SARACOTEIO - PIAnO BRASIlEIRO DE lÚCIA BARREnECHEA

saraCoteio - Brazilian Piano By lúCia BarreneChea

Resenha por Sara Cohen (UFRJ) saracohen@uol.com.br

“Saracoteio - Piano Brasileiro”

CD solo da pianista Lúcia Barrenechea Lançado em 2009 pela Ethos Brasil, cds@ethosbrasil.com Gravação: Sala Villa-Lobos IVL/UNIRIO, 2009 Produção executiva: Sérgio Barrenechea Edição e Mixagem: Sérgio Barrenechea e Flavio Goulart Masterização: Flavio Goulart Fotos: Sérgio Barrenechea Projeto Gráfico: Oficina Cultural Geppeto Duração Total: 69:31

O título é curioso. Saracoteio é palavra cujo verbo diz da ação ou efeito de saracotear, mover(-se) ou agitar(-se) freneticamente, soltando o corpo em movimentos vivazes; vaguear de um lugar para outro (Houaiss, 2004). “Piano brasileiro” é expressão já consagrada sintonizada com o ideário estético de Mario de Andrade na construção de uma música que teve, e ainda tem, o piano como ator em papel de destaque. Saracoteio é o título de uma das obras do CD, mas também pode sugerir os movimentos das escolhas musicais de Lucia Barrenechea nesse seu primeiro CD solo: um “saracoteio” estético por obras de quatro compositores consagrados que já nos deixaram e outros três, atuantes, que dão continuidade à construção do piano brasileiro.

Graduada em piano pela Universidade de Goiás (1988), seu estado natal, Lucia solidificou sua formação acadêmica básica voltando-se sempre para a performance e seus campos de estudo: fez mestrado em música na Universidade de Boston (1991, EUA) e doutorado em piano e pedagogia do piano na Universidade de IOWA (EUA, 2000). Foi professora de piano na Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (1994

Vol. 10 - Nº 1 - 2010

a 2006), onde atuou como coordenadora do curso de Especialização em Performance Musical e fez parte do corpo docente do Mestrado em Música. Atualmente é professora de piano no Instituto Villa-Lobos da UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, atuando na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Música. Portanto, Lucia vem conciliando de forma equilibrada – tarefa bastante difícil – a tripla função de pianista, professora universitária e pesquisadora. Dentre suas muitas atividades destaco duas pesquisas – uma sobre processos de intertextualidade na música brasileira para piano e a outra sobre a obra pianística de Estércio Marquez Cunha – com conseqüências evidentes na escolha das obras que integram o CD, como veremos adiante.

É com a Sonatina nº 1 (1928) de Camargo Guarnieri (Tietê, São Paulo, 1907-1993) que Lucia inicia seu passeio pelo piano brasileiro. Considerada por Luiz Heitor a mais importante obra da juventude do compositor, traz em seus três movimentos – Molengamente, Ponteado e bem dengoso e Bem depressa – “designações expressivas, que inauguram uma nova faceta de nacionalismo (...), uma reação extremada contra o italianismo ambiente” (Heitor, 1956, p.334) simbolizando, num primeiro momento, aquele sentido brasileiro almejado por Mario de Andrade (1962). Em Saracoteio (1978) peça já da maturidade do autor, certas características da Sonatina – “lirismo contido e recatado, ao lado da fulgurante vivacidade, do áspero vigor de certas passagens de caráter mais diretamente coreográfico” (idem, p. 335)

continuam a revelar essas marcas expressivas de Guarnieri, mas em uma textura mais intrincada e com uma atmosfera harmônica mais complexa. Lucia sabe tirar proveito dessas características. Ressaltamos a alma seresteira da pianista que se revela especialmente na forma ampla como conduz as frases do ponteado da Sonatina.

A seguir, Hommage à Chopin, obra composta por Heitor Villa-Lobos (Rio de Janeiro, 1887-1959) em 1949 sob encomenda da UNESCO em comemoração ao centenário de morte do compositor polonês. Excelente exemplo de intertextualidade, divide-se em duas partes – Nocturne e Ballade-nas quais Villa-Lobos dialoga de forma elegante com as melodias acompanhadas, as polirritmias, a utilização abundante de notas duplas, arpejos, trinados e oitavas característicos do piano ao mesmo tempo sofisticado e virtuosístico de Chopin. Além disso, agrega a sua própria ambiência rítmica, melódica e harmônica, contribuindo para um piano brasileiro também

Resenha (p. 131-135)

sofisticado e virtuosístico. A versão de Lucia valoriza o contraste entre o intimismo e contenção do Nocturne e a exuberância da Ballade.

Estércio Márquez Cunha (Goiatuba, Goiás, 1941) é professor da Universidade Federal de Goiás, onde Lucia também lecionou. Tem composto para formações instrumentais as mais diversas – câmara, coro, orquestra e peças para instrumento solo. O Estudo (1991) explora especialmente os intervalos de sétima em toda a geografia do piano numa ambiência cromática. O tempo é ora livre, ora métrico, lento e discursivo. Lucia projeta os diferentes toques e articulações fraseológicas conferindo um sentido bastante expressivo ao estudo. Da série Música para piano, Lucia seleciona quatro que oferecem um panorama das experimentações feitas por Estércio desde 1962. A escolha de Lucia é muito bem informada por pesquisa publicada em artigo (Maioli e Barrenechea, 2002) no qual mostra aspectos importantes da linguagem musical do compositor. Na ordem com que se apresentam no CD, a primeira delas é a de nº 55 (2003), dedicada à Lucia. A seguir, a de nº 32 (1967), da primeira fase, período de assimilação de técnicas composicionais. Observa-se a repetição sistemática de padrões rítmicos numa ambiência bartokiana. Na de nº 47 (1977), o compositor utiliza uma série dodecafônica em larga palheta dinâmica sobre toda a tessitura do instrumento. Alterna momentos métricos e não métricos, fazendo uso expressivo do silêncio. Lucia explora os contrastes e as flutuações numa interpretação bastante dramática, ao mesmo tempo contida e forte. A seguir, na de nº 50, (1993), percebe-se uma retomada do tonalismo, numa atmosfera mais cantabile, por vezes melancólica.

Liduino Pitombeira é cearense de Russas (1962). O mais jovem entre os compositores deste CD já produziu mais de 130 títulos, abrangendo 2 sinfonias, 1 ópera, 5 concertos e diversas formações instrumentais e corais. É fundador do grupo Syntagma, criado em 1986, que busca um elo entre a música nordestina atual e as sonoridades da música antiga (medieval, renascentista e barroca). Nos doze anos que separam a Suite Russana (1992)

-Pedras, Ingá, Bonhu e Timbaúba – e Sertão Central op. 84 (2004) percebe-se a atmosfera nordestina, mais explícita na primeira que na segunda. Nesta, o compositor pinta sonoramente três momentos de nosso tempo cotidiano: Alvorada, Meio Dia e Entardecer.

De Caio Senna, paulista radicado no Rio de Janeiro, a pianista interpreta duas composições que integram o ciclo Testamento, conjunto de

Vol. 10 - Nº 1 - 2010

sete peças e um fragmento que representam cada um deles os sete anos e meio que o compositor estudou com Wilma Graça, a quem o ciclo, ainda incompleto, é dedicado. Nas palavras do próprio compositor, Testamento é o nome dado pela professora ao caderno onde anotava suas observações durante a aula e é sua intenção que os títulos das peças evoquem lembranças daquele tempo. In Memorian Wilma Graça é baseada em dois acordes extraídos do Prelúdio Op. 16 nº 4 em mi bemol menor de Scriabin. Os dois acordes de 7a com apojaturas foram re-estrutrados em um acorde denso formado por quintas justas superpostas. A esse material, é interpolado um si bemol repetido em diferentes durações e registros. A Dama dos Cabelos Azuis é a própria Wilma. Estruturalmente, se desenvolve a partir de um acorde formado por todos os sons da escala octatônica. Este se desdobra em materiais contrastantes através de um processo de dissolução do bloco inicial. Desse processo emerge um acorde de quintas justas superpostas (elemento unificador do ciclo). São peças densas, carregadas com a emoção da homenagem que o compositor oferece a sua primeira professora de piano e percepção musical. Lucia penetra nessa atmosfera tirando partido da contenção e da economia de gestos de forma dramática e expressiva.

Apesar de seu aperfeiçoamento musical e pianístico na Itália e de lá ter vivido a maior parte de sua vida, Henrique Oswald (Rio de Janeiro, 1852-1931) “praticamente não se interessou pela ópera, nem por tudo o que constituía o receituário habitual da música italiana da segunda metade do século XIX” (Heitor, 1956, p. 122). Tampouco compôs música atrelada a um ideário nacionalista brasileiro. As duas peças escolhidas por Lucia lhe permitem entrar em uma atmosfera “francesa”: Il Neige!... e Valse op. 4 nº 1. Esta é peça da juventude, mas já revelando o espírito refinado do compositor. A outra tornaria Oswald famoso ao vencer, dentre 600 obras de compositores das mais diferentes nacionalidades, concurso promovido pelo jornal francês Le Figaro em 1902 tendo como júri Camille Saint-Saens, Gabriel Fauré e Louis Dièmer (idem).

Além dos gêneros que o consagraram – a ópera e a sinfonia – Carlos Gomes (Campinas, São Paulo, 1836-1896) compôs uma série de obras para canto e para piano, estas menos numerosas, que podem ser encontradas em publicação da FUNARTE comemorativa do sesquicentenário de nascimento do compositor. Sem data, as composições são possivelmente da “fase campineira do maestro” (Pupo, 1986, p.4). Lucia seleciona duas pe

Resenha (p. 131-135)

ças não só contrastantes entre si, mas também com as outras faixas do CD. Em Mormori, composta ao estilo do terceiro improviso de Schubert e das Canções sem palavras de Mendelssohn, exibe belo cantabile que desponta de nuvens de arpejos. Em Niny, último “saracoteio” desse belo CD, somos transportados para o ambiente elegante dos salões da segunda metade do século XIX. Com staccatos delicados, a artista valoriza repertório importante na construção do piano brasileiro

Este bem cuidado trabalho traz ainda breves textos analíticos (português e inglês) de Carol Gubernikoff. Para ela Saracoteio “demonstra a força da composição musical no Brasil”. Acrescentamos que este CD demonstra também a força de Lucia Barrenechea, musicista versátil e múltipla, que honra a tradição dos excelentes pianistas brasileiros. Suas idéias musicas são sempre projetadas com muita clareza e com domínio do fluxo temporal dando uma unidade consistente a esse saracoteio estético e pianístico.

Referências bibliográficas

Andrade, Mario, Ernesto Nazaré. In: Música, doce música. São Paulo: Martins; Brasília, INL, 1976.

. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins, 1962.

Garcia, Nilsea Maioli e Barrenechea, Lúcia Silva. A obra pianística de Estércio Márquez Cunha. Revista Música Hodie, vol. II n. ½. Goiás: PPG em Música da UFG, 2002.

Heitor, Luiz. 150 anos de música no Brasil (1800-1950). Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1956.

Houaiss, Antonio (org.) (2004). Dicionário eletrônico da língua portuguesa, Rio de Janeiro: Editora Objetiva, versão 1.0.7.

Pupo, Benedito Barbosa. Carlos Gomes e suas obras para piano. In: O piano brazileiro (sic) de Carlos Gomes. FUNARTE/Instituo Nacional de Música. 1986.

Sara Cohen -Bacharel em piano (UFRJ), doutora em música (UNIRIO). Gravou os CD’s ‘Brasileiras, música brasileira temperada a quatro mãos’ (1998), com a pianista Miriam Braga, ‘Diálogos’ (2000) com obras de Caio Senna, ‘Paulo Passos e Sara Cohen’ (2006), obras de compositores brasileiros para clarineta/sax e piano, ‘Terra dos homens’ (2008), obras de Ricardo Tacuchian, com o barítono Marcelo Coutinho e Paulo Passos e o CD que acompanha o livro “Cartilha rítmica para piano de Almeida Prado”. É professora de percepção musical no Departamento de Musicologia e Educação Musical da UFRJ com pesquisa voltada para o ritmo na música contemporânea.

Vol. 10 - Nº 1 - 2010