ASpECtOS EStIlíStICOS DO REpERtóRIO CORAl

NA OBRA DE REgINAlDO CARVAlHO

Vladimir Silva - UFCG vladimirsilva@hotmail.com

Resumo: Reginaldo Carvalho nasceu em 1932, em Guarabira-PB. Estudou com Villa-Lobos, Paul Le Flem e Pierre Schaeffer, tendo sido um dos pioneiros no campo da música eletroacústica brasileira, nos anos 60. Exerceu intensa atividade como professor, regente e compositor, possuindo vasta obra dedicada à música coral. Nesta pesquisa serão abordados aspectos biográficos do compositor, assim como as obras para coro, sacras e seculares, no intuito de traçar o seu perfil estilístico composicional. Palavras-chave: Reginaldo Carvalho; Canto coral; Música brasileira.

Abstract: Reginaldo Carvalho was born in 1932 in Guarabira-PB, Brazil. He studied with Vil-la-Lobos, Paul Le Flem and Pierre Schaefer, and was one of the Brazilian pioneers on electro acoustic music in the 1960s. He worked as a music teacher, conductor and composer, and wrote various choral works. This research focuses on his biography as well as on the analysis of his choral compositions, both sacred and secular. The main goal of this study is to define the most important aspects of his compositional style. Keywords: Reginaldo Carvalho; Choral music; Brazilian music.

Aspectos Biográficos

Reginaldo Vilar de Carvalho nasceu em Guarabira, estado da Paraíba, em 1932. Foi o penúltimo dos sete filhos do casal José Clementino de Carvalho e Maria Villar de Carvalho. Desde cedo, manteve contato com a música. No entanto, somente na juventude, no Convento de Ipuarana, na cidade de Lagoa Seca (brejo paraibano), estudou música de forma sistemática. No colégio-seminário, além de banda de música, orquestra de câmara, órgão, harmônico e piano, também recebeu aulas de teoria, percepção, dicção e técnica vocal, e participou do coral infantil de vozes afins e do coral infanto-juvenil de vozes mistas. Foi neste ambiente musical que ele descobriu sua aptidão para a composição.

Em 1949, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde manteve contato com o compositor Heitor Villa-Lobos, àquela época diretor do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. Matriculou-se no Conservatório e apresentou suas composições a Villa-Lobos, que o fez seu aluno particular. (CARVA-LHO, 2008, p. 4) Dezessete anos mais tarde, seria nomeado, pelo Presidente da República, diretor deste mesmo conservatório, que, posteriormente, passou a ser denominado Instituto Villa-Lobos, hoje anexado à UNI-Rio.

A entrada no Conservatório Nacional e o contato com Villa-Lobos foram fundamentais para a formação musical de Reginaldo Carvalho. Foi por incentivo e recomendação de Villa-Lobos que Reginaldo mudou-se para a Europa, onde estudou com Paul Le Flem, entre 1952 e 1956, em Paris, França. De volta ao Brasil, implantou os modernos conceitos musicais que havia adquirido no exterior, como é possível perceber na obra Sibemol, escrita em 1956, considerada a primeira composição brasileira eletroacústica.

Em 1964, com bolsa de estudo, prêmio do governo francês, voltou à França, onde aprofundou seus estudos, numa época em que havia um frenesi de modernidade e experimentalismo musical em Paris. Nesta ocasião, conforme observa MARCONDES (1998, p. 176), realizou estágio em música eletroacústica no Centre Bourdan, da Organization Radio-Télévision Française (O.R.T.F), sob a orientação de Pierre Schaeffer. Além de Sibemol, escreveu outras composições eletroacústicas, dentre as quais se destacam: Caleidoscópio III, para fita magnética, 1957; Piano surpresa nº 2, para fita magnética, s/d; Rio da Parnaíba, para fita magnética, 1976; Tudo certo!, para fita magnética, 1993. Ele também compôs música para cinema, rádio e televisão, destacando-se os trabalhos para teatro, produzidos em parceria com Maria Clara Machado.

FERREIRA FILHO (2000) diz que Reginaldo Carvalho produziu uma grande quantidade de obras, indo desde o canto coral e música de câmera até obras sinfônicas e peças para solistas vocais e instrumentais. Somam-se, ainda, os muitos arranjos feitos sobre melodias populares ou não, religiosas ou laicas, folclóricas ou eruditas. Silva e Silva (2008a, p. 8-11) ampliaram o catálogo de obras elaborado por FERREIRA FILHO (2000), identificando mais de trinta composições originais, sacras e seculares, escritas para diversificados agrupamentos vocais (Quadros 1 e 2). Reginaldo comenta que escreveu muitas obras e que, lamentavelmente, muitas delas já se encontram perdidas para sempre:

Como todo mundo sabe que eu adoro escrever música, e o faço o tempo todo que for possível e, ainda trabalho de graça, praticamente, os pedidos são muitos e sempre atendi. Às vezes são coletâneas inteiras, mando sempre os originais sem guardar cópias. Posso acreditar que sou ou tenho sido muito fecundo em produção, mas sou o menos executado compositor do Brasil. Pedem música e engavetam, que nem eu faço aqui em casa. Mas eu não estou nem aí com isso. (Carvalho, 2008, p. 10).

Ano Local Título Observações
1946 Ipuarana, PB Santo! Santo! Santo! Texto sacro.
1946 Ipuarana, PB Tantum ergo Nº 1 Texto sacro.
1947 C. Grande, PB Tantum ergo Nº 2 Texto sacro.
1952 Rio de Janeiro, RJ Hino a Nossa Senhora Texto: Madre Villar.
1954 Juiz de Fora, MG Oração para Antes da Refeição Texto: Fr. Alano Porto
1954 Paris, França Kyrie Eleison (Missa Brevis, Nº 2) Texto litúrgico.
1956 Rio de Janeiro, RJ Glória a Deus Texto: D. Lucas M. Neves
1956 Juiz de Fora, MG As Sete Palavras da Oração Dominical Texto sacro.
1957 o Paulo, SP Oferenda Texto: D. Lucas M. Neves
1957 Juiz de Fora, MG Salmo de Davi o consta
1958 Rio de Janeiro, RJ Missa Sertaneja Texto litúrgico.
1959 S. J. D’El Rey, MG Ave, Maria! Texto litúrgico.
1978 Teresina, PI Rezação Edição FUNARTE.
o Consta o Consta Bendito de São Benedito o Consta
o Consta o Consta O Salutaris Hostia o Consta

Quadro 1 - Obras originais, sacras, catalogadas por Silva e Silva (2008a, p. 8 e 9).

Ano Local Título Observações
1947 Ipuarana, PB O meu Ranchinho Poesia: F. J. Baptista Vilar
1949 o consta Trovas Populares Texto tradicional.
1949 o consta Se eu morresse amanhã Poesia: Álvares de Azevedo
1950 Rio de Janeiro, RJ Embolada Poesia: Coryna Rebuá
1950 Rio de Janeiro, RJ Razão de Pranto Poesia: Coryna Rebuá
1952 Paris, França Canção 3 Poesia: Irineu Guimarães
1955 Marselha, França As Flô de Puxinanã Poesia: Zé da Luz
1958 Recife, PE Iô Paranã Tema caiapó, recolhido em Conceição do Araguaia (Pará).
1959 Rio de Janeiro, RJ Confissão Poesia: Manuel Bandeira
1990 Teresina, PI Tempo Poesia: C. Drummond
o Consta o Consta Cantiga Poesia: Manuel Bandeira
o Consta o Consta Desafio Poesia: Manuel Bandeira
o Consta o Consta Encanto de Existir Poesia: Hindemburgo Pereira
o Consta o Consta Encomenda Texto tradicional.
o Consta o Consta Irene no Céu Poesia: Manuel Bandeira
o Consta o Consta Não te esqueças de mim o Consta
o Consta o Consta Rondó do Capitão Poesia: Manuel Bandeira
o Consta o Consta Tempo Será Poesia: Manuel Bandeira
o Consta o Consta Passarela dos Santos Poesia: João de Lima

Quadro 2 - Obras originais, seculares, catalogadas por Silva e Silva (2008a, p. 10 e 11).

Entre 1960 e 1966, o Ministério da Educação e Cultura encarregou Reginaldo Carvalho de propor novos métodos de educação a partir das artes. Em 1972, o compositor assumiu a coordenação geral do Centro de Pesquisas Culturais e Comunicação Social do Piauí. (Marcondes, 1998,

p. 176) Em Teresina, trabalhou no Centro de Estudos e de Pesquisa Interdisciplinar (CEPI), na Escola de Música de Teresina, da qual foi um dos criadores, e no Departamento de Educação Artística da Universidade Federal do Piauí.

Ao longo da carreira, escreveu vários livros, todos publicados em Teresina, Piauí: Teoria Musical, 1979; Literatice de Cordão, 1991; Esquema Essencial de Classificação para a Música Ocidental, 1993; Evolução da Cantoria, 1993; Organologia, 1994; Cantares Piauienses, 1996; Teoria Musical, 1997; e Regência Musical, 1998; além da dissertação Ajustamento da fala com a música no ensino fundamental, apresentada em 1996, no Mestrado em Educação, da Universidade Federal do Piauí.

Considerações Analíticas sobre a Obra para Coro

O canto coral foi o veículo de expressão musical mais utilizado por Reginaldo Carvalho ao longo da sua carreira como compositor e educador, razão pela qual compôs várias obras e produziu muitos arranjos, dedicando-os a diferentes corais, “para que as pessoas aprendessem a elaborar o gosto artístico musical”. (Carvalho, 2008, p. 10) Escreveu obras com uma grande diversidade de feitios, utilizando seus próprios textos, versos de autoria desconhecida, do cancioneiro popular nacional e regional, assim como poesias de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Coryna Rebuá, Hindemburgo Pereira, Irineu Guimarães e do cordelista Zé da Luz.

As composições de Reginaldo Carvalho para coro são, na sua maioria, curtas e sem muitas repetições. Algumas, à semelhança dos madrigais italianos renascentistas, são escritas de forma contínua, apresentando material rítmico, melódico e harmônico diferente em cada seção, de acordo com os versos do poema. Outras são estróficas. Geralmente, as obras são homofônicas e escritas para coro misto a quatro vozes (soprano, contralto, tenor e baixo). No entanto, Reginaldo também compôs para vozes afins.

Santo!, Santo!, Santo! (Figura 1), escrito para coro feminino, é uma das poucas obras na qual emprega, de maneira muito sutil, pontos de imitação. Tantum ergo Nº 1, para coro masculino (Figura 2), apresenta textura predominantemente homofônica.

Figura 1: Santo! Santo! Santo!, compassos 11-14: vozes femininas, pontos de imitação. Copyright 2008 Reginaldo Carvalho – Todos os direitos reservados. Exemplo reproduzido com permissão do autor.

Figura 2: Tantum ergo Nº 1, compassos 1-5: vozes masculinas, homofonia. Copyright 2008 Reginaldo Carvalho. Todos os direitos reservados. Exemplo reproduzido com permissão do autor.

Várias composições são baseadas na cultura popular nordestina, fato que o compositor relaciona à sua infância e à música do lugar onde “nasceu e sedimentou a sua memória auditiva com enorme carinho e encantamento”. (Carvalho, 2008, p. 4) Na cantata Rezação, publicada pela FUNARTE, em 1982, mistura os elementos do modalismo regional com acordes alterados, com sétimas, nonas e décimas terceiras. Os ritmos típicos do xote e do baião enfatizam o caráter festivo da obra (Figura 3).

Figura 3: Rezação, compassos 14-22: modo mixolídio, xote e baião. Copyright 2008 Reginaldo Carvalho. Todos os direitos reservados. Exemplo reproduzido com permissão do autor.

Em quase todas as composições, Reginaldo Carvalho evita as fórmulas e as barras de compasso tradicionais que cruzam os pentagramas e grades vocais. Em geral, usa apenas números entre as linhas dos sistemas, indicando a quantidade de tempos dos compassos. A unidade de tempo é apresentada no início da composição, juntamente com o tempo e

o andamento da obra (Figura 4). No tocante às barras de compasso, prefere escrevê-las por entre os pentagramas, adotando a técnica do mensurstrich, comumente utilizada para a edição de música medieval e renascentista com o intuito de minimizar os efeitos e a rigidez da barra de compasso, permitindo, no caso da música vocal, um fluxo mais livre do texto (Figura 4).

Figura 4: Oferenda, compassos 1-3: unidade de tempo e andamento; mensurstrich. Copyright 2008 Reginaldo Carvalho. Todos os direitos reservados. Exemplo reproduzido com permissão do autor.

Quanto à extensão vocal das composições, Reginaldo escreve sempre numa região cômoda para todas as vozes, explorando os limites graves e agudos para fins expressivos. Este aspecto está diretamente associado à sua atividade como regente de coros escolares, infantis e infanto-juvenis, formados por diletantes e para os quais escreveu repertório original, de acordo com o nível técnico, musical e vocal, de cada um. Não obstante, o compositor, em sintonia com a música do seu tempo, explora toda a potencialidade da voz falada e/ou cantada, a fusão de sons e ruídos, a emissão de microtons e a interatividade com outras áreas artísticas, numa recorrência sistemática aos recursos extra-musicais. A obra Passarela dos Santos contém um trecho aleatório, no qual indica a produção de silvos e recitativo para voz falada (Figura 5).

Figura 5: Passarela dos Santos, compassos 10-13: campo aleatório e recitativo. Copyright 2008 Reginaldo Carvalho. Todos os direitos reservados. Exemplo reproduzido com permissão do autor.

Ao comentar sobre a dificuldade das obras, Reginaldo observa que ao escrever livremente nem chega a reparar em dificuldade técnica, rítmica, melódica e harmônica, mas quando solicitado, sim, ele toma cuidado, escreve conforme o pedido. E acrescenta:

faço música ao meu jeito, algumas vezes, atendo a pedidos de corais, coralistas e regentes que me encomendam definindo o índice de dificuldade, nas possibilidades de desempenho técnico e artístico, música tonal, modal, homofônica, contrapontística (poucas) “Troncheza” = dissonância etc. (CARVALHO, 2008, p. 8)

Um exemplo de complexidade rítmica pode ser encontrado na cantata Rezação, entre os compassos 1 e 10, trecho no qual as vozes cantam com métrica e agógica diferentes, criando um efeito polifônico e polirrítmico (Figura 6).

Figura 6: Rezação, compassos 1-10, polimetria. Copyright 2008 Reginaldo Carvalho. Todos os direitos reservados. Exemplo reproduzido com permissão do autor.

A comparação entre As Sete Palavras da Oração Dominical (Figura 7), escrita em Juiz de Fora - MG, em 1956, com a Ave, Maria! (Figura 8), composta em São João D’El Rey - MG, no ano de 1959, evidencia a conexão existente entre as duas obras, visto que, em ambas, Reginaldo utiliza material harmônico e melódico similar. Este procedimento musical parece reiterar a ligação mística e religiosa existente entre os dois textos das composições, que são, na verdade, as duas orações mais conhecidas da Igreja Católica Romana, o Pai-nosso e a Ave, Maria!.

Figura 7: As Sete Palavras da Oração Dominical, compassos 1-3, mi menor. Copyright 2008 Reginaldo Carvalho. Todos os direitos reservados. Exemplo reproduzido com permissão do autor.

Figura 8: Ave, Maria!, compassos 1-3, mi menor. Copyright 2008 Reginaldo Carvalho. Todos os direitos reservados. Exemplo reproduzido com permissão do autor.

Reginaldo escreveu diferentes versões da mesma composição. É o caso de Trovas populares Nº 1, obra escrita para voz e piano (Figura 9) e também para coro a cappella (Figura 10). Fundamentalmente, as duas peças mantêm a mesma estrutura harmônica, melódica, textual e formal, variando em pequenos detalhes, neste caso, na introdução.

Figura 9: Trovas populares Nº 1, compassos 1-6, voz solo e piano. Copyright 2008 Reginaldo Carvalho. Todos os direitos reservados. Exemplo reproduzido com permissão do autor.

A ironia também se faz presente nas composições de Reginaldo Carvalho. A ironia é uma estrutura comunicativa e, de fato,

nada pode ser considerado irônico se não for proposto e visto como tal; não há ironia sem ironista, e este será alguém que percebe dualidades ou múltiplas possibilidades de sentido e as explora em enunciados irônicos, cujo propósito somente se completa no efeito correspondente, isto é, numa recepção que perceba a duplicidade de sentido e a inversão ou a diferença existente entre a mensagem enviada e a pretendida. (Duarte, 2006, p. 19)

A picardia e a imprevisibilidade das progressões harmônicas, por exemplo, sublinham este aspecto particular da sua produção. Até mesmo no repertório sacro, Reginaldo brinca com o casual e o inesperado, como é possível observar na cadência que conclui a Ave, Maria! (Figura 11). Neste caso, o compositor parece enfatizar as expectativas do pós-vida e da eternidade.

Reginaldo Carvalho tem verdadeira fascinação pela música coral a cappella, gosto que desenvolveu ainda no tempo em que estudava com os frades franciscanos, no Convento de Ipuarana, onde cantava o Gregoriano e as missas de Palestrina e Victoria. Para ele, o que deve prevalecer, em termos de canto coral, é o canto, a voz, o chamado coral a cappella, o que não quer dizer que menospreze ou tire a validade do coral com acompanhamento instrumental ou orquestral. Na verdade, é enfático quando diz que não aprecia “coral com acompanhamento instrumental, principalmente como está em moda agora, com violão, sanfona ou batucada.” (Carvalho, 2008, p. 8) Hoje em dia, completa,

prefere-se cada vez mais o coral diversional, com repertório estabelecido sobre arranjos de música popular comercial, imposta na mídia pelos meios de comunicação de massa, com todos os seus problemas de validade artístico e educacional, com as “apelações” mais esquisitas de baticum, laia-laiá, tumtum-tumtum e por aí vai. Que “isso” canse um dia, e se volte a interessar por obras compostas apropriadamente para coral, a cappella. (Carvalho, 2008, p. 9)

Quando compõe, observa atentamente os elementos textuais para dar-lhes o tratamento prosódico adequado e correto.

Poderia acrescentar que meu feitio composicional musical coralístico se particulariza pela exatidão prosódico-musical, por gostar imensamente da língua portuguesa e ser vidrado no assunto de prosódia musical desde os primeiros contatos com a música, quando ingressei no coro de cantochão do mosteiro, ainda menino, como tenorino. Sofro enormemente com as “silabadas” dos meus colegas compositores e letristas, tanto eruditos quanto populares, que assim comprometem a qualidade dos nossos cantores. Me dá uma satisfação enorme ouvir uma cantoria com a prosódia musical totalmente bem aplicada e compreendida. (Carvalho, 2008, p. 11)

Esta idéia fixa com a prosódia musical e a ortoépia projeta-se na estrutura rítmica de muitas composições, nas quais Reginaldo distingue, com precisão, as vogais e sílabas tônicas e átonas, assim como as palavras mais importantes do texto, evitando a cacofonia e as silabadas. A trama musical é enriquecida com mudanças de compasso, appoggiaturas, síncopes, contratempos e quiálteras, além de uma inequívoca indicação da dinâmica e da articulação. Combinados, todos estes recursos colaboram para evidenciar aspectos semânticos importantes do poema e da estrutura sintática da composição. Esta prática pode ser observada, por exemplo, na seção conclusiva de A Cacimba (Figura 12), quando o compositor destaca as variantes apocopadas características do linguajar do povo do interior do Nordeste, expressas, no poema de Zé da Luz, e que poderiam ser transcritas, para a norma lingüística padrão, da seguinte forma: “Desejo, para que negar? Desejo ser um caçote, com dois olhos deste tamanho, para ver aquele magote de moça tomando banho.”

O grau de dificuldade das obras é variável. É possível encontrar composições simples, como o Salmo de Davi (Figura 13), no qual as vozes, nos múltiplos versos, cantam em uníssono com acompanhamento de órgão. A melodia, fundamentalmente construída por graus conjuntos, apresenta pequenos saltos ascendentes de terça.

Reginaldo Carvalho compõe com simplicidade e sem populismo, dialogando abertamente com o nacional e o universal, o passado e o presente. Esta postura interativa permite ao compositor revisitar outros textos, evocando-os e inserindo-os dentro do seu discurso numa perspectiva dialógica, caracterizada, segundo Bakhtine, pelas relações que todo enunciado mantém com outros enunciados. (COMPAGNON, 2003, p. 111) Na canção As Flô de Puxinanã (Figura 14), baseada no poema de Zé da Luz, a evocação do espírito nordestino ocorre através da citação de um pequeno trecho da melodia de Asa Branca, de Luiz Gonzaga, que, entre os compassos 24 e 26, aparece na voz do baixo e, nos compassos 27 e 28, levemente alterada e fragmentada nas vozes do contralto e soprano.

À semelhança de outros compositores brasileiros que escreveram missas baseadas nos elementos idiossincráticos da cultura musical brasileira, como, por exemplo, Carlos Alberto Pinto Fonseca (Missa Afro-Brasileira), Lindemberg Cardoso (Missa Nordestina) e Clóvis Pereira (Grande Missa Nordestina), Reginaldo Carvalho compôs a Missa Sertaneja, para coro misto a quatro vozes, uma missa cíclica que está dividida em seis partes: Senhor, Glória, CrenDeusPai, Santo, Bendito e Cordeiro de Deus. O tema inicial de um cada dos movimentos é construído sobre o modo mixolídio e a vivacidade rítmica é predominante em toda a obra (Figura 15).

O texto da Missa Sertaneja diferencia-se do texto canônico da missa católica, rezada em língua portuguesa, pelo seu tom popular, caracterizado pelo uso de coloquialismos, tais como a substituição do pronome pessoal “nós” por “a gente”, no Kyrie e no Cordeiro de Deus, ou a expressão “CrenDeusPai”, encontrada na frase inicial do Credo (Quadro 3). Em algumas orações, o texto é enriquecido poeticamente. É neste sentido que, no Glória, os elementos do universo sertanejo vêem à tona permeados pelo lirismo bucólico do sertanejo, que, ao contemplar a natureza e suas singularidades, agradece a Deus pelo sol, a chuva e o vento, elementos essenciais para a manutenção do trabalho e da vida.

Texto da Missa Tradicional Texto da Missa Sertaneja
Kyrie
Senhor, tende piedade de nós. Cristo, tende piedade de nós. Senhor, tende piedade de nós. Senhor, tenha piedade da gente. Jesus Cristo, tenha piedade da gente. Senhor,tenha piedade da gente.
Glória
Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados. Senhor Deus, Rei dos céus, Deus Pai todo-poderoso: nós Vos louvamos, nós Vos bendizemos, nós Vos adoramos, nós Vos glorificamos, nós Vos damos graças, por vossa imensa glória. Senhor Jesus Cristo, Filho Unigênito, Senhor Deus, Cordeiro de Deus, Filho de Deus Pai: Vós quetirais o pecado do mundo, tende piedade de nós; Vós que tirais o pecado do mundo, acolhei a nossa súplica; Vós que estais à direita do Pai, tende piedade de nós. Só Vós sois o Santo; só Vós, o Senhor; só Vós, o Altíssimo, Jesus Cristo; com o Espírito Santo na glória de Deus Pai. Amém. Glória a Deus pelo o que nos nutre. Glória a Deus pela nossa união! Glóriaa Deus pelo sol, pela noite e arrebol, pelos ventos e as chuvas do céu; Glória aDeus pelaflor, por seus brilhos e cor, pelo pranto, o sorriso e a dor; E que enfim,ó Senhor, repousemos da dor, da jornada vencida no amor.
Credo
Creio em Deus Pai Todo-Poderoso, Criador do u e da terra, e em Jesus Cristo NossoSenhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria,padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucifi cado morto e sepultado, desceu à mansão dosmortos, subiu aos céus, está sentado à direita de Deus Pai, de onde a de vir a julgar osvivos e os mortos. Creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na comunhão dosSantos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna. Amém. CrenDeusPai todo poderoso, criador do u e da terra; e em Jesus Cristo, seuúnico Filho nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do espírito santo; nasceuda virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos; foi crucifi cado, morto e sepultado;desceu à mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia; subiu aos Céus, estásendo à direita de Deus Pai todo Poderoso; donde há de vir a julgar os vivos eos mortos; Creio no Espírito Santo, na santa Igreja Católica; na comunhão dossantos, na remissão dos pecados; na vida eterna, amém.
Santo
Santo, Santo, Santo é o Senhor, Deus do universo. Os céus e a terra proclamam Vossaglória. Hosana nas alturas, Hosana nas alturas. Santo, Santo, Santo é o Senhor, Deusdo universo. Santo! Santo! Santo é o Senhor Deus do universo! Céus e terra estão cheios desua glória! Hosana nas alturas.
Benedictus
Bendito o que vem, em nome do Senhor. Hosana nas alturas, Hosana nas alturas! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana nas alturas!
Agnus Dei
Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, Tende piedade de nós. Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, Tende piedade de nós. Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, Dá-nos a paz Cordeiro de Deus que retira os pecados do mundo, Tenha piedade da gente.Cordeiro de Deus que retira os pecados do mundo, Tenha piedade da gente.Cordeiro de Deus que retira os pecados do mundo, Dê a gente a paz!

Quadro 3: Comparação entre o texto da missa católica tradicional, em língua portuguesa, e o texto da Missa Sertaneja.

O simbolismo é outro aspecto relevante da Missa Sertaneja. Reginaldo faz uso sistemático de elementos retóricos musicais para dar sentido ao texto religioso. Quando fala, por exemplo, no CrenDeusPai, da crucificação de Cristo, entre os compassos 19 e 21, apresenta o coro em uníssono, na região grave e no modo menor, como sugere a nota mi bemol; por outro lado, quando trata da ressurreição, entre os compassos 22 e 27, a polifonia reaparece, o ritmo é incisivo e acentuado, o coro canta, no registro médio, um acorde de dó maior, estático, recitativo, no qual soprano, contralto e tenor, ao mudarem a disposição do acorde, atingem o clímax agudo quando chegam à palavra céus. As pausas e a fermata entre os compassos 21 e 22 reforçam a expressividade da seção, isto é, ao silêncio temporário da morte, aqui representado na figura retórica do suspira-tio (Bartel, 1997, p. 392), segue-se o som inebriante e vitorioso da ressurreição (Figura 16).

Considerações Finais

O estilo composicional de Reginaldo Carvalho abrange múltiplas tendências, que resultam da sua formação e das preferências musicais desenvolvidas desde a infância, no ambiente familiar e escolar. Ao falar sobre o seu feitio musical, afirma que foi cauteloso quanto às influências dos seus professores. É certo que o contato com as obras dos grandes mestres teve um forte impacto sobre a sua formação, conforme relata a seguir:

Não saberia descrever com que ardor “devorei” as partituras e me deliciei com as audições de, por exemplo, Palestrina, Lassus, Victoria, Vivaldi, Monteverdi, este, para mim, o começo da grande música, Bach, Haydn, Mozart, Beethoven, Bruckner, Handel, Schubert, Schumann, Mendelsshon, quase que enlouqueci com Wagner, que deu trabalho para me libertar dele. Não quero esquecer Chopin e Listz. Despertei para um mundo sonoro novo quando me deparei com as belas obras de Debussy, Stravinsky, Villa-Lobos, Milhaud, Migot, este por demais desconhecido injustamente, uns, que eu aprecio sobremaneira, Poulenc, outro que chegaram até a dizer que eu imitava tamanho afeto sinto por suas músicas. Messiaen, que considero o gênio musical mais completo em conhecimentos gerais e que, simplesmente, me encanta, considero-o “um santo” (como se dizia antigamente). Ravel, Hindemith, Prokofiev, Schostakowsky e muito outros ainda. (Carvalho, 2008, p. 5).

Um dos aspectos mais importantes que absorveu no contato com Messiaen e Paul Le Flem, quando da sua estadia em Paris, foi a perspectiva de manter-se sempre aberto para o novo, o eclético, jamais se fechando numa única tendência, razão pela qual não aderiu a nenhuma corrente estética composicional específica. Ele comenta que não se identificou com

o atonalismo nem o dodecafonismo. Sobre o embate da música brasileira, polarizado entre os seguidores de Camargo Guarnieri e H. J. Koellreutter, acrescenta:

O fechamento do pessoal, de um lado, no dodecafonismo, e do outro, no nacionalismo, achei, desde o começo, quando tomei contato com essa história e suas implicações políticas, uma tremenda infantilidade, um tremendo equívoco. Ouvi tudo, fiquei na minha. (...) Não entrei nessa corrente aqui no Brasil porque, naquela época, eu estava ainda nos meus primórdios em matéria de conhecimentos musicais, não havia geração dessa música, não havia concertos públicos e as pessoas eram por demais fechadas. Só depois, em Paris, é que me empenhei, pra valer, no assunto. Mas, acho que essa fase de dodecafonismo e do serialismo foi para a música o que foi o marxismo para a história. Uma experiência, uma fase de evolução, de transição, uma preparação para uma dança futura e libertação do passado. (Carvalho, 2008, p. 5)

É verdade que Reginaldo chegou a escrever alguns trabalhos utilizando técnicas seriais e dodecafônicas. No entanto, não enveredou por este caminho porque não gostava, apenas achava curioso. Também não aderiu aos modismos da sua época de estudante porque considerava algumas práticas musicais transitórias e inconsistentes. (Carvalho, 2008, p. 6)

A grande maioria das composições corais de Reginaldo Carvalho apresenta um forte caráter didático, uma vez que ele escreveu a maior parte destas obras para os coros que dirigiu ao longo da vida, dando continuidade, em certa medida, ao projeto do Canto Orfeônico iniciado por Villa-Lobos. SILVA e SILVA (2008b) defendem que, de forma geral, as composições de Reginaldo podem ser incluídas no repertório de coros amadores e profissionais, pois as extensões vocais e a condução melódica das vozes são cômodas, as respirações obedecem à pontuação textual e o encadeamento harmônico é tonal, apesar das inúmeras dissonâncias e progressões inusitadas.

Regentes e cantores deverão estar atentos durante o processo de interpretação musical aos aspectos rítmicos, melódicos e fraseológicos, assim como à articulação, dinâmica, respiração e prosódia. A sonoridade ideal deve ser sempre arredondada, com respiração controlada, para manter o legato das linhas melódicas nas passagens longas e a afinação das vogais, sobretudo nos agudos, obtendo-se um som uniforme, sem, contudo, deixá-lo muito escuro e europeu. É preciso também uma boa articulação e dicção, prestando atenção aos regionalismos lingüísticos que aparecem em alguns textos, especialmente porque alguns textos foram recolhidos oralmente e fogem a norma culta e padrão da língua portuguesa.

A utilização sistemática dos modos nordestinos e das melodias por graus conjuntos contrasta com os poliacordes e as melodias disjuntas de algumas composições, características que o colocam em sintonia com o seu tempo e a modernidade. Reginaldo Carvalho é um compositor consciente da sua função como artista e da sua identidade sócio-cultural.

Sei que o Nordeste, a Paraíba, perfumam todo o meu trabalho, como dizem as pessoas. (...) Eu faço a música que eu faço, que eu gosto, que eu quero, apesar do inúmero cabedal de informações que possuo. Do mesmo jeito que em música, sou assim em filosofia, religião, política, escola de samba e futebol: independente, altivo, responsável. Sou também leitor assíduo e compulsivo. Sobretudo gosto de música, gosto de ouvir música. Posso dizer que eu sei música e a amo. (Carvalho, 2008, p. 4)

Esta pesquisa teve como objetivo principal levantar aspectos biográficos de Reginaldo Carvalho, assim como estudar suas obras para coro, sacras e seculares, no intuito de traçar o seu perfil estilístico composicional. Além de divulgar a obra vocal do compositor, esta pesquisa também pretendeu contribuir para a preservação da memória musical brasileira através da publicação de um estudo pioneiro nesta área. Finalmente, a pesquisa servirá de base para o desenvolvimento de outros trabalhos e poderá subsidiar a atividade profissional de cantores e regentes com referenciais históricos e analíticos sobre a música coral brasileira e, mais particularmente, a obra de Reginaldo Carvalho.

Referências:

BARTEL, Dietrich. Musica Poetica. Musical-Rhetorical Figures in German Baroque Music. Lincoln: University of Nebraska Press, 1997.

CARVALHO, Reginaldo. Entrevista de Vladimir A. P. Silva e José Francisco Lima Silva em julho de 2008. Teresina. Documento escrito. Universidade Federal do Piauí.

. A Cacimba. Partitura para coro misto a quatro vozes. França: manuscrito, 1955.

. As Flô de Puxinanã. Partitura para coro misto a quatro vozes. França: manuscrito, 1955.

. As Sete Palavras da Oração Dominical. Partitura para coro misto a quatro vozes. Juiz de Fora: manuscrito, 1956.

. Ave Maria. Partitura para coro misto a quatro vozes. São João D’el Rey: manuscrito, 1959.

. Oferenda. Partitura para coro misto a quatro vozes. São Paulo: manuscrito, 1957.

. Passarela dos Santos. Partitura para coro misto a quatro vozes. Piauí: manuscrito, 1976.

. Rezação. Partitura para coro misto a quatro vozes. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980.

. Salmo de Davi. Partitura para coro misto a quatro vozes. Minas Gerais: manuscrito, 1957.

. Santo! Santo! Santo!. Partitura para coro misto a quatro vozes. s/l: manuscrito, 1946.

. Tantum ergo Nº 1. Partitura para coro misto a quatro vozes. Paraíba: manuscrito, 1946.

. Trovas populares Nº 1. Partitura para coro misto a quatro vozes. Rio de Janeiro: manuscrito, 1950.

. Trovas populares Nº 1. Partitura para solo e piano. s/l: manuscrito, s/d.

COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: Literatura e senso comum. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

DUARTE, Lélia Parreira. Ironia e humor na literatura. Belo Horizonte: Editora PUC Minas; São Paulo: Alameda, 2006.

FERREIRA FILHO, João Valter. Catálogo de Obras de Espécie Vocal para Coral do Compositor Reginaldo Carvalho. Teresina: Texto impresso, 2000.

MARCONDES, Marcos Antônio (Org.). Enciclopédia da Música Brasileira: erudita, folclórica e popular. 2. ed. São Paulo: Art Editora, 1998.

SILVA, Vladimir A. P. e SILVA, José Francisco Lima e. Música brasileira para coro a cappella: catalogação e edição da obra de Reginaldo Carvalho. Trabalho de conclusão do PIBIC. Teresina: UFPI-CNPQ, 2008a.

. A obra coral de Reginaldo Carvalho: Catalogação e Edição. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA, 8. Anais do... Goiânia: UFG, 2008b. p. 315-317.

Vladimir Silva -Doutor em Regência Coral pela Louisiana State University. É professor adjunto da UFCG, onde leciona no curso de Música. Tem artigos publicados em revistas especializadas na América do Sul e do Norte, dentre os quais no Choral Journal da American Choral Directors Association (ACDA), Per Musi e Opus. Suas performances como regente e solista (tenor) incluem concertos e recitais no Brasil, Argentina, França, Itália, Áustria e Estados Unidos.