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MÚSICA HODIE

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MÚSICA HODIE

Vol. 9 - Nº 1 - 2009

A. FICAGNA (p. 113-128)

ESCRItuRA INStRuMENtAl COMO tERRItóRIO pARA A COMpOSIçãO DE SONORIDADES¹

inStruMental Writing aS a territory to the coMpoSition With SonoritieS

Alexandre Ficagna - UNICAMP

alexandre_ficagna@yahoo.com.br

Resumo: Este artigo sintetiza o percurso que permitiu elaborar a hipótese a ser investigada em meu curso de Doutorado: ao aliar as singularidades da escrita e do suporte instrumental com a “sensibilidade eletroacústica”, potencializa-se as possibilidades da escritura instrumental, tornando-a um território atravessado por diversos fatores, permitindo o aparecimento – e o cruzamento – de quaisquer ferramentas. O ponto de partida é o entendimento da música eletroacústica como um “modo de sensibilidade”, também audível em diversas músicas “instrumentais” (Caesar, 1994), principalmente naquelas em que os compositores buscaram novas abordagens para a escritura instrumental (busca descrita já por Varèse). Numa etapa posterior, espera-se desenvolver estratégias analítico-composicionais que, através do estudo da produção instrumental contemporânea orientada às sonoridades e suas aquisições técnicas e estéticas, potencialize a atualização das virtualidades contidas neste território.

Palavras-chave: Escritura instrumental; Território; Composição; Análise; Sonoridade.

Abstract: This article summarizes the path that allowed me to formulate the following hypothesis, which guides my PhD research: in touch with “eletroacoustic sensibility”, the singularities of instrumental writing actualize its own virtualities and become a territory in which any tool can arise and connect to any other tool, with the only proposal of making a sonority based composition. It’s important, though, to take eletroacoustic music as a “sensibility mode”, heard also in many instrumental compositions (Caesar, 1994), especially on the works of composers who tried new approaches for instrumental writing (as did Varèse, for example). In a future step, analytical and compositional strategies are expected to be developed, through the study of sonorities oriented contemporary instrumental music and its technical and aesthetical acquisitions.

Keywords: Instrumental writing; Territory; Composition; Analysis; Sonority.

Introdução: Inversão de Pertinências

[...] nossa escuta agora é primitiva como a da caverna;

participante como aquela, a escuta é uma escrita.

(Rodolfo Caesar, em referência à escuta da música eletroacústica)

A relação funcional de um suporte material com uma prática musical, que Delalande (2001) chama de “paradigma tecnológico”, certamente caracteriza o modo de pensamento no qual determinado suporte se insere e, numa relação indivisível, determina esta prática. A escrita, criada na Idade Média com o objetivo de conservação e transmissão, tornou-se com o tempo o lugar da criação musical:

A “escrita” [écriture] tem sido definida aqui como técnica de invenção com auxílio de uma representação gráfica (por oposição à notação, técnica de transcrição, anterior à escrita tomada neste senso restrito). (DELALANDE, 2001, p. 43)

O desenvolvimento da polifonia, por exemplo, foi possível graças aos recursos da escrita, criando uma espécie de “composição assistida pela escrita” (Ibid., p. 33): a música que se insere no “paradigma da escrita” caracteriza-se assim por um pensamento orientado à “nota musical”, concepção que estimula determinadas escolhas composicionais e inibe outras. Não por acaso, da Idade Média à música serial, “a arte de tecer linhas melódicas controlando as superposições “verticais” é notavelmente constante.” (Ibid., p. 38)

Contudo, há desde muito tempo o que Dalbavie (1991, p. 303) chama de “conquista progressiva do “timbre”. Essa atenção aos aspectos de sonoridade, se foi sempre presente, ganha uma outra consistência a partir de Debussy. Sua obra dá à sonoridade mais do que o papel de suportar elementos de um discurso previamente elaborado com materiais abstratos: ela é incorporada em todas as etapas da composição (GUIGUE, 2008).

Se antes havia um dualismo entre material sonoro e material musical – em que as relações entre notas eram mais importantes que as relações entre sons (representado pelo timbre) – ocorre agora uma inversão nesta hierarquia das pertinências da composição musical (DELALANDE, 2001), inversão que requisita novos procedimentos composicionais para se concretizar:

Os procedimentos tradicionais de escrita [écriture] [...] são dissipados. A orquestração não é mais um parâmetro secundário mas torna-se o centro do desenvolvimento debussysta. Ele não varia mais um tema transpondo-o, transformando seus intervalos, em lhe acrescentando ornamentações, mas ele desenvolve uma sucessão de harmonias-timbres; trabalhando sobre as espessuras, densidades, contrações e dilatações harmônicas, assim como sobre as velocidade de evolução, os fenômenos de estabilidade e de instabilidade, os processos tendendo às rupturas de equilíbrio, etc. (DALBAVIE, 1991, p. 312-313)

Para compositores como Varèse, levar adiante um trabalho efetivo com os sons não seria plenamente possível com o suporte instrumental. Para ele, isto só aconteceria com meios mais adequados: não apenas novos instrumentos, mas uma nova técnica composicional.

Quando os novos instrumentos me permitirem escrever música tal como a concebo, os movimentos das massas e o deslocamento dos planos sonoros serão claramente perceptíveis na minha obra e tomarão o lugar do contraponto linear (VARÈSE, 1983, p. 91)

Perceber estas nuanças em obras criadas com suporte escrito requer ferramentas adequadas, caso contrário o trabalho sonoro é obliterado por uma visão centrada na nota musical. O som, qualidade multidimensional, requisita a escuta para se efetivar, escapando da representação bidimensional da notação. Para Chion, a concepção da altura como uma categoria simples, por exemplo, deve muito à redução de sua complexidade na nota musical:

O que nos esconde o aspecto ‘ruidoso’ de vários sons musicais é a notação. Sobre uma partitura, lemos claramente, por exemplo um contra-fá agudo tocado em trêmolo pelos primeiros violinos, mas o som que é produzido é essencialmente ruidoso, complexo. (CHION, 1998, p. 176-177)

Ao demonstrar que o ruído sempre fez parte, de algum modo, da música ocidental, Chion mostra que o problema não se encontra tanto na partitura quanto na concepção de nota:

Se tratando da escuta de uma música clássica, a questão da discriminação de unidades de percepção é mais complexa que parece, pois a unidade de notação – a nota – não é de modo algum uma unidade de percepção ipso facto. Os “traços” (arpejos ou escalas rápidas) nos concertos de Mozart, por exemplo, são as unidades, muito mais que as notas a partir das quais eles são constituídos. (CHION, 1998, p. 240)

Explorar os recursos próprios à escritura2 na criação de sonoridades, de modo a não mais conceber a nota como unidade pertinente, foi a maneira que muitos compositores encontraram para desenvolver suas poéticas, dentre eles o próprio Varèse. Em Hyperprism, Ferraz (2002, p. 17) localiza a construção de diversos acordes através de um típico recurso de escrita: o espelhamento.

Vale notar aqui que uma ferramenta de análise como a “pitch-class set theory” [...] ajuda na determinação de tais agregados. Mas é importante a ressalva de que não se trata de constatar uma super-estrutura X ou Y de construção de acordes, mas de localizar uma possível idéia que estaria por traz de tal construção, da qual Varèse atualiza outros acordes, estruturas rítmicas, blocos sonoros, sonoridades.

A Figura abaixo, baseada na de Ferraz (loc. cit.),3 ilustra o acorde principal e a conjunção com seu espelho:

Figura 1: acorde e seu espelhamento vertical.

Se observarmos o primeiro acorde (compasso 16) em sua transcrição completa, encontraremos a nota Si b central, que não só quebra a simetria como também complementa o cromatismo de nove notas, aumentando a saturação harmônica, o que nos dá a hipótese de que a simetria foi para o compositor um “ponto de partida” para chegar ao resultado sonoro: um exemplo de como as relações da escrita não teriam valor em si para este compositor.

Figura 2: Transcrição completa do primeiro acorde: observar também a distribuição espacial não estritamente simétrica.

Ferraz observa outros recursos utilizados por Varèse para tornar sensível aquilo que não era “notável” e, em muitos casos, executável à época; dentre os quais a escolha de intervalos que permitam realçar batimentos, causando a impressão de sons resultantes (intervalos de segunda menor, sétima maior e nona menor):

A importância de tal procedimento é tal que em 1954 ele ainda se encontra à busca de recursos de uma escrita instrumental para obter maior magnitude da sensação de parciais do som, acrescentando ao seu repertório sons de ataque muito forte seguidos de súbitos diminuendos. (FERRAZ, 2002, p. 16)

O exemplo de Varèse ajuda a ilustrar como uma mudança de concepção musical engendra uma mudança na abordagem do suporte: A integração progressiva da noção de timbre ao processo de escrita [écriture] participa de um ambiente em mutação tanto sobre o plano do pensamento quanto sobre aquele da ‘técnica’.” (DALBAVIE, 1991, p. 308)

Com o advento da música eletroacústica, surge a possibilidade de se utilizar meios especialmente desenvolvidos para a manipulação e criação de sons. Acima de tudo, a eletroacústica opera uma mudança de pensamento pois, segundo Delalande (2001), a simples utilização de um novo recurso tecnológico não implica em mudança de paradigma: enquanto o compositor pensa em combinação de unidades, por exemplo, ele permaneceria no paradigma da escrita. A passagem para o “paradigma eletroacústico” aconteceria somente se o compositor

[...] aproveita a reprodutibilidade e maleabilidade do som memorizado para escutá-lo a si mesmo, na sua morfologia, sua textura, sua matéria, se ele age sobre o som para lhe integrar melhor em seu propósito, para fazer soar as morfologias umas em relação às outras, que ele entra num novo paradigma de invenção, propriamente eletroacústico. (DELALANDE, 2001, p. 39)4

Este novo paradigma, surgido com a eletroacústica, influencia também a composição instrumental e, como coloca Ligeti, leva a uma revisão dos procedimentos de composição: “toda inovação artesanal coloca em fermentação a totalidade do modo de pensamento, e toda transformação do pensamento leva à revisão contínua dos procedimentos de composição.” (LIGETI, 2001, p. 127)

Influência da Eletroacústica

A conquista de novos sons e a elaboração de técnicas mais apropriadas à manipulação sonora ampliaram os limites da música consideravelmente. Schaeffer (1966, p. 203) explica que durante muito tempo as limitações da música relacionavam-se aos limites do fazer musical: limites de luthieria e da técnica dos intérpretes. Com o advento do aparato eletroacústico, as fronteiras tornaram-se as do próprio ouvido: “[...] nosso ouvido apareceria subitamente como a origem primeira de toda apreciação musical, ao mesmo tempo que como um aparelho à escuta [appareil à entendre]” (loc. cit.).

A redescoberta da escuta a partir das experiências do estúdio eletroacústico engendrou novas concepções também para a música instrumental.5 Segundo Murail (1992, p. 58):

Era inevitável que o desenvolvimento das técnicas eletroacústicas e o progresso dos nossos conhecimentos em acústica tivessem tido efeitos sobre a maneira de escrever música com meios tradicionais.

As experiências realizadas nos estúdios foram decisivas para que compositores como Ligeti, por exemplo, encontrassem alternativas mais eficazes para integrar o processo perceptivo à composição. Como afirma Murail (1992, p. 58): “É evidente que não teríamos “Atmosferas”, de Ligeti, sem o desenvolvimento das músicas em fita magnética.”

Neste processo de transposição das experiências realizadas no estúdio para o suporte instrumental, Ligeti reformula profundamente sua técnica composicional e conseqüentemente sua escritura instrumental. Uma técnica como a micropolifonia se mostra um exemplo da ampliação dos recursos da escrita (polifonia) através da influência da música eletroacústica, dos conhecimentos de psicoacústica, mas sobretudo pelo desejo de uma determinada experiência sonora:

As experiências que fiz no estúdio de música eletrônica ao utilizar a fusão de sucessividade e ao superpor um grande número de sons e de seqüências sonoras concebidas separadamente, me levou a imaginar um tipo de polifonia feita de tramas e de redes musicais. Chamei esta maneira de compor “micropolifonia” pois os diferentes elementos rítmicos desciam abaixo do limiar de fusão na trama polifônica. O tecido atinge uma tal densidade que as vozes não são mais perceptíveis em sua individualidade e só podem ser apreendidas no seu conjunto, num nível superior de percepção. (LIGETI, 2001, p. 199)

Para Catanzaro, ao desenvolver a micropolifonia, diversos fatores influenciaram o compositor,6 mas certamente o estúdio foi decisivo neste sentido: tem-se assim uma ferramenta que, ao mesmo tempo que cria sons, carrega consigo as maneiras de transformá-los. A escritura instrumental acaba se tornando, graças às suas particularidades, um meio mais propício para a realização de suas idéias, mesmo com o posterior desenvolvimento tecnológico dos estúdios. Como coloca Dalbavie (1991), ao constatar o aspecto de fusão do timbre e a dificuldade de sua manipulação, Ligeti encontra sua solução graças à escritura instrumental:

a textura, compromisso entre a fusão e a escritura, etapa intermediária entre o timbre e a polifonia, campo ao interior do qual o movimento sonoro se comporta como um timbre liberando-se das restrições de fusão. (Ibid., p. 317)

[...] Pode-se fazer notar que os procedimentos empregados por Ligeti não correspondem perfeitamente aos empregados na música sobre fita. Mas é precisamente um “mais” que a escritura lhe concede [...] (Ibid., p. 320)

Se a influência da música eletroacústica na composição instrumental se deu principalmente através do trabalho desta em criar e manipular sonoridades, tal característica não era uma exclusividade do suporte, visto que este tipo de construção vinha desde muito antes, mesmo lidando com a insuficiência dos meios e das técnicas (como no exemplo de Varèse). Já a compreensão atual de “som”, esta certamente é fruto do paradigma eletroacústico.7

Neste encontro – processo de conquista do timbre com novas experiências sonoras – tem-se o que Caesar (1994) chama de “um modo de sensibilidade”, que adquire independência do suporte. Ele exemplifica este aspecto através da música do próprio Ligeti:

A música de Ligeti é e soa “instrumental”, mas existe algo nela que traz opacidade ao campo de visão do ouvinte, convidando-o a mergulhar mais na escuta, sugerindo critérios de massa, textura, luminosidade, acumulação, aceleração e muitos outros explorados pela ME [música eletroacústica].

Ampliação do Suporte

Segundo Grisey (1991, p. 352): “Depois de alguns anos, a eletrônica nos permite uma escuta microfônica do som. [...] De outra parte, o computador nos permite abordar os campos de timbres inauditos até hoje e de analisar muito detalhadamente a composição.”

O timbre, que por seus aspecto de síntese de vários parâmetros, dificilmente é maleável pelas ferramentas tradicionais e não apresenta a neutralidade requerida pelas ferramentas combinatórias (DALBAVIE, 1991, p. 316-317). A necessidade de ampliação – técnica e conceitual - da escritura instrumental enquanto suporte torna-se premente:

Até um certo ponto, a partitura era suficiente para difundir os modelos “realizados” colocando em jogo os avanços no domínio da técnica instrumental. Hoje, nem sempre é suficiente para que as novas técnicas sejam difundidas num tempo aceitável e de maneira extensa e exaustiva. [...]

Entre os compositores de hoje, muitos se direcionam decididamente às qualidades expressivas do “som” como energia bruta, na direção do potencial dos sons complexos, ruidosos ou de fonte eletrônica como material de base. Ora, esses sons são eles mesmos complexos sonoros, o que torna problemática sua inscrição no domínio simbólico, sua realização por um conjunto de instrumentos e, enfim, a mistura destes sons entre si. (MARESZ, 2006)

Diversas outras técnicas surgiram no intuito de integrar o timbre à noção de escritura, em especial aquelas desenvolvidas pela chamada “Música Espectral”, através das influências e transposições de certas técnicas eletroacústicas para a escrita instrumental, a busca pela integração do ruído através dos sons complexos instrumentais, etc. (MURAIL, 1992, p. 59).

O som tomado como metáfora composicional levou muitos compositores, com os novos recursos de análise sonora, a constatar: “[...] um som não é uma entidade estável e permanentemente idêntica a ela mesma, como podem nos sugerir as notas abstratas da partitura [...]” (Ibid., p. 57). Uma técnica como a síntese instrumental surge influenciada por este tipo de compreensão: “é o instrumento que exprime cada componente do som e, diferentemente da síntese eletrônica, os componentes são tão complexos que constituem já uma micro-síntese.” (GRISEY, 1991, p. 352)

Trata-se praticamente de uma nova técnica de orquestração,8 uma nova concepção de harmonia – a “harmonia-timbre” – e o desenvolvimento de diversas técnicas de composição nascidas deste cruzamento entre escritura instrumental e eletroacústica:

Seria muito enfadonho para o leitor que eu aborde em detalhes o aspecto técnico desta escritura que sintetiza os espectros complexos, articula seus transitórios, atua sobre os deslizamentos insensíveis de uma forma à outra, sublinha os sons resultantes, toma os batimentos como fonte rítmica, as filtragens e defasagens como fonte melódica, para citar apenas alguns traços talvez os mais evidentes. Retenhamos destes múltiplos tratamentos que a fonte instrumental desaparece em proveito de um timbre sintético totalmente inventado e não dado a priori para os instrumentos. [...]

Me permitam insistir sobre isto: trata-se aqui de uma verdadeira escritura e não de um amálgama qualquer de materiais novos. (GRISEY, 1991, p. 353)

Como em Ligeti, as particularidades do suporte escrito são utilizadas a favor da construção de sonoridades e processos sonoros. Murail ressalta, referindo-se aos espectros inarmônicos (sons tipicamente complexos), a impossibilidade de serem analisados como harmonia ou como timbre. Entretanto, é possível tentar sintetizá-los na escrita, e através da “síntese instrumental” construir artificialmente tais sons complexos (MURAIL, 1992, p. 65).

A partir dos exemplos a seguir, nos perguntamos até que ponto os procedimentos empregados são gerados pela escrita, por decisões espectrais, ou pela conjunção de diversos fatores, cujo objetivo final é o resultado sonoro e seus desdobramentos. O primeiro é extraído de Murail (op. cit.), onde um modelo inspirado na série harmônica vai sendo desfigurado através de transposição por oitavas:

Aqui os harmônicos do “Dó” aparecem progressivamente e descem de uma oitava a cada repetição, produzindo assim acordes-timbres cada vez mais complexos (é o inverso do eco natural que tem tendência a filtrar de maneira contrária). Utilizei abundantemente esse efeito em Territoires de l’Oubli, para piano solo. (MURAIL, 1992, p. 61)

Figura 3: Fonte: MURAIL, 1992, p. 61.

Saahiaro, em Verblendungen (1982-84, para orquestra e tape) cria um acorde de base através da distribuição vertical de intervalos cada vez menores, num típico pensamento por relações intervalares cromáticas, mas cuja distribuição se assemelha a de um espectro:

Figura 4: Acorde de base de Verblendungen. Todos os intervalos estão inclusos no acorde; alguns, como a quinta justa e a terça menor, resultam de mudanças de oitava. Fonte: SAAHIARO, 1991, p. 418.

A partir desta sonoridade, ela estabelece uma esquema abstrato de organização, onde um intervalo se propaga e desloca os outros para o agudo, num esquema quase-combinatório, buscando novas maneiras de abordar a harmonia conjuntamente com a forma:

Uma vez chego o fim, quer dizer, quando o acorde comporta apenas um único intervalo, a harmonia se desfaz de novo para reencontrar o acorde de base. Neste sistema, um acorde que é familiar assume de algum modo uma função de consonância (SAAHIARO, 1991, p. 419)

Pode-se notar que tais recursos não apenas servem à criação de sons mas se integram numa escritura que carrega consigo técnicas de transformação e desenvolvimento dos mesmos: a questão então parece ser permitir o aparecimento – e o cruzamento – de quaisquer ferramentas que contribuam neste sentido. Deste modo, dilemas como “escritura biomórfica” (inspirada na natureza) ou “tecnomórfica” (inspirada nas técnicas de estúdio),9 concreto ou abstrato musical (Schaeffer, 1966), sintaxe abstrata ou abstraída (Emmerson, 1986), etc., são dilemas secundários.

Para o estudo aqui proposto, ao se conceber a escritura instrumental como território para a composição voltada às sonoridades, interessa justamente as possibilidades que a escritura pode oferecer (“o mais” a que se refere Dalbavie), possibilidades que seriam apenas virtualidades sem o despertar operado pelo “modo de sensibilidade” da música eletroacústica.

A partir do último quarto do século XX, parece claro agora que o divisor de águas central em nossa mudança de visão do que constitui a música tem mais a ver com a invenção da gravação e então processamento e síntese sonoras do que com algum desenvolvimento específico da linguagem musical em si. (WISHART, 1996, p. 5).

Experiência Pessoal

Sendo o foco aqui a questão técnico-composicional e o estudo analítico envolvido, há que se encontrar ferramentas adequadas para se investigar a obra como se adentrássemos um território, onde podem ser encontrados elementos condicionados e/ou estimulados pelo suporte (i.e.: relações numéricas), colocados em contato com elementos que provocam uma ampliação do mesmo (técnicas espectrais; ou as técnicas estendidas largamente utilizadas por Ferneyhough), etc. Não é a intenção catalogar os tipos de relações possíveis, mas explorá-las: nem negar a escrita, nem tomá-la como valor em si, mas utilizar o que for necessário (se necessário) e até talvez descobrir novas relações.

No decorrer da elaboração de minha dissertação de Mestrado,10 passei da crença de que os objetos sonoros, por serem construídos na escuta (distintamente dos métodos a priori), assegurariam consistência às relações entre os materiais sonoros,11 para a aplicação de ferramentas abstratas com o intuito de conseguir determinadas sonoridades.

Por exemplo, em Cinco Mo(vi)mentos (2007, para violoncelo solo), de minha autoria, há síntese FM (de séries harmônicas “ideais”) para geração do material harmônico, cadeias de Markov, série de Fibonacci, permutações cíclicas, etc., todos utilizados em determinados pontos e abandonados quando necessário. Outro aspecto importante, num indivisível ponto de encontro entre o sonoro e o não-sonoro, o musical e o físico, foi a exploração das possibilidades (sonoras e musicais) de um gestual não usual no instrumento em vários trechos da peça, como ilustra a Figura abaixo:

Figura 5: Cinco Mo(vi)mentos, “IV – Presto mecânico”: início. A pauta superior indica pizzicatos nas cordas soltas, a pauta inferior indica as notas “marteladas” com os dedos da mão da escala. O resultado esperado é a impressão de uma textura estática com bastante mobilidade interna.

A aplicação de um procedimento como a síntese FM – tal qual descrita por Chowning (1996) – não foi realizada segundo os “preceitos espectralistas”, assim como outras ferramentas não foram aplicadas segundo prescrições “serialistas” ou quaisquer outras. Se por um lado havia um desconhecimento da ferramenta, por outro, havia uma preocupação sobretudo com a escuta.

No quarto movimento (“Presto mecânico) da mencionada peça, a sobreposição das diversas ferramentas abstratas “apagaria seus rastros” e o resultado seria a emergência de uma sonoridade: por exemplo, cordas soltas e tappings seguem ciclos de permutação distintos, pausas e alterações harmônicas foram regidas por diferentes aplicações da série de Fibonacci. Esta idéia de “sobreposição de procedimentos” (ou a interpretação dela) tive após freqüentar a disciplina de Silvio Ferraz,12 cuja aula sobre sua peça Ritornelo (1997, para flauta e percussão) me proporcionou este insight. Tempos depois, me deparei com idéia semelhante quando da leitura de Saahiaro (1991),13 levando-me a concluir que o que era um problema para o serialismo – como exposto por Ligeti em Transformação da forma musical,14 artigo de 1958 – torna-se mais um recurso composicional.

Conclusão: do Som à Música

Assim como o “modelo sonoro” de Schaeffer, é preciso que a escuta seja o próprio modelo (GARCIA, 1998, p. 49). Disto espera-se encontrar ferramentas para que o suporte instrumental seja verdadeiramente concebido como um território aberto a novos sons e processos sonoros, sempre visando o musical. Como nos lembra Parmegiani: “o som não é a música, não mais que a música não é o som.” (in: DELALANDE, 2001, p. 137).

O cruzamento de ferramentas, analíticas e composicionais, da música instrumental e da música eletroacústica, parece a melhor maneira para fugir das restrições de um modelo:15

Pois, existindo a partitura ela é também um campo a ser lido, mesmo quando lido por seus meandros aparentemente não sonoros: forças não sonoras que o compositor torna sonoras [...]

[...] noutro momento – ou melhor, noutro terreno, e para isso vale citar os compositores e não mais os analistas – tais números são nada mais do que modos de gerar texturas, figuras e gestos musicais. [...]

Não se trata aqui de provar A em detrimento de B, cada um tem suas paixões e de tais territórios não somos facilmente demovidos. Mas cabe adverter [sic.] que uma das paixões possíveis, e mais, uma das escutas possíveis - compreendendo aqui por escuta musical todas aquelas experiências que se singularizam como uma qualidade de sensação musical, uma máquina que produz signos musicais - é a escuta da leitura numérica, a escuta da partitura, a escuta dos objetos desenhados na partitura; um solfejo nem sempre sonoro, embora sempre musical. (FERRAZ, 2002, p. 11).

Eis a hipótese deste trabalho: ao aliar as singularidades da escrita e do suporte instrumental a fatores relacionados à sensibilidade sonora, potencializar as possibilidades da escritura instrumental, transformando-a num território atravessado por fatores que priorizem sobretudo a escuta.

Notas

1 Este artigo complementa uma comunicação apresentada anteriormente no XIX Congresso da Anppom, disponível em CD-Rom: FICAGNA, Alexandre. Composição de sonoridades na música instrumental: escritura e escuta. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 19, 2009, Curitiba. Anais... Curitiba: ANPPOM, 2009. p. 450-453.

2 Entende-se aqui escritura instrumental como a composição de obras para suporte instrumental “assistida pela escrita”.

3 Em sua análise, Ferraz não explicita a localização dos acordes, ou mesmo se tais aglomerados aparecem de modo simultâneo (vertical) ou sucessivo (horizontal), o que me deixa em dúvida quanto à localização do terceiro aglomerado.

4 A passagem do analógico ao digital não representa, para Delalande, uma mudança de paradigma: “Quanto ao período digital, ele já conheceu fases tão diferentes que dificilmente pode-se lhe opor globalmente ao analógico. É mais preciso dizer que a eletroacústica tem conhecido técnicas sucessivas [...] e que cada transição traz sua novidade. Elas permanecem secundárias, em comparação com a oposição escrita/eletroacústica.” (DELALANDE, 2001, p. 36 – nota).

5 Muitas experiências realizadas no estúdio colocaram a escuta no centro das atenções e ajudaram a derrubar certos “mitos” da composição musical: “Como os compositores de hoje se interessam mais que antes na estrutura interna do som, sobretudo na música eletrônica, eles têm reconhecido mais e mais que uma verdadeira reversibilidade integral está em contradição com a natureza destas estruturas. [...] As retrogradações se aplicam somente à ordem dos sons, mas não aos próprios sons: uma verdadeira retrogradação faz emergir à sua microestrutura uma transformação de uma tal amplitude que se tornam irreconhecíveis, o que se pode facilmente notar ao tocar a fita magnética ao contrário.” (LIGETI, 2001, p. 145)

6 “Essa se deve à equação do desejo do compositor de se libertar do estilo bartokiano e de atingir uma resposta estética ao serialismo integral. O estúdio se mostra, aqui, como um catalisador, uma ferramenta metafórica que lhe deu as condições de chegar a estética pretendida.” (CATANZARO, 2005, p. 1254)

7 Para Delalande (2001, p. 61), com a eletroacústica tem-se “a invenção do som”: “[...] os músicos aprenderam à explorar um jazigo que estava desde sempre ao seu alcance: o “som”. A consciência nascente de uma fonte disponível foi servida pela chegada dos meios para a fazer frutificar: o registro e as técnicas eletroacústicas.”

8 “A classificação tradicional em instrumentos de sopro, corda, etc. não resiste à uma escuta atenta deste tipo: por exemplo, o grave de uma flauta píccolo será certamente mais parecido com um harmônico de contrabaixo sobre a mesma nota que o mesmo tocado por um clarinete, um som de trompete com surdina mais próximo de um instrumento das madeiras que de uma trompa, etc. Que dizer dos transitórios de ataque, dos modos de tocar tais como o ponticello das cordas e das surdinas que mudam tão radicalmente o espectro instrumental?” (GRISEY, 1991, p. 373)

9 Um excelente trabalho sobre os tecnomorfismos na música instrumental, não apenas na Música Espectral, mas em obras de diversos outros compositores, pode ser encontrado em: CATANZARO, Tatiana. Transformações na linguagem musical contemporânea instrumental e vocal sob a influência da música eletroacústica entre as décadas de 1950-70. São Paulo, SP, 2003. Dissertação (mestrado em Música). Universidade de São Paulo, USP.

10 FICAGNA, Alexandre R. Composição pelo som: trabalho composicional e analítico de repertório instrumental por métodos de análise da música eletroacústica. Campinas, SP, 2008. Dissertação (mestrado em Música). Universidade Estadual de Campinas, Unicamp.

11 A seguinte passagem em Emmerson (1986, p. 21) me ajudou a formalizar uma “auto-crítica”: “Objetos sonoros não sugerem sua própria montagem de maneira objetiva! Reside, acima do processo de escolha aural advogado nesta aproximação, um conjunto de crenças a respeito do que ‘soa corretamente’ em qualquer situação dada. [...] Tais sistemas de valores na maioria dos casos permanecem inconscientes; nós não estamos cientes no momento da percepção do porquê uma combinação particular de sons ‘funciona’, apesar de podermos racionalizar nossa escolha posteriormente e tentar uma explicação completa do que fizemos.”

12 FERRAZ, Silvio. Tópicos Especiais em Composição – a idéia filosófica de Ritornelo (Deleuze e Guattari) como ferramenta composicional. Disciplina ministrada no Programa de Pós-Graduação em Música da Unicamp. Campinas, 1º semestre de 2007.

13 Pode-se observar na passagem a seguir a descrição de uma espécie de “sobreposição de procedimentos” visando uma dada sonoridade: “Meu objetivo é criar uma rede multidimensional na qual cada detalhe é estritamente controlado e se modifica continuamente. Por certos parâmetros, um mesmo som pode ser controlado em vários níveis. Um processo que o modifica permanentemente pode ser realizado por exemplo combinando-se listas de parâmetros diferentes, contendo matrizes de diferentes dimensões para cada parâmetros.” (SAAHIARO, 1991, p. 433)

14 O artigo é uma extensa constatação dos impasses do serialismo na época; nos referimos aqui ao seguinte aspecto: “As sucessões de notas e suas superposições verticais tornam-se, em larga escala, indiferentes aos intervalos que lhes engendraram; noções tais como ‘consonância’ e ‘dissonância’ perdem sua pertinência. As tensões e repousos são doravante assumidas pelas características estatísticas da forma tais como relação de registros, densidades e tipos de texturas. (LIGETI, 2001, p. 131)

15 Mesmo no caso do espectralismo: “[...] a Música Espectral só tem disponibilizado a operacionalidade sobre o que é quantificável, tais como o parâmetro de altura e o conteúdo espectral dos sons. Outros parâmetros – ou critérios de percepção (na acepção schaefferiana) – menos quantificáveis, ficarão subtraídos do processo a menos que sejam colocados em vida acústica por novos dispositivos.” (CAESAR, 2004 – nota 2)

Referências:

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Alexandre Ficagna - Compositor e pesquisador. Possui graduação em Música/Licenciatura (2005), pela Universidade Estadual de Londrina, e mestrado em Música/Processo Criativos (2008), desenvolvido no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, sob orientação da Prof. Dra. Denise Garcia. Em 2009 iniciou o curso de Doutorado em Música/Processos Criativos, também na Unicamp, sob orientação do Prof. Dr. Silvio Ferraz. Algumas de suas composições podem ser ouvidas no site .