Ernesto Hartmann (UFES) ef_hartmann@yahoo.com.br
Resumo: O Presente artigo propõe uma análise da Paulistana nº 1, para piano, de Claudio Santoro contextualizando-a no universo estético-ideológico deste compositor. A participação de Santoro no II Congresso dos compositores progressistas e críticos musicais, realizado em Praga no ano de 1948, foi de fundamental importância para a adoção de uma linguagem “nacionalista” cujos elementos constituintes transcendem a mera utilização da apropriação de material folclórico. A partir das premissas do Congresso, abordadas pela perspectiva Zhdanovista, descrevem-se os procedimentos composicionais adotados pelo compositor para contemplar a sua nova proposta estética, característica da sua fase nacionalista (1950-1960). Palavras chave: Claudio Santoro; Paulistanas para Piano; Nacionalismo.
Abstract: This research attempt an analysis of Claudio Santoro’s Paulistana nº 1 for piano and it is contextualized by means of the composer’s esthetical-ideologically approach. His attendance to the Second International Congress of Composers and Music Critics, held in Prague in 1948, was important to in his attempt to adopt a “nationalist” idiom, therefore this paper tries to show how this idiom surpassed the simple appropriation of the basic folkloristic elements. Analyzed from a Zhdanovist perspective, it describes the compositional procedures used by the composer to fulfill his task of establishing a new esthetical proposal, characteristic of his nationalistic period (1950-1960). Keywords: Claudio Santoro; Paulistanas para Piano; Nationalism.
Durante o século XX, compositores relevantes como Igor Stravinski, Pierre Boulez, Aaron Copland, e no Brasil, Claudio Santoro e César Guerra Peixe, experimentaram diversos procedimentos composicionais, muitas vezes descritos em sua trajetória como fases. Estes dois últimos compositores adotaram uma estética e um discurso fundamentados no nacionalismo, após seus estudos com o alemão radicado no Brasil Hans-Joachim Koellreutter. A chegada de Koellreutter no Brasil, na década de 1930, foi um marco importante, incentivando a divulgação da música contemporânea com a criação do grupo Música Viva, primeiramente atuando no Rio de Janeiro, depois em São Paulo, e, posteriormente, em outros centros do país. Koellreutter foi um importante professor, principal responsável pela introdução da música serial no Brasil. A criação de festivais, cursos e oficinas renovaram o estudo de música, influenciando as gerações futuras. A adequação à nova realidade estético-musical, a busca por técnicas originais e a experimentação – características essas do grupo fundado por Koellreutter, o Musica Viva – encontraram um ambiente e um momento social bastante propício, pois essas posturas contemplavam uma demanda de renovação e dinamismo que já se expressavam em outros setores da sociedade brasileira. Este interessante momento de divulgação da produção contemporânea, fato bastante raro no país, teve como um dos seus principais protagonistas Claudio Santoro, membro ativo do grupo.
Mesmo com toda a atividade do Musica Viva, após algum tempo de estudo com Koellreutter, alguns compositores brasileiros sentiram a necessidade de promover um diálogo entre as técnicas composicionais atuais (especialmente o serialismo) e as características da música brasileira. Mario de Andrade, já em 1928 no seu Ensaio sobre a Música Brasileira, observava essa necessidade de se “nacionalizar” a música brasileira.
“o critério de música brasileira pra atualidade deve existir em relação à atualidade. A atualidade brasileira se aplica aferradamente a nacionalisar a nossa manifestação. Coisa que pode ser feita sem nenhuma xenofobia nem imperialismo. O critério histórico atual da Música Brasileira é o da manifestação musical que sendo feita por brasileiro ou individuo nacionalisado, reflete as características musicais da raça. Onde que estas estão? Na música popular” (ANDRADE, 1962, p. 4).
Entretanto, se foi ele o principal mentor da estética nacionalista seguida por César Guerra-Peixe e Camargo Guarnieri, no que diz respeito à Claudio Santoro, podemos destacar influências mais relevantes e profundamente relacionadas à opção estética adotada pelo compositor, principalmente a partir do final da década de 1940. Esta data representa o fim da sua denominada “fase atonal” que abrange o final da década de 30 e a década de 40. Nesta fase incluem-se suas primeiras composições, de caráter atonal e até quase serial, mesmo sem um conhecimento formal desta técnica por parte do compositor, como a Sinfonia para Duas Orquestras de Cordas de 1939. Até o início dos anos 60 (data que representa o fim da sua “fase nacionalista”), mais importante para Santoro aparenta ser a questão ideológica, presente na perspectiva política do compositor.
Santoro, já na década de 40, era filiado ao partido comunista brasileiro, o que se tornou um problema para ele, compositor latino-americano, durante os anos da guerra fria. Um bom exemplo disso é a recusa dos EUA,
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em 1946, em fornecer-lhe um visto de estudo, mesmo ele fazendo jus a este, devido a uma bolsa cedida pela fundação Guggenheim:
“em 1946 recebi uma bolsa da Guggenheim Foundation e o consulado americano me negou o visto por eu ser membro do partido. O partido era legal e eu, como sempre fui uma pessoa de dizer a verdade, quando me perguntaram se eu era do partido eu confirmei e por isso não estava credenciado a entrar nos EUA.” (SANTORO, Contando a Minha Vida, Procedente de Jeanette Alimonda)
Logo após esta negação por parte do governo estadunidense, Santoro foi contemplado pelo governo francês, em 1947, com uma bolsa de estudos de pós-graduação em Paris. Lá, durante seus estudos em 1948, recebeu uma comunicação da jornalista brasileira Zora Braga da ocorrência do II Congresso de Compositores Progressistas e Críticos Musicais que aconteceria na Tchecoslováquia organizado pelo sindicato dos compositores de Praga. A temática central deste congresso seria a seguinte questão: Para onde vai a música?1 O congresso dividiu-se em áreas que tratavam de seis assuntos, entre eles destacam-se para esta pesquisa: O papel das tradições nacionais no desenvolvimento da música e a função social da música.
A proposta do congresso era sistematizar o Social Realismo, já anteriormente aplicado na literatura e em outras artes na música. Para tal, Joseph Stálin, então Secretário do Partido Comunista Soviético (na prática ditador da URSS), havia alguns anos antes nomeado Andrei Zhdanov
– homem de sua confiança – para instituir na URSS e nos países alinhados uma doutrina estética totalmente fundamentada no controle do estado, que veio a se chamar Zhdanovismo. O Zhdanovismo ou Zhdanovshchina2 é o termo utilizado para representar esta política cultural que tinha pretensões de amplitude global. A supersimplificação do conceito de cultura para uma simples associação de símbolos a específicos valores morais é uma de suas principais características, existindo desta forma apenas duas alternativas para o artista: uma ideologicamente correta, a de identificação com os valores populares e aproximação da arte com o povo através da sua simplificação e outra ideologicamente deturpada, a serviço do capital, que representava a arte como produto de uma classe sem potencial de desenvolvimento, decadente (burguesia). Na primeira categoria estava a música nacional, derivada do povo e supostamente oriunda dos campos, que deveria servir de fundamento para a música mais elaborada, a chamada música Clássica. Na segunda categoria estava o Formalismo e toda a teoria estética do século XIX relacionada à abstração da arte e da arte pela arte, onde, confortavelmente, situava-se o serialismo e uma grande maioria de técnicas composicionais que estavam sendo experimentadas pelos compositores. Estas técnicas, na ótica do Partido, não contemplavam os anseios do povo, sendo, portanto, estranhas ao gosto popular do homem comum soviético. Dessa forma, a única solução possível era o banimento delas pelos compositores alinhados.
Ainda, a teoria de Zhdanov enunciava que todas as esferas do pensamento e da ação estavam divididas em dois campos mutuamente excludentes, antagônicos e irreconciliáveis. Estes dois campos estavam representados no plano das potências pela URSS e pelos EUA. A URSS liderava o Bloco Anti-imperialista e Democrático, enquanto os EUA representavam o Bloco Imperialista e Anti-democrático. Como conseqüência, instauraram-se oposições binárias entre o bloco socialista e o bloco capitalista. Na filosofia e na ciência, opunham-se o idealismo e o materialismo; na biologia a genética reacionária de Mendel (adotada pelo Ocidente) e a genética revolucionária de Michurin e Lisenko; na política o imperialismo e o socialismo e, finalmente na arte, o subjetivismo burguês decadente e o realismo socialista.
Parece então, que, com esta total politização da ética e do pensamento, nenhuma dimensão da existência humana podia ser admitida como sendo indiferente. Absolutamente todas estavam a serviço da ideologia. Da filosofia à literatura, do cinema ao divertimento, não se reconheciam alternativas. O pertencimento explícito e ativo ao campo representante da revolução socialista com a aceitação inconteste de seus valores e suas premissas filosóficas e estéticas (na interpretação de Stálin e Zhdanov) era a única forma de não se posicionar objetivamente no campo inimigo, o do capitalismo. Todos que admitissem qualquer tipo de aproximação com os Estados Unidos ou defendessem uma posição mais moderada, não conflitante com o Ocidente capitalista, mereceriam a suspeita do embrutecido e truculento regime de Stálin, sendo considerados traidores e inimigos do estado soviético.3
Em 1948, Santoro participou do II Congresso dos Compositores Progressistas e Críticos Musicais, realizado em Praga e organizado pelo Sindicato dos Compositores de Praga. Como a música folclórica e o aproveitamento de temas nacionais ainda não interessavam muito a Santoro, visto
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que quase nada da rítmica brasileira e da temática folclórica pode ser encontrado em sua obra da fase atonal, ele definiu sua conferência com o próprio tema principal, Para onde vai a música?. Como subtítulo acrescentou: O problema do compositor contemporâneo de acordo com a sua posição social.4 Para esta conferência, Santoro se apoiou nas suas discussões com Koellreutter sobre estética e os problemas do compositor. O seguinte trecho demonstra claramente a posição de Koellreutter nos pontos que tangenciam as idéias que Santoro leva ao Congresso, particularmente, no papel do artista na sociedade e do conceito de arte utilitária e sua classificação dentro do sistema de valores de Karl Marx.
“A obra de arte deve ser útil e servir aos interesses da humanidade. Assim toda obra de arte está classificada de acordo com a teoria marxista de valor, dependendo este da importância de uma obra de arte para o progresso revolucionário da humanidade. Eis a concepção utilitária da arte. Pois o artista que não conceder à sua obra a significação que lhe compete em relação ao desenvolvimento social e à super-estrutura dele, será um elemento inútil e portanto prejudicial à sociedade humana. Deste modo o artista serve aos interesses da sociedade, e a arte, assim como toda a super-estrutura, torna-se um reflexo da produção material, ficando sujeita como esta à lei da evolução.“ (KOELLREUTTER, 1947, p. 15).
Em seu artigo Problema da Música Contemporânea Brasileira em Face das Resoluções e Apelo do Congresso de Praga datado de agosto de 1948, podemos capturar com exatidão uma mudança de posição de Santoro frente às técnicas Expressionistas experimentadas por ele mesmo em sua juventude:
“De fato, antes do advento do socialismo, o artista dava a impressão de estar na frente e de impulsionar o desenvolvimento da sociedade, porque o povo não estando no poder, ele [sic] representava de fato a vanguarda. Mas hoje nos países socialistas, o povo estando no poder, a classe revolucionária está na frente; o artista que marcha ao lado do proletariado, deve estar na linha do progresso e não ao lado das tendências da última fase da burguesia” (SANTORO, 1948. p. 236).
Inicialmente a posição de Santoro era mais moderada, vendo na técnica de doze sons uma possibilidade, desde que humanizada, de fazer música. Entretanto, considerando rígida a maneira como o dodecafonismo era encarado por alguns compositores radicais adeptos da chamada se-gunda Escola de Viena, acreditou tratar-se apenas de uma substituição superficial de um sistema formalista (tonalidade) por outro. Assim sendo, o dodecafonismo seria incompatível com as idéias revolucionárias do realismo socialista, e estaria fadado a ser rotulado pelos “alinhados” como “tendências da última fase da burguesia”. Na realidade, o Congresso definiu-o como música não “positiva”, ou seja, incapaz de representar a mensagem de otimismo e vitória da classe operária, condição primordial para que fosse incluída e, principalmente, caísse nas graças do Estado, sendo rotulada como música progressista do realismo socialista.
Aparentemente, como demonstra a carta de convocação, especificamente quando observamos as expressões “solução altamente progressista” e “que corresponda aos altos ideais nacionais, populares e realistas na música”, percebemos que o Congresso já tinha suas metas bem resolvidas muito antes de começar. Necessariamente, elas passariam pela utilização da música folclórica e do espírito “popular”, sendo assim, a exclusão do atonalismo – por ser excessivamente Formalista e não ter nenhuma tangência ou origem popular – foi uma conseqüência lógica e previsível do Congresso. Em harmonia com a política de controle do estado, o encerramento da convocação deixa bem claro a direção em que o Congresso terá de convergir:
“Cada um dos participantes que se prepara para vir a Praga deveria refletir diversas vezes com toda seriedade e honestidade sobre as questões que figuram na ordem do dia (...) a união de todos na discussão de tais questões fundamentais tende a encontrar a melhor solução (...) penso que no congresso encontrará tal solução altamente progressista, que apontará a saída desta crise na qual se encontra a música contemporânea; que ela corresponda aos altos ideais nacionais, populares e realistas na música [grifos nossos]. (SCHAPORIN, 1948, In: MENDES, 1999, p. 28).
O Boletim de informação publicado pela Associação Internacional dos Compositores e Musicólogos Progressistas5 apenas reitera as decisões do partido, incontestavelmente alinhadas ao projeto político do Estado Soviético. Vladimir Stepanek, compositor Tcheco, foi o responsável pela confecção do documento que foi também divulgado em países da Europa Central e América Latina com o objetivo de unificar as correntes de esquerda presentes nestes países não alinhados com o socialismo:
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“Já em 1947, teve lugar em Praga, o I Congresso Internacional de Compositores e Críticos, mas foi somente a resolução do Comitê Central do Partido Comunista Soviético de 10 de Fevereiro de 1948 em relação a ópera de Muradelli “A Grande Amizade”, que abriu os olhos de nossos... as resoluções e deliberações do Congresso praguense de maio de 1948, se exprime de acordo com o compte-rendus dos compositores da URSS, Inglaterra, França, Brasil e outros, em relação à profunda crise que atravessa a música contemporânea e indicando a via de saneamento, assim como as possibilidades de um novo desenvolvimento das culturas musicais nacionais.” (STEPANEK, 1950, p. 2).
Torna-se evidente, através da análise deste documento, a intenção de propaganda socialista, transformando a corrente de “compositores progressistas” em uma corrente unificada e totalmente submissa à política cultural da URSS. Esta política autoritária, era a resposta à Doutrina Truman de combate ao comunismo no mundo.
A intervenção do Partido no andamento do Congresso, mesmo que velada, se deu principalmente pela multiplicidade de idéias ainda presentes sob a estética realista. Alguns compositores admitiam a possibilidade de contemplar as técnicas composicionais mais avançadas e dessas idéias serem, sem maiores problemas, utilizadas à maneira soviética e a serviço das classes populares, constituindo apenas uma continuação da herança clássica. Outros (e esses foram os vencedores do embate por terem sido sustentados pelo partido) queriam limpar a música de todos os “ruídos e impurezas” presentes na música contemporânea. Sua principal fundamentação era a de que estas técnicas não eram originárias da música folclórica e das classes populares, portanto eram elementos estranhos à estética proposta, não representando a concretude histórica almejada pela revolução.
O discurso de Zhdanov, A Tendência Ideológica da Música Soviética, estabelece claramente quais são as idéias da cúpula do Partido e arbitra a questão definitivamente, tendo sido apoiado pela Resolução do Comitê Central do Partido Comunista (Bolchevique), de 10 de Fevereiro de 1948 (que diz respeito à ópera de Muradelli, A Grande Amizade). Zhdanov entendia que o momento histórico era de enfrentamento de uma luta muito aguda, aparentemente oculta, entre divergentes tendências na música soviética, a progressista e a formalista. Enquanto a primeira fundamentava-se no enorme papel que exercia a herança clássica, particularmente a escola russa e sua profunda vinculação com as tradições populares, a outra, sob
o pretexto de aparência moderna – através de sua rejeição desta mesma he-rança – se apoiava na não naturalidade e em uma atitude revisionista. A segunda tendência, obviamente, foi condenada por não estar ligada aos valores soviéticos em sua essência e natureza, sendo alvo de forte ataque por parte de Zhdanov, primeiro no plano estético: “Esta última tendência substitui uma música natural e formosamente humana por uma música falsa, vulgar e com freqüência, simplesmente patológica” (ZHDANOV, 1948, p. 23). Depois, no ideológico:
“Ao mesmo tempo é típico dessa última tendência evitar ataques de frente, preferindo esconder sua atividade revisionista sob a máscara de aparente acordo com os princípios fundamentais do realismo socialista. Tais métodos de ‘contrabando’, evidentemente, não são novos. Temos na história abundantes exemplos de revisionismo sob o aspecto de aparente acordo com os princípios fundamentais dos ensinamentos que se pretende revisar” (ZHDANOV, op.cit, p. 23).
A música social realista deveria representar e representar-se por uma música “natural” e vitoriosa, de fácil assimilação. Ela deveria ser um canal de educação e conscientização, atraindo uma nova gama de consumidores. Segundo a Dra. Lissa Zofia, membro da comissão Polonesa, “uma vez que a evolução musical tome a direção que hoje podemos prever, podemos imaginar em um futuro remoto, uma total liquidação da divisão da cultura musical em duas vias” (ZOFIA, 1948, p. 2). Na concepção do Congresso, a imposição de uma estética e uma direção era justificável, devido às recentes conquistas tecnológicas, educacionais e sociais do novo regime. Isto lhe outorgava envergadura moral para intervir e “solicitar” dos artistas, de um modo geral, que transformassem as suas artes em uma apologia ao sistema. A simplificação da linguagem era, neste panorama, uma conseqüência lógica deste processo.
As palavras de Santoro, em carta à Koellreutter datada de 1947, definem o seu grau de engajamento no Partido já antes do Congresso. Percebe-se que o compositor está ideologicamente bem mais envolvido do que alguns de seus contemporâneos de expressão,
“No Rio estive com o Krieger e Guerra Peixe, tendo recebido do Guerra 11 revistas “Música Viva”. Tive a ótima notícia em saber que o Krieger está no Partido e que o Guerra iria votar na nossa chapa integral. É de fato um grande progresso desse pessoal” (SANTORO, Correspondência a H. J. Koellreutter, 28/1/47, In: MENDES, 1999).
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Santoro, mais tarde, romperia relações com Koellreutter, estrategicamente aproximando-se de Camargo Guarnieri, que publicara no jornal o Estado de São Paulo, em 1950, a famosa Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil. Nesta carta, Guarnieri atacou veementemente o dodecafonismo (serialismo e atonalismo), classificando os seguidores destas tendências de lesa-pátria. A ruptura de Santoro com Koellreuter não se deu somente por fatores estéticos, mas, fundamentalmente, por uma lealdade aos princípios da teoria dos dois campos de Zhdanov, que estava em plena vigência no final da década de 1940. Ou se estava a favor ou contra
o sistema. Santoro interpretou a postura mais moderada de Koellreutter, de aceitar como elementos revolucionários e coerentes com o socialismo as técnicas contemporâneas, inclusive o atonalismo, como um empecilho para a aplicação da doutrina Social Realista no Brasil. Aparentemente, a discussão sobre o dodecafonismo foi apenas um motivo superficial (embora condenado pelo Congresso) do mal estar entre os dois. Não é estranha a semelhança entre as atitudes adotadas por Santoro em relação à Koellreutter com as práticas Zhdanovistas, traduzidas freqüentemente em perseguições a compositores “formalistas” soviéticos como Shostakovitch, Kachaturian e Prokofieff.
“...é típico isso, neste momento em que o imperialismo procura por todos os meios solapar as nossas tradições culturais propiciando e propugnando um abandono do nacionalismo. Não é sem razão que se dá todo apoio a arte que fuja de suas raízes populares. É necessário criar um clima desnacionalizante para mais facilmente dominar um povo” (SANTORO, 1948, p. 3).
O depoimento acima, retirado do artigo Música e Charlatanismo, retrata uma crítica feita por Santoro às atividades desenvolvidas por Koellreutter que, coerentemente com o manifesto Música Viva de 1946, procuravam incentivar o florescimento do novo e a prática da música popular, em especial o Jazz. Santoro não hesita em identificar Koellreutter como defensor das forças ligadas à “estrutura social decadente”, forças que se opunham ao novo, ao progresso, ao “humano”. A radicalização leva Santoro a considerar apenas duas correntes: a dos que fazem música (progressistas Zhdanovistas) e a dos charlatões (que representavam os ideais da sociedade decadente).
Ao radicalizar sua posição, Santoro vê-se obrigado a refletir sobre sua trajetória como compositor, abandonando sua fase inicial, experimentalista e de característica primordialmente atonal, em prol de uma nova estética, mais condizente com as propostas do Congresso de Praga e com
o Realismo Socialista, priorizando a apropriação do folclore nacional, seja de forma direta (como o fez Villa-Lobos, Nepomuceno e Lorenzo Fernandez, entre outros nacionalistas brasileiros de gerações anteriores), ou através da estilização (tendência da geração Guarnieri, Guerra-Peixe, Santoro). Não obstante, mesmo não sendo seu recurso mais freqüente, Santoro experimentou a apropriação direta, utilizando-se de material folclórico em algumas de suas obras. Destacam-se com esta característica, na obra para piano, as Nove peças infantis (1951) e a 4ª Sonata (1957).
Uma possível fusão entre dodecafonismo e nacionalismo no Brasil mostrou-se inviável na década de 1940, pois certos princípios básicos da música folclórica como contorno melódico sinuoso, modalismo e repetição de células rítmico-melódicas eram incompatíveis com o rígido sistema de doze sons recentemente estabelecido pela Segunda Escola de Viena. Eunice Catunda, Guerra Peixe e Edino Krieger foram, junto com Santoro, pioneiros nesta tentativa. Sobre Guerra Peixe, Clayton Vetromilla, autor de pesquisas sobre as relações entre Guerra-Peixe e o Andradismo observa:
“à medida em que se aproximava do nacionalismo musical, mais sentia afastar-se das teorias de Schöenberg. Substituía a repetição da série de doze sons por fragmentos de repetições de células rítmicas ou melódicas, e os resultados foram sedutores. Chegou até a compor uma suíte para violão cujos movimentos são: ponteio, acalanto e choro.” (VETROMILLA, 2001, p. 2).
Os manifestos Música Viva e Carta Aberta aos Músicos e Críticos do Brasil foram influenciadores do panorama musical brasileiro da década de 1940 no país, criando uma diversidade de estilos e experiências. Esta diversidade mostra que Santoro não estava sozinho na sua busca por uma nova música com características nacionais, entretanto, nenhum, se norteou tão vigorosamente pelo Zhdanovismo como ele, adotando, cada um, diversificadas posturas e com resultados bastante distintos.
Composta em 1953, a Série Paulistanas se constitui de sete peças para piano de variados tamanhos e graus de dificuldade técnica. Ela é uma proposta de realização das premissas do Congresso de Praga, pois: almeja
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equilibrar o aspecto intelectual com o emocional; tenta se limitar preferencialmente às formas simples e aos meios técnicos modestos; não exige dos ouvintes processos mentais complicados, preferindo a fácil compreensão, portanto, entrando de forma natural no ouvido; pode tanto ser executada por músicos especialistas e apreciada por ouvintes instruídos como executada por músicos amadores e apreciada por todos, não exigindo para esta última finalidade qualquer preparação preliminar; e, sobretudo, pela sua proposta contida no título, está ligada às formas da vida musical criadas para a evolução da cultura urbana/salas de concerto sem, contudo, negar sua origem (supostamente rural) de música do subúrbio, das aldeias e das cidades do interior.
Não se deve subestimar a série, estigmatizando-a de música simples, sem elaboração ou profundidade intelectual ou técnica. Ao contrário,
o que se observa na análise proposta neste trabalho é exatamente a sofisticação dos recursos técnicos empregados, afora a radical mudança estilística que o compositor teve que operar para adequar o seu estilo à sua nova estética, ideologicamente motivada. Particularmente a 1ª e a 3ª Paulistanas, podem ser consideradas algumas das obras para piano mais executadas do compositor. A acessibilidade técnica e a clareza do discurso, suportadas por uma linguagem calculadamente tonal/modal, provavelmente são elementos fundamentais para a popularidade que estas obras gozam no repertório brasileiro de música para piano. Uma rápida pesquisa no site www.youtube.com pelo termo “Paulistana” revela a popularidade no meio amador destas duas peças, demonstrando que elas fazem efetivamente parte do repertório de pianistas de vários níveis técnicos, desde o intermediário até o avançado. Vários intérpretes brasileiros gravaram a Paulistana nº 1 de Claudio Santoro, com destaque para as gravações de Fritz Jank (década de 1960) e, mais recentemente, de Arnaldo Cohen (Brasiliana, Three Centuries of Brazilian Music, selo BIS, 2001).6
A seguinte análise ilustra os procedimentos utilizados pelo compositor na Paulistana nº 1, visando elucidar a forma como Santoro conseguiu estabelecer um novo estilo nacionalista, sem se apropriar diretamente do folclore, apontando para as principais características freqüentes na música nacional, e presentes em sua fase nacionalista. Em uma miniatura de vinte e seis compassos, é notável a mestria do compositor, que sintetiza diferentes idiomas harmônicos com estilização das características da mú-sica brasileira aliados a um grande refinamento na construção fraseológica e domínio do equilíbrio formal. Isso tudo em uma peça acessível a um nível básico de aprendizagem do instrumento.
Condensada em vinte e seis compassos, a Paulistana nº 1 pode ser considerada uma peça na forma binária A (compassos 1-14), B (compassos 18-26). Os compassos 1-3 são compassos de Introdução e os compassos 1517 são compassos de Ligação entre A e B. A divisão formal da peça quase coincide com a divisão entre procedimentos Modais e Tonais (ambas centradas no Réb Jônico e Maior respectivamente). A Introdução apresenta um motivo (o termo motivo compreendido aqui como uma curta ideia musical, melódica, harmonica, rítmica ou qualquer combinação destas três) de acompanhamento que se repete por toda a peça, na mão esquerda, elaborado em compasso binário sobre um motivo sincopado caracteristicamente brasileiro de semicolcheia-colcheia-semicolcheia seguido de semínima, como pode ser observado no Exemplo 1.
Exemplo 1: Compassos 1-2 - Introdução.
Este motivo sustenta a melodia cantabile que se desenvolverá em A, a partir do compasso 4 (com anacruse em 3) centrada em Réb, e expondo a sua escala diatônica através de uma expansão que se estende até o compasso 8. Com a utilização do Réb neste oitavo compasso, toda a escala heptacordal (diatônica) foi apresentada na linha melódica. Vale observar que os três primeiros compassos também apresentam toda a escala no motivo de acompanhamento. O Exemplo 2 demonstra a relação entre a linha melódica e a escala de Réb.
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Exemplo 2: Compassos 3-8 - escala heptacordal de Réb.
O esquema fraseológico desta melodia é bastante interessante, denotando um especial refinamento do compositor na elaboração do tamanho e, principalmente nas subdivisões das frases, estabelecendo uma assimetria entre os membros de frase (2 e 3 compassos de duração) ao mesmo tempo que constituí uma simetria irregular entre as frases (5 e 5 compassos de duração). Pode-se compreender então a Seção A como um Período binário. A Tabela 1 exemplifica melhor esta divisão:
Comp. 4-5 | Comp. 6-8 | Comp. 8-9 | Comp. 10-11 | Comp. 12-14 |
Frase a | Frase b | |||
1º Membro (2 comp.) | 2º Membro (3 comp.) | Ligação | 1º Membro (2 comp.) | 2º Membro (3 comp.) |
Tabela 1: Estrutura da Seção A da Paulistana nº 1.
O Exemplo seguinte (3) ilustra como a expansão textural é progressiva entre os membros de frase, o que gera a impressão da frase se expandir e contrair ao longo do seu itinerário:
Exemplo 3: Compassos 3-14 - espaço textural da Seção A.
Este recurso, de progressiva expansão pode ser observado já no início da frase a, pois o segundo membro é uma repetição do primeiro com a inserção da figura colcheia pontuada-colcheia pontuada-colcheia, no compasso 6, como demonstra o Exemplo 4.
Exemplo 4: Compassos 3-8 - construção do segundo membro da frase a por inserção de motivo.
A freqüente presença do motivo semicolcheia-colcheia-semicolcheia na linha melódica (simultaneamente ao motivo de acompanhamento) denota uma clara intenção de proporcionar um ambiente brasileiro à peça, intenção esta reforçada pela utilização do Modo Jônico. É importante notar que o tema é original do compositor, caracterizando uma estilização ou elaboração do material nacional disponível.
Duas figuras rítmicas consideradas típicas da música brasileira compõem quase na totalidade os motivos utilizados neste período: A já citada semicolcheia-colcheia-semicolcheia (Exemplo 5) que se apresenta nos compassos 3, 4, 5, 7, 8 e 9, e a colcheia pontuada-colcheia pontuada-colcheia (Exemplo 06), que se apresenta nos compassos 6, 12, 13, 18, 19,7 20, 22, 23 e 24.
Exemplo 5: Figura rítmica semicolcheia-colcheia-semicolcheia.
Exemplo 6: Figura rítmica colcheia pontuada-colcheia pontuada-colcheia.
A Seção B (compassos 18-26) é representada por uma única frase regular, frase c (dois membros iguais de número par de compassos) de quatro compassos que é repetida com mínima variação. Apesar de não
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haver indicação de dinâmica, percebe-se uma forte tendência dos intérpretes que gravaram esta obra comercialmente de tocar a repetição em pp. É um forte indicativo de uma tradição de performance se estabelecendo nesta obra. A célula motívica geradora desta frase é exclusivamente a mesma do Exemplo 5, a colcheia pontuada-colcheia pontuada-colcheia. No compasso 19 podemos observar uma variante dela, com os valores retrogradados e alguns ataques subtraídos por prolongamento das notas. Exemplo 7:
Exemplo 7: Figura rítmica colcheia pontuada-colcheia pontuada-colcheia.
A utilização de um idioma harmônico misto (Modal/Tonal) se dá de forma racionalizada. O fim da Seção A corresponde a um ponto cadencial onde se estabelece a tonalidade de Réb, Maior, devido à progressão harmônica II-V-I (compasso 13). A partir desta cadência da segunda frase do período que constitui a Seção A, Santoro utiliza encadeamentos tipicamente tonais, articulando claramente a progressão funcional T-S-D-T9 (comp. 12-14, 18-21 e 22-25) até o final da peça. A Tabela 2 fornece uma visão da articulação entre estrutura e harmonia, facilitando a percepção da associação feita por Santoro nesta Paulistana com o Modalismo (Seção A) e com o Tonalismo (Seção B).
O primeiro acorde da peça não é um acorde de estrutura triádica. Ele representa um fragmento da escala pentatônica, podendo ser disposto em quintas superpostas a partir do Solb. A escala pentatônica é, assim como o modalismo e o tonalismo, um elemento importante para a compreensão da estrutura harmônica da peça, visto que sua utilização é transversal aos dois idiomas. O Exemplo 8 mostra os acordes que respectivamente iniciam e finalizam a peça, listando as alturas que correspondem à escala pentatônica.
Tabela 2: Associações entre material temático, harmonia e forma na Paulistana nº 1.
Exemplo 8: Compassos 1 e 25-26. Pentatonismo na formação de acordes da Paulistana nº 1.
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Afora esta característica, à constante utilização nesta Paulistana de tétrades de formação triádica com sétima e, eventualmente, sextas, apontam para uma preocupação com uma sonoridade “popular”, próxima da música urbana em voga na década de 1950 (o Samba utiliza frequentemente estas formações cordais). Não seria uma novidade, visto que os Prelúdios do 1º caderno da edição Savart, além das Canções de Amor (com letra de Vinícius de Moraes), ambas do início da década de 1950, já denotavam este interesse de Santoro em sua fase nacionalista de aproximar a sonoridade de suas obras da produção popular brasileira contemporânea. Sem dúvida, trata-se de mais um elemento estilístico derivado de sua estética nacionalista ideologicamente engajada.
Os compassos 1-11 nos oferecem um excelente exemplo da utilização do modo Jônico. Schöenberg, em seu Tratado de Harmonia, utiliza a qualidade da progressão das fundamentais entre dois acordes como fundamento para sua definição de progressão ascendente (ascending/strong) ou descendente (descending/weak). Para ele, a progressão ascendente é a que articula melhor o sistema tonal, enquanto que a descendente enfraquece o sentido direcional do tonalismo, sendo recomendado seu uso em circunstâncias específicas apenas. Uma notável síntese destas idéias e conceitos encontra-se em outra obra do autor, chamada Models for Beginners in Composition:
“Existem três tipos diferentes de progressões das fundamentais: 1) Fortes ou ascendentes: a) Um salto da fundamental até uma quarta acima: I-IV, II-V, III-VI, IV-VIII, V-I, VI-II, VII-III. b) Um salto da fundamental até uma terça abaixo: I-VI, II-VII, III-I,
IV-II, V-III, VI-IV, VII-V (esta última de valor duvidoso). Progressões ascendentes das fundamentais são as mais eficientes.10 2) Fracas, ou melhor, descendentes:
a) Um salto da fundamental até uma quinta acima: I-V, II-VI, IIIVII, IV-I, V-II, VI-III,VII-IV. b) Um salto da fundamental até uma terça abaixo: I-III, II-IV, III-V,
IV-VI, V-VII, VI-I, VII-II. Progressões descendentes das fundamentais são melhor utilizadas quando combinam-se para formar uma progressão final ascendente: I-V-VI. 3) Super-fortes:
a) Um salto da fundamental até uma segunda acima: I-II, II-III, IIIIV, IV-V, V-VI, VI-VII. b) Um salto da fundamental até uma segunda abaixo: I-VII, II-I, IIIII, IV-III, V-IV, VI-V, VII-VI.
Progressões Super-fortes das fundamentais produzem cadências “deceptivas” e meias cadências. Caso elas não sejam utilizadas para em uma cadência, elas devem ser chamadas “progressões deceptivas” (SCHÖENBERG, 1972, p. 13).
As progressões utilizadas por Santoro na Paulistana nº 1 correspondem exatamente à definição de Schöenberg, delimitando claramente a fronteira entre o modal e o tonal. Considerando o primeiro acorde fundamentado em Solb, podemos identificar duas repetições do modelo Solb - Réb Maior com sétima Maior -Sib Menor com sétima Menor (compassos 1-3) respectivamente nos compassos 4, 5 e 6 e nos compassos 7, 8 e 9. A progressão das fundamentais Solb - Réb é uma progressão descendente, enquanto Réb - Sib é uma progressão ascendente. Porém a progressão resultante Solb
-Sib é descendente, o que, aliado a não utilização de nenhum acorde com função dominante, fortalece a sensação de modalismo, especificamente o Réb Jônico, devido a linha melódica articulada a partir do compasso 4. Nos compassos 10-12 o Réb é substituído pelo Mib, não alterando a progressão final ascendente (Solb - Sib).
Já, a partir do compasso 13, podemos observar um primeiro encadeamento com características funcionais, pois Mib -Láb -Réb expressam claramente um II-V-I de Réb Maior. A utilização de progressões ascendentes e a sistemática reiteração da dominante Láb nos pontos cadenciais (compassos 13, 20 e 24) a partir deste compasso estabelecem a tonalidade inequivocamente, independente da ligação harmônica presente nos compassos 15-17, que mais se assemelham a um encadeamento com direcionamento à dominante, porém, incompleto. Esta utilização racionalizada dos dois idiomas (modal do compasso 1-12 e tonal do compasso 13-26) também é reforçada pela construção do perfil melódico dos motivos. Os motivos utilizados na seção modal primam pela conjunção, não utilizando, em nenhum momento, o artifício da repetição sucessiva de alturas, o que contrasta com os motivos presentes na seção tonal, onde a característica mais marcante é, precisamente, a repetição sucessiva das alturas. O Exemplo 9 ilustra o motivo que gera a frase c e que inicia no compasso 18. A seção Áurea11 da peça (compasso 17/18) nos traz a surpresa deste novo motivo e o estabelecimento definitivo do tom de Réb Maior, mostrando a preocupação do compositor com o detalhamento da confecção da obra.
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Exemplo 9: Motivo tonal com repetição de alturas centrada em Réb.
Uma redução linear permite observar que, apesar da relação de segundas descendentes presente na linha melódica (5-4-3-2-1), somente a partir do compasso 14 o Fá é sustentado por uma consonância no baixo. Esse evento coincide com a chegada do idioma tonal, e por conseqüência, inicia a descida da urlinie (3-2-1) em direção à tônica (SCHENKER, 1935). Entende-se, através desta análise, que a Seção A é uma preparação que culmina com a cadência imperfeita do compasso 13, já comentada anteriormente. Tanto a expansão textural quanto a utilização de todas as alturas que preenchem o espaço do salto de 8ª no compasso 10 (arpejo do Lá3 para o Lá4) se fazem bem visíveis no Exemplo 10:
A porcentagem dos motivos utilizados na peça pode ser apreciada na figura 01 que realça a grande concentração motívica utilizada por Santoro nesta peça. Consideramos o motivo x a figura semicolcheia-colcheiasemicolcheia (Exemplo 5) e o motivo y a figura colcheia pontuada-colcheia pontuada-colcheia (Exemplo 6).
Utilização do motivo x e suas variantes na linha melódica: compassos 3, 4, 5, 7, 8, 9 (6 compassos em 26 = 1/4 dos compassos).
Utilização do motivo y e suas variantes na linha melódica: compassos 6, 11, 12, 13, 18, 19, 20, 22, 23, 24 (10 compassos em 26 = 1/3 dos compassos).
O motivo y (derivado do tresillo) é o mais utilizado, inclusive com mais variantes de retrogradação e prolongamento de valores como já foi demonstrado no exemplo 07. Desta maneira, Santoro consegue aproveitar o máximo dos motivos rítmicos mais simples e característicos da música brasileira, sem ser demasiadamente repetitivo ou abusar do excesso da obviedade. Trata-se de um recurso refinado que o compositor explorará cada vez mais em outras obras do seu período nacionalista, como, por exemplo, nas Sonatas nº 3 e nº 4 para piano de 1955 e 1957 (HARTMANN, 2010).
Figura 1: Gráfico da utilização dos motivos x e y na Paulistana nº 1.
Ao analisarmos em detalhe a pequena Paulistana nº 1 para piano de Claudio Santoro nos deparamos com alguns elementos característicos da música nacional, como o modalismo (entretanto o modo usado, jônio, não é o principal presente na música folclórica). Dentre os recursos empregados pelo compositor, destacamos a estilização de células rítmicas e uma transformação destas mesmas células através de variação, composição sofisticada da linha melódica, através do uso de assimetrias e das estruturas motívicas, a utilização de estruturas pentatônicas que convivem e se contextualizam tanto no sistema tonal como no modal, utilização racional dos idiomas harmônicos através da setorização da peça.
A proposta de adotar um novo estilo, de caráter nacionalista e de fácil acesso pelo público, contemplando as premissas do Socialismo Realismo na música, não geram em Santoro – ao menos na primeira Paulistana – um decréscimo na sua, então, reconhecida capacidade criativa. Ao contrário, a Paulistana nº 1 é uma obra interessantíssima e riquíssima em
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elementos e em detalhe, fornecendo muito material para reflexão e trabalho em apenas vinte e seis compassos tanto para o apreciador como para o intérprete, pois sua estrutura deve ser realçada na interpretação através de sutis mudanças de dinâmica, timbre e agógica.
Santoro faz uma opção estética alinhada à sua ideologia de forma voluntária. Nenhum governo o forçou a tal, como ocorreu na URSS com Shostakovitch e outros compositores soviéticos. Não obstante, o compositor retornou à fase atonal após a década de 1960, entre outros motivos, porque desenvolveu profundamente a linguagem, até um nível demasiadamente complexo, o que a tornou incompatível com a estética do Social Realismo. Todavia, o caso de Santoro é uma interessante associação entre ideologia e estética, que ocorreu no Brasil durante a fase nacionalista, principalmente porque suas raízes não se fundamentam em Mario de Andrade, como no caso de César Guerra-Peixe e Camargo Guarnieri. A folclórica afirmação de George Sand, de que um Prelúdio de Chopin contém mais música que toda uma fanfarra de Meyerbeer,12 parece totalmente válida para a série Paulistanas, particularmente a nº 1.
1 Oú va la musique? (título original em francês). 2 Termo pejorativo para Zhdanovismo no idioma russo.
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É interessante a passagem do discurso de Zhdanov proferido aos compositores soviéticos A Tendência Ideológica na Música Soviética (1948), publicado no periódico Problemas - Revista Mensal de Cultura Política nº 21 - Outubro de 1949, onde ele admite a truculência do partido através da sua negação: “Talvez vos cause surpresa que o C. C. do Partido Bolchevique exija que a música seja formosa e graciosa? Não, isto não é um lapsus linguae. Afirmamos que somos partidários da música formosa e graciosa, da música capaz de satisfazer as exigências estéticas e o gosto artístico do povo soviético” (ZHDANOV, 1948).
4 Le problème du compositeur contemporain dans as position sociale.
5 STEPANEK, Vladmir. (Coord.). La Musique Tchecoslovaques sur le Chemin du Realism Socialiste. Praga, 1950.
6 Mais informações sobre esta e outras gravações das Paulistanas e outras obras de Claudio Santoro podem ser obtidas no site: <http://www.claudiosantoro.art.br/Santoro/gravacoes. html>.
7 Como variante. 8 Entre os que utilizam este recurso estão Arnaldo Cohen (2001), Rodrigo Warken (1996) e Fritz Jank (1967). 9 S=função subdominante, representada por IV ou II, D=função dominante, representada por V ou VII e T=função tônica representada por I ou VI. 10 Eficientes para o sistema tonal, de acordo com o autor.
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Uma das definições possíveis para a compreensão do termo seção Áurea (golden mean) e o limite ou tendência da média aproximada entre os termos da série de Fibonacci (0,1,1,2,3,5,8,9,....). Este valor tende, quanto maior a amostragem de termos, para 0,66, ou seja, aproximadamente 2/3. Sendo assim, ao momento exato onde encontra-se o início do terceiro terço da obra (medidos em tempo) denominam-se seção Áurea. No caso da Paulistana nº 1, este local é precisamente o início do segundo terço do compasso 17 (17,333). Admitindo-se uma margem de erro não maior que 5%, encontraríamos a seção Áurea entre os compassos 17 e 18.
12 “One prelude of Chopin contains more music than all the trumpetings of Meyerbeer’.” (SAND. Apud HUNEKAR, 2008, p. 123).
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Ernesto Hartmann - Bacharel em Piano pela UFRJ, Licenciado em Musica pela UCAM/RJ, Mestre em Música (Práticas Interpretativas) pela UFRJ e Doutor em Música pela UNIRIO (Linguagem e Estruturação Musical). Foi professor substituto de Piano na UFRJ, professor substituto de Harmonia e Análise na UFRJ e UFMG, professor colaborador de Piano da UFF e Coordenador dos cursos de Graduação em Música do Conservatório de Música de Niterói. Atualmente é professor Adjunto e chefe do Departamento de Teoria da Arte e Música do Centro de Artes da UFES.