O LUGAR-COMUM DO HUMOR EM HAYDN

HUMOR´S COMMON PLACE IN HAYDN

Mônica Lucas (SP)

Resumo: Este artigo busca resgatar a acepção setecentista do termo humor, no intuito de reavaliar um lugar-comum que, desde o século XVIII, associa esta qualidade à obra de Haydn. Esta relação perdura até os dias de hoje, a despeito da mudança de acepção do termo humor, sem que haja, em grande parte dos casos, preocupação em definir este conceito. Para proporcionar uma melhor compreensão do sentido do termo nas críticas setecentistas que se referem à produção de Haydn, dividimos esse artigo em três partes: a primeira busca situar os textos que discorrem sobre a noção de humor no final do século XVIII; a segunda parte dedica-se à reconstituição, propriamente dita, do sentido do termo humor no século XVIII; a terceira, à aplicação desta acepção na leitura de artigos setecentistas que relacionam a música de Haydn à qualidade humorística. Palavras-chave: Joseph Haydn; Humor; Crítica setecentista; Retórica; Estética; Cômico.

Abstract: This article attempts to recover seventeenth century meaning of the term humor, in order to reevaluate a common-place that has been, since Haydn´s own time, associating this quality to his work. This relation remains valid until today, despite many changes in the significance of the term humor, without any concern for defining this concept, in most cases. This article is divided in three parts: in first place, there is a contextualizing of the sources dealing with the notion of humor in the seventeenth century; the second part is dedicated to the reconstitution of the term humor in the seventeenth century, and the third part regards magazine articles that related Haydn’s music to the notion of humor, during his own time. Keywords: Joseph Haydn; Humor; Seventeenth-century critics; Rhetoric; Aesthetic; Comic.

‘O aparecimento de C. Phil. Em. Bach, o humorista sério, e de Joseph Haydn, o romântico cômico, deram finalmente aos berlinenses e aos vienenses uma nova vida e diferenciaram seus gêneros para sempre”.1 Allgemeine Musikalische Zeitung [Jornal Musical Geral], 1813

O epíteto “humorista sério”, com que Johann Friedrich Reichardt, autor da crítica acima, se refere à produção de Carl Philip Emannuel Bach, é, para o leitor moderno, no mínimo, intrigante, se considerarmos que as acepções modernas mais comuns de humor relacionam o termo a idéias de comicidade em geral, como graça e jocosidade.2 O paradoxo que se estabelece entre as categorias “humor” e “sério”, aponta para a necessidade de se resgatar o sentido setecentista do termo humor, que qualifica freqüente-mente a música de Haydn. Isto ajudará a entender melhor o conteúdo de críticas como a Allgemeine Musikalische Zeitung [Jornal Musical Geral], acima, ou comentários de muitos autores que, no século XVIII, relacionam a idéia de humor à obra de Haydn. No início do século XIX, a associação entre a produção de Haydn e o seu aspecto humorístico já é um lugar-co-mum estabelecido. A relação perdura até os dias de hoje, sem que haja, em grande parte dos casos, preocupação em definir conceitos.

No intuito de proporcionar uma melhor compreensão do sentido do termo nas críticas setecentistas que se referem à produção de Haydn, optamos por dividir esse artigo em três partes: a primeira busca situar os textos que discorrem sobre a noção de humor no final do século XVIII; a segunda parte dedica-se à reconstituição, propriamente dita, do sentido do termo humor no século XVIII; a terceira, à aplicação desta acepção na leitura de artigos setecentistas que relacionam a música de Haydn à qualidade humorística.

1. Ética e Estética

Alguns dos tratamentos setecentistas mais extensos sobre o conceito de humor encontram-se em escritos que versam sobre Estética, disciplina surgida por volta da metade daquele século, que começava a se tornar relevante na época de Haydn. O termo estética, cunhado por Alexander Baumgarten no século XVIII,3 refere-se à disciplina que visa definir

o belo, refletindo uma preocupação muito em voga durante o século XVIII: reconhecer as qualidades intrínsecas dos objetos que geram prazer visual ou auditivo.

Nas preceptivas clássicas e em suas releituras seiscentistas e setecentistas, o belo submete-se à virtude (excelência moral) e, assim, é assunto da Ética. Aristóteles afirma, em sua Retórica, que “forçosamente, será belo o que produz virtude (já que tende a ela) ou o que procede da virtude; as coisas belas constituem os signos e as obras da virtude”.4 No mundo cortesão, a virtude é considerada, aristotelicamente, como “uma disposição da alma relacionada com a escolha de ações e emoções, disposição esta consistente num meio termo (o meio termo relativo a nós) determinado pela razão”,5 pressupondo, desta forma, haver uma adequação (“meio termo determinado pela razão”) do comportamento individual (“escolha de ações e emoções”) às circunstâncias externas; estes são protocolos do decoro.

No século XVII e no início do XVIII, o preceito clássico de decoro associa-se a idéias que visam justificar e difundir a fé cristã. Em concordância com esse princípio, que o teórico e compositor Johann Mathesson inicia seu tratado sobre o mestre-de-capela perfeito (1739), estabelecendo a seguinte premissa principal: “tudo deve soar convenientemente [i.e., com decoro]”, princípio do qual fluem, “como de uma fonte cristalina, todas as regras da música.”6 Para ele, ainda, a música tem uma única função: louvar a Deus.7 O mestre-de-capela Perfeito foi estudado por Haydn, em sua juventude.

A partir do século XVIII, alguns pensadores ingleses, influenciados pela filosofia empírica de John Locke, desenvolveram idéias que permitiram uma nova acepção do belo. Entre eles encontra-se Henry Homes,

o Lord Kames, que publicou seu “Elements of Criticism” na Inglaterra, em 1761. A obra foi traduzida para o alemão em 1763, e exerceu influência determinante no pensamento germânico de então. Ela é citada também em artigos que se referem a Haydn, publicados em sua própria época, como veremos adiante. No primeiro capítulo da obra, Kames explica que sua maneira de julgar o belo não se fundamenta na moralidade: procura examinar a área sensitiva da natureza humana e, analisando os objetos naturalmente agradáveis ou desagradáveis, tem por objetivo descobrir os princípios que considera como sendo genuínos das belas-artes. No capítulo 3, ele amplia essa consideração, afirmando que a beleza tem dois aspectos. o primeiro, que ele denomina relativo, reflete a visão tradicional, aristotélica, que se associa com a utilidade (moral). O reconhecimento do belo exige, portanto, além dos sentidos, o uso da razão, pois requer compreensão e reflexão. Em seguida, Kames atribui ao belo um segundo (e mais importante) aspecto, que ele denomina de intrínseco, fundamentado apenas na sensação imediata de prazer ou repulsa que o objeto causa ao observador. Kames restringe a função moral a apenas uma das espécies da beleza. A espécie mais importante de beleza, no entanto, é a que depende exclusivamente dos componentes intrínsecos do objeto, como regularidade e simplicidade (com respeito ao todo), uniformidade, proporção, ordem, movimento e grandeza (com respeito à relação das partes entre si) – assuntos de investigação da Estética que Kames trata separadamente, um a um.

Assim, a Estética surge como disciplina que trata exclusivamente do Belo, colocando sua discussão acima de questões éticas, como sua utilidade moral e a adequação da obra de arte a protocolos de decoro. Essa reflexão é importante para a leitura de documentos setecentistas que tratam do humor nas obras de Haydn. A reflexão sobre o caráter moral da conduta humana e, conseqüentemente, das belas-artes possibilita entender as discussões setecentistas sobre humor, como veremos a seguir.

2. Humor

Etimologicamente, o termo é derivado do latim humor que significa líquido, fluido, e refere-se, em especial, aos quatro humores ou líquidos do corpo humano. A fisiologia e a medicina antigas apoiavam-se amplamente no corpus hipocraticus, reunião de escritos atribuídos ao médico grego Hipócrates de Cós (séc. V-IV a.C.) e nos escritos de Galeno, médico do século I a.C.8 De acordo com essas fontes, os humores influenciavam não só o estado de saúde e a aparência física, mas também o caráter do indivíduo, daí as acepções de temperamento, modo de ser, gênio. A disposição de espírito particular de cada homem era resultante do temperamento (mistura) entre os quatro humores de seu corpo. Ao equilíbrio desejável, opunham-se as disposições sanguínea, flegmática, melancólica ou colérica, cada qual determinada pela predominância de um dos humores.

No século XVI, por extensão e especialização, o termo passou a referir-se exclusivamente às formas de desvio, provocado por alguma desproporção acentuada (e, portanto, indecorosa) entre os humores. Dessa forma, o humor tornava o indivíduo mais propenso a certas afecções. O controle sobre as disposições naturais pertencia ao território da Ética. Desta forma, os humores, que forneciam a matéria básica da qual se constituía

  1. o temperamento, independiam da razão, mas deveriam ser dominados por ela. Eles constituíam “uma espécie de latência ou forma orgânica, na qual se incluiria, em alguma medida, também a mente e o espírito”.9 O controle racional a que a disposição humorística, natural, deveria estar sujeita, presumia uma adequação a ideais de decoro, tais como previstos em referências clássicas, como o tratado “Sobre os Deveres” [De Officiis], I.A.C., do orador romano Marco Túlio Cícero, emuladas em fontes cortesãs, como
  2. o “Livro do Cortesão” [Il Libro del Corteggiano], publicado, em 1527, por Baldassare Castiglione.

No fim do século XVII, o conceito de humor passou a sofrer, na Inglaterra, transformações significativas, intimamente conectadas com o desenvolvimento da comédia inglesa. O humor passou a designar uma combinação única de fluidos que determinava o temperamento particular de cada homem, passando a ser visto, não mais como falta de adequação, mas como qualidade individual. No início do século XVIII, consolidou-se a expressão british humor. A causa da superioridade do humor inglês era, segundo o comediógrafo inglês William Congreve (1695) “a grande liberdade, privilégio e os direitos [especiais] de que as pessoas comuns da Inglaterra gozam. Cada homem tem um humor, [e] não tem restrições ou medo de dar vazão a ele.”10 De acordo com escritores britânicos, somente na Inglaterra havia o clima, prosperidade e liberdade econômica capazes de produzir cidadãos dotados de saúde, de coragem, de beleza, de verdadeiro gênio, de boa-índole, e, acima de tudo, de humor. Na Inglaterra, a sociedade é mais livre, “pois cada homem segue seu [humor] original e tem prazer, talvez até orgulho, de mostrá-lo”.11 O aspecto individual é apreciado por Congreve, para quem humor é “uma maneira singular e inevitável de fazer ou dizer algo, peculiar e natural a um homem único, pela qual seu discurso e ações distinguem-se daqueles de outros homens.”12

A definição de Congreve foi largamente empregada no século XVIII, por autores ingleses e também alemães. Analisando essa citação, Lord Kames conclui que

“se essa explicação estivesse correta, um ar altivo e majestoso, que é uma característica singular, ou um domínio da eloqüência, que não é menos singular, também seria considerado humor. As coisas justas e adequadas não são denominadas humor, nem a singularidade de caráter, palavras ou ações valorizadas ou respeitadas. O caráter do humorista é risível e impróprio, e isso diminui nossa estima por ele, tornando-o de certa maneira ridículo.”13

Kames considera o humor como uma qualidade individual, mas atribui a ele uma conotação risível, que irá predominar na visão do século

XIX.

No sentido que Congreve atribui ao termo, torna-se facilmente aceitável o aparecimento de um novo tipo de comédia, em que os personagens apresentam um humor individual, às vezes excêntrico, porém peculiar, benevolente e, sobretudo, desvinculado de preceitos de decoro. A bondade natural sobrepõe-se à rigidez prescrita pela moral aristocrática. Numa sociedade de orientação cada vez mais burguesa, o fator determinante da convivência social passa a ser a boa índole, que estabelece o denominador comum para um comportamento que tende cada vez mais para o individual e o subjetivo. É nesse sentido que Kames afirma que “um autor de humor, afetando gravidade e seriedade, pinta os objetos em cores que provocam alegria [mirth] e o riso.”14

Neste contexto, torna-se mais fácil compreender o conteúdo de críticas setecentistas sobre a obra de Haydn, amplamente fundamentadas nas discussões inglesas. Nelas, os autores elogiam ou vituperam o aspecto humorístico – original ou excêntrico – da música de Haydn, como veremos adiante.

3. O humor de Haydn em documentos alemães do século XVIII

O termo inglês humor foi incorporado, no século XVIII, ao vocabulário alemão, identificando-se com o termo Laune, que, derivado do latim luna (lua), representava inicialmente uma disposição passageira. O sentido do termo alemão alterou-se, aproximando-se do sentido do termo inglês humor, disposição natural duradoura e individual.

Como dissemos, na época de Haydn, já é freqüente a associação entre sua produção e o termo humor. O verbete “Haydn” do Portfeuille für Musikliebhaber (“Portfólio para Amantes da Música”), de Karl Ludwig Junker15 (Leipzig, 1792) contém uma abordagem extensa do assunto. O artigo começa definindo o que seja a “Laune musical” e, com isso, revela uma preocupação em associar a música de Haydn a questões estéticas da época.

“Laune (...) representa em parte uma disposição da mente por meio da qual a pessoa enxerga todas as coisas de uma maneira especial, sendo movida por tudo de uma forma não-convencional, e [representa] em parte aquele modo de ser [Gemüthsart] que leva a pessoa a dizer e fazer, sem restrição, aquilo que outras pessoas, que se deixam limitar pelo pensamento das restantes, ou pelos costumes não fariam nem diriam – [mas seguiremos] adiante. O caráter humorista [launig] abre, por assim dizer, a alma, desenvolve tanto cada germe de pensamento, que precisa ser dito, e nos deixa, portanto, saber mais sobre a filosofia secreta do homem (do coração, acrescento), do que qualquer outro”16

Ao utilizar as expressões “Anlage des Kopfes” ([pré]disposição da mente) e “Gemüthsart” (modo de ser), deixa claro que está se referindo a disposições permanentes, traços peculiares de caráter, e põe ante os olhos

o processo de aproximação entre Laune e humor. Junker, de fato, serve-se de autores ingleses, mas critica a definição corrente de Congreve, e, para isso, baseia-se na investigação estética do autor alemão Joseph Riedel17. Nega que o humor seja, como Congreve afirma, apenas “uma maneira especial e inevitável de agir e falar, peculiar a uma única pessoa”18: ele concorda que o caráter do humorista deve ser particular [eigenthümlich], e que deve ser diferenciado [abstechend], mas acrescenta que contém algo de bizarro e indecoroso [unschicklich]. Se não fosse assim, segundo ele, seria forçoso concluir que qualquer homem seria, em tese, um humorista, o que ele considera falso. Nesse ponto, Junker está de acordo com Lord Kames, autor que ele cita no artigo sobre Haydn.

Johann Georg Sulzer, autor da importante enciclopédia das belas-artes, Allgemeine Theorie der Schönen Künste (Teoria Geral das Belas Artes, 1777), por outro lado, considera a Laune em uma acepção mais próxima da visão germânica, como uma disposição de espírito (“Gemüthsfassung”), um estado afetivo (“leidenschaftlicher Zustand”). No verbete “Laune”, ele aproxima os conceitos Laune e humor, e afirma que:

Laune é exatamente aquilo que comumente se expressa com a palavra francesa humeur, ou seja, uma disposição passageira [Gemüthsfassung] na qual uma emoção, agradável ou triste, é tão dominante que todas as idéias e expressões da alma são por ela contagiadas. Ela é um estado afetivo [leidenschaftlichen Zustand] no qual a paixão não é intensa, nem tem um objeto determinado; simplesmente, seu conteúdo agradável ou desagradável espalha-se por toda a alma. Em uma Laune alegre vemos tudo pelo lado prazeroso, numa triste, no entanto, é tudo triste. (...) O juízo não é totalmente tolhido pela Laune, como [é tolhido] por uma afecção violenta, mas é distorcido, pois não vê nenhum objeto em sua forma verdadeira, ou em sua proporção correta. (...) Freqüentemente, o artista não tem outra musa para auxiliá-lo que sua Laune. (...) Aquilo que nós vemos em sua forma verdadeira e com suas cores naturais, o homem humorista [launig] vê de forma alterada e com cor falsificada. Espanta-nos que ele não veja as coisas como nós as vemos, e por isso, o estado humorista (launig) se aproxima do ridículo, e serve para nos alegrar.”19

No final do século XVIII, relação entre o humor e o cômico torna-se possível dado o aspecto comum a ambos: a falta de proporção de seus elementos internos. No entanto, apesar dessa analogia, há uma diferença entre os conceitos: enquanto o humor apresenta uma falta de adequação natural, no cômico ela é intencional, e visa a edificação, pelo reconhecimento e repulsa ao caráter vicioso dessa inconveniência. Sulzer estende essa propriedade do cômico para o humor, e explica que a Laune não deve ser admirada por si só, mas pelo aspecto edificante de sua desproporção, cômica, que aponta para a “direção correta da razão”. Junker usa o aspecto incongruente do cômico para vituperar certas obras de Haydn, e afirma que o resultado do humor de Haydn é “a inadequação dos pensamentos de [seu] caráter singular, distorcido [abstechend], quando exposto sem reservas, através de (...) e obras”.20 Essa visão não impede que, eventualmente, no século XIX, o aspecto análogo a ambas inconveniências, natural (humorística) ou afetada (cômica), livres das críticas que as consideram como viciosas, torne possível que se encare o cômico positivamente, como um subgênero do humor. O próprio cômico passa a ser considerado um gênero potencialmente alto.

Seguindo essa vertente, Sulzer dedica metade de seu artigo sobre Laune ao gosto cômico:

“No palco cômico, a Laune do personagem principal é a coisa mais importante. Nada é mais divertido de se ver e ouvir que a cor e o tom que a Laune empresta a todas as ações e julgamentos dos homens, e os mais notáveis contrastes surgem ali onde pessoas com Launen contrárias se interessam por um mesmo objeto, pois um o vê pelo lado triste, o outro pelo alegre. Nestes contrastes, o poeta encontra a melhor oportunidade para tornar visível a direção correta da razão. (...) Devemos freqüentemente espantar-nos conosco, por fazermos julgamentos diferentes, com respeito a diferentes aspectos de uma mesma coisa. Eles são resultado da Laune.”21

No processo de aceitação das idéias inglesas, que se deu na Alemanha de forma efetiva apenas no início do século XIX, podemos perceber que certos procedimentos de Haydn, que exibem soluções peculiares e, na visão de Junker e Sulzer, humorísticas, divergem de pressupostos estabelecidos por alguns de seus críticos. Esta incompatibilidade está na raiz de algumas críticas negativas a Haydn escritas em sua própria época.

No tratamento dado pela crítica ao humor de Haydn no século XVIII, podemos perceber a confluência de ideais éticos, que evidenciam

o aspecto indecoroso do humor, com idéias mais modernas (pensamento inglês) que fundamentam o fazer de Haydn, enfatizando seu aspecto individual. Estas não vêem na falta de decoro um obstáculo para a apreciação da obra de arte. A compreensão moderna do termo humor, ao reduzí-lo simplesmente ao cômico tende a desprezar um aspecto importante da obra de Haydn, pelo qual ele foi muito louvado no início do século XIX, que são seus procedimentos peculiares e originais. Isso torna possível compreender o significado mais amplo de afirmações como a de Griesinger, primeiro biógrafo de Haydn (1809): “o traço principal de Haydn era uma travessura benevolente, aquilo que os bretões denominam humor.”22

Notas

1 “Die Erscheinung C. Phil. Em. Bachs, des ernsten Humoristen und Joseph Haydn, des comischen Romantikers gaben endlich der Berliner und Wiener Musik neues Leben und entschieden deren Genre für immer.”

2 HOUAISS, Antônio, Mauro de Salles Villar e Francisco Manoel de Mello Franco – Dicionário Houaiss da língua Portuguesa. São Paulo, Objetiva, 2001.

3 Baumgarten (1714-1762) publicou sua obra inacabada Aesthetica em 1750-58.

4

ARISTÓTELES. Retórica. Madrid: Gredos, 1991, 1466 b (9.3).

5

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: UNB, 2001, 1106b.

6 “Alles muss gehörig singen. Unter dem Wörtlein gehörig, als worauf die meiste Stärcke dieses allgemeinen Grund-Satzes ankommt, begreiffen wier hieselbst, wie leicht zu ermessen, alle angenehme Umstände und wahre Eigenschafften des Singens und Spielens, sowohl in ansehung der Gemüths-Bewegungen, als Schreyb-Arten, Worte, Melodie, Harmonie, usw.” In: MATHESSON, Johann. Der Vollkommene Capelmeister (Hamburg, 1739). Kassel: Bärenreiter, 1991 (fac-simile), I, 1.

7 Música é uma ciência e uma arte de produzir prudentemente sons convenientes e agradáveis, encaixá-los de maneira correta e proferí-los amavelmente, de modo que através de sua consonância sejam incentivados o louvor a Deus e todas as virtudes. A música também é ciência, pois os sons (matéria) devem ser prudentemente ordenados no papel (forma). Se a música não visar o louvor a Deus e o incentivo das virtudes, ela jamais alcançará seu objetivo. In: Id. Ibid. I, 2.

8 Para uma discussão mais detalhada do assunto, cf. PILSZINSKI, Judith. “The Evolvement of the Humoral Doctrine”. In: Medical Times 92 (1964), p. 1009-1014.

9

PÉCORA, Alcir. “Humores e Simetrias das Máximas”. In: Máquina de Gêneros. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 130.

10 “...the great Freedom, Privilege, and Liberty which the Common People of England enjoy. Any Man has a Humour, [and] is under no restraint, or fear of giving it Vent.” Apud TAVE, Stuart. The Amiable Humorist – A Study in the Comic Theory and Criticism of the 18th and Early 19th Centuries. Chicago: University of Chicago Press, 1960, p. 100.

11 “because every man follows his own [humor] and takes a pleasure, perhaps a pride, to shew it” Temple, William (1690). Apud. Id. Ibid., p. 95.

12 “a singular and unavoidable manner of doing, or saying any thing, Peculiar and Natural to one Man only; by which his Speech and Actions are distinguished from those of other Men.” Congreve, William. Apud. Id. Ibid., p. 99.

13 “Were this definition just, a majestic and commanding air, which is a singular property, is humour: as also a natural flow of correct and commanding eloquence, which is no less singular. Nothing just or proper is denominated hujour; nor any singularity of character, words, or actions, that is valued or respected. When we attend to a character of a humorist, we find that it arises from circumstances both risible and improper, and therefore that it lessens the man in our esteem, and makes him in some measure ridiculous.”.In: HOME, Henry (Lord Kames), Elements of Criticism (1761). Honolulu: University Press of the Pacific, 2002 (fac-simile da edição de 1840), p. 161.

14 “[a writer of humour], affecting to be grave and serious, paints his objects in such colours as to provoke mirth and laughter. A writer that is really an humorist in character, does this without design”. Id. ibid., p. 161.

15 [JUNKER, Karl Ludwig]. Portefeuille für Musikliebhaber. Leipzig: Ostermesse, 1792. Publicado originalmente como Zwanzig Componisten: eine Skizze (Bern,1776).

16 “Laune (...) soll theils diejenige Anlage des Kops anzeigen durch die ein Mensch alle Sachen, von einer etwas sonderbahren Seite ansiehet, von allen auf eine etwas ungewöhnliche Art gerühret wird; theils diejenige Gemüthsart, in der er das, was er denkt, oder wozu er Lust hat, und was andre weder sagen noch thun würden, weil sie sich von der Meinung der übrigen, oder von der Gewohnheit einschränken lassen, ohne Zurückhaltung sagt und thut:

-weiter. Der launigte [sic] Charakter öfnet so zu sagen die Seele, er treibt jeden Keim von Gedanken gleich so weit heraus, dass er gesagt werden muss, und lasset uns also mehr von der geheimen Philosophie des Menschens (des Herzens setze ich hinzu) erfahren, als irgend ein anderer.” In: Id.ibid.. 56-57.

17 Riedel publicou sua Theorie der Schönen Künsten (Teoria das Belas-Artes) em Jena, 1767.

18 “ein besondern und unvermeidlichen Art zu thun und zu reden, die einem Menschen allein natürlich ist”. In: JUNKER. Op. cit., p. 57.

19 “[Laune ist]eben das, was man gemeiniglich auch im deutschen mit dem französischen Wort Humeur ausdrücket, nämlich eine Gemüthsfassung, in der eine unbestimmte angenehme oder verdriessliche Empfindung so herrschend ist, dass alle Vorstellungen und Aeusserungen der Seele davon angesteckt werden. Sie ist ein leidenschaftlichen Zustand, in dem die Leidenschaft nicht heftig ist, keinen bestimmten Gegenstand hat; sondern blos das Angenehme, oder Unangenehme, das sie hat, über die ganze Seele verbreitet. In einer lustigen Laune sieht man alles von der ergötzenden und belustigenden Seite; in einer verdriesslichen aber ist alles verdriesslich. (...)Von der Laune wird der Vernunft nicht so völlig, als von der heftigen Leidenschaft gehemmet; aber sie bekommt doch eine schiefe Lenkung, dass sie keinen Gegenstand in seiner wahren Gestalt, oder in seinem eigentlichen Verhältniss sieht. (...) Gar oft hat der Künstler keine Muse zum Beystand, als seine Laune. (...). Was wir in seinem wahren Gestalt und mit seinen natütlichen Farben sehen, das sieht der launige Mensch in veränderten Gestalt, und in verfälschter Farbe. Es befremdet uns, dass er die Sachen nicht so sieht, wie wir; um daher nähert sich de launige Zustand dem Lächerlichen, und dienet uns zu belustigen.” In: SULZER, Johann Georg. Allgemeine Theorie der Schönen Künste. Vol 1(Leipzig, 1771), p. 156-158.

20 “die Unschicklichkeit der Gesinnungen eines sehr eigenthünlichen, abstechenden, und eigensinnigen Charakters, wie fern sie, ohne Zurückhaltung durch Mienen, Worte, oder Werke an den Tag geleget werden.” In: JUNKER. Op. cit., pág. 58.

21 “Auf der comischen Schaubühne macht die Laune der Hauptpersonen oft das Vornehmste aus. Nichts ist belustigender zu sehen und zu hören, als die Farbe und der Ton, den die Laune allen Handlungen und Urtheilen der Menschen giebt; und die merkwürdigsten Gegensätze entstehen da, wo Personen von entgegengesetzten Laune sich fur einerley Gegenstände interessiren, da der eine alles von der verdriesslichen, der andre von der lustigen Seite ansieht. Der Dichter hat auch nirgendwo bessere Gelegenheit, als bey solchen Contrasten, uns die gerade Richtung der Vernunft sichtbar zu machen. (...) Wir müssen uns oft über uns selbst verwundern, dass wir zu verschiedenen Zeiten so verschiedene Urtheile über dieselben Sachen fällen. Sie sind eine Würkung der Laune.” In: SULZER. Op. cit., p. 157.

22 “Eine arglose Schalkheit, oder was die Britten Humor nennen, war ein Hauptzug in Haydn’s Charakter...”. (a primeira biografia de Haydn foi publicada em capítulos na Allgemeine Musikalische Zeitung [Jornal Musical Geral], em 1809).

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: UNB, 2001

_______. Retórica. Madrid: Gredos, 1991

GRIESINGER, Georg August.Biographische Notizen über Joseph Haydn. In: Allgemeine Musikalische Zeitung. Leipzig: Breitkopf & Härtel, n. 41, p. 641-649, 1 jul. 1809;

n. 42, p. 657-668, 19 jul. 1809; n. 43, p. 673-681, 26 jul. 1809; n. 44, p. 689-699, 2 ago. 1809; n. 45, p. 705-713, 9 ago. 1809; n. 46, p. 721-733, 16 ago. 1809; n. 47, p. 737-748, 23 ago. 1809; n. 48, p. 776-781, 1 set. 1809.

HOME, Henry (Lord Kames). Elements of Criticism (1761). Honolulu: University Press of the Pacific, 2002 (fac-simile da edição de 1840)

JUNKER, Karl Ludwig. Portefeuille für Musikliebhaber. Leipzig: Ostermesse, 1792, p. 55-67. Publicado originalmente como Zwanzig Componisten: eine Skizze (Bern,1776)

MATHESSON, Johann. Der Vollkommene Capelmeister (Hamburg, 1739). Kassel: Bärenreiter, 1991 (fac-simile).

PÉCORA, Alcir. Humores e Simetrias das Máximas. In: Máquina de Gêneros. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 117-134

PILSZINSKI, Judith. The Evolvement of the Humoral Doctrine. In: Medical Times 92 (1964), p. 1009-1014

SULZER, Johann Georg. Allgemeine Theorie der Schönen Künste in einzeln, nach alphabetischer Ordnung der Kunstwörter auf einander folgenden Artikeln abgehandelt (Leipzig: 1771-74). Berlin: Digitale Bibliothek.de, 2002. 1 CD-ROM

TAVE, Stuart. The Amiable Humorist: a study in the comic theory and criticism of the 18th and early 19th centuries. Chicago: University of Chicago Press, 1960.

Mônica Lucas – Graduada em clarinete pela Universidade de São Paulo, especializou-se na interpretação de música antiga no Conservatório Real de Haia (Holanda), obtendo diplomas em flauta-doce e em clarinetes históricos. Foi finalista do concurso internacional “Van Wassenaer” (Holanda, 1995). Participa regularmente das orquestras Barrocas “Concerto Köln” e “Das Kleine Konzert”. Coordena o Núcleo de Música Antiga da ECA-USP. Concluiu o doutorado em música na UNICAMP em 2005.