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MÚSICA HODIE

L. GAERTNER; A. P. PEREIRA (p. 25-45)

Vol. 9 - Nº 2 - 2009

O quE O TExTO MuSICAl TEM A nOS DIzER? REflExõES A PARTIR DO PROCESSO InfEREnCIAl

whaT does a Musical TexT have To offer? ThoughTs froM The inferencial Process

Leandro Gaertner - PARIS IV

legaertner@hotmail.com

Ana Paula Pereira - UFPE

appufpe@yahoo.com.br

Resumo: A existência de mais de uma versão/interpretação possível sobre um mesmo texto musical (partitura) é a evidência para afirmarmos que diferentes intérpretes constroem diferentes sentidos sobre a mesma ideia. Essa afirmação também é válida para a leitura de textos verbais, como por exemplo, de narrativas, textos dissertativos, argumentativos, etc., conforme investigações da área da psicologia cognitiva e psicolinguística tem mostrado. Assim, este artigo propõe uma discussão teórica sobre o funcionamento/configuração do processo inferencial do texto musical, relacionando-o com o conhecimento existente de leitura e produção de sentidos do texto verbal.

Palavras-chave: Interpretação musical; Processos cognitivos; Inferência.

Abstract: When we affirm the possibility of two versions about the same musical text (sheet) we have the evidence to establish that two different performers built different senses about the very same idea. This affirmation is also true for reading texts, like narrative, dissertative and argumentative texts, etc., for instance; as the studies in cognitive psychology and psycholinguistics have showed. In that way, this paper aims to discuss theoretically about the inferential process of the musical text, relating it with the studies of reading and producing meaning of texts.

Keywords: Musical interpretation; Cognitive process; Inference.

Introdução

Imaginemos a seguinte situação: Uma composição para flauta e piano torna-se uma forte candidata a se firmar no cânone histórico da música de câmara, ou seja, desde sua composição na década de cinquenta, vem sendo regularmente escolhida como peça de confronto em acirrados concursos, como parte de recitais de formatura e aparece em dezenas de gravações mundo afora. A “popularização” desta composição, que vem se comprovando ao longo das últimas décadas, nos leva a crer que as ideias ali contidas continuarão a se propagar e, com o carimbo da tradição, poderá se tornar um clássico da segunda metade do Século XX.

Não nos interessa aqui entendermos como isto foi acontecer, se foi pela riqueza artística da composição, pela fama anterior do compositor, devido a uma boa negociação editorial, pelo fato da composição ter entrado no repertório de dois eminentes intérpretes ou então, se foi por tudo isso em conjunto. Para além destas questões, o foco de nosso interesse é o que acontece com o texto musical desta composição nas mãos de diferentes intérpretes. Por qual razão existem interpretações distintas de uma mesma obra? Por quê uma versão pode agradar mais que outra? E ainda, por quê estas preferências não são unânimes? Qual a diferença entre o primeiro e o segundo colocado em um grande concurso instrumental, visto que ambos possuem o mesmo total domínio técnico de seus instrumentos? Investigar a interpretação musical abre um leque muito amplo de questões para serem formuladas neste momento, sendo ainda mais trabalhoso se partirmos em busca de respostas. A busca por novas versões de uma mesma música até pode ser uma fonte alternativa de prazer, um prazer de segunda ordem: além do conteúdo musical em si, podemos ter nossa curiosidade atiçada e saciada analisando o que este ou aquele intérprete faz com o mesmo material musical.

Quando falamos do prazer com a interpretação de uma música também podemos incluir, obviamente, o prazer do próprio intérprete. Por quê os intérpretes mudam as suas versões com o passar dos anos? Por quê a mesma passagem musical pode agradar em graus diferentes dois intérpretes diferentes? Ou, por quê diferentes intérpretes podem divergir de opinião sobre o mesmo trecho musical, às vezes até mesmo tornando-o quase irreconhecível?

Apesar destas perguntas não serem propriamente uma novidade para musicólogos1, é interessante considerar o quanto reflexões oriundas de outro campo de conhecimento poderia fazer emergir novas respostas. Na tentativa de exercitar esta tarefa, propõe-se aqui refletir sobre estas questões à luz dos conhecimentos derivados da psicologia cognitiva, em particular, daqueles relacionados à dinâmica de funcionamento do processo inferencial. Processo cognitivo este, responsável pela construção de sentido por parte do leitor quando em interação com o texto verbal (oral ou escrito), seja este, narrativo, dissertativo, argumentativo, etc. O propósito geral deste artigo é iniciar uma discussão sobre como se configura o processo inferencial do texto quando este não é verbal (escrito ou oral) e sim musical notado (partitura).1 Para isso o artigo está organizado em quatro ordens de considerações: em primeiro lugar algumas observações quanto ao texto musical notado (a partitura) e a relação composição-interpretação; em segundo lugar são abordados argumentos para a investigação do processo inferencial na música; na terceira parte abordamos um objeto de estudo próprio da psicologia cognitiva, mais especificamente o processo cognitivo que permite a produção de sentidos: o processo inferencial; na quarta e última parte, encontram-se algumas considerações finais específicas quanto ao processo inferencial do texto musical.

A Interpretação do Texto Musical

O exemplo dado anteriormente, da hipotética composição para flauta e piano, traz logo ao pensamento uma partitura tradicional, com música notada aos moldes ocidentais, uma descendente distante dos neumas medievais. E é esta imagem que grande parte dos músicos faz quando pensa em “texto musical”. Porém, nada nos impede de considerar o texto musical através de seu conteúdo musical, do seu discurso puro e simples, extrapolando assim o texto notado. Uma vasta gama de representações também surge quando tocamos de memória ou, uma coisa muito próxima disto, quando “tiramos de ouvido”. Apesar de ampliarmos desta maneira a noção de texto musical, considerando que um texto pode ser estruturado tanto na notação como na memória, iremos restringir a presente discussão à produção de sentidos do intérprete no texto musical notado.

Porém, antes de apresentarmos os argumentos para a investigação do processo inferencial na música, são necessários alguns apontamentos fundamentais sobre o texto musical. REIS (2001) no trajeto construído para abordar a dialética da mímesis na música, apresenta um argumento a respeito de como pensar o texto musical e define que “Num sentido imediato, a partitura é um texto que o intérprete deve ler, compreender e transformar em um processo relacional de sons, na ordem estética dada pelo compositor no âmbito da forma”. (p. 496)

“Aquele pedaço de papel em que há uma composição de signos e que chamamos partitura, está grávido: contém dentro de si um ente dotado de espírito – uma obra musical, com conteúdo e forma determinados, ligada ao contexto cultural em que foi concebida, refletindo também a personalidade e a vida do autor, mediante a marca do estilo”. (Ibidem, 2001, p. 496)

COOK (2006, p. 11-12) preocupado em refletir sobre a música enquanto uma arte performática, tece críticas à tradicional orientação do termo texto na musicologia e na teoria musical e sugere que uma partitura seja compreendida com o auxílio de uma palavra mais caracteristicamente teatral, o “script”. Um script musical seria um afastamento do texto inerte e ossificado sem a transformação causada pelo intérprete, sem o contexto e a cultura, como um “objeto meio-sônico, meio-ideal que é reproduzido na performance.” Pensar um texto musical como um “script é vê-lo como uma coreografia de uma série de interações sociais em tempo real entre os instrumentistas”.2

Na intenção de delimitar a noção de texto musical e realizarmos a aproximação com a linguagem verbal, tomamos a definição de REIS (2001) e o script de COOK (2006) como pontos de apoio. Assim, o texto musical caracteriza-se por uma imanente interatividade, um texto abertamente dialógico entre autor e intérprete, seu contexto e sua cultura. Além disso, a observação de diferentes representações de um intérprete sobre um texto musical só é possível através de um texto que ofereça um acesso comum a diferentes intérpretes. Em outras palavras, para se investigar a produção de sentidos em um intérprete a partir de um texto musical com base em modelos próprios da linguagem verbal é necessário um texto musical com os limites estabelecidos. Então, uma improvisação já seria o resultado da produção de sentidos do intérprete e não mais a ideia inicial estabelecida pelo compositor e possível de ser acessada igualmente por diferentes intérpretes, apesar de também poder ser compreendida como um texto musical sendo a música uma arte performática.

Este esclarecimento se faz necessário devido às enormes possibilidades de variação que um texto musical pode oferecer. Neste sentido, uma composição extensa e canonizada como o Concerto para piano N° 3 de Rachmaninov é útil para exemplificar uma ideia musical estruturada e concluída, como também é a breve temática da composição “Só danço samba” de Tom Jobim. Ambas as composições (estamos cientes de suas óbvias diferenças de elementos musicais) são textos musicais capazes de produzir sentidos em seus muitos intérpretes. Voltamos a frisar que, se uma seção de “Só danço samba” fosse improvisada, este improviso já seria o resultado da produção de sentidos do intérprete.

Outro ponto a ser observado na produção de sentidos do intérprete é quanto às suas possibilidades de investigação, ou seja, as representações que o intérprete tem de uma obra musical podem ser acessadas durante ou após sua performance. Aqui a psicologia cognitiva nos ajuda com a terminologia e, por sua vez, pega de empréstimo termos das novas tecnologias: as representações do intérprete durante a performance são online e as retrospectivas depois da performance são off-line. Ainda poderíamos complexificar estas possibilidades e para isto basta lembrarmos do ouvido interno bem treinado para sugerirmos um outro momento possível de produzir sentidos, um momento antes mesmo do online, uma leitura silenciosa da partitura sem tocar o instrumento ou então nas primeiras leituras de estudo com o instrumento. CHUEKE (2005) sistematizou as diferenças entre três estágios da escuta musical na preparação e execução pianística com base empírica em seis eminentes intérpretes contemporâneos. Como Primeiro Estágio, a escuta interior e silenciosa da partitura, ocorre quando o intérprete define um “objetivo musical” que irá guiá-lo na preparação da performance. No Segundo Estágio ele passa então às conexões entre o que ouviu interiormente e o que ouve ao tocar seu instrumento no momento do estudo. O Terceiro Estágio de Escuta corresponde à performance, ao texto musical materializado. Como se trata de leitura e escuta de um texto musical, estes estágios anteriores à performance, e nele podemos incluir até mesmo os poucos segundos de uma leitura antes da materialização sonora (como uma leitura à primeira vista), já são capazes de suscitar a produção de sentidos pelo intérprete. Na tarefa de investigar o processo inferencial de intérpretes em textos musicais é relevante levar em consideração estes diferentes estágios online: a leitura interior, a leitura de estudo, a performance em si ou a performance com leitura à primeira vista, uma vez que apontam contextos diferentes da produção de sentido do texto musical.

A singularidade da produção de sentidos é um fato, isto é, a construção de representações de um intérprete é individual (apesar do construto contextual e cultural coletivo) e esta afirmação torna-se ainda mais interessante quando pensamos na música em conjunto. Numa orquestra sinfônica, por exemplo, nossa interpretação (permeada de sentidos singulares produzidos) é constantemente redirecionada pelo que ouvimos dos outros músicos ou pelos gestos do maestro. Como se trata do mesmo texto sendo interpretado em grupo, espera-se que estes redirecionamentos não estejam muito distantes das nossas próprias representações, pois isto tornaria o resultado geral da obra no mínimo incoerente e no máximo incompreensível. Podemos deduzir que uma orquestra sinfônica ou um grupo camerístico funciona bem quando seus integrantes conseguem manter um nível de produção de sentidos aproximados, em outras palavras, que compreendam o texto musical de forma coerente entre si, desta forma fazendo com que a mesma música brote de todos os lados. Um grupo ruim é aquele no qual isto não ocorre e cada membro constrói versões muito diferentes do que deveria ser uma mesma história.

Não pretendemos resolver tantas questões neste artigo, mas para uma reflexão objetiva sobre a produção de sentidos a partir de um texto musical precisamos levar em conta algumas variáveis como a compreensão do termo texto musical, a estruturação/delimitação do texto (elementos musicais constituintes como a forma, instrumentação, estruturação harmônica, melódica e rítmica, etc.), como ele está notado (publicação, manuscrito), o momento de leitura e escuta do intérprete; o controle destas e outras variáveis inerentes ao texto musical e ao intérprete são fundamentais ao olhar científico.

Argumentos para a Investigação do Processo Inferencial na Música

A ideia de propor a existência de um texto que seja musical já pode sugerir uma tentativa de por analogia comparar a música à linguagem verbal. Assim, gostaríamos antes que tal interpretação fosse feita, ressaltar que compartilha-se aqui da noção de que a música é um sistema comunicativo em si mesmo, conforme aponta GOLDEMBERG (2005, p. 267) ao argumentar que a comparação entre linguagem verbal (oral ou escrita) e música requer cautela. Para o autor “cada uma destas capacidades tem as suas próprias particularidades e ainda que utilizem os mesmos canais orais-auditivos de comunicação, tenham uma forte componente motora e apresentem uma estrutura de organização hierárquica bastante semelhante, não é possível se falar em um compartilhamento abrangente.” Contudo, não podemos descartar que existam mecanismos comuns às duas capacidades. O próprio GOLDEMBERG (2005, p. 267) afirma que “provavelmente, frente à enorme plasticidade da mente humana, existem mecanismos cognitivos comuns às duas capacidades”. Segundo o autor isto não as torna similares, “apenas indica que cada uma das duas capacidades sob análise envolve uma combinação de processos mentais que isoladamente, possuem uma função mais genérica e se adaptam conforme as demandas da tarefa à qual se propõe”.

É claro que existe uma diferença ontológica entre a simbologia musical ocidental, sistematizada principalmente pela representação das alturas e durações do som em um pentagrama, e a simbologia da linguagem verbal, sistematizada pelo alfabeto. Esta diferença não está somente ligada às naturezas diversas de informação que se propõem a notar, mas também na natureza e na maleabilidade de interpretações que geram. O que pode ser mais dúbio na produção de sentidos, uma frase musical ou o verso de um poema? (E poderíamos ainda ter a preocupação do tipo “mas depende da frase musical e depende do verso do poema”).

É pertinente mencionar a comparação que REIS (2001, p. 497) faz entre o músico intérprete e o tradutor de um texto poético, que precisa reescrevê-lo em outro idioma. Um texto musical e um texto poético possuem um algo mais que também demandam um algo mais por parte do músico na performance e do tradutor na tradução. “A interpretação de uma obra musical é um processo que guarda profunda afinidade ao da tradução poética.” Na música e na poesia há os sinais visíveis ou explícitos e outros que estão implícitos, o algo mais que será descoberto e explicitado pelos intérpretes. No sentido proposto por REIS, seria função do intérprete de realizar a “maiêutica da obra, isto é, a parturição de ideias musicais nela contidas e sua apresentação sensível, momento em que os signos escritos se tornam ‘interpretantes’ vivos e emocionados.” Esta discussão pode ilustrar a partir de conhecimentos já produzidos na música que a leitura e interpretação de uma partitura mobiliza no seu intérprete uma produção de sentidos (pelo processo cognitivo inferencial) que vai para além da decodificação das marcas gráficas, mesmo que a autora não mencione o universo da cognição.

Assim, pensar quais seriam os mecanismos comuns à música e à linguagem verbal, como apontado por GOLDEMBERG (2005), é tarefa que precisa ser melhor explorada teórica e empiricamente, pois mesmo que estes tenham uma função mais genérica e se adaptem conforme às demandas da tarefa, é necessário buscar esclarecer que funções genéricas são estas, bem como caracterizar de que forma as adaptações às demandas ocorrem. Essas são questões que interessam à psicologia cognitiva, por apontarem a participação da cognição em atividades distintas. Na tentativa de iniciar as reflexões sobre os processos cognitivos comuns ao texto musical e à linguagem verbal (oral ou escrita), surgem as indagações a respeito de um desses processos cognitivos comuns: o processo inferencial.

Como ponto de partida, sustentamos que a partitura consiste num tipo de texto e que apesar de ser constituída por elementos comunicativos bastante divergentes daqueles utilizados pela linguagem verbal, mobilizará do leitor algo que vai para além do simples fato de utilizar os mesmos canais orais-auditivos de comunicação. Aqui avançamos para a questão de que o texto musical exigirá do seu leitor (e neste caso, quando falamos do leitor do texto musical, estamos nos referindo exclusivamente a um tipo de leitor específico, o intérprete) algum tipo de interpretação. Esta interpretação será baseada tanto nas informações veiculadas no texto quanto em alguns dos seus conhecimentos prévios, conforme ocorre na leitura/interpretação de um texto verbal (oral ou escrito).

Por quê sustenta-se a ideia de que é possível investigar o processo inferencial do texto musical mesmo que este venha sendo objeto de estudo quase que exclusivo das pesquisas sobre linguagem verbal (oral e escrita)? Para responder a esta pergunta dois pontos precisam ser considerados: o de que a atividade inferencial é uma atividade de produção de sentido, que permitirá o leitor/intérprete construir uma representação mental das informações dispostas no texto independente de qual seja o recurso comunicativo (seja um texto narrativo, argumentativo, dissertativo, etc., seja uma partitura); e o de que ao tratarmos o texto musical como um texto é improvável que este se comporte como algo diferente. No entanto, é importante que fique claro que ao tratarmos o texto musical, não está se propondo concebê-lo tal como é um texto verbal, mas argumentando que por se configurar como texto, quando o leitor buscar compreendê-lo, será lançado a interpretar as informações que estão sendo veiculadas, assim o processo inferencial entrará em operação de modo que um sentido seja produzido.

Refletir sobre o processo inferencial do texto musical a partir dos estudos com textos verbais, não implica descartar as singularidades do primeiro, e como este irá configurar o processo inferencial. Em suma, chamamos a atenção para a ideia de que podemos pensar que os caminhos do processo inferencial de ambos os textos podem ter similaridades, porém são percorridos de forma completamente diferentes, uma vez que o recurso comunicativo é diferente. Notas não são letras, bem como pausas, barras duplas e fermatas não são recursos de pontuação, mas ambos sistemas de linguagem exigirão algum tipo de interpretação, ou seja, algum sentido terá que ser conferido ao texto por parte de seu leitor para que este seja compreendido.

Uma citação de WEINBERGER (1998), no artigo de GOLDEMBERG (2005) aponta que o processo inferencial está presente durante o processo de leitura do texto musical (partitura). Ao descrever as diferenças dos movimentos oculares do leitor durante o momento da leitura de um texto verbal e de uma partitura, como um dos possíveis exemplos para considerar as distinções entre música e texto verbal, WEINBERGER menciona o funcionamento da atividade inferencial:

“Parece que a estratégia musical utilizada em música é olhar na frente para determinar onde a partitura está “se dirigindo” (obtendo-se uma “imagem mais ampla”), fazendo inferências a respeito de muitos detalhes da partitura (a partir de conhecimento como por exemplo, harmonia da música tonal ocidental), de maneira a se obter uma estrutura conceitual (“framework”) a partir da qual se pode rememorar notas que estão na frente daquelas que estão sendo tocadas – e repetir este processo complexo novamente. Tudo isto ocorre com uma freqüência de cinco a seis vezes por segundo! Portanto, aparentemente a leitura musical não é uma instância da leitura verbal mas um processo em si mesmo.” (WEINBERGER, 1998, apud GOLDEMBERG, 2005, p. 264)

Quando o autor menciona o termo “inferências” não fica claro a qual definição de inferência ele se refere, sobre que tipos de inferências especificamente ele fala, bem como, se esta inferência é um produto do processo cognitivo inferencial ou não.

Sabemos que as pesquisas que tratam do processo inferencial derivam quase que exclusivamente dos estudos com textos verbais, não existindo atualmente nenhum modelo teórico sobre a interpretação da partitura que leve em conta a participação do processo inferencial, ou seja, como a cognição representada pela sua capacidade de dar sentido participa desta atividade. Na investigação do processo inferencial do texto verbal a definição de MARCUSCHI (1996) e as classificações de KINTSCH (1998) e COOK, LIMBER e O’BRIAN (2001) podem servir como diretrizes gerais para exemplificar o que são e quais tipos de inferências surgem durante a leitura. Estas definições e modelos não devem ser utilizadas a serviço da identificação do que é o processo inferencial e quais inferências surgem na leitura de um texto musical, entretanto, elas nos permitem acessar a lógica cognitiva intrínseca à produção de sentido sobre um conteúdo específico.

O Processo Cognitivo Inferencial

Quando nos deparamos com alguma situação onde o foco é a leitura, seja de um rótulo, de uma propaganda, de um texto, etc., mesmo sem nos darmos conta, entramos no âmbito de uma nova experiência cognitiva. Experiência esta que mobiliza das nossas capacidades mentais uma habilidade complexa e que sem ela, dificilmente a interação provocada pela leitura poderia acontecer: a compreensão. Entre os vários fatores linguísticos (sintáticos, semânticos, léxicos, bem como a habilidade de decodificação do próprio sujeito) e cognitivos (memória de trabalho, capacidade de monitoramento e capacidade de estabelecer inferências) envolvidos na atividade de compreensão de um texto (seja este oral ou escrito), as inferências merecem um lugar especial e de destaque.

Por quais motivos as inferências merecem tal lugar, sendo que para que a compreensão aconteça com sucesso muitos outros fatores precisam juntamente operar? Isso se deve ao fato que o processo inferencial, como um processo cognitivo complexo que é, coloca em perspectiva uma dimensão de conhecimento que emerge do encontro leitor e autor/texto, e que, não pertence de forma única e exclusiva, apenas a um ou ao outro. Falar em inferências é falar do papel ativo do sujeito na construção dos sentidos possíveis para um determinado texto, tendo claro que a compreensão da leitura é direcionada não apenas pelas marcas gráficas deste texto, mas sobretudo, pelo o que estas marcas têm a dizer. Sem perder de vista, que as interpretações possíveis para um texto acontecem no exato momento da interação autor/leitor, podendo variar em função do leitor (por ser detentor de conhecimento prévio) e da natureza desta interação (se a leitura ocorre na sala de aula, se ocorre em casa, com ajuda de um adulto, ou com a participação de uma criança) (FERREIRA; DIAS, 2004).

Ao entramos no universo de investigação da compreensão textual nas áreas da psicologia cognitiva, psicolinguística e linguística é normal nos depararmos com uma variedade razoavelmente grande de definições sobre o que é o processo inferencial e que tipos de inferências existem. Muito embora os autores destas áreas compartilhem da ideia de que o processo inferencial consiste numa adição de informações ao texto feito pelo leitor ou ouvinte, isto não exclui a existência de uma heterogeneidade de definições sobre este processo cognitivo.

Para McLEOD (1977), apud COSCARELLI (2003, p. 31), as “inferências são informações cognitivamente geradas com base em informações explícitas, linguísticas ou não linguísticas, em um contexto de discurso escrito contínuo e que não tenham sido previamente estabelecidas.” Já para FREDERIKSEN (1977), apud COSCARELLI (2003, p. 31), as inferências “ocorrem sempre que uma pessoa opera uma informação semântica, isto é, conceitos, estruturas proposicionais ou componentes de proposições, para gerar uma nova informação semântica, isto é, novos conceitos de estruturas proposicionais.” PAGE e THOMAS (1977), apud PITTS e THOMPSON (1984, p. 26) definem a compreensão inferencial como “o processo de obter julgamento lógico [com respeito à informação textual implícita] de uma dada premissa ou de dados observados”.

BEAUGRANDE e DRESSLER (1981), apud KOCH e TRAVAGLIA, (1989, p. 70) concebem as inferências como operações que buscam suprir conceitos e relações razoáveis para preencher lacunas (vazios) e descontinuidades em um mundo textual. Para esses autores, o processo inferencial busca sempre resolver um problema de continuidade de sentido.

Outra definição de inferência é proposta por MARCUSCHI (1989) onde descreve que o processo inferencial consiste numa operação cognitiva que possibilita o leitor a construção de novas proposições com base em outras já dadas. Estas proposições dadas e inferidas precisam manter relações passíveis de identificação com as partes que constituem o texto. Variam de indivíduo para indivíduo, mas de um modo geral ativam conhecimentos que vão também para além do apenas lexical. Na realidade, situa-se no universo cognitivo do leitor e está imbricado na capacidade de conferir sentidos do próprio sujeito.

Nesta perspectiva a inferência constitui um processo cognitivo de alto nível posto em operação pelo leitor (ou receptor do texto) para construir uma representação mental composta de interpretações compatíveis e coerentes com o texto lido. Por intermédio do estabelecimento inferencial é que se torna possível resgatar aquilo que não está explícito nas informações veiculadas no texto, mas que fazem parte da sua intenção de comunicação. De acordo com MARCUSCHI (1996), ao inferir, o leitor preenche as lacunas deixadas pelo autor do texto, uma vez que todo texto é em certo sentido um produto inacabado, cujo significado é completado pelo seu leitor. O texto aqui é visto como uma atividade de co-autoria, onde o leitor e o autor (representado pelo texto) têm papéis cruciais e de similar importância.

FERREIRA e DIAS (2004) afirmam que é justamente este processo inferencial que permitirá e garantirá a organização dos sentidos construídos pelo sujeito na sua relação com o texto. Sendo ainda a partir do processo inferencial que as relações estabelecidas entre as partes do texto e entre estas partes e o contexto tornar-se-ão possíveis, fazendo do texto uma unidade aberta de sentido. Argumentam as autoras que o processo inferencial não só favorece a organização das relações de significado dentro do texto, como ainda coloca em “evidência a malha ou teia de significados que o leitor é capaz de estabelecer dentro do horizonte de possibilidades que é o texto”. Isto aponta para um fato importante, o de que essas relações não são produtos do acaso, ou mesmo aleatórias, mas sim originárias do que as autoras chamaram de encontro-confronto de dois mundos em situação de leitura: o do autor representado pelo texto e o do leitor.

O sujeito ao lançar mão do seu conhecimento prévio, tanto linguístico quanto de mundo, poderá orientar sua compreensão para além dos elementos presentes na superfície do texto, entrando assim, numa negociação de significados plausíveis possíveis e permitidos pelo texto. Esse encontro-confronto de dois mundos, como proposto pelas autoras, expressa o cerne da interação leitor/autor/texto, uma vez que admite ser este momento, não apenas um encontro entre dois mundos, mas sim um encontro onde estes dois mundos serão contrastados e gerenciados/negociados. É nesta direção que pesquisadores da área da ciência do texto (CAIN; OAKHILL; BARNES; BRYANT, 1998; JOHNSON; SMITH, 1981; MARCUSCHI, 1985, 1989; OAKHILL; CAIN; YUILL, 1997), admitem a inferência como um aspecto crucial face ao processo de compreensão em geral. Sendo esta vista ainda como um ato de inteligência que mobiliza raciocínio lógico e criativo, onde informações antigas contrastam com informações novas no intuito de que interpretações coerentes sejam construídas (FERREIRA;DIAS, 2004).

Cada uma dessas definições aponta para aspectos diferentes do processo inferencial. A escolha de uma ou outra concepção é de caráter arbitrário, cabendo ao pesquisador eleger que aspecto é conveniente ser investigado.

Tipos de Inferências do Texto Verbal

Na classificação proposta por KINTSCH (1998) existe uma distinção entre as inferências e a recuperação de conhecimento. As inferências são responsáveis pela geração de uma informação nova, caracterizando-se ainda como uma espécie de processo de resolução de problemas. Ao passo que a recuperação de conhecimento irá ativar informações pré-existentes armazenadas na memória. Ambos os mecanismos podem ser automáticos ou controlados. Isso significa que a geração da inferência, bem como o processo de recuperação de conhecimento pode ocorrer por meio de uma reflexão controlada ou de forma espontânea, não refletida.

De modo geral, o processo inferencial automático é responsável pela geração de inferências transitivas em um domínio familiar e que ocorre durante o processo de compreensão. A geração de uma inferência neste caso, não é percebida durante sua geração, de modo que o leitor não detecta de forma consciente se esta é uma informação explícita ou implícita no texto.

Já o processo inferencial controlado é responsável pela geração de inferências lógicas e é entendido como um tipo de procedimento posto em operação para reparar algum problema que surge durante a compreensão do texto. Neste caso, ocorre a participação do raciocínio dedutivo e o conhecimento de mundo que dá origem às inferências lógicas, que segundo KINTSCH (1998) são as inferências verdadeiras.

Como exemplo destes tipos de inferências FERREIRA e DIAS (2004) sugerem que a partir do enunciado “Todo dia pela manhã, Marcos vai à escola pedalando”, dois dados principais podem ser gerados: “Marcos estuda pela manhã” e “Marcos vai à escola de bicicleta”. Na primeira inferência “Marcos estuda pela manhã”, esta é produzida a partir da relação entre informações no próprio texto, sendo considerada como um processo de geração automático, ou seja, inferida a partir da relação entre os termos do enunciado. Já a segunda inferência “Marcos vai à escola de bicicleta”, é produzida a partir das relações entre as informações no texto e o conhecimento prévio de mundo do leitor. Isto permite ele deduzir que a bicicleta é um tipo de meio de transporte que para funcionar depende de pedaladas, mesmo que o leitor não disponha em sua memória desse tipo de experiência.

Outra classificação de inferências proposta por COOK, LIMBER e O’BRIAN. (2001, p. 220) leva em conta o critério da necessidade de produção das inferências. Segundo estes autores, há dois tipos de inferências que podem ser geradas durante o processo de compreensão: as necessárias ou conectivas e as elaborativas. As inferências necessárias ou conectivas são aquelas requeridas para compreensão completa de um dado texto, elas permitem a conexão entre as partes do texto para construir e manter a coerência. Sem elas o texto torna-se ininteligível ou sem sentido. Esse tipo de inferência depende do conhecimento de mundo do leitor. Elas ainda permitirão o estabelecimento das relações temporais, espaciais, lógicas, causais e intencionais entre as diferentes partes de um texto. De acordo com COSCARELLI (2003) como exemplo deste tipo de inferência conectiva tem-se: “Comprei uma bolsa nova e o fecho já estragou”. O entendimento dessa passagem exige que o leitor faça a inferência de que o fecho na segunda oração é parte da bolsa citada na primeira. Assim, para que a compreensão aconteça com sucesso o leitor precisa saber que bolsas geralmente têm fecho. Se não fizer essa inferência não compreende de forma adequada passagens como essa.

Já as inferências elaborativas são as inferências que não possuem nenhum papel para o estabelecimento da coerência da sentença ou do texto de um modo geral. Elas são geradas quando o leitor recorre ao seu conhecimento para refletir sobre o tema em discussão e assim preencher as lacunas do texto com informações ou detalhes adicionais. Segundo COSCARELLI (2003) como exemplo deste tipo de inferência tem-se: “A nova máquina foi instalada hoje. Agora já podemos lavar toda a roupa suja que ficou acumulada”. Inferência elaborativa: provavelmente um técnico instalou. Este tipo de inferência não contribuirá para a construção ou manutenção da coerência da sentença apresentada acima. É um tipo de informação que, se não for adicionada ao texto, não causará problemas para a compreensão dele.

As inferências elaborativas podem ainda gerar expectativas sobre o que vai acontecer no texto. Da mesma forma como o exemplo de inferência anteriormente apresentado, estas não são necessárias para a compreensão, porém podem facilitar o entendimento de partes posteriores do texto, uma vez que ativam no leitor informações que podem ser úteis à compreensão do texto. Neste tipo de inferência, o leitor através do seu raciocínio lógico dedutivo, antecipará informações posteriores do texto.

De acordo com COOK, LIMBER e O’BRIAN (2001) e baseados em estudos de McKOON e RATCLIFF (1992) as inferências elaborativas podem ser de três tipos: (i) as inferências semânticas, são aquelas que acrescentam ao significado características contextualmente apropriadas para a representação de um conceito; (ii) as inferências instrumentais, acrescentam um argumento típico ao verbo (por exemplo, colher para mexer o café ou para tomar a sopa); e as (iii) inferências preditivas, acrescentam informação sobre “o que vai acontecer em seguida” em uma narrativa.

Cada tipo de inferência apresentado acima em ambos os modelos mobiliza do leitor algum tipo de operação intelectual. Mesmo que essas classificações não explicitem o tipo de raciocínio posto em operação pelo sujeito, elas apontam que eles ocorrem. Para MARCUSCHI (2008) estas operações podem ser o raciocínio lógico dedutivo ou indutivo, parafraseamento, associações, generalizações, sintetização, particularização, etc. São esses alguns dos mecanismos que encontram-se na base das inferências realizadas pelo leitor de um texto verbal. Quando levamos esta discussão para a área da leitura e interpretação musical, a terminologia e os procedimentos para investigação do processo inferencial são remanejados/redefinidos de acordo com as especificidades cognitivas e de conteúdo próprias da música.

O Processo Inferencial do Texto Musical

Ao redimensionarmos estas noções do processo inferencial e seus tipos de inferências para um entendimento do que participaria no processo inferencial do texto musical, dois elementos se redefinem: o conhecimento prévio do leitor e o texto. O conhecimento prévio do leitor será agora o conhecimento prévio do intérprete e não irá mais se restringir ao repertório de conhecimentos linguísticos e de mundo. Este abrangerá também conhecimentos específicos musicais como, notação musical, conhecimentos de harmonia, melodia, forma, timbre, ritmo, etc., bem como o domínio técnico de algum instrumento, informações sobre o estilo, período histórico da obra, biografia do compositor. E o texto agora será um texto musical, composto de outros signos que não pertencem ao código alfabético, e sim consiste na representação gráfica do discurso musical, sistematizada principalmente pela representação das alturas e durações do som em um pentagrama.

Com isso definido, sabemos que serão estes os dois mundos que entrarão em situação de encontro-confronto para que a produção de sentidos do texto musical aconteça. Apenas definir os elementos que participam do processo inferencial do texto musical, ainda deixa em aberto as seguintes questões: quais são as inferências que surgem quando um intérprete lê o texto musical, que tipos de inferências a leitura de uma partitura suscita? Conforme visto anteriormente, os tipos de inferências que surgem na leitura do texto verbal variam em função do modelo teórico adotado e respostas a estas perguntas, de quais seriam as inferências do texto musical, não podem ser oferecidas apenas com base nestes modelos. O que parece ser uma pista para iniciar o trabalho de responder a estas perguntas é atentar, a partir de uma reflexão cognitivista, para os modelos de análise musical.

Algumas situações comuns aos intérpretes evidenciam a ocorrência do processo inferencial e as mais variadas formas de inferências, ainda não sistematizadas dentro de um modelo teórico. Sugere-se então que estudos na área de interpretação musical passem a considerar o processo inferencial como uma variável determinante. Trabalhos de análise musical e, em particular de análise para intérpretes, ilustram bem a explicitação do conteúdo do texto pelo processo inferencial do músico intérprete, como por exemplo, a sistematização dos elementos musicais em gerais e particulares ou a “identificação” de tópicas (figuras características) nas análises de GAERTNER (2008a, 2008b). Nestas análises, a hierarquização dos elementos constituintes de um texto musical em elementos gerais3, como a divisão formal e o plano tonal básico da obra, e em elementos particulares4, como os motivos, frases e tópicas5, podem ser tomados como produtos genuínos do processo inferencial do leitor\intérprete, que traz à tona suas inferências sobre o texto musical, algumas já antes explícitas e outras até então somente implícitas.

Outro exemplo bastante evidente do processo inferencial em intérpretes está descrito no estudo de caso realizado por KAASTRA (2008, p. 61-62), onde dois flautistas profissionais são investigados quando preparam a execução da obra Masque for Two Flutes de Toru Takemitsu. Segundo dados destas observações, os dois intérpretes gastam a maior parte do tempo do ensaio trabalhando com os pequenos detalhes do ritmo, contagem, dinâmicas, mas em momentos chaves do processo eles se concentram no “quadro geral”, na “meta global” da música. Ambos os intérpretes concordam que a peça deve soar como um improviso e como uma conversa, e que a espontaneidade deve ser mais valorizada que a precisão. A “espontaneidade” que os flautistas se esforçam em alcançar seria o resultado de conseguir “tornar visível” suas intenções para a performance, assim coordenando esta “conversa” na música em tempo real. Para a autora, esta coordenação vai para além das notas e do ritmo certo, ou seja, aprender as notas e o ritmo correto parece ser apenas um pré-requisito. Esta discussão ressalta a habilidade cognitiva no fazer musical e os sentidos produzidos pelos músicos representam a sua interação com a partitura, entre eles mesmos, com o momento e o contexto da performance.

Os exemplos analíticos mencionados acima são enfoques típicos de intérpretes sobre um texto musical, mesmo que se considere a diferença entre os procedimentos metodológicos utilizados nas pesquisas, em GAERTNER (2008a, 2008b), duas análises para intérpretes realizadas com base nas partituras do Choro Pagão de Pixinguinha/B.Lacerda e do Choros 2 de Villa-Lobos e em KAASTRA (2008) um estudo de caso sobre a preparação por dois intérpretes da obra Masque for Two Flutes de Toru Takemitsu. Quando, com a ajuda e empréstimo de modelos da linguagem verbal, tomamos estes exemplos analíticos como objetos de estudo do processo inferencial do texto musical, um número incontável de possibilidades e questionamentos surgem.

Se, por exemplo, transpusermos de forma literal parte do modelo proposto por KINTSCH (1998),6 como a distinção entre o Processo Inferencial Automático e Controlado, à hierarquização dos elementos constituintes do texto musical em gerais e particulares nas análises de GAERTNER (2008a, 2008b) perguntamos: Que inferências não são percebidas durante sua geração e o intérprete não sabe se a informação é implícita ou explícita ao texto musical (inferências automáticas)? Que inferências são lógicas, geradas pelo raciocínio dedutivo e conhecimento de mundo, entrando em operação para esclarecer problemas na compreensão do texto musical (inferências controladas)? E se transpusermos parte do modelo proposto por COOK, LIMBER e O’BRIAN (2001), como a distinção entre as Inferências Conectivas e Elaborativas, às observações dos flautistas no estudo de caso de KAASTRA (2008) perguntamos: Que inferências permitem a conexão coerente entre as partes do texto musical (inferências conectivas)? Que inferências não contribuem para a compreensão e coerência do texto musical, porém podem ser úteis na antecipação de ideias posteriores (inferências elaborativas)?

Podemos pensar que a análise musical teria uma finalidade dentro desta discussão, como um instrumento de orientação da leitura em um propósito de produção de sentidos sobre a partitura. Ela pode direcionar a interpretação (produção de sentidos) e funcionar na elaboração de heurísticas individuais, como os “óculos” que o leitor/intérprete coloca na hora de ler e interpretar uma partitura. Assim, trabalhos em interpretação e análise musical como os de GAERTNER (2008a, 2008b) e KAASTRA (2008), e como tantos outros, podem muito bem gerar matéria prima de investigação em larga escala do processo inferencial do texto musical.

Para além disso, futuros trabalhos poderiam estabelecer um modelo específico para investigar a música e ainda ampliar a amostragem, por exemplo, buscando identificar os padrões de configuração do processo inferencial comparando intérpretes, comparando as inferências em momentos distintos de leitura do texto musical, como se dá o processo inferencial em graus diferentes de instrução musical, em alguns ou em todos os músicos de uma orquestra, o processo inferencial do texto musical em maestros e em compositores; depois ainda ampliar para o texto musical memorizado e abarcar pesquisas com músicos populares; sem contar as inúmeras implicações em educação musical, apreciação musical...

O principal objetivo deste artigo foi discutir e apontar algumas possibilidades de diálogo interdisciplinar entre interpretação musical e psicologia cognitiva, visando um objeto de estudo em comum, o processo inferencial. Como de costume, uma reflexão gera uma série de outras reflexões e novas questões se desdobram. Desta maneira, os ganhos de ambas as áreas de conhecimento são recíprocos e sempre surpreendentes.

Notas

1 O trabalho de LOUREIRO (2006) apresenta uma vasta referência sobre a pesquisa empírica em expressividade musical.

2 Não abordaremos aqui as implicações com o texto musical memorizado.

3 Cook exemplifica com um quarteto de cordas de Mozart.

4 Ao se referir a esta “visão geral” que o intérprete tem da obra musical, LARUE (1992) sugere o termo “grande dimensão” (large dimensions), em um sentido próximo DUNSBY (1995) sugere um “design musical” (design in music) e RINK (2002) um “contorno musical” (musical shape).

5 LARUE (1992) também faz a distinção entre uma “dimensão intermediária” (middle dimensions) e “pequena dimensão” (small dimensions).

6 Tópicas (topics) como explicadas por RATNER (1980) e PIEDADE (2007).

7 É importante frisar que esta transposição dos modelos da linguagem verbal à música é apenas uma sugestão com o intuito de exemplificar possibilidades. Os modelos de KINTSCH (1998) e COOK, LIMBER e O’BRIAN (2001) não representam modelos fechados e prontos para a investigação do processo inferencial do texto musical.

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Recebido em 22 abr. 2009

Aprovado em 12 out. 2009

Leandro Gaertner - Doutorando em Música na Universidade Paris-Sorbonne (PARIS IV), Mestre em Música (PPG - Música UFPR 2008), Bacharel em Flauta Transversal (EMBAP 2001) e Especialista em Educação Musical (EMBAP 2006). Principais interesses de pesquisa na área de Leitura, Escuta e Interpretação Musical, Música Brasileira (Choro) e Análise para Intérpretes. Ana Paula Pereira - Doutoranda bolsista do CNPQ no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva da Universidade Federal de Pernambuco, sob orientação da Dr.ª Alina Spinillo. Mestre em Psicologia (PPG - Psicologia Cognitiva UFPE 2009), Bacharel em Psicologia pela Universidade Regional de Blumenau (FURB 2007). Principais interesses de pesquisas na área de Linguagem Verbal, Oral e Escrita, com ênfase nos processos cognitivos envolvidos nas atividades de produção e compreensão textual.