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MÚSICA HODIE

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MÚSICA HODIE

Vol. 9 - Nº 2 - 2009

Resenha (p. 137-142)

POR TODA MInHA VIDA DE AnA VAlERIA POlES (COnTRAbAIxO)

Por Toda Minha vida By ana valéria Poles (douBleBass)

Resenha por Sonia Ray (UFG)

soniaraybrasil@gmail.com

Ficha técnica

Gravadora: Clássicos

www.classicos.com.br

Músicos Participantes:

Dana Radu (piano) e Betina Stegman (violino)

Série: CLA012

Duração Total: 53:03

Local e data: São Paulo, 2009

Capa: Martins de Porangaba

Produção Fonográfica: Itamar Collaço

Preço de capa: R$22,00

Num primeiro olhar para o título do CD imagina-se que ele traga a trajetória de uma vida, ainda que isto seja tarefa quase inexequível em pouco mais que 53 minutos de música. Entretanto, ao continuar a desvendar a bela emabalagem, a contrabaixista Ana Valéria Poles nos supreende a cada detalhe revelando um ar de intimidade que lembra ao mesmo a forma simples com que ela recebe as pessoas em sua vida e a maneira austera e perfeccionista com que cuida de sua carreira contrabaixistica.

Sinto-me honrada em ter recebido a incumbência de resenhar este que é o primeiro trabalho em audio disponibilizado pela contrabaixista. Ana Valéria Poles sempre foi uma inspiração para todos os meus contemporêneos que admiravam tanto ter uma mulher atuando numa orquestra profissional e como chefe de naipe. Grande orgulho! Muitas vezes, ainda enquanto estudantes, nos assustávamos com as broncas da mestra vindas do fundo do palco (ah! se o palco de Campos dos Jordão falasse...) mas logo se compreendia que a bronca tinha fundamento (ainda que fosse apenas 9h00 da manhã e a noite mal tivese acabado para nós ‘bolsistas’). Bem, o tempo passou e muitos de nós nos tornamos colegas de profissão, trabalhando em instituições diferentes, cidades, países e, como no meu caso, em estados diferentes. Entretanto, os contrabaixistas têm uma peculiaridade rara entre os músicos de orquestra: gostam de ficar juntos! Adoram um encontrosinho de 2, 10, 100 ou 1000 contrabaixistas (como nas convenções da ISB - Inetrnational Society of bassists). Então, em 1990 montamos a ABC, Associação Brasileira de Contrabaixistas, que passou a formalizar encontros entre profissionais e estudantes de contrabaixo em vários locais do Brasil. Valéria participou do 2º encontro em Sao Paulo. Desta forma, meus laços com a Valéria foram se mantendo e se transformando numa amizade frutífera. Ainda assim, falar sobre “toda sua vida” não será possível, mas posso falar sobre o quando da vida desta incrível musicista é perceptível neste CD pra quem conhece um pouquinho, muito ou tudo da vida dela bem como para aqueles que ainda pretendem conhecer seu trabalho. Este Cd é excelente via!

Impossível não se encantar com as ilustrações em pinturas e gravuras, todas feitas para contrabaixista em momentos distintos de sua vida. A tela da capa levou o nome do concerto que ela tocava tendo o pintor Martins de Porangaba entre os convidados na platéia: “O Contrabaixo” (Concerto em fa# menor op.33, solo Ana Valéria Poles no dia 22/03/2001). Impressionado com o virtuosismo de Ana Valéria, o artista a presenteou com o quadro, que não foi o primeiro. Ele já havia pintado outros quadros pra ela, inclusive a capa do CD do seu extinto quinteto de cordas (Quinteto D’Elas). Paulo Von Pouser é o artista responsável pelos desenhos que ilustram a parte interna da capa e encarte do CD e também um grande amigo de Valéria.

E as músicas? Chegarei nelas em breve... ainda vale divagar um pouco sobre a poesia que envolve o trabalho intitulado “Por toda minha vida”. Ana Valéria Poles é muito nova, nasceu em Tatui onde teve o início de sua formação musical no respeitado Conservatório da cidade sob a orientação do russo Nikolaus Schevistschenko. Após formar-se (1981), mudou-se para a Áustria a fim de estudar com o legendário Ludwig Streicher. Dois professores sérios, severos e extremamente exigentes... E ainda me perguntam porque a Valéria é brava! Não é braveza. É excessiva dedicação e competência, que muitas vezes passa pela rigidez, ainda que involuntária. A música permeia sua vida. É casada com o contrabaixista Sergio de Oliveria, por muitos anos seu companheiro de estante. Com ele tem dois belos filhos que são extremamente criativos e atuam em uma banda de rock. Não se sabe se serão músicos profissionais, mas foram tocados pelo desejo de tocar um instrumento e serão profissionais diferenciados, sensibilizados pela arte da música.

E as músicas? Estou chegando...

Acho extremamente importante a qualidade do texto de um encarte de CD. Artistas responsáveis produzem textos explicativos de sua relação com a obra gravada, em particular com as inéditas. Produtoras responsáveis convidam musicólogos para redigir textos biográficos sobre o autor bem como sobre o contexto em que a obra gravada está inserida. Valéria foi além. Convidou músicos profissionais do Brasil (integrantes da OSESP) e do exterior (músicos com os quais conviveu durante seus estudos em Viena) que estão associados de alguma maneira as obras gravadas e à artista para escreverem os comentários sobre cada obra. Um capricho que valoriza as informações ao mesmo tempo em que reúne partes importantes da vida dela pela qual estas pessoas passaram. Os textos (em português e alemão) não são apenas depoimentos de admiração, são um respaldo de amigos-músicos que são profissionais de respeito e expectadores da trajetória vencedora da Valéria, e viram nascer este trabalho que é “parte de uma vida”. Certamente veremos mais.

Igualmente cuidadosa foi a escolha das músicas a serem registradas neste CD (cheguei!). A preocupação da artista com o registro da obra brasileira e divulgação do repertório originalmente escrito para o contrabaixo é a linha condutória das obras gravadas. Difícil falar em “primeira música” do CD, pois a midia digital nos permite ouvir as obras na sequencia que desejarmos, de forma que as escolhas sequenciais de produtores, autores e intérpretes interferem cada vez menos em como ouvimos um Cd. Entetanto, vou supor que sentaríamos pra ouvir o CD, da faixa 1 a 9, imaginando que tenha sido assim que a artista desejou que ele fosse ouvido.

Por Toda Minha Vida começa com três obras de compositores brasileiros. A faixa 1 traz a Sonatina 1975 para contrabaixo e piano de Ernst Mahle (1929). A escolha que remonta os primeiros anos de estudo da contrabaixista. A peça faz parte da série de sonatinas que Mahle escreveu para quase todos os instrumentos. Apesar de ter grau de dificuldade médio, a brilhante excução de Poles traz á tona um dos aspectos mais atraentes do contrabaixo, os harmônicos e a exploração de seus registros graves peculiares. As faixas 2, 3 e 4 compõem um conjunto de peças curtas escritas para Valéria pelo compositor Pedro Cameron (n.1948), com quem conviveu nos anos de estudo no conservatório de Tatuí (SP). As 2 primeiras peças (Reinvenção e Solilóquio) exploram respectivamente um cromatismo com lirismo e microtonalismo. A terceira (Conciliação) mescla as técnicas das duas anteriores; comum certo grau de virtuosismo ao explorar a região médio-aguda do instrumento. A faixa 5 já é de um período mais recente. Chacona (2006) de Oswaldo Lacerda (1920), apesar de dedicada ao contrabaixista Henrique Autran Dourado, foi estreada por Sergio de Oliveira que sugeriu pequenas alterações de oitavas na parte central da peça (com o concentimento do compositor). A gravação de Valéria valorizou ainda mais a mudança e a obra como um todo, explorando timbres e fraseados que se adéquam perfeitamente ao estilo nacionalista do compositor.

No que chamo de segunda parte, faixas 6 a 8, o CD traz uma sequência de obras de referência para o repertório tradicional europeu do contrabaixo. Esta parte é fortemente influenciada pelos anos em que Valéria estudou na Áustria e conviveu com os grandes mestres europeus do instrumento, notadamente seu principal professor Ludwig Streicher. As faixas 6 e 7 trazem obras de dois compositors que escreveram livros de estudos que são amplamente respeitados e usados no mundo todo na formação de contrabaxistas. Valéria escolheu duas de suas obras mais representativas para contrabaixo e piano: As Variações para contrabaixo e piano de J. E. Storch (1840-1877) e o Notturno Op.35 de Franz Simandl (1840-1912). Este último, é autor de um dos métodos de contrabaixos apontado como um dos 3 mais utilizados no Brasil (Negreiros e Ray, 2004). A faixa 8 traz a Concertpièce de E. Stein (1818-1864), que como o título sugere, tem caráter virtuosístico de um concerto e é interpretado com vigor e extrema precisão por Valéria.

Ambas as partes tem a colaboração da pianista Dana Radú, com quem Valéria tem longa parceria musical, a qual transparece no trabalho camerístico revelado na gravação. Dana entende o contrabaixo e suas peculiaridades de dinâmica e cor, e faz uso das variações timbrísticas de seu instrumento para compor com o contrabaixo um resultado sonoro equilibrado, compreensível e repleto de energia, sobretudo na Chacona e Concertpièce onde a parte pianistica lhe permite diálogos mais elaborados no duo.

A terceira parte é composta por uma única obra, faixa bônus, que dá título ao CD. A obra foi colocada ao final como se selasse um contrato, um período de uma vida... Pra mim, uma terceira parte: Coda. Por Toda Minha Vida. A canção de Tom Jobim e Vinícius de Moraes nos surpreende ao final da audição pela originalidade do arranjo do também contrabaixista Adail Fernandes e pela refinada interpretação da violinista Betina Stegman. Amigas de longa data e ex-colegas do Quinteto D’Elas, Valéria e Betina encomendaram este arranjo ainda nos tempos do quinteto. A melodia quase toda na região médio-grave do contrabaixo é desenhada em contraponto com as frases do violino, de forma que o encontro de seus harmônicos deixa, ao final da audição do CD, um gostinho de “quero mais”. Certamente Valéria virá a nos brindar com mais registros do repertório contrabaixistico Brasileiro.

A qualidade do CD é excelente. Teria muito mais o que dizer, mas isto é somente uma resenha e o conselho editorial vai acabar cortando meu texto por excesso de prolixidade... Então, indo pro fim... Acho importantíssimo destacar atuação cuidadosa com que o colega Itamar Collaço (contrabaixista, professor e técnico de gravação), conduziu a gravação e mixagem do CD. Itamar também foi o idealisador da idéia de gravar ao vivo, o que Valéria corajosamente aceitou. Esta é mais uma raridade neste trabalho.

Finalmente, acho que performance e registros em gravações de qualidade do repertório brasilerio para contrabaixo ainda são tímidos no Brasil. Precisamos de mais contrabaixistas que se disponham a encomendar obras com exploração idiomática compatível com os recursos atuais que o instrumento dispõe. Valéria faz isto em cerca de 50% de seu CD e os outros 50% ficam por conta da sua própria história de vida, nada mais justo! Entretanto, sem o objetivo de fazer uma defesa da volta ao nacionalismo, defendo a necessidade de se ampliar os registros de mais de 100 anos de obras brasileiras escritas para o contrabaixo por compositores brasileiros, das quais um número significativo ainda carece inclusive de edições de performance. Valorizar nossos compositores é importante para que esta produção aumente em qualidade e quantidade. É preciso que se registre e divulgue o repertório de Por Toda Nossa Vida de Contrabaixistas Brasileiros. Longe de ser uma sugestão de título, isto é apenas uma constatação e..., talvez, um desejo de ver muitos CDs gravados com a qualidade deste e com muita obra brasileira. Obrigada por sua contribuição, Valéria!

Fontes:

RAY, Sonia. Catálogo On-Line de Obras Brasileiras para Contrabaixo. Disponível em: . Acessado em: 20/12/2009.

NEGREIROS, A. e RAY, S. Implicações Históricas na Atual Pedagogia do Contrabaixo no Brasil. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA, 4. CD Rom. Anais do..., Goiânia: PPGMúsica daUFG, 2004.

Sonia Ray - contrabaixista, professora e pesquisadora na Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás. Apresenta-se regularmente em recitais no Brasil e exterior privilegiando os repertórios contemporâneo e brasileiro para contrabaixo. Sonia é sócia-fundadora da ABC - Associação Nacional de Contrabaixistas. Integra o corpo docente do PPG em Música do Instituto de Artes da UNESP, é Presidente do Conselho Editorial de Música Hodie e Presidente da ANPPOM - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (gestão 2009-2011).