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MÚSICA HODIE

Vol. 9 - Nº 2 - 2009

V. M. S. PEREIRA (p. 67-74)

A ESTRElA, DE MAnuEl bAnDEIRA,

SOb A VISÃO MuSICAl DE lInDEMbERguE CARDOSO

Manuel Bandeira’s a esTrela, under

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Valdenora Maria de Sousa Pereira

valmezzo@terra.com.br

Resumo: Este trabalho apresenta um breve delineamento do poema A estrela de Manuel Bandeira amalgamado a uma estrutura musical do ponto de vista do compositor Lindembergue Cardoso. Busca traçar o perfil do poeta e do compositor no que diz respeito a elementos que compunham suas habilidades de criação.

Palavras-chave: Poema, Música, Manuel Bandeira, Lindembergue Cardoso.

Abstract: This study presents a brief delineation of Manuel Bandeira’s poem The star amalgamated to a musical structure from composer Lindembergue Cardoso’s point of view. It aims to sketch the poet’s and the composer’s profile as to what concerns the elements that formed their creative abilities.

Keywords: Poem; Music; Manuel Bandeira; Lindembergue Cardoso.

Manuel Bandeira foi poeta por natureza, virtuose e imortal na arte literária, notável pela convivência em processos poéticos de vanguarda e também aqueles herdados da tradição. Foi autor de poemas curtos, simples, porém, de intensa sofisticação, sendo por isso muitas vezes requisitado por compositores brasileiros. Nasceu no Recife, em 19 de abril de 1886, e viveu 82 anos, firmando-se como uma das personalidades culturais brasileiras mais influentes do século XX.

Este trabalho ressalta um pouco da importante gama poética do legado de Bandeira no qual é possível observar um sutil fio que os conecta à música, e do mesmo modo, o maneio musical do compositor Lindembergue Cardoso em relação ao poema em questão. Em Bandeira o atrelamento da linguagem poética ao gosto musical é mais uma das vias de acesso à difusão de sua poesia. Bandeira teve vários de seus poemas musicados por um número significativo de compositores, entre eles Francisco Mignone, Villa-Lobos e também Lindembergue Cardoso. Esse aspecto faz jus à fala de Bandeira em Intinerário de Pasárgada, embora em tom irônico: “sei, por experiência, que no Brasil todo sujeito inteligente acaba gostando de mim” (MOURA, 2001, p. 17). Esse fato pode ser averiguado no que diz respeito ao compositor Lindembergue Cardoso (1939-1989) que musicou o poema A estrela de Manuel Bandeira, sendo que, o enfoque de Cardoso sobre a obra assenta-se em uma base singular, pois ambos, nordestinos e de extrema perspicácia artística, possuem um atrelamento artístico curioso. Na visão de MOURA (2001), a arte de Bandeira conjuga requinte, simplicidade e a mais autêntica solidariedade a pessoas e fatos ligados àquilo que pode ser considerado “humilde cotidiano”. Para Bandeira “a poesia existe tanto nos amores como nos chinelos” (idem, p. 14). O poeta administrava uma variedade de interesses literários e foi mestre em praticamente todas as formas de poesia.

A criação poética de Bandeira (MOURA, 2001), não se restringia somente ao campo especificamente literário. Sua poesia podia nascer das fontes mais heterogêneas: tradução de grandes poetas, fatos de sua vida íntima, notícias de jornais, bulas de remédios, propagandas, pregões populares, homenagens a amigos e frases avulsas escutadas em conversas. Desse ponto de vista, observa-se que Bandeira conservava em si uma atitude assumida de humildade, ao tempo em que tinha consciência de que as pessoas terminavam por se sensibilizarem com sua obra. Do mesmo modo, o compositor Cardoso possui um histórico similar. Detentor de intensa representatividade no cenário composicional brasileiro da segunda metade do século XX começou sua carreira musical ainda em tenra idade, tocando trompa e sax-soprano em bandas e em conjuntos de música popular no interior da Bahia. O repertório vinha de músicas populares ouvidas no rádio durante sua juventude e da participação em diversas atividades musicais. Tocava, ainda, em festas comemorativas e religiosas, velórios e enterros (CARDOSO, 1994).

Apesar de seu autodidatismo, Cardoso traz em sua bagagem musical experiências advindas de seu contexto de vida acadêmica, em que se percebia observador e crítico. Como dedicado aprendiz, absorveu tudo à sua volta para formar seu perfil estético. Ajuntou à sua estética um fazer musical elaborado e, às vezes, intrincado, o que segundo Gomes (apud PEREIRA, 2005), pode ter sido influenciado pelo vanguardismo da época, mas sem perder de vista o material característico da música nordestina. Mesclava todo tipo de ritmo, numa releitura bastante pessoal. Observa-se que assim como Bandeira, Cardoso utilizou a heterogeneidade sem se atrelar a uma corrente musical única. Para Vicente (idem), o compositor era consciente do valor social da arte como elemento “agregador”, e encarava a música como algo natural, sem rótulos, com muito ímpeto “baiano e brasileiro”. Tais similitudes entre ambos, músico e poeta, chamam a atenção quanto à escolha do compositor pelo poema A estrela, o que pode ter relação com a diversidade de fontes do poeta e também uma forma de abraçar ainda mais a variedade e a simplicidade. Nesse sentido, o compositor enveredou com rara propriedade pelas nuances do poema de Bandeira, dele extraindo sua força vital.

Quanto ao poema em questão, este possui história e significado singulares na produção literária de Bandeira. O poeta (BANDEIRA, in Andorinha, andorinha s/d.) argumenta que o mesmo foi inspirado no Peixe vivo cantado por Juscelino Kubtschek e relata que a primeira vez que o ouviu cantar foi num encontro onde estavam reunidos Pedro Nava, Vinícius de Morais, Juscelino Kubtschek e o próprio Bandeira. O poeta ressalta que cada um teve que improvisar uma quadra que fizesse par com o Peixe vivo e, segundo Bandeira, quando chegou sua própria vez, desafinou:

“Vi uma estrela tão alta!

Vi uma estrela tão fria!

Estrela, por que me deixas

Sem a tua companhia”.

Bandeira ainda argumenta que os dois primeiros versos da quadra tornaram-se o gérmen do futuro poema A estrela:

Vi uma estrela tão alta,

Vi uma estrela tão fria!

Vi uma estrela luzindo

Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!

Era uma estrela tão fria!

Era uma estrela sozinha

Luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância

Para a minha companhia

Não baixava aquela estrela?

Por que tão alta luzia?

E ouvi-a na sombra funda

Responder que assim fazia

Para dar uma esperança

Mais triste ao fim do meu dia.

(BANDEIRA, 2003, p. 108).

Considere-se que no campo da literatura não é difícil detectar, em certas obras literárias, a presença de processos composicionais musicais. Essas duas artes estabelecem entre si um diálogo instigante, um tipo mesmo de “simpatia”. Nesse sentido, é possível observar o amálgama poema/música idealizado pelo compositor Lindembergue Cardoso, cujo intento é fazer o elo do sentido literário ao som.

No contexto literário, a primeira quadra do poema aparece como introdução em que é evidenciado o objeto poético (a estrela) em um discurso afirmativo (“vi”) pontuado pela melancolia (“na minha vida vazia”).

Na conexão inicial texto/música (primeira quadra) o efeito geral é o de recitativo (voz falada), apoiado pela trompa, sobre a nota Ré e com fermatas que pontuam o texto, o que faz transparecer ainda mais a afirmação do mesmo. Ainda é possível constatar que as fermatas e as pontuações realizadas pelo piano têm caráter reflexivo, como se vê no Exemplo 1 a seguir.

Exemplo 1: A estrela, primeira versão musical, op. 49 - comp. 1 a 2 (CARDOSO, 1991).1

O esquema geral da composição, formal e sonoramente, é determinado pelo texto, que se relaciona com os instrumentos e a voz de maneira singular e com bastante equilíbrio.

Após a apresentação do objeto poético (texto - Exemplo 1), o compositor apresenta o objeto musical, no caso a série dodecafônica em um discurso musical introdutório desprovido de texto e que, em seguida, une-se ao texto da segunda quadra2. A apresentação da série, no contexto da análise, pode ser vista como uma afirmação daquilo que permeará o discurso musical, o que pode ser observado a seguir no Exemplo 2.

Exemplo 2: A estrela, primeira versão musical, op.49 - comp. 5 (CARDOSO, 1991).

No imbricamento texto/música é possível observar que o compositor procurou manter uma certa hierarquia, ou seja, primeiro a apresentação do objeto poético (a estrela), depois, o objeto musical (série dodecafônica).

Nesta obra há uma interessante divergência de tratamento quanto ao direcionamento do fio condutor musical: a música instrumental (série dodecafônica) se desconstrói rítmica e tematicamente em fragmentos no percurso da obra, num decrescendo gradual, enquanto o texto da segunda quadra se fragmenta e vai se reconstruindo gradativamente na parte vocal, o que torna o discurso desta segunda quadra mais prolongado. Ainda nessa reconstrução textual, a série, até então apresentada nos instrumentos, e que neles como que vai se desfazendo, toma forma na reconstrução textual (vocal), em que se observa uma combinação texto/música onde esses dois elementos passam a caminhar juntos de forma quase imperceptível.3

Tal processo de desconstrução-reconstrução em direções opostas entre os instrumentos e o texto (vocal) nos remete a uma idéia de abandono solidário por parte dos instrumentos em relação à voz, ou seja, a parte vocal (textual) aos poucos vai se distanciando dos instrumentos. Um fato curioso nesse episódio é que a trompa deixa “sobrar” a nota Si natural, num genial gesto expressivo, sempre que voz e piano se calam, como mostra o Exemplo 3 a seguir.

Exemplo 3: A estrela, primeira versão musical, op. 49 - comp. 5 a 9 (CARDOSO, 1991).

Note-se que ao mesmo tempo em que texto (voz) se distancia dos instrumentos, o mesmo passa a tomar posse do discurso musical. Embora exista distância entre ambos em alguns momentos, o texto (voz) tornar-se desprovido de qualquer acompanhamento instrumental, como é possível observar no próximo quadro Exemplo 4.

Exemplo 4: A estrela, primeira versão musical, op. 49 - comp. 28 a 33 (CARDOSO, 1991).

Esse como que abandono instrumental marca uma frieza, solidão e melancolia que faz jus ao texto da segunda quadra:

Era uma estrela tão alta!

Era uma estrela tão fria!

Era uma estrela sozinha

Luzindo no fim do dia.

A solidão em Bandeira, segundo Alcides Vilhaça (apud MOURA, 2001), não quer dizer ressentimento, mas sim, uma solidão solidária, uma dor sem mágoa. Nesse sentido, a terceira quadra do poema aparece em um formato de questionamento:

Por que da sua distância

Para minha companhia

Não baixava aquela estrela?

Por que tão alta luzia?

Nessa quadra o compositor abandona o processo serial e faz uma espécie de recapitulação do material musical utilizado na primeira quadra, isto é, reaparece o recitativo em notas repetidas.4

Quanto à quarta quadra, ela nos remete ao enigmático pontuado pela melancolia:

E ouvi-a na sombra funda

Responder que assim fazia

Para dar uma esperança

Mais triste ao fim do meu dia.

Musicalmente, as duas primeiras linhas desta quadra são literalmente faladas, além de serem apoiadas pelo borbulhar do piano na região mais grave possível, remetendo-nos a uma sensação de “profundidade agitada”. As duas últimas linhas retomam o recitativo apoiado pela trompa, e pontuado pelas fermatas e pelo piano, o que sublinha mais uma vez a conotação reflexiva.

As seções instrumentais e o texto (voz) formam uma combinação de elementos que se complementam apesar de, aparentemente, se distanciarem no decorrer da peça. Assim, o texto falado que se alterna com a parte cantada explora a região grave da voz e nos remete à idéia de que o narrador está olhando de baixo para cima, da solidão aqui da terra em direção àquela encontrada no céu, ainda que ambas sejam de naturezas diversas.

Enfim, na obra A estrela há um confronto inverso, ou seja, o elemento externo inacessível (astro) “Vi uma estrela tão alta” se confronta com o interno (sentimento) “Para dar uma esperança mais triste ao fim do meu dia”. O poema traz em si aspectos estéticos que emolduram nostalgia, solidão, utopia, onirismo e deslumbramento, elementos esses cuidadosamente burilados pela composição musical de Lindembergue Cardoso. Assim é possível observar – apesar de o poeta ter vivenciado a primeira metade do século XX, e o compositor, a segunda metade – uma aproximação no fazer artístico de ambos. Tal aproximação se dá com o poeta desencadeando um certo lirismo em seu poema, enquanto que o compositor se encarrega de amalgamar o texto à música, de tal forma que o intérprete e o ouvinte possam apreciar tanto o diálogo textual/musical, quanto a parte cênica subjetiva inserida nesse contexto.

Notas

1 Catálogo contendo a partitura completa (vide bibliografia Cardoso 1991 ou Pereira, 2005).

2 Idem (vide partitura comp. 5).

3 Vide partitura.

4 Idem.

Referências:

BANDEIRA, Manuel. Andorinha, andorinha. Sel. e coord. Carlos Drumond de Andrade. São Paulo: Circulo do Livro S.A., s/d.

. Melhores poemas de Manoel Bandeira. Seleção de Francisco de Assis Barbosa. 15. ed. São Paulo: Global, 2003.

CARDOSO, Lindembergue. 31 peças para orquestra, coro, coro e orquestra, banda, música de câmara e obras didáticas. Execução e projeto gráfico de Piero Bastianelli. UFBA, Escola de Música. Salvador: 1991.

. Causos de músico. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1994. [publicação póstuma].

MOURA, Murilo Marcondes de. Manuel Bandeira. São Paulo: Publifolha, 2001. Série Folha explica.

PEREIRA, Valdenora Maria de Sousa. Três peças de câmara para voz solista e instrumentos de Lindembergue Cardoso: uma abordagem histórico-analítica. Dissertação de Mestrado. EMAC/UFG. Goiânia, 2005.

Recebido em 10 out. 2009

Aprovado em 16 nov. 2009

Valdenora Maria de Sousa Pereira - Formada no Curso Técnico de canto lírico pela Escola de Música de Brasília, Licenciada em Educação Artística com habilitação em Música pela Universidade de Brasília e Mestra em Performance em canto lírico pela Universidade Federal de Goiás.