: estratificação, conexão e síntese. Por estratificação refiro-me à separação de idéias no espaço musical (ou melhor, de áreas musicais) justapostas no tempo. A interrupção é a marca dessa separação. As camadas de som resultantes podem ser diferenciadas por contrastes evidentes, como os números de ensaio 1 e 2 da Sinfonias, nos quais as mudanças de instrumentação, registro, harmonia e ritmo reforçam-se mutuamente. Esse efeito pode ser muito mais sutil, como no número 6, onde a instrumentação sobrepõe-se e não há mudança de registro. (Todas as referências a essa, bem como às demais obras, baseiam-se na partitura revisada, por estar mais amplamente disponível). Em quase todo caso, entretanto, existe ao menos um elemento de conexão entre os níveis sucessivos. No primeiro exemplo citado, o intervalo de quarta (F – Bb) é a base comum para as duas áreas, a despeito das notáveis diferenças sonoras entre elas.
Uma vez que as idéias musicais assim apresentadas estão geralmente incompletas e freqüentemente parecem fragmentárias, a estratificação estabelece a tensão entre os sucessivos segmentos temporais. Quando a ação em uma área é suspensa, o ouvinte procura por sua eventual resolução e completude, enquanto uma ação em outra área tem início, que, por seu turno, demandará resolução após sua própria suspensão. A resolução atrasada dessas expectativas ocasiona a segunda fase dessa técnica: a conexão. Tomando o caso mais simples possível, considerem-se duas idéias apresentadas alternadamente: A-1, B-1, A-2, B-2, A-3, B-3. Ora, uma linha musical será direcionada em A-1, A-2, A-3; a outra, correspondentemente, irá unir as apresentações de B. Embora ouvidas em alternância, cada linha continua a exercer sua influência mesmo quando em silêncio. Como resultado, o efeito é análogo àquele de tecidos melódicos polifônicos: os segmentos temporais sucessivos apresentam-se como que tratados contrapontisticamente, um contra o outro. A alternância entre as duas primeiras áreas contrastantes da Sinfonias é um exemplo elementar desse procedimento. Mais complicadas, porém, são as comuns alternâncias entre três ou mais camadas (vide Exs. 1 – 3). (Esse artifício possui precedentes, como mostrará um lançar de olhos sobre as sucessivas exposições parciais do ritornello do primeiro movimento do Concerto de Brandenburgo Nº 5. Em relação a isso, a própria predileção de Stravinsky pelo concerto Barroco é reveladora).
A fase mais interessante do processo, a síntese, é a mais passível de ser negligenciada. Algum tipo de unificação é a meta necessária para a qual se dirige toda a composição, cuja ausência impediria uma associação convincente das suas áreas componentes. Porém, isso raramente é tão explícito quanto na estratificação original, e quase invariavelmente envolve redução e transformação de um ou mais componentes, além de, freqüentemente, envolver a assimilação de todas as outras camadas por uma. Os diversos elementos são trazidos no interior de relações cada vez mais próximas entre si, sendo todas idealmente consideradas para a resolução final. Mas este processo de maneira nenhuma está confinado ao final do movimento; algumas vezes já funciona desde o início, podendo tomar muitas formas: rítmica, contrapontística, harmônica. Um exemplo em pequena escala referindo-se a uma seção limitada começa no Nº 46 da Sinfonias. O material, primeiramente exposto em níveis separados por registro e instrumentação, move-se gradualmente para um tutti em que todos os estratos são apresentados simultaneamente.
Uma descrição dessa técnica não estaria completa se dois artifícios usados pelo compositor para atenuar a dureza da oposição entre os estratos não forem mencionados. O primeiro é o uso de ponte, tal como nos dois compassos anteriores ao Nº 6 da Sinfonias. Esse motivo, unindo o enun-ciado precedente do Nº 3 à nova área do Nº 6, efetua a suave estratificação previamente notada. Não é uma transição em um sentido convencional, mas uma área com vida própria, como mostra seu futuro desenvolvimento. Embora agindo como ponte no contexto imediato, ela estende-se até sua próxima aparição na fase de conexão.
O outro meio à disposição de Stravinsky é o que eu chamo de divergência: a divisão de uma única camada original em duas ou mais. Quando o coral, longamente suspenso no curso da Sinfonias, logra a obtenção de sua plena expansão, engendra uma divergência (iniciada pelas trompas depois do Nº 66, conduzida posteriormente no Nº 68 pelos oboés). Um exemplo mais sutil é introduzido pelos oboés no Nº 3, soando como a continuação do primeiro motivo, mas provando ser a fonte da grande área total iniciada no Nº 46.
Todos os exemplos até aqui foram extraídos da Sinfonias, a mais eficaz das obras de Stravinsky no emprego dessa técnica. Sua forma inteira depende disso, como espero tornar claro nas análises que se seguem. Durante os anos seguintes a essa composição, entretanto, Stravinsky refinou seu método, como eu tentarei mostrar nas análises dedicadas ao primeiro movimento da Serenata em A e da Sinfonia dos Salmos. Finalmente, algumas referências aos seus trabalhos mais recentes irão atestar a continuada importância de seu método.
II
O esboço da Sinfonias para Instrumentos de Sopro não tem o propósito de servir como uma análise linear e harmônica completa, mas é antes uma tentativa de tornar claro aos olhos a maneira como os estratos são separados, conectados e, finalmente, unificados. O material temático representado pelas letras maiúsculas é facilmente identificado por meio dos respectivos números de ensaio anotados na partitura. Minha própria notação apresenta o mínimo necessário para acompanhar as linhas importantes de ligação. Estas devem ser lidas, primeiro, diretamente – da primeira aparição de A para a segunda, depois para a terceira e assim por diante. Se isso for feito, a continuidade de cada camada deverá tornar-se imediatamente clara. Quando a condução melódica for incomum, ou quando esta vier abreviada no esboço, caminhos serão mostrados por linhas contínuas, como no baixo da primeira aparição de B. Linhas pontilhadas indicam as relações e transições entre áreas, divergências e elementos de unificação. O intervalo de quarta justa suportando A e B, por exemplo, é indicada no início como um fator comum. A transição de A para C no Nº 6 é mostrada similarmente, assim como a dupla ligação de C para a exposição seguinte de A e B.
Algo que o esboço não mostra é a contribuição métrica para a diferenciação dos estratos. Tomando-se Semínima = 72 como medida comum, encontraremos as seguintes relações:
Essas relações também contribuem para a unificação. No primeiro passo importante em direção à síntese, no Nº 11, a área referida como D traz conjuntamente A e C em um nível tonal comum contra interjeições contrapontísticas de B. A é assimilado no tempo mais rápido de C, um movimento de início resistente, mas finalmente unido por um B transformado intencionalmente. Externamente a essa síntese aparece E como uma longa divergência que mostra sua estreita conexão pela retenção do mesmo tempo. E, por sua vez, sofre freqüentes interjeições contrapontísticas de D e após várias interrupções mais sérias retorna para sua origem, sem reaparecer novamente.
A metade posterior da peça trata amplamente do desenvolvimento da nova área F. Já havia sugerido que F contém muitos níveis que são unificados no tutti climático no Nº 54. O resultado é uma ênfase inequívoca sobre a quinta A-E como vizinha de G-D do início e do final. Ao mesmo tempo, outra linha iniciada pelo intervalo original G-D desce para F#-C# (Nº 9) e E-B (Nº 15 e depois, especialmente, Nº 26), e seu retorno gradual ao nível original é completado na síntese final.
Essa é, então, a função da recém florescida área B: resolver ambos os movimentos. Um papel belamente desempenhado pelo último acorde. Os aspectos lineares dessa síntese estão indicados no esboço. Mais sur-preendente, porém, é a maestria com a qual a progressão harmônica em direção à tônica C é realizada. Já anunciada pelos acordes premonitórios nos Nºs. 42 e 56, retardada pelo longo desenvolvimento da seção F, claramente abordada no Nº 65, momentaneamente frustrada pela divergência dentro da seção B, ela chega inevitável e objetivamente. E embora sua fundamental seja C, o acorde é amplo o suficiente para conter em seu interior as tríades de G, do início, e Em da longa passagem central.
A conexão de G para E é importante por outro motivo: ela demonstra a influência do motivo de abertura sobre o curso total da obra. A área A trata do contraste entre duas quintas (ou de uma quinta e uma quarta) em distância de terça menor: G-D e Bb-F. A expressão da mesma relação, horizontalmente na voz superior, reforça a oposição básica entre as áreas A e B. A progressão de G para E e vice-versa, de novo expressa em termos de suas quintas, reflete a terça menor na direção oposta. Assim, a terça funciona dentro de uma área única, por contraste entre áreas e através do movimento do todo.
Duas passagens transicionais recorrentes devem ser notadas: aquelas marcadas com X e Y. X é primeiramente utilizada entre as áreas A e C, mas posteriormente ocorre anexada cadencialmente para A, B e E – um elemento de unificação significativo. Y sempre funciona como preparação para uma longa seção: é usado para anunciar E, F e B final.
O detalhe mais interessante de todos, entretanto, é a pequena passagem no Nº 3. Interpolada como uma conclusão de A, ela aguarda, métrica e motivicamente, pela futura área F. Ao mesmo tempo, ela resume os dois importantes movimentos de quintas já mencionados: o movimento vizinho de G-D para A-E e vice-versa, e o descendente de G-D através de F#-C# para E-B. O corne inglês, sua voz mais grave, antecipa claramente a tonalidade de C ao encontro da qual a composição inteira se direciona.
III
O primeiro movimento da Serenata em A é um exemplo mais simples e sutil destas mesmas técnicas. Simples porque está baseada somente em uma estratificação predominante; e sutil porque as duas áreas desenvolvem o mesmo material e estão, consequentemente, sempre em contato próximo entre si. O enunciado inicial dos dois estratos estabelece o contraste imediato: A possui dinâmica forte, é relativamente agudo em tessitura e baseado no modo frígio. B possui dinâmica piano, é grave em tessitura e mais cromático, movendo-se a partir do modo frígio para uma tonalidade maior. O Hymne registra o progresso da gradual assimilação destes níveis para cada outro. O primeiro passo neste sentido, a repentina variação harmônica no compasso 22, exemplifica a abordagem mais flexível de Stravinsky para com seu próprio método, pois essa passagem funciona simultaneamente como divergência e unificação. Do ponto de vista de B ela é uma divergência ao encontro do domínio mais diatônico de A, uma divergência que retornará a sua origem somente no compasso 42. Mas em um contexto amplo, essa área representa uma convergência de A e B, a primeira de uma série que conduzirá à síntese dos compassos finais. O esboço tenta tornar claro ambos os relacionamentos.
O estrato A executa um passo importante ao encontro da unificação no compasso 52, onde pela primeira vez interrompe-se a dinâmica forte, seguindo-se em piano, um nível dinâmico daqui em diante associado exclusivamente à área B. Nos compassos 63-65 ocorre uma divergência que, como aquela notada previamente, é, ao mesmo tempo, um passo em direção à síntese. Aqui, A invade a tessitura grave e o franco cromatismo de B, e mesmo quando retorna ao seu próprio nível melódico, no compasso 68, a harmonia permanece colorida pela associação.
É certo que a síntese dos últimos compassos encontra-se ainda no âmbito de B, porém resolve especificamente ambos os níveis como indica
o esboço. A conclusiva oitava aberta soa apropriadamente neutra.
A oposição estabelecida nos compassos iniciais não somente explica as interrupções imediatas tão características deste movimento, como também realça as divergências dentro das seções maiores. Do mesmo modo que na Sinfonias, um detalhe inicial controla o curso formal. Dificilmente poderia ser tomado como acidental o fato de que se somadas todas as seções rotuladas como A e aquelas nomeadas por B os resultados serão iguais em tamanho, quase até o ponto de somarem-se todas as colcheias.
IV
O refinamento já notado na Serenata se estende ainda mais no primeiro movimento da Sinfonia dos Salmos. Nesta, as áreas I designadas como B e C representam expansões sucessivas e divergências a partir da área original A, que é um puro acorde de E menor. (Puro, mas não simples: sua orquestração única e dobramentos já sugerem o importante papel de G como uma dominante futura.) B, sempre facilmente distinguível pela predominância do piano, permite movimentação diatônica dentro do Em estático; mas C, o veículo das linhas vocais, contém vizinhos cromáticos nas suas partes instrumentais que empurram continuamente as vozes ao encontro de Cm ou Eb. Por quê?
A resposta nos leva além dos limites deste movimento. A última aparição de C termina justamente sobre a dominante de Cm, a tonalidade do segundo movimento. Eb, sobre a qual este movimento, por seu turno, termina, também é proeminente no final, que resolve o conflito constante entre aquela tonalidade e a de C em favor desta última. Isto completa o
tante de unificação. Seu movimento de semicolcheias ressalta B constantemente. Suas harmonias são constantemente sugeridas em C, cujo acompanhamento é apropriadamente baseado na aumentação de X. Todavia, a verdadeira resolução de X vem somente com a apresentação do sujeito da fuga do segundo movimento.
Isso mostra, então, a mesma técnica, mas usada de uma maneira altamente complexa. B, embora divergente em ritmo de A, desenvolve sua harmonia; contudo, no contraste harmônico e instrumental para com X, utiliza seu ritmo. (Em um ponto – durante a transição para a primeira entrada de C – B até mesmo abarca a harmonia de X.) C, por sua vez, facilmente distinguível de seus vizinhos pela orquestração, não obstante inclui e sintetiza a harmonia de todos eles; e o clímax no Nº 12 combina C com B e, por implicação, com A. Sobreposições interessantes ocorrem, quando
V
Foi sugerido no início que Stravinsky nunca renunciou ao método de composição aqui sumarizado. Uma olhadela superficial à quase todas as peças típicas escritas anteriormente a sua fase dodecafônica sustentará essa idéia. Uma análise do primeiro movimento da Sinfonia em Três Movimentos, por exemplo, torna-se muito fácil aplicando-se o princípio da estratificação. A introdução não somente fornece o material básico das sucessivas divergências formadoras das áreas importantes do movimento, mas também retorna ao final para completar sua própria linha e sintetizar o todo. Os estratos principais do corpo do movimento, aqueles iniciados no Nº 7 e no Nº 38, são apresentados em padrões conectados; e muito do que acontece internamente em cada estrato pode ser explicado por sub-estratificações – tais como as contrastantes áreas concertantes que compreendem a seção central.
O que é mais surpreendente é encontrar os mesmos princípios em atividade nas obras dodecafônicas. Não há exemplo mais claro de conexão do que, por exemplo, as recorrentes cartas hebraicas em contraste com os textos latinos de Querimonia e Solacium, seções de Threni. Nestes, cada estrato forma uma linha unificada pela melodia, progressão harmônica, instrumentação e escolha de vozes. Um exemplo mais primitivo do mesmo tipo é encontrado no refrão orquestral recorrente que perpassa o Canticum Sacrum.
Poder-se-ia argumentar que estes são casos especiais semelhantes aos trabalhos para palco e, portanto, somente as demandas textual e litúrgica trariam à tona a técnica característica do período inicial de Stravinsky. Ainda assim, eu acredito que um método estritamente relacionado subjaz em Movimentos. Neste (em um estilo caracterizado pela ampla tessitura, melodias pontilhistas, completa exploração harmônica da escala cromática e ritmo flexível livre de padrões óbvios de ostinato), a diferenciação instrumental torna-se a principal fonte de estratificação. Esta prática é especialmente óbvia nos movimentos Nºs três e quatro dos Movimentos. No terceiro movimento, um nível é iniciado pelo piano, outro pelo oboé e corne inglês, e outro pela harpa e trompetes. Somente o piano permanece completamente inalterado. No segundo nível, o corne inglês é substituído primeiramente pelo clarinete e depois pelas flautas. No terceiro nível, os trompetes são unidos pelo clarone e são eventualmente substituídos pelo trêmolo do clarinete. Esse elemento serve como um pedal de unificação na síntese final de todas as três camadas.
O quarto movimento apresenta um nível sempre introduzido pelas flautas e sustentado por acordes nos harmônicos de cordas. Cada exposição dessa área é respondida pelo piano, mas cada frase do piano é, por sua vez, apresentada e interrompida por uma interjeição orquestral. A área responsável pela interrupção é sempre a mesma: solo de cellos ou baixos. A área introdutória varia constantemente: dos harmônicos do cello (compasso 98), para clarinetes (compasso 111), para trombones e clarone (compasso 125).
Esses dois movimentos são os mais radicais no uso da orquestra nesse sentido; porém, todas as seções são influenciadas pela mesma abordagem. Isso é simbolizado pela disposição peculiar da partitura1 – um esquema de notação que, de fato, sugeriu o esquema que tenho usado em minhas próprias análises. Além do mais, a obra inteira mostra evidências de um plano único de estratificação orquestral, funcionando dessa maneira em todos os movimentos. Isto pode ser observado no idioma característico de certos instrumentos: os trompetes, seja quando estão tocando intervalos ou linhas melódicas, enfatizam constantemente a quinta; os trombones, até o último movimento, são ouvidos sempre como um grupo; o trêmolo do clarinete é transportado do terceiro para o quinto movimento. A sucessão de interlúdios ressalta primeiramente a sonoridade individual de cada grupo (madeiras, cordas e metais) e posteriormente a unificação dos três.
Da maneira como é preparado, por diferenciações excepcionalmente claras das áreas instrumentais do Nº IV, esse interlúdio vem como uma síntese climática – o único tutti presente na obra inteira. É típico desta fase de Stravinsky que este procedimento seja seguido por um movimento de relativa atenuação, decompondo a orquestra uma vez mais em camadas estratificadas. É sintomático que mesmo o timbre da harpa esteja dividido como se fora em duas partes – compostas de harpa e celesta (compasso 183).
Muitos ouvintes notaram que Movimentos, apesar de todas as referências ao serialismo pós-weberniano, soa ainda indiscutivelmente stravinskyano. O levantamento exposto neste artigo de um aspecto duradouro do estilo de Stravinsky pode sugerir o porquê2.
Exemplo 1: Esboço de Cone demonstrando os estratos da Sinfonias para Instrumentos de Sopro
Exemplo 1 (continuação): Estratos da Sinfonias para Instrumentos de Sopro Exemplo 1 (continuação): Estratos da Sinfonias para Instrumentos de Sopro
Exemplo 2: Esboço de Cone para os estratos da Serenata em A
Exemplo 3: Esboço de Cone para os estratos do Primeiro Movimento da Sinfonia dos Salmos
1 Foi nesta obra que Stravinsky pela primeira vez valeu-se de uma disposição gráfica distinta para a impressão da partitura. Nesta, os sistemas musicais só foram impressos onde seriam realmente utilizados, com isso, os compassos de pausa não foram impressos (N.T.).
2 Desde que este levantamento foi escrito, o texto de Nicolas Nabokoff “Natal com Stravinsky”, para a coletânea Stravinsky de Edwin Corle (Duell, Sloan and Pearce, New York, 1949, p. 123-168), chamou minha atenção. Neste, Stravinsky descreve sua composição da fuga de Orpheu em termos consideravelmente próximos aos meus: “Note que eu cortei a fuga com um par de tesouras [...] eu introduzi esta curta frase da harpa, como dois compassos de acompanhamento. Depois, as trompas seguem com a fuga como se nada tivesse acontecido. Eu repito isso a intervalos regulares, aqui, depois ali [...]. Você pode eliminar esta interrupção do solo de harpa, emendar as partes da fuga e o resultado será uma peça completa” (p. 146). Eu não poderia pretender uma confirmação mais autorizada da minha teoria.
CONE, Edward T. Stravinsky: the progress of a method. In: Perspectives of New Music 1. Org. Benjamin Boretz e Edward Cone. New York: Princeton University Press. 1962, p. 18-26.
_______. Stravinsky: the progress of a method. In: Perspectives on Schoenberg and Stravinsky. New York: W.W Norton, 1972, p. 155-164. Ed. Benjamin Boretz e Edward Cone.
GRITTEN, Anthony. Edward T. Cone’s Stravinsky. The Progress of an Essay. In: The Musical Times. Vol. 139, Nº 1862. April 1998, p 4-13.
KERMAN, Joseph. Musicologia. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
Edward T. Cone – P.