CHARISMA: UM OUTRO ESPAÇO FEITO DE SONS

Charisma: um outro espaço feito de sons

Leonardo Aldrovandi

leoaldrovandi@yahoo.com.br

Resumo: O texto apresenta algumas observações sobre a peça Charisma, de Iannis Xenakis, procurando associar aspectos simbólicos, analíticos e experiência de escuta. A evocação de um espaço natural ilimitado é avaliada em função de um campo de forças atuantes, dentre elas o simbolismo, a desfiguração temporal, as simulações de características espaciais descritas pela psicoacústica, assim como o poder de gerar tal sensação de espaço através do silêncio. A principal conclusão é a de que não se trata do espaço liebnitziano, o da coexistência de coisas, nem mesmo de um spatium ou intervalo, de “entres”, mas muito mais aquele gerado pelo surgimento e desaparecimento (ou vazio) deixado por aquilo que passa, pela efemeridade, degradação e dissolução da presença. Palavras-chave: Xenakis; Psicoacústica; Simbolismo; Desfiguração temporal; Experiência da escuta.

Abstract: This paper points out some observations of Iannis Xenakis´s Charisma. An outdoor natural space sensation is evoked, while linking symbolic, analytic and listening aspects of the work. This space sensation is the product of several active forces, from symbolism to disfigured time, from psychoacoustic simulations to the overwhelming power of silence. The main conclusion draws upon the idea that space is not felt through the liebnitzian concept of space as coexistence, nor through space as spatium, interval, but as a product of the sensation of emergence and disappearance (or emptiness), left by that which literally past away; by the ephemeral, as degradation and dissolution of presence.

Introdução

Iannis Xenakis (1922-2001), compositor nascido na Romênia, mas de família grega, costuma ser conhecido pela preocupação com a formalização de sua música através da aplicação de idéias matemáticas na composição musical. Porém, é sempre fascinante desvelar o descolamento da imagem estigmatizada de compositor matemático de sua capacidade de gerar uma forma de expressão sonora peculiar, mesmo quando suas aplicações matemáticas é o cerne das atenções analíticas ou da confecção das peças, tal qual ele mesmo apresenta em seus artigos.

Se existe a consciência de como o músico Xenakis tem sido criticado por seu espírito axiomático ou que a avaliação de suas obras já não deve mais ser cunhada somente no positivismo mais galopante ou evidente de seus escritos, é certo que este mesmo espírito nunca o impediu de criar idéias que soam ou soaram inusitadas. Por isso mesmo é importante perceber que a axiomatização da música não é de fato o que o leva a compor: ela é apenas um instrumento de legitimação e de organização da idéia sonora, da imaginação de uma possibilidade de mundo sonoro. Não haveria aplicação das teorias de probabilidade ou das “leis dos grandes números” sem a imaginação de um espaço sonoro1 específico, como as nuvens, linhas ou massas de sons. Não haveria um estudo sobre os modos bizantinos sem a preocupação de resgatar a riqueza da volatilidade modal esquecida, que permitiria gerar tantos outros espaços sonoros, inclusive aqueles por ele formalizados pela idéia de crivo: ou seja, pela logicização do espaço de alturas por meio de filtragens abstratas baseadas em diferentes discretizações da gama e seus intervalos. Tantas outras formalizações são passíveis de comentário, como o uso dos grupos numéricos de Peano e assim por diante. Afirmar que elas não teriam primazia não impede de nos manter alerta em relação a possíveis abstrações criadas pelo compositor que não conduzem diretamente a um mundo sonoro peculiar, tendo em vista o momento em que elas parecem servir melhor como ferramenta abstrata para procedimentos composicionais ou desejo de transformação das práticas teóricas e musicológicas.

Charisma, peça escrita em 1971 para violoncelo e clarineta, é talvez a obra que mais torna explícito o descolamento das formalizações mais abstratas da capacidade de expressão puramente sonora na obra de Xenakis, uma vez que não se deflagram na escuta as formas mais típicas de segmentação ou os grandes blocos de sons em um espaço calculado, envolvidos por alguma idéia local ou global que os rege. Até a própria escrita se revela de certa forma mais “intuitiva”. O que motiva um estudo da peça é exatamente o poder de sua expressão sonora e a evocação de um espaço que é feito de sons. Um espaço sonoro tanto em sua medida simbólica quanto simuladora, valendo-se de imagens da natureza e de conhecimentos psicoacústicos, tal qual o efeito Doppler ou a riqueza heterogênea de um som como efeito de proximidade. A peça de fato nos remete a um espaço físico amplo e natural, como aquele referido pelo próprio autor simbolicamente. Mas para que estes argumentos sejam colocados à prova, segue uma breve exposição das principais observações de uma análise que vincula este simbolismo aos traços perceptuais e às idéias sonoras envolvidas na construção da peça.

1 Contexto preliminar

Charisma é dedicada ao jovem e promissor compositor francês Jean-Pierre Guézec, de quem Xenakis foi professor em Tanglewood, 1963. Sua morte abrupta aos trinta e poucos anos o impressionou bastante e o motivou a escrever a peça. Como comentário escrito logo abaixo do título, Xenakis escolheu dois versos da Ilíada de Homero. Eles descrevem a morte de Patroclos e como sua alma entrou na terra - “e então a alma, rangendo, adentrou a terra como se fora fumaça.” Claro que a música não pretende ilustrar o texto nem serve de mera alegoria fúnebre. Poesia e música servem apenas, diz Xenakis, “como uma forma de epitáfio à memória do jovem compositor.” Mas algumas associações simbólicas não deixam de remeter ao plano sonoro da peça, como veremos.

2 Observações sobre Charisma

A sensação de uma aproximação da fisicalidade mais do que da “matematicidade” é dada em boa parte pela transformação tímbrica em sons ininterruptos, efetuada na continuidade temporal de sons bastante longos. Não há participação destes sons em uma organização abstrata de descontinuidades e é isto também que permite o surgimento de uma espécie de “mundo sonoro natural” aos ouvidos. A própria continuidade explícita dos sons, em geral de longuíssima duração, o uso do silêncio e a maneira pela qual os sons se confundem com seu próprio trajeto expressivo, contribuem para a impressão de um espaço natural, posto que os elementos sonoros não estão delimitados formalmente, demarcados por algum esquadrinhar abstrato que seja sensível. O que se pensa por isto é algo semelhante ao que diz Michel Serres a respeito da configuração dos espaços coletivos nas primeiras civilizações2.

Além disso, é importante destacar os recursos adotados pela composição no que diz respeito a diferentes dados psicofísicos associados à noção de espaço em geral. Isto tudo pode ser bem observado nas notas extremamente longas do violoncelo (porções variadas e aproximadas que vão de 10 a 30 segundos), cuja principal característica é o movimento gerado pela dinâmica, associado à taxa de batimentos em relação à clarineta (Ex. 1). Em outros momentos, é a relação direta entre dinâmica e taxa de ruído que se estabelece.

Exemplo nº 1: A fusão entre os instrumentos em um som com a ligeira rugosidade criada pelos batimentos se associa à dinâmica. Assim, o efeito de proximidade e distanciamento não é gerado apenas por esta. Charisma. Paris: Salabert, 1971, p. 1.

Este movimento lento e longo de som provoca a impressão de distância e de proximidade, como que em um espaço extremamente amplo e aberto. Ele simula certas características naturais de quando a fonte de um som se movimenta no espaço, aproximando-se ou afastando-se. A fusão tímbrica entre clarineta e violoncelo, que de início poderia nos parecer algo praticamente impossível, se apresenta de forma clara com o harmônico do cello em perfeita sintonia com a nota da clarineta, ainda mais com o início pianíssimo, em que o timbre de ambos é menos complexo.

Tanto a dinâmica assim como outros aspectos são explorados por Xenakis para causar a sensação de aproximação e distanciamento. Ela foi diretamente associada à característica principal do efeito Doppler, que consiste em fazer com que certas freqüências de uma fonte sonora em movimento sejam modificadas assim que a mesma passa próxima ao ouvinte: uma “deformação” da projeção sonora causada pelo movimento. Além da dinâmica, o acento das notas na mudança de freqüências serve como demarcador do efeito ofuscante do momento da passagem (Ex. 2).

Exemplo nº 2: Dois exemplos de uma noção de movimento espacial, semelhante àquela decrita pelo efeito Doppler, embora também considere distorções desviantes para freqüências mais altas. Charisma, op. cit. p. 2.

Outra característica é o fato de a taxa de ruído ou a complexidade de um som ser quase sempre diretamente proporcional à dinâmica e à intensidade. A psicoacústica nos ensina que quanto mais distante um som, mais pobre é sua constituição espectral e mais opaco e indiferenciado ele se torna, uma vez que várias freqüências (principalmente as agudas) e características transitórias são filtradas pelo ar. Vimos que primeiro Xenakis associa proporcionalmente o número de batimentos à dinâmica: é como se ao se aproximar, o ser sonoro se tornasse mais rico, mais detalhado, mais complexo. Ao se afastar, torna-se mais homogêneo, menos divisível em características discerníveis pela escuta. O jogo com os batimentos de uma mesma nota entre o violoncello e a clarineta, somado aos modos de se tocar mais ruidosos (tremollos, toque no cavalete, associados à forte intensidade), promovem a noção sonora de aproximação ou de proximidade. Por outro lado, também auxiliam a possibilidade da noção de presença em contraposição ao desaparecimento, comentada logo mais.

Há, portanto, uma ligação direta entre a rugosidade dos sons e a dinâmica. Ou seja, uma maior intensidade está correlacionada diretamente ao aumento da taxa de ruído ou da riqueza espectral geral. Por outro lado, a passagem de uma situação mais rugosa para uma sonoridade mais límpida está sempre atada a uma queda de dinâmica. São estas características que acabam por imitar em certa medida as qualidades psicoacústicas de um espaço sonoro natural aberto, tal qual as estudamos em publicações científicas sobre a psicoacústica do espaço fisico.

Mas como trabalhar o ruído? Os modes de jeux incomuns, como o tremollo no extremo agudo da clarineta e no violoncelo ou o toque raspado no cavalete, e gestos súbitos de notas rapidíssimas, são elementos que colaboram para tanto, promovendo outras sensações globais: o rangido, a estridência, a informação mais caótica. Trata-se de formas de expressão sonora que se associariam facilmente ao rangido da alma citado no verso de Homero. Mas não há como qualificá-los como símbolos específicos, já que não se trata da mera representação do texto na música. E qualquer tentativa de tornar o simbolismo na música uma solução analítica acaba por tornar a escuta um mero glossário de opacidades.

Mas voltemos ao que promove uma riqueza da obra, a questão da expressão: é interessante notar que além do rangido produzido por estes modos de tocar, o surgimento de batimentos e dos multifônicos da clarine-ta também colaboram para um sentimento de pulverização do som, como se ele fosse uma espécie de ser sonoro que se desfaz em pedaços, que se desintegra ou se (des)articula a partir de si mesmo. Este é um dos segredos do poder expressivo da peça, no sentido de que o ser sonoro não é algo constituído, mas é antes aquilo que acontece ao se gastar, ao se consumir ou ser consumido. Sua forma expressiva é esta existência efêmera: surgimento intenso que se desintegra e é absorvido pelo mundo que o circunda.

Um momento bastante particular da peça é a série de figuras com accaciaturas em alta intensidade, com alterações microtonais oscilantes e em fusão com os glissandos de harmônicos do violoncelo. Se nos for permitido mais outro pecado metafórico ou simbólico, mesmo que aqui seja heresia, esta passagem traz mais uma imagem possível: um grunhido animal estridente seguido de um silêncio mortal, o silêncio do desaparecimento. Momento único, em que o tempo de articulação dos sons é o mesmo do de um ser vivo mamífero ou de um animal terrestre ao produzir sons guturais. Dentro deste espaço “natural” imenso de sons longos e silêncios, ele aparenta ser alguma espécie de sinal de vida. Esta qualidade só reaparece com a longa série de multifônicos em mi da clarineta próxima ao final da peça, banhada de sons alternados de raspagem no cavalete e glissandos de velocidades variadas no violoncelo.

Exemplo nº 3: Momento central da peça gerado pelos dois instrumentos em jogo microtonal e alta intensidade. Charisma, op. cit., p. 2.

É como se estivéssemos num espaço desértico, aberto e árido, sem muros nem demarcações, por onde trafegam ventos sonoros, ecos, gritos animalescos e agonizantes circundados de silêncio. O que está em jogo é a expressão sonora como aquilo que passa e não a escuta do som como um conteúdo objetual, isolado ou demarcado por uma abstração transcendente. Cada som é um trajeto expressivo, um percurso que vai se transfomando qualitativamente e some dentro desta impressão de vastidão incomensurável.

O silêncio também tem papel espacializador. Ele não é articulatório nem preparador. Há uma força temporal que faz com que ele seja o sinal mais presente desta imensidão ambiental. Os acontecimentos são banhados de silêncio ou de um pequenino ruído de fundo que opera como um sinal remoto da linha do horizonte ou como uma espécie de energia sutil, quer seja da tal alma ou não. Os sons são incorpóreos como a fumaça e por isso se confundem com o próprio espaço em que estão. Não há objetos ou materiais, somente passagens etéreas, confluências, o sopro e a agonia, os quais se desintegram na imensidão do mundo. Este banho de silêncio, assim como em certos momentos de Webern, transforma os ossos do tempo em platea3 e os sons naquilo que só é possível de se perceber por se estar próximo, como o acessível-à-escuta. Este banho é responsável, para além da evocação de aspectos do movimento de uma fonte entre o muito distante e o muito próximo, pela impressão de imensidão ilimitada e desmedida. Xenakis faz com que o tempo se desfigure frente ao espaço sonoro por ele pintado, mas sem perder sua carne. Os sons mais articulados se transformam em sinais daquilo que ocorre na proximidade, mas sempre dentro de um ambiente onde a linha do horizonte é quase intangível. Grosso modo, portanto, não se trata do espaço liebnitziano, o da coexistência de coisas, nem mesmo de um spatium ou intervalo, de “entres”, mas muito mais aquele gerado pelo surgimento e desaparecimento (ou vazio) deixado por aquilo que passa, pela efemeridade, degradação e dissolução da presença. Haveria nisto uma outra metáfora simbólica possível em relação a vida e morte?

Notas:

1 A idéia de espaço sonoro procura abarcar a simulação de características espaciais de uma

fonte em relação à distância, ao local e ao movimento, bem como, mais amplamente, a própria

textura de uma peça, no sentido do que é próximo ao universo audível e perceptível. 2 Em Les Origines de la Géométrie, Serres elabora diversos comentários sobre os processos de

“purificação” e “violência” das abstrações geométricas sobre o espaço coletivo. Este desejo

de organização pode aparecer nos processos reguladores de um espaço sonoro. Como é

comumente constatável em muitas obras de Xenakis, a organização dos aglomerados sonoros

é conduzida por regras abstratas e cálculos, gerando resultados variados. Uma crítica comum

a algumas de suas obras diz respeito à homogeinização de certos resultados, provocada pela condição reguladora da idéia sonora global e pelos cortes abruptos dos blocos texturais. O autor supostamente pecaria por não se valer de uma preocupação mais minuciosa em relação ao tempo, priorizando a constituição espacial da forma. Mas é importante salientar que as palavras purificação e violência não são tomadas aqui como critérios de valor sobre tais processos, prioridades ou resultados. Elas apenas elucidam algumas características possíveis do poder das abstrações de caráter espacial. Paul Zumthor analisa a diferença da origem etimológica de palavras como spatium e platea. Platea corresponderia ao “lugar onde se está”; já spatium significava o espaço entre duas coisas, o intervalo. La Mesure du Monde, p. 51.

Referências:

JAMMER, Max. Concepts of Space. New York: Dover, 1993.

MATOSSIAN, Nouritza. Xenakis. London: Kaln & Averill, 1990

SERRES, Michel. Les Origines de la Géométrie. Paris: Flammarion, 1993.

XENAKIS, Iannis. Charisma. Paris: Salabert, 1971.

XENAKIS, Iannis. Formalized Music. Bloomington: Indiana Univ. Press, 1971.

XENAKIS, Iannis. Musique, Architecture. Tournai: Casterman, 1971.

ZUMTHOR, Paul. La Mesure du monde. Paris: Seuil, 1993.

Leonardo Aldrovandi - Professor de Filosofia da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade FUMEC – Belo Horizonte. É Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUCSP, sob orientação do prof. Silvio Ferraz. Compositor de obras instrumentais solo, de câmara e orquestral, e de trilhas eletroacústicas para espetáculos de teatro-dança. Foi membro do grupo catalão.