THE LONG SLURS ON CIACCONA IN D MINOR BWW 1004 BY J. S. BACH AND ITS ADAPTATION IN TRANSCRIPTIONS FOR ACOUSTIC GUITAR
Thiago Colombo de FREITAS
thiagocolombol@hotmail.com
Daniel WOLFF
daniel@danielwolff.com
Resumo: Este trabalho é um estudo das ligaduras longas na Ciaccona em ré menor – quinto movimento da Partita II para violino solo, BWV 1004 – de Johann Sebastian Bach (1685-1750), e sua adaptação em uma transcrição para violão. A interpretação dos sinais de articulação indicados por Bach é abordada a partir de referenciais teóricos e práticos. São discutidas as tradições de execução e os variados entendimentos atribuídos por estas aos sinais de articulação. Palavras-chave: Bach; Ciaccona; Articulação musical; Retórica barroca; Tradições de execução.
Abstract: This work is a study of the long slurs in Johann Sebastian Bach´s Ciaccona in D minor (fifth movement of the Partita BWV 1004 for solo violin), and their adaptation in a guitar transcription. Bach´s articulation indications are examined in the light of theoretical and practical references. The discussion also focuses on performance traditions and the various interpretations of the articulation marks left by these traditions. Keywords: Bach; Ciaccona; Articulation; Baroque rhetoric; Performance traditions.
O presente artigo é um estudo da articulação musical na Ciaccona BWV 1004, de J. S. Bach, e seu entendimento conforme tradições de execução de distintos períodos. Serão enfocadas ligaduras longas – abarcando quatro ou mais notas – e sua aplicabilidade ao violão.
Estudar a articulação musical em obras do período barroco é imprescindível para o entendimento e, por conseguinte, para a execução de uma música “fundamentalmente orientada pela linguagem”, que, nas palavras de Harnoncourt (1984, p. 42), “fala”, em contraposição à música posterior a 1800 que, a grosso modo, “pinta”.
Segundo Hermann Keller (1955, p. 46), “tal qual o fraseado, também a articulação musical deriva da linguagem. Os sons da fala se compõe de vogais, aqueles com sonoridade própria, e consoantes, que se combinam com as mesmas. Emiti-las claramente e delimitá-las umas das outras é a missão da articulação lingüística. A criança aprende a falar aprendendo a articular”.
A importância da articulação musical apontada por Keller em estudo que nos remete às palavras de Schenker, segundo o qual, “o problema deveria apoiar-se sobre uma base vocal, ou seja, sobre aquela arte da distribuição da respiração que se perdeu há muito, mas que, não obstante, de uma maneira misteriosa constitui também o fundamento da articulação musical” (SCHENKER apud KELLER, 1955, p.7).
Harnoncourt (1984, p. 49) diz que “articulação é o nome dado ao processo técnico de falar, a maneira de proferir as diversas vogais e consoantes. Em 1903 Meyer (apud Harnoncourt, 1984) afirma que articular é “dividir, expor algo ponto por ponto; fazer com que as partes separadas de um todo apareçam claramente, sobretudo os sons e as sílabas das palavras. Na música, compreende-se por articulação o ligar e destacar das notas, o legato e o staccato, bem como a sua mistura, para a qual muitos empregam abusivamente o termo frasear”. Deparamo-nos com o problema da articulação principalmente na música barroca, mais precisamente na música de 1600 até 1800, pois esta é fundamentalmente orientada pela linguagem. Os paralelos com a linguagem foram acentuados por todos os teóricos daquele tempo, e a música era freqüentemente descrita como uma ‘linguagem de sons’.”
O trabalho como professor de música somado à experiência pessoal de aprendizado nos mostra uma dificuldade singular no estudo de obras de períodos anteriores ao século XIX. Esta dificuldade está ligada à diferença fundamental de conceito referida por Harnoncourt, que nos permite dividir, ainda que de forma superficial, em duas partes a música ocidental do medievo até hoje, e nos leva a denominar “música antiga” a música feita antes do século XIX. Podemos dizer que, para nós, esta “linguagem dos sons” constitui uma língua estrangeira, já que não somos “homens do barroco” (Harnoncourt, 1984). O aprendizado desta língua implica em entender uma arte-linguagem baseada nos princípios da retórica1.
A arte do discurso musical está, então, dividida em três partes: Inventio, idéia básica a ser apresentada; Dispositio ou Elaboratio, “esqueleto” da peça; Pronuntiatio ou Elocutio, apresentação do discurso (KLOPPERS, 1965, p. 56-65, 196, in: BUTT, 1990, p. 16). De acordo com Butt (1990, p. 16), Inventio “pode ser facilmente associado com o Affekt2 ‘único’ tradicionalmente associado com cada peça musical [...] Decoratio3 é a continuação do mesmo processo [Elaboratio], adicionando detalhes e palavras ou frases individuais”. Cabe ao executante a tarefa de realizar o elocutio, mas este só poderá ser bem concretizado se o executante tiver conhecimento sobre as etapas anteriores. Temos então que conhecer os afetos contidos na obra (inventio), entender as inflexões que exibem ou ocultam figuras4 significativas, anotadas pelo compositor para tornar atraente o texto (decoratio), e conhecer as tradições de execução, onde encontramos referenciais práticos, que nos auxiliarão nesta realização da etapa final, o elocutio.
Na tentativa de transpor para o violão os efeitos sonoros criados pelas referidas indicações, fez-se necessário um estudo do seu significado, já que estas suscitavam interpretações diversas por parte dos próprios violinistas. Cabia pesquisar, antes de tudo, o significado destes símbolos anotados por Bach e os procedimentos adotados pelo próprio compositor para adaptá-los em suas transcrições.
Harnoncourt (1984, p. 49) diz que “os sinais de articulação continuam os mesmos através dos séculos, inclusive no período posterior a 1800, mas o seu significado está sempre passando por mudanças radicais”. No que tange ao entendimento dos sinais de articulação de Bach, tomamos como base os autores Hermann Keller (1955), John Butt (1990) e Nikolaus Harnoncourt (1984).
Ainda que não tenham sido citados ao longo do trabalho, estudos sobre autenticidade nas práticas interpretativas, presentes na bibliografia, foram importantes dentro da pesquisa. O estudo sobre a transcrição de Segovia da Ciaccona, de Eros Roselli (1990), foi referência sempre que comentada esta transcrição.
Este trabalho baseou-se também em uma série de referenciais práticos e teórico-práticos. As transcrições para violão das suítes para violoncelo de Stanley Yates e seus ensaios sobre arranjo, interpretação e performance de J. S. Bach, bem como a edição urtext da obra integral para alaúde, de Tilman Hoppstock, formam o que consideramos as referências teórico-práticas. Nesta definição também cabe citar o trabalho de Rodolfo Betancourt sobre a Ciaccona e sua transcrição para violão.
Os referenciais práticos propriamente ditos são as partituras de edições práticas e as gravações. Foram ouvidas numerosas gravações da Ciaccona – em violino, violão, violoncelo, cravo, alaúde e orquestra sinfônica
– e observadas quatro edições para violino, três para violão e duas para piano, além de muitas outras obras do compositor para diversas formações.
Tal número de edições e gravações não permitia o aprofundamento necessário, visto a desproporção com o escopo do artigo. Sendo assim, foram selecionadas três gravações de violinistas (Nathan Milstein, Itzhak Perlman e Thomas Zehetmair) e cinco gravações de violonistas (Andrés Segovia, Juliam Bream, John Williams, David Russell e Eduardo Fernández), visando que estas fossem representativas de tradições de execução variadas. Utilizando o mesmo critério, selecionamos duas edições tradicionais do violino (Enrico Polo e Henryk Szeryng) e duas de transcrições para violão (Andrés Segovia e Abel Carlevaro). Tanto as gravações como as edições são analisadas usando como objeto de comparação: o manuscrito, bem como as edições urtext Neue Bach-Ausgabe e Neue Bach-Gesellschaft.
Segundo Butt (1990, p. 180), “na música do século XIX dois níveis de ligaduras são freqüentemente usados: ligaduras curtas indicam os detalhes de articulação e ligaduras longas implicam em um ‘fraseado’ genérico. O termo ‘frase’ é cada vez mais evidente nos dicionários musicais do final do século XVIII. A definição de Rosseau na Encyclopédie (1751-7 vol. 12 p. 530) pareceu ter sido de grande influência, reaparecendo no Dictionnaire (1768 p. 376). [...] Não há aparições autênticas do uso simultâneo de ligaduras grandes e pequenas na música de Bach examinada nesta pesquisa”.
Desta afirmação é possível deduzir uma característica do pensamento musical barroco. O “uso simultâneo de ligaduras grandes e pequenas” ao qual se refere Butt é típico da música de Beethoven ou Brahms. Nesta música é possível falar de ligaduras de frase, ou seja, ligaduras que indicam início e fim de uma frase musical completa. Em Bach, as ligaduras longas indicam gestos musicais que, somados, formam uma frase propriamente dita. Isto implica em um processo de construção musical onde as melodias são formadas, nas palavras de Bruno Kiefer (1923, p. 51), “mediante figuras”. De fato, Butt se refere a estas ligaduras como “figurativas” (p. 180).
Butt escreve a seguir, “[as ligaduras longas em Bach] podem, por um lado, indicar um estilo legato pouco usual, por outro, um longo gesto que pode ser articulado de diversas maneiras”.
Sobre o prelúdio BWV 995 para alaúde, diz Butt (1990, p. 180-181), “apenas as ligaduras mais curtas podem indicar um legato real no alaúde
[i.e. mais de uma nota soando com um ataque de mão direita]. [...] a ligadura dos compassos 22-25 do prelúdio em questão sugere uma execução bastante livre para ser tocada ‘de um só fôlego’ com o mínimo possível de articulações intermediárias. Claramente, este longo agrupamento de notas tem algo em comum com os conceitos de ‘fraseado’.”
No exemplo 1, temos os compassos 22-25 do prelúdio da suíte BWV 995 para alaúde, o mesmo trecho com as ligaduras indicadas pelo compositor na versão para violoncelo BWV 1011 e na tablatura de um alaudista anônimo contemporâneo de Bach.
Exemplo 1: J. S. Bach, Prelúdio BWV 1011, comp. 22-25. Versão para violoncelo (pentagrama superior), da transcrição para alaúde do compositor (BWV 995, pentagrama intermediário) e de tablatura feita por um alaudista anônimo do século XVIII (pentagrama inferior).
Sobre a tablatura em questão Tilman Hoppstock (na edição de 1994), nos diz: “esta versão tem especial importância na avaliação das práticas de transcrição dos alaudistas da época. Não podemos saber o nível de satisfação que teria o compositor com as consideráveis alterações no prelúdio. [...] Em alguns lugares, alterações foram feitas levando em consideração
Na Ciaccona não encontramos ligaduras da dimensão do trecho discutido acima. As maiores não chegam a agrupar um compasso inteiro. Não obstante, a Ciaccona está repleta de ligaduras com este mesmo significado, como veremos a seguir.
Nos compassos 49-51 da Ciaccona, temos ligaduras de oito notas. Estas ligaduras indicam um gesto musical que confere unidade aos três compassos, de forma a clarificar o caráter seqüencial do trecho. Observamos ainda que as notas iniciais das ligaduras correspondem às fundamentais dos acordes subentendidos na progressão, contribuindo assim para a definição da harmonia.
Exemplo 2: Ciaccona BWV 1004, comp. 49-51 (urtext).
Keller (1955) afirma que, “via de regra, Bach concebe o legato de uma maneira emocional, como sinal de tristeza, de dor serena, como no começo da cantata nº 46 (Schauet doch und sehet - Olha e vê), na cantata nº 21 (Seufzer, tränen, Kummer, Not - Suspiros, lágrimas, penas, aflição), na sinfonia de introdução à Cantata nº 11 (Weinen, Klagen -Chorar, lamentar-se), na Cantata nº 85 (Seht, was die Liebe tut - Vê o que faz o amor). Várias vezes, agregada ao legato está a expressão piano, o que nos permite concluir que devem se interpretar suavemente também os movimentos lentos em legato da música de câmara, das trio sonatas para órgão e do Concerto Italiano” (1955, p. 100).
Nas edições para violão analisadas neste estudo (exemplo 3) não há indicações de articulação que cumpram a função da ligadura do original. Na edição de Segovia a definição harmônica é reforçada pelos baixos agregados (notas fundamentais dos acordes) em cada cabeça de compasso. Segovia também usa ligados mecânicos de maneira não padronizada, possivelmente para conquistar o legato, ou talvez motivado puramente por uma facilidade digital.
Exemplo 3: Ciaccona BWV 1004, comp. 49-51. Edições para violão de Abel Carlevaro (1989, pentagrama superior) e de Andrés Segovia (1934, pentagrama inferior).
Carlevaro não usa ligados de mão esquerda para gerar o legato, o que sugere que o mesmo deve ser conquistado pela mão direita. Sobre esta variação diz Carlevaro (1989, p. 16), “percebe-se uma mudança de atmosfera com respeito à variação anterior, expressa em frases que vão conformando em cada compasso uma seqüência A-B, repetida nos compassos seguintes. Em cada um dos três primeiros existem duas harmonias unidas por uma nota comum (re, dó, sib, respectivamente)”.
Pela digitação de mão direita, percebe-se uma acentuação no primeiro e terceiro tempos de cada compasso, pelo uso do polegar (WOLFF, 2001, p. 16). As “duas harmonias unidas por nota comum” mencionadas por Carlevaro aparecem justamente no primeiro e terceiro tempos do compasso.
As duas edições para violino analisadas (exemplo 4) mantêm as ligaduras do original. Pólo (s/d) acrescenta um sinal de portato na nota inicial de cada compasso, de modo a separá-la das notas agrupadas pela ligadura. A indicação de piano coincide com a afirmação de Keller vista anteriormente. Já Szeryng (1981) sugere um mezzo-piano para as notas sob a ligadura, alternando com piano nas últimas três notas do compasso. Ambos mudam a direção do arco na primeira nota do grupo ligado.
Exemplo 4: BACH, Ciaccona BWV 1004, comp. 49-51. Edições para violino de Enrico Polo (pentagrama superior) e de Henryk Szeryng (pentagrama inferior).
Já vimos acima como a articulação em Bach geralmente está ligada à retórica, fazendo parte do decoratio, explicitando ou obscurecendo figuras e caracterizando afetos. As ligaduras bachianas tanto podem gerar um afeto pela união-separação de grupos de notas, como podem reforçar um afeto já existente. Segundo Butt (1990, p. 191), “As ligaduras muitas vezes são usadas para evocar um Affekt particular. Nesses casos, elas confirmam algo que já está evidente nas notas, ou impõem um Affekt particular em notas que poderiam ser interpretadas de diversas maneiras”.
Vejamos agora como Bach, através da articulação, promove uma mudança de afeto. Entre os compassos 72-73 da Ciaccona temos o fim de uma variação e início de outra.
Exemplo5: Ciaccona BWV 1004, comp. 72-73 (urtext).
A variação compreendida pelos compassos 65-72 (chamaremos de variação A) é uma seqüência cuja figura geradora se caracteriza pela soma de duas células rítmicas primordialmente em semicolcheias (a) e uma em fusas (b). A variação posterior (compassos 73-80, doravante variação B) inicia com uma seqüência onde a figura básica é a soma de duas células rítmicas em fusas (a’) e uma em semicolcheias (b’), como vemos no exemplo 6.
Exemplo 6: J S. Bach, Ciaccona BWV 1004, comp. 65-80 (urtext). A) variação compreendida entre os compassos 65-72; B) variação compreendida entre os compassos 73-80.
A semelhança das alturas e, principalmente, do ritmo entre ambas variações – ainda mais evidente quando comparadas com o resto da obra
– torna difícil a separação entre as mesmas. De fato, se ignorarmos as ligaduras assinaladas pelo compositor, veremos uma unidade de caráter entre elas. Aqui a articulação é o elemento responsável pela clareza na separação das variações.
Nas palavras de Butt (1990, p. 192), “As ligaduras impõem uma mudança de Affekt nos compassos 72-73 da Ciaccona BWV 1004. Aqui a figuração corrente é virtualmente a mesma para os dois compassos. Contudo, o desaparecimento das ligaduras no ponto exato onde inicia a próxima variação de quatro compassos sugere que um contraste definido está implícito e que o executante não deve seguir ligando continuamente; a articulação torna-se um elemento de variação técnica. [...] as ligaduras de Bach refletem o comando do compositor exercido sobre o intérprete, impondo um Affekt específico em notas ‘neutras’.”
Este argumento também é defendido por Betancourt (1999, p. 389): “Ligaduras longas ajudam a entender a direção de movimentos específicos, como aquelas dos compassos 72-73. [...] Veja que no compasso 73 Bach não põe ligadura. Isso indica uma mudança de affekt definindo este compasso como pertencente a uma nova variação”.
Sobre as ligaduras longas da variação A, Betancourt diz que “acentuando a primeira nota de cada grupo o pulso básico de semínima pode ser mantido, obtendo no violão um efeito paralelo ao do violino”. Este efeito sugerido por Betancourt já é uma tradição de execução da Ciaccona ao violão, podendo ser observado, por exemplo, nas gravações de Williams (1975) e Bream (1992).
Williams, na variação A, liga as fusas duas a duas, tal como na edição Segovia. No entanto, Williams acentua as notas que iniciam as ligaduras da versão original, conforme sugerido por Betancourt. Na variação B, Williams diminui consideravelmente o número de ligados como forma de representar o novo affekt.
Bream usa sempre um ligado mecânico entre a primeira e a segunda nota de cada grupo, clarificando o desenho formado pelas ligaduras de Bach. Fazendo uso do staccato, ele separa as células mencionadas anteriormente, criando assim dois planos de afeto dentro de cada uma das variações em questão: o plano das figuras lentas em staccato e o plano das figuras rápidas em legato. Desta forma ele unifica todo o trecho entre os compassos 65-76 formando uma só variação.
Exemplo 7: J. S. Bach, Ciaccona BWV 1004, comp. 65-80. Transcrição para violão de Andrés Segovia.
Como já mencionamos, em sua edição Segovia liga as fusas em grupos de duas notas (exemplo 7). A respeito das “ligaduras sobre várias notas” diz Roselli (1990, p. 46): “Esse é um dos problemas mais delicados para o transcritor, devendo fazer frente à carência, por assim dizer, natural do nosso instrumento [violão]. Quase sempre Segovia resolve o problema ligando as notas de uma escala duas a duas, obtendo assim um efeito satisfatório se não se acentuam muito as notas internas [...]”. Tal qual Bream, Segovia (1987), unifica um trecho maior como uma grande variação de 12 compassos (compassos 65-76). Contudo, usa a articulação de forma a seccionar o trecho em três partes. Na primeira, compassos 6568, Segovia mantém o legato para as duas figuras (fusas e semicolcheias); na segunda, compassos 69-72, indica legato nas figuras em fusas e staccato nas figuras em semicolcheias; e, na terceira, compassos 73-76, indica lega-to nas fusas e portato nas semicolcheias. As indicações de dinâmica que acompanham estas articulações sugerem um crescendo ao longo dos 12 compassos, contraposto em seguida por um piano “suave” (nas palavras de Segovia) no compasso 77. Este entendimento da forma é característico da tradição romântica de execução da Ciaccona. Na versão orquestral de Stokowski (1992) a entrada da suposta nova variação, no compasso 77, é caracterizada por uma mudança substancial de instrumentação. Após um tutti das cordas, esta sessão é tocada apenas por flauta e oboé – que se revezam na melodia – e fagote.
Nas escalas descendentes dos compassos 65-68 Fernández (1987) liga as fusas duas a duas. Já nas escalas ascendentes dos compassos 69-71, Fernández utiliza ligaduras de duas e três notas, coincidindo com as mudanças de corda. Na variação B, apenas um ligado é utilizado, no terceiro tempo do compasso 76. Assim, tal qual na versão para violino, aqui o uso ou não de ligados mecânicos diferencia as variações A e B.
Através da análise comparativa de edições e gravações, auxiliados por referenciais teóricos, vimos como as ligaduras estão relacionadas a elementos como a harmonia, o ritmo e a representação dos afetos. Admite-se assim a multi-funcionalidade das ligaduras na música de Bach.
Diferentemente da maioria dos compositores do século XIX, as ligaduras longas são raras na obra de Bach. Isto decorre de uma diferença básica de construção melódica. Na música barroca, em geral, a melodia é composta por figuras que raramente compreendem mais de um compasso. Portanto, a articulação indicada por Bach está sempre relacionada às figuras referidas, ou a gestos musicais que compreendem as mesmas, e não a uma frase musical propriamente dita.
Esperamos que as reflexões contidas no presente trabalho venham a contribuir com o estudo da música de Bach e a elucidação de questões interpretativas pertinentes à mesma.
1 Todos os conceitos musicais relacionados à retórica originaram-se na extensiva literatura sobre oratória e retórica dos escritores da Grécia e Roma antigas, principalmente, Aristóteles, Cícero e Quintiliano. (BUELOW, 1980, p. 793).
2 Segundo Buelow (1980, p. 800): “Como resultado de suas intrincadas relações com as doutrinas retóricas, a música barroca tomou como seu objetivo estético primário a obtenção de uma unidade estilística baseada em abstrações emocionais chamadas de Afetos. Um afeto (‘Affekt’ em alemão, do grego “pathos” e do latim “affectus”) consiste em um estado emocional ou paixão racionalizada. Após 1600, a representação dos Afetos tornou-se a necessidade estética da maioria dos compositores barrocos, sejam quais fossem suas nacionalidades, e a base fundamental de numerosos tratados.”
3 “A transformação mais complexa e sistemática do conceito de retórica em uma equivalência musical origina o decoratio da teoria da retórica. Na oratória, cada orador modifica o seu comando das regras e técnicas do decoratio de forma a embelezar suas idéias com uma imagem retórica e, infundir o seu texto/discurso com uma linguagem apaixonada. O significado disso foi o amplo conceito sobre as figuras de ‘linguagem’,” afirma Buelow (1980, p. 794)
4 Segundo Fernandez (2003, p. 81), “a Figurenlehre, ou ‘teoria das figuras’, se refere a uma repertório de gestos musicais típicos do período barroco, um repertório mais ou menos codificado que é tradicionalmente relacionado com o aspecto retórico da música. Por definição, esta é uma compilação de gestos musicais usualmente e quase universalmente empregados. Neste caso, há uma regra similar àquela dos tropi retóricos, isto é, figuras comuns do discurso escrito ou falado”.
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Thiago Colombo de Freitas – Bacharel em Música (violão) e Mestre em práticas interpretativas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Instituto de Artes – Departamento de Música – Programa de Pós-Graduação em Música).
Daniel Wolff – Professor do Departamento de Música e do Programa de Pós-Graduação em Música da UFRGS. É Doutor e Mestre em Música (violão) pela Manhattan School of Music de Nova Iorque (bolsas CNPq e Capes), e Bacharel em Música (violão) pela Escuela Universitária de Música de Montevidéu.