Mário de Andrade and the formation of Brazilian Musical Critique in the Press
Liliana Bollos
lilianabollos@uol.com.br
Resumo: Este artigo discute a importância e a representatividade do crítico Mário de Andrade dentro do jornalismo cultural brasileiro na primeira metade do século XX. Através de análise de textos, podemos perceber uma inserção estética profunda na sua busca para compreender o objeto musical, pois, para ele, “a arte da crítica se faz através do esforço apaixonado de amar e compreender”. Desse modo, percebemos uma mudança importante entre dois momentos do jornalismo cultural do país: a passagem de um jornalismo cultural de características literárias e de caráter estético, em torno de valores – como o de Mário de Andrade – para o atual, um formato influenciado pela indústria cultural, de caráter ideológico, que visa mais informação e propaganda de um determinado produto do que efetivamente a busca pelo entendimento da obra. Palavras-Chave: Crítica musical; Jornalismo cultural; Música brasileira; Recepção crítica.
Abstract: This article examines the importance and how Mario de Andrade represented himself within cultural Brazilian journalism in the first half of the 20th century. Through text analysis, we can see an insertion of a profound aesthetics in order to interpret the musical element, thus for him, “the art of criticism is developed through the passionate efforts to love and to comprehend”. Therefore, an important change between two moments of cultural journalism in the country stands out: the passage of a cultural journalism with literary characteristics and an aesthetic character based on values - such as Mario de Andrade’s work - to the present journalism with a format influenced by the cultural industry, whose character is ideological and seeks to deliver information on a determined product rather than search for an understanding of the work. Keywords: Musical critique; Cultural journalism; Brazilian music; Critical audience.
Podemos considerar que Mário de Andrade (1897-1945) foi o primeiro grande crítico de música brasileiro, além de escritor, poeta, crítico literário e um dos principais expoentes do modernismo brasileiro. No campo da música, além de pianista e professor, foi o primeiro grande pesquisador de música deste país, sobretudo clássica e folclórica, tendo escrito diversos livros acerca de suas pesquisas e viagens que fez pelo Brasil, entre eles As Melodias de Boi e Outras Peças, Ensaios Sobre a Música Brasileira, A Música e a Canção Populares no Brasil, Modinhas Imperiais e Música de Feitiçaria no Brasil, além de diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo entre 1936 e 38. Entretanto, foi na mídia impressa que parte de sua produção bibliográfica se deu, onde podemos destacar muitos artigos, crônicas e textos de crítica literária e musical.
No campo do jornalismo musical, ele colaborou em diversos jornais como Diário Nacional, Diário de S. Paulo e Folha da Manhã e também em revistas como Ilustração Brasileira e Revista Nova. Parte desse material está compilada no livro Música, Doce Música (1933), com resenhas publicadas em vários jornais, entre os quais o Diário Nacional de São Paulo (com colaboração entre 1927 e 1932), Diários Associados, O Estado de São Paulo, Diário de Notícias, Correio da Manhã e na seção “Mundo Musical” que ele assinou no jornal Folha da Manhã, de 1943 até a sua morte súbita em 1945. Ele escreveu na introdução do livro Música, Doce Música (1963, p. 13) que se a literatura musical brasileira fosse vasta ele não teria publicado esse livro, pois nunca deu muito cuidado ao feitio desses textos jornalísticos, “destinados à existência de um só dia”. Ele explica, entretanto, que a publicação era destinada principalmente a “seus discípulos”, a fim de minorar a angústia dos que desejavam ler, devido à escassez de material da área. Esse é o único livro de críticas de música publicado antes de sua morte, e vale ressaltar que a escolha das resenhas foi feita por ele mesmo. A grande maioria dos textos em Música, Doce Música é destinada ao folclore incansavelmente pesquisado por ele e também aos eventos de música erudita, seus compositores e intérpretes, dando ênfase aos compositores brasileiros que na época estavam ainda “criando” uma música de identidade mais “nacionalista” como Camargo Guarnieri (1907-1993), Henrique Oswald (18521931), Lourenço Fernandez (1897-1948) e Francisco Mignone (1897-1986), afastando-se, assim, da grande influência da música européia até então.
Sua preocupação quase doentia pela disseminação de uma arte nacional na cultura brasileira se encontra em toda a sua obra, de Macunaíma aos ensaios sobre música, do livro O Banquete às cartas a amigos, e foi sistematicamente assimilada por muitos outros intelectuais e pesquisadores. O tema da identidade nacional está por trás, sem dúvida, de todo o processo criativo (como crítico) do grande intelectual, que visava para o Brasil um processo de aculturação, uma espécie de entrada do país de nações cultas, que ele tanto almejava, por meio de uma superação do passado repleto de influências européias. Sérgio Buarque (1996, p. 370) pontuou, em homenagem à memória do amigo morto que, “sem o exemplo de sua ação e sem o seu estímulo constante, a inteligência brasileira teria tomado rumos diversos daqueles que escolheu nos últimos vinte anos. Diversos e, acrescentarei, menos ricos em surpresas e promessas”.
Considerado por muitos como o “Pai da Cultura Brasileira”, ou a figura mais representativa da cultura brasileira da primeira metade do século XX, foi o artista que mais se destacou do grupo modernista que surgiu da Semana de Arte Moderna de 1922. Para Jorge Coli (1998, p. 185), Mário de Andrade era um revolucionário, renovador da cultura, espírito não-conformista, poeta e romancista de vanguarda. Cláudio Giordano (1993, p. X) considera-o como um dos mais honestos de nossos intelectuais, imbuído do propósito, senão da missão, de contribuir o quanto estivesse ao seu alcance para a ampliação do nível cultural brasileiro. E é desse compromisso de “amelhoramento” – na expressão do próprio Mário de Andrade - e instrução do brasileiro que permeia sua missão, como pesquisador, intelectual, pensador do Brasil e crítico. E é justamente no campo do jornalismo musical, ao focalizar o objeto musical em questão, com sua visão universalista de crítico de artes, que está nosso interesse principal.
A grande questão analisada aqui é a insuficiência da crítica cultural atual na análise de música, sendo esta relegada, ou melhor, esquecida do seu papel primordial, que é a compreensão da obra. Não que elementos extrínsecos à obra não sejam importantes, já que as relações entre a crítica e a história só se justificam quando as intenções históricas da crítica não se convertem em historicismo e se esgotam no processo gerador da obra. Sérgio Buarque de Holanda (1996, p. 145) nos diz que o “crítico na maioria dos casos e de um modo geral está naturalmente em posição inferior à do autor”, no entanto, não se conformam com isso, achando que os autores é que devem amoldar a seus pontos de vista, geralmente estreitos e parciais. É óbvio que não se subentende que a crítica deva ser favoravelmente parcial. Acreditamos que ela precisa ter voz própria, ter feito uma escolha, como foi o caso de Mário de Andrade, que, por sua vez, tinha a preocupação de analisar o objeto analisado e discutir seu ponto de vista sempre, em qualquer circunstância. Suas críticas eram capazes de interpretar determinada obra propondo uma nova escuta, uma outra tentativa de compreensão. Por exemplo, ao contestar o nome impróprio (Três Estudos em forma de Sonatina) de uma obra de Lorenço Fernandez, Andrade (1963) explica
o porquê da impropriedade do título escolhido pelo autor:
É uma obra admirável, que só tem de defeituoso o nome. Não vejo razão pra batismo tão complicado. Se trata legitimamente duma Sonatina, duma sonatina dos nossos dias, está claro, de espírito bem mo-derno. Mas a sua construção, o tamanho, a seriação dos andamentos, a integridade de concepção temática, o espírito esquerzoso, nos deixam a sensação nítida duma Sonatina, e não de Três Estudos. Mas isso é esmiuçar detalhes sem importância. (p.179)
Detalhes que são benéficos quando se trata de uma análise consistente, como o caso de Andrade. Porque os compositores e artistas em geral gostariam de ver suas obras resenhadas, discutidas, analisadas. Porque, afinal, a função da crítica é de buscar uma compreensão, um esclarecimento da obra. Machado de Assis (1959, p. 14) afirmou que não é dado ao crítico “defender nem os seus interesses pessoais, nem os alheios, mas somente a sua convicção, e a sua convicção deve formar-se tão pura e tão alta, que não sofra a ação das circunstâncias externas”.
Há ainda duas coletâneas de artigos importantes que foram publicadas na década de noventa sobre a crítica musical de Mário de Andrade: Música e Jornalismo: Diário de S. Paulo (1993), organizado por Paulo Castagna e também Música Final: Mário de Andrade e sua coluna jornalística ‘Mundo Musical’ (1998) de Jorge Coli. Música e Jornalismo é uma seleção de 163 textos em torno de críticas de concertos, intérpretes e conferências publicadas no jornal Diário de S. Paulo entre 1933 e 1935, época em que Mário de Andrade colaborou nesse jornal na coluna “Música” como crítico de arte, responsabilizando-se pelo envio de resenhas escritas logo após os concertos, para serem publicadas no dia seguinte. Reparemos aqui o caráter de urgência da coluna de crítica, enfocado vários vezes por Mário de Andrade no decorrer de seus textos, tendo, sempre, pressa em finalizar seus textos. Além dessa coluna quase diária como crítico de música, Andrade ainda colaborava nesse jornal com artigos e crônicas na coluna “Editoriais”, que contava com textos de conhecidos intelectuais. Nesse espaço,
o autor tinha liberdade em publicar textos mais longos e elaborados que necessitassem de mais fôlego, sem se preocupar com o tamanho do texto ou com a urgência da entrega do trabalho.
Se suas primeiras contribuições no Diário de S. Paulo ainda se limitavam a informar o leitor sobre determinada atuação de músicos, sem entrar em maiores considerações de ordem estética, com o decorrer do tempo, Andrade passa a não se deter apenas nos intérpretes, revelando, assim, seu pensamento sobre os compositores, o valor musical das obras e as implicações sociais e políticas dos repertórios, segundo Castanha (1993, p. XVI). Em seus escritos também encontramos curiosos aspectos da crônica musical paulistana do início da década de 30, como, por exemplo, as salas de espetáculos, os conjuntos e orquestras, as descrições de maneiras antigas e bizarras de execução musical pelos instrumentistas, cantores e regentes, hoje muito conhecidos como a pianista Guiomar Novais ou completamente desconhecidos, principalmente os brasileiros, a quem sempre dedicou cuidado na divulgação de novos trabalhos.
Já o livro Música Final de Jorge Coli foi concebido originalmente como tese de doutorado e é uma análise das críticas e crônicas que Andrade escreveu no jornal Folha da Manhã, geralmente às quintas-feiras, nos dois últimos anos de sua vida. Em carta ao amigo Paulo Duarte em 08 de maio de 1943, o Mário de Andrade (apud COLI, 1998) justifica o encargo do “Mundo musical”:
Agora peguei um rodapé na Folha da Manhã, que com esta história de remédios, infecções, exames e médicos ando meio atrapalhado e
o que tinha não dava mais. Mas é rodapé de livre assunto (musical), sem obrigações e até proibição de fazer crítica profissional. Deus te livre! Não pretendo mais me meter na crítica, os compromissos são demais e lá se vai a liberdade a não ser que v. queira brigar com todo mundo. (p. 195)
Por outro lado, preso a necessidades financeiras, Andrade viu-se desgastado pela tarefa constante e sentiu o peso dessa obrigação de escrever para jornal. Mas, segundo Sonia Sachs (1993), a verdade é que aquele que viveu da fé na arte e nos homens, como ele sempre repetia, encontrou na crônica jornalística um forte instrumento de ação, já que a freqüência e a ligeireza dos artigos, além de suscitar a discussão, permitiam-lhe orientar de perto os escritores novos, em uma espécie de missão de vida. Um exemplo de jovens seguidores da doutrina andradina é o grupo da revista Clima, formado por acadêmicos como Antonio Candido, Lourival Gomes Machado, Paulo Emílio Salles Gomes e Gilda de Moraes Rocha, prima de Mário de Andrade e futura esposa de Candido. Com a implantação das faculdades de Filosofia, Letras e Ciências Humanas em 1934 em São Paulo e em 1938 no Rio de Janeiro, recém-formados dessas universidades começaram a se mobilizar e começaram a colaborar nas páginas de cultura dos jornais diários, dividindo um espaço reservado aos críticos de rodapés, hegemônicos até o momento.
Flora Süssekind faz considerações relevantes sobre a formação da crítica brasileira moderna ao analisar a crítica literária dos últimos quarenta anos no seu livro Papéis Colados (2003), em que aborda os dois modelos de crítica que irão se contrapor a partir dos anos 1940: a crítica de rodapé e a crítica universitária. A primeira tinha como modelo de crítico o “homem de letras”, do bacharel, até então supervalorizado, que tinha na figura do jornalista que entendia de tudo e com múltiplas funções, do cronista sem especialidade, e cuja reflexão, sob a forma de resenhas, tinha como veículo privilegiado o jornal. O outro modelo de crítica está ligado à “especialização acadêmica”, à crítica ao personalismo, e baseado na pesquisa acadêmica, cujas formas de expressão dominantes seriam o livro e a cátedra, cujos nomes mais significativos da época eram Antonio Candido em São Paulo e Afrânio Coutinho no Rio de Janeiro Esses for-mandos das primeiras turmas das faculdades de Filosofia começaram a impor um novo modelo à crítica literária brasileira, gerando, a partir de meados da década de 1940, uma tensão cada vez mais evidente entre a crítica de rodapé que perdia poder e a crítica acadêmica que ampliava seu domínio e seu prestígio através de uma ponte fundamental: a universidade.
Candido (1980) menciona que a sua geração teve a sorte de ver e observar de perto os artistas e escritores famosos que admirava como Oswald de Andrade, Sérgio Millet, Lasar Segall, Guilherme de Almeida, Tarsila do Amaral, Murilo Mendes, Anita Malfatti, Flávio de Carvalho, Di Cavalcanti, Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia, Monteiro Lobato, Caio Prado Júnior, além de Mário de Andrade, é claro. Ele também confirma essa “atitude de acatamento” do grupo Clima em relação à tradição, “uma espécie de respeito pelo passado imediato”:
Essa presença e o respeito pelos recentes movimentos literários, ainda em fase de conquista do público, favoreciam a nossa atitude de acatamento, como escolha do que nos parecia novo e bom. Aliás, o Modernismo nos interessava sobretudo como atitude mental, ao contrário de hoje, quando nos interessa mais como criação de uma linguagem renovadora. (...) E é preciso repetir que para nós o Modernismo abrangia também a geração de 1930, com a qual essas preocupações vieram para primeiro plano. Daí o desejo de seguir, de admirar os que tinham aberto caminho; daí também a opção, como fiador da revista, por Mário de Andrade, em cuja obra era mais patente o ânimo construtivo. (p. 160)
Vale a pena ressaltar, aqui, o trabalho na área de crítica jornalística do escritor e poeta Murilo Mendes (1901-75), contemporâneo de Mário de Andrade, que também colaborou em jornais escrevendo sobre música erudita. Seus textos, editados posteriormente no livro Formação de Discoteca (1993), foram publicados semanalmente no suplemento “Letras e Artes” do jornal carioca A Manhã nos anos 1946 e 47, e tinham como proposta formar uma discoteca de música e escolher as obras mais importantes dos grandes compositores. Suas resenhas eram, de certo modo, críticas de discos ou de obras, porém eram mais longas, descritivas e bastante analíticas. Murilo Mendes buscava, além de informar o leitor, analisar estética e historicamente obras dos grandes mestres. Ao selecionar discos que julgava relevantes, ele propunha um novo modo de escuta para aquelas obras, dando a seus ouvintes a oportunidade de conhecerem obras clássicas através do olhar do crítico, dando à crítica uma função mais educativa, explicativa. No prefácio de Formação de Discoteca, Murilo Marcondes de Moura (1993) afirmou:
O que se vai ler é um ponto de vista artístico, e inevitavelmente parcial. Mas é tal parcialidade, sem sofisma, o que torna os escritos instigantes. O olhar aqui não é convencional, sente-se desobrigado de reverenciar o que é consagrado e pode deter-
se em aspectos muito específicos de obras e compositores. (p. xx)
Essa particularidade ao interpretar uma obra encontramos em ambos escritores. Afinal, o que esses dois escritores acima têm em comum? Vindos de uma formação intelectual sólida, Mário de Andrade e Murilo Mendes protagonizam
o que de melhor a crítica musical pode nos oferecer. Notamos nos textos destes
autores uma preocupação de analisar os aspectos musicais da obra com a intenção de informar e enriquecer a cultura musical do leitor, trazendo para o texto interpretações muitas vezes técnicas acerca do repertório em si. Consideramos ser esse aspecto o mais importante de uma crítica: discorrer sobre a obra em si, sem se ater somente a formulações externas, que, embora contribuam para o entendimento e esclarecimento da obra analisada, não podem ser os únicos elementos da linguagem de um texto crítico. Andrade e Mendes faziam uma crítica estética, acima de
tudo.
Mário de Andrade considerava-se um “crítico das artes”, pois seu trabalho era o de decifrar, analisar e interpretar determinado objeto musical, seja ele uma apresentação ao vivo ou um lançamento de um disco ou livro. Se a informação fazia parte do contexto de suas resenhas, tinha o objetivo de cooperar para que seus leitores pudessem contextualizar melhor a música por ele descrita, sem circundar toda a crítica em volta de temáticas ideológicas, sociológicas ou históricas, como freqüentemente acontece. Por exemplo, ao escrever para o Diário de S. Paulo em 11/10/1933 sobre a pianista Guiomar Novais, Andrade (1993) afirmou:
Tenho a impressão de que Guiomar Novais alcançou agora o cume da sua carreira. Está em pleno esplendor, e infelizes serão os que não souberem se entregar à arte generosíssima da nossa genial pianista. Sua técnica espantosa, aquela sacra fúria de expressão que sempre fizera dela uma genial intérprete dos românticos, se aliam agora a qualidades novas que a tornam mais completa na sua, já dantes, tão característica personalidade. (p. 61)
Do mesmo modo que o crítico enxerga virtudes, como no exemplo acima, ele também precisa perceber os desacertos, se existirem, como a escolha de um determinado repertório, quando este não estiver compatível com o evento proposto. E essa percepção não falta a Mário de Andrade. A questão da escolha do repertório, apesar de ser de suma importância na concepção da obra artística, infelizmente é muito pouco discutida pelos críticos em geral. Por exemplo, em outra resenha, Mário de Andrade (1993, p. 186). delata que “a única censura que se poderia fazer, seria quanto à escolha da peça, duma irremediável mediocridade”. Em outra crítica, o autor (1963, p. 150) delata o repertório longo e cansativo:
O programa também era defeituosíssimo. Longo, detestavelmente longo. Matou o público. Foi característico disso o momento em que terminou a primeira parte de Salambô. O público gostou francamente e aplaudiu caloroso. Era justo. Mas quando todos, já saturados de tanta música, perceberam que a coisa continuava, ah isso é demais! Cada qual deixou de escutar as delícias da orquestração bem feita, os achados sinfônicos, a ambiência de sonoridades sugestivas, pra remoer a própria irritação. E quando terminaram os dez quilômetros de mais música, o público não aplaudiu. Fez bem.
Nesse sentido, a percepção do crítico na escolha assertiva do repertório é primordial, pois é a partir desta escolha que ele traça seus argumentos, posicionamentos e, efetivamente, interpreta a obra. Sobre esse tema, Ezra Pound (1970) considera que:
O crítico honesto deve contentar-se em encontrar uma parcela muito pequena da produção contemporânea digna de atenção séria; mas deve também estar pronto para reconhecer essa parcela, e para rebaixar de posto uma obra do passado quando uma nova obra a supera. (...) Os melhores críticos são os que efetivamente contribuem para melhorar a arte que criticam; a seguir, os melhores são os que focalizam a atenção no melhor que se escreve; e a vermina pestilente são aqueles que desviam a atenção dos melhores para os de segunda classe ou para os seus próprios escritos críticos (...) Um crítico vale, não pela excelência dos seus argumentos, mas pela qualidade de sua escolha. (p. 12)
No mesmo caminho do que propõe Pound, que é de reconhecer a importância de uma nova produção contemporânea, temos a impressão de que a crítica do escritor paulista contribuiu efetivamente para um melhor entendimento de uma nova arte que estava sendo apresentada, analisada, enfim, estudada. E o próprio Mário de Andrade (apud Fernandes 1968), em 15/02/1935, quando já esboçava a intenção de deixar o jornal O Diário de S. Paulo, reconhecendo o significado de seu trabalho enquanto crítico, pesquisador e escritor em carta a Sousa da Silveira, afirmou:
Resolvi trabalhar a ‘matéria’ brasileira, especificá-la, determiná-la o quanto em mim e na complexidade dela. (...) Digo ‘de mim’ e não do Brasil, porque sabia muito conscientemente, desde o princípio, que se tratava de dar a minha imagem do Brasil. Não havia folclore musical brasileiro. Fiz folclore musical brasileiro. Não havia crítica de arte em S. Paulo, e a pouca brasileira existente era mais que péssima. Fiz crítica de arte. Não havia um tratado de poética, moderno, adaptável ao tempo. Fiz um. Não havia História da Música em nossa língua. As existentes eram simplesmente porcas. Fiz uma, bem melhor que as outras. (p. 150)
Mais do que um suposto reconhecimento, as palavras acima são, na verdade, um desabafo ao amigo em virtude de sua vontade de se desligar do jornal Diário de S. Paulo, em 1935. Suas contribuições no campo da música, assim como no da literatura, corroboram para que ele seja um dos principais, senão o mais importante, articulador da cultura brasileira na primeira metade do século XX. Sua veia crítica e perspicaz é presente na grande maioria de seus escritos, sejam eles resenhas, ensaios, crônicas ou romances. Por exemplo, no prefácio do livro Aspectos da literatura brasileira, Mário de Andrade (1972) afirmou:
Reuni neste volume alguns dos ensaios de crítica literária, escritos mais ou menos ao léu das circunstâncias e do meu prazer. Espero que se reconheça neles, não o propósito de distribuir justiça, que considero mesquinho na arte da crítica, mas o esforço apaixonado de amar e compreender. É mesmo certo que se por vezes sou um bocado áspero em minhas censuras aos artistas, isso provém de uma desilusão. A desilusão de não terem eles me proporcionado, de arte, o quanto eu sinto poderiam me dar. (p. 3)
Da mesma maneira que Mário de Andrade considera que a arte da crítica se faz através do esforço apaixonado de amar e compreender, ele cobra dos artistas para que estes retribuam em arte, ou seja, na arte maior que eles podem dar. Ele considerava-se um crítico das artes e combatia arduamente a crítica tendenciosa. Para exemplificar essa atitude, ao analisar o crítico Tristão de Ataíde em 1931, Mário de Andrade pontua que, do ponto de vista literário, toda crítica dotada de doutrina religiosa ou política é falsa, ou pelo menos imperfeita, pragmaticamente exata, mas tendenciosa. Assim sendo, Ataíde “vai gradativamente passando de crítico literário a comentador de idéias gerais (...) e é também uma prova da contradição que existe entre a Arte e a crítica sectária” (1972, p. 8). Interessante notar que ele grafa arte com maiúscula e crítica sectária com letra minúscula. Andrade exemplifica a mudança da “crítica dos artistas”, chamada por ele de crítica estética para a crítica sectária, “das idéias gerais, em que todo sectarismo, todo pragmatismo pode se mostrar com mais lealdade e justiça”. Temos, aqui, através da crítica de Mário de Andrade a Ataíde, a definição de crítica ideológica, de certo modo combatida por nós. Nesse sentido ele pontua que os “nossos críticos são impelidos a ajuntar as personalidades e as obras, pela precisão ilusória de enxergar o que não existe ainda, uma suposta nação. Daí uma crítica prematuramente sintética, se contentando de generalizações muitas vezes apressadas, outras inteiramente falsas”.
Desse modo, o olhar atento e perspicaz de Mário de Andrade delata a crítica ideológica por trás da crítica literária de Tristão de Ataíde, que, ao invés de tentar discutir a obra, acerca-se de exemplos fora do âmbito da compreensão desta. Segundo João Lafetá (2000, p. 20), o projeto estético está diretamente ligado às modificações operadas na linguagem, por exemplo, a uma crítica da velha linguagem pela confrontação com uma nova linguagem, que contém em si o seu projeto ideológico. Já o projeto ideológico está diretamente atado ao pensamento, à visão de mundo de sua época. Haroldo de Campos (1970, p. 7) nos dá também uma definição para a crítica, que é metalinguagem, ou linguagem sobre a linguagem. E o objeto dessa metalinguagem é a obra de arte. Segundo ele, “para que a crítica tenha sentido – para que ela não vire conversa fiada ou desconversa, é preciso que ela esteja comensurada ao objeto a que se refere e lhe funda o ser”. Não nos esqueçamos de que a crítica é um ramo jornalístico, ela tem outros compromissos próprios dos veículos de informação. Mas a enorme contribuição que a crítica também pode nos oferecer é que ela nos propicia conhecer a visão da época no momento do seu acontecimento. Porque, na verdade, enxergar hoje o que aconteceu há décadas é, de certo modo, fácil. Constatar uma novidade, discernir o surgimento de um artista genial, de um fenômeno cultural, é muito mais complicado, porque, como representante de seu tempo, o crítico, naquele momento, talvez não tivesse condições de “enxergar” novidades que viessem quebrar convenções e princípios próprios do academicismo da época.
Muitas crônicas, inseridas futuramente no livro inacabado de Mário de Andrade O Banquete, foram publicadas inicialmente na seção “Mundo Musical” da Folha da Manhã. Esta obra possui um caráter de ficção que o diferencia dos outros textos do autor. Um diálogo durante um jantar entre cinco personagens imaginárias desenvolve uma série de discussões sobre música e política. Gilda de Mello e Souza (2005, p. 10) afirma que este livro inacabado é, na verdade, uma crônica dos costumes artísticos da época e que a riqueza do pensamento de Mário de Andrade ainda não fora devidamente avaliado. Sua preocupação constante em focalizar os vícios correntes nos grandes centros artísticos brasileiros, como a falta de formação profissional dos músicos, a escassez e precariedade das orquestras sinfônicas em atividade, a situação caótica da composição musical brasileira ou a valorização desmesurada do virtuosismo, faz do crítico e escritor paulista um dos mais representativos intelectuais brasileiros.
Segundo Manuel Bandeira (1960, p. 280), a influência de Mário de Andrade foi enorme e decisiva em todos os setores do pensamento. “Seus conselhos e críticas foram uma verdadeira bússola para os novos músicos”. Havia, de um certo modo, um consenso sobre a figura e importância do escritor modernista, até mesmo em relação às resenhas musicais que ele escrevia “no calor da hora”, dispondo de pouquíssimo tempo, mas sem perder a qualidade e a seriedade para tratar os temas. Tomamos como exemplo a contribuição de Andrade para o jornal Diário Nacional, segundo Telê Lopez (1976):
Dentro dos limites temporais impostos pelo jornalismo industrial, faz-se presente o despoliciamento de sua linguagem e a humanidade do autor. O pouco tempo para pensar, escrever e refletir sobre o texto pronto, a consciência da precariedade afastam muitas vezes a objetividade e a auto-crítica, privilegiando a confissão e a declaração apaixonada. Temos então um Mário que se revela muito humano. (p. 51)
Ao revelar-se “mais humano”, Mário de Andrade externa, sem rodeios, sua paixão pela música. Seus textos críticos são repletos de justificativas que só conseguem ter pertinência porque vêm de um autor que possui um conhecimento musical profundo, e consegue externá-lo em forma de palavras. Esta é a questão. Se o crítico não consegue interpretar o objeto, ele não conseguirá ser razoável, imparcial, consciente.
Chegando ao final de nossas considerações sobre o trabalho crítico de Mário de Andrade na imprensa diária de sua época, ficamos com a impressão de que houve um crítico de música obstinado em compreender a arte de seu tempo, pontuando, refletindo, sugerindo e denunciando (delatando) novos trabalhos. Necessitamos, porém, nos remeter aos seus escritos para constatarmos como a crítica musical atual é deficiente e desprovida do caráter apreciativo tão importante para a crítica. Percebemos, desse modo, uma mudança importante entre dois momentos do jornalismo cultural do país, a passagem de um jornalismo cultural de características literárias e de caráter estético, em torno de valores, como o de Mário de Andrade, para o atual, um formato influenciado pela indústria cultural, de caráter ideológico, que visa mais informação e propaganda de um determinado produto do que efetivamente a busca pelo entendimento da obra. Sendo assim, esperamos que nossos críticos leiam a obra de grande escritor e crítico brasileiro e reflitam na responsabilidade que seus textos possuem, que é de transmitir cultura, acima de tudo.
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Liliana Harb Bollos – Doutoranda em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é mestre e graduada em piano pela Universidade de Música de Graz, Áustria e bacharel e licenciada em Português pela USP. É professora da Faculdade de Música Carlos Gomes/SP e pianista, tendo se apresentado com Alaíde Costa, Ruy Castro, Mark Murphy, Coralusp e a Orquestra Sinfônica de Santo André, entre outros.