MÚSICA DE ExéquIAS EM VIlA BOA DE gOyAz: CONtExtuAlIzAçãO DE uMA COlEçãO DE MANuSCRItOS

Ângelo Dias - UFG Angelodias2009@bol.com.br

Resumo: O objetivo deste trabalho é contextualizar uma coleção de manuscritos encontrada em Vila Boa de Goyaz e datada de 1908, focando em duas obras sacras para voz e instrumentos: uma Missa de Requiem a 4 e um Memento, também a 4 e alternado com cantochão. O material ainda contém fragmentos de um Te Deum, também alternado, e de um Veni creator spiritus. O estudo das cópias revela importantes detalhes da vida musical da antiga capital goiana no final do século XIX e início do XX, em especial em relação à inserção da música nas cerimônias de exéquias e aos aspectos práticos envolvendo sua performance. Palavras-chave: Música de exéquias; Música Sacra Brasileira; Música em Goiás; Requiem; Memento;

Abstract: The goal of this work is to contextualize a collection of manuscripts found in the city of Vila Boa de Goyaz, and dated 1908, focusing on two sacred pieces for voice and instruments: a Missa de Requiem a 4, and a Memento, also a 4, and alternated with plainchant. The material also incorporates fragments of a Te Deum, alternated as well, and a Veni creator spiritus. The study of these copies reveals important details concerning the musical life of the former capital of the state of Goiás, at the end of the nineteenth, and beginning of the twentieth century, especially regarding the insertion of music in funeral ceremonies, with all the practical aspects involving its performance. Keywords: Funeral music; Brazilian Sacred Music; Music in Goiás; Requiem; Memento.

A presença da música nas cerimônias religiosas em Goiás, do século XVIII ao início do século XX, encontra-se amplamente documentada. Livros de registro de irmandades e igrejas, crônicas de época e notícias divulgadas pela imprensa atestam para o fato de que Euterpe sempre foi convidada de honra nos templos e nas procissões. Documentos seculares e eclesiásticos de cidades como Vila Boa (antiga capital do estado de Goiás, hoje Cidade de Goiás), Meia-ponte (atual Pirenópolis), Corumbá e Jaraguá apontam para uma prática musical altamente organizada, nos moldes do que ocorria nas capitanias vizinhas (mais tarde, províncias) de Minas Gerais, São Paulo e Bahia. Em termos práticos, pouco parece ter restado das partituras ouvidas nestas ocasiões. Alguns pesquisadores têm-se dedicado ao trabalho de levantamento e investigação do repertório e seus com-positores, ainda que de forma pontual, dando origem a um valioso material de referência. Por seu caráter abrangente e pioneiro, obras de autores como MENDONÇA (1969-81), RODRIGUES (1982), BORGES (1999) e PINA FILHO (2002) tornaram-se bibliografia básica para o estudo da música histórica goiana. A próxima geração se dedica, agora, à pesquisa particularizada, como PINTO, que publicou, em 2004, a primeira partitura de música sacra do período colonial goiano, acompanhada de um registro em CD. O mesmo autor investiga, ainda, o centenário acervo do maestro e compositor Balthazar de Freitas (1870-1936), da cidade de Jaraguá, do qual já publicou, em 2007, uma coletânea de obras para banda, também com um CD gravado. Outras pesquisas em andamento se dedicam ao acervo coletado pelo Frei Simão Dorvi (1907-1996), hoje sob a guarda da professora Yara Moreira, e ao material outrora pertencente à Igreja da Boa Morte, da Cidade de Goiás, que, tendo passado à professora Darcília Amorim (1902-1995), encontra-se, atualmente, aos cuidados do compositor Fernando Passos Cupertino de Barros. Ele é também o curador do acervo particular de sua família, esta de longa tradição na vida musical da Cidade de Goiás. O presente trabalho se debruça justamente sobre uma pequena coleção de manuscritos pertencente à família Cupertino de Barros, contendo partes vocais e instrumentais de duas obras maiores, a saber, uma Missa de Requiem a 4 e um Memento, a 4 e alternado, além de fragmentos de um Te Deum, também alternado, e de um Veni creator spiritus. O estudo contextualizado das cópias revelou importantes detalhes da vida musical da antiga capital goiana no final do século XIX e início do XX, em especial em relação à inserção da música nas cerimônias de exéquias e aos aspectos práticos envolvendo sua performance.

Dentro de um conceito de marcada teatralidade, a música tinha papel crucial na ambientação das cerimônias religiosas – ao lado do vestuário, da iluminação, da decoração, dos paramentos, da oratória –, sempre em consonância com a natureza do evento, com o nível social e cultural dos partícipes e com a relevância da festividade. Segundo SOUZA (2008):

Em vários relatos sobre celebrações do Mistério Pascal, realizados em diferentes lugares, evidencia-se a elaboração de um roteiro pensado para atingir as pessoas no âmago de suas emoções, tendo como propósito que estas fossem às lágrimas. (...) Conta Ofélia Sócrates: ‘Não raro alguma menina cantava [o solo do Canto do Perdão] com a voz embargada de soluços, dando à cerimônia um ar extremamente patético. No corpo da Igreja, emocionada fortemente, muita gente chorava, não podendo conter os soluços’. (p. 38-39)

Nas missas “mandadas dizer” em sufrágio das almas defuntas ou na celebração de um Ofício e Missa de encomendação (Requiem), a música era parte crucial na criação da atmosfera de recolhimento e dor, revestindo de esperança os pedidos de concessão do repouso eterno. A quantidade dos executantes, seu nível técnico e a elaboração da música variavam de acordo com vários fatores, sendo os dois principais o prestígio de quem se queria homenagear e, naturalmente, o quanto se poderia pagar aos músicos. Nas celebrações da gente simples do povo, era comum não haver música especial, quando muito o cantochão, entoado pelo próprio celebrante, que receberia por isso “uma esmola”.1 Claro está que, por ocasião da morte de alguém que fosse de especial apelo para uma comunidade, todos poderiam ofertar seus préstimos sem esperar pagamento. Estes executantes seriam divididos, quase sempre, em dois grupos. O primeiro, composto pelos instrumentistas profissionais, formado, em sua maioria, por militares aquartelados na região. Estes foram mais comuns a partir do século XIX. Com relação a períodos anteriores, ainda não foi possível determinar com exatidão quem seriam estes executantes. O segundo grupo, o dos cantores, era formado basicamente por amadores que desempenhavam outras funções na cadeia social e que doavam seu tempo sem esperar necessariamente uma retribuição pecuniária.

Para a música de uma celebração pertencente ao calendário litúrgico, o trabalho de preparação era feito com relativa folga, com o tempo necessário para a confecção das cópias das partituras separadas para cada cantor e instrumentista, para a organização dos ensaios etc. No caso de uma missa fúnebre era diferente, pois entre o falecimento, a missa de corpo presente e o sepultamento não se passariam mais que um ou dois dias. Portanto, era comum que os grupos musicais já tivessem este material reservado para uma eventualidade, inclusive com ensaios ocasionais. A história da música nos revela que os mestres de capela do passado compunham pelo menos uma missa de Requiem, que estava sempre à mão em uma hora fatal. Geralmente, após a performance, esse material específico era arquivado, permanecendo à espera de nova utilização.

O foco principal deste trabalho são as duas peças maiores da coleção de manuscritos: o Requiem a 4 e o Memento alternado. A coleção foi copiada e, ao que tudo indica executada em Vila Boa no início do século passado. São quatorze páginas de música em bom estado de conservação, com aproximadamente 18x27cm cada uma e de formato algo irregular, acomodadas em uma capa de papel pardo com o título Missa Fúnebre. A primeira data escrita na capa registrava o ano de 1918, mas foi corrigida posteriormente para 1908, com um zero sobreposto ao número um. No canto superior direito, abreviado parcialmente por uma rasgadura, lê-se “14... [folhas? páginas?]”. Na parte inferior, uma inscrição indica a procedência do volume: “Pertence a Genciano Barbosa”.

Os manuscritos formam dois grupos distintos. O Grupo I contém as cópias mais antigas, dez ao todo, algumas datadas de 21/07/1908. O papel tem a marca d’água “Cardozo e Cº/Rio de Janeiro”. As folhas deste grupo apresentam a tonalidade característica sépia (o papel e a tinta), fruto do desgaste do material. No Grupo II, formado pelas quatro páginas restantes,

o papel é do mesmo tipo, inclusive com a mesma marca d’água, mas a tonalidade branca original das folhas e o azul da tinta ainda estão bem preservados, indicando que são cópias mais recentes. Essas quatro folhas completam as partes da Missa Fúnebre e do Memento e foram claramente copiadas de originais que teriam integrado a coleção e que, agora, encontram-se desaparecidos. Quanto à capa, pelas suas características, percebe-se ter sido escrita em três momentos. O título Missa fúnebre e a data parecem ter sido lançados ao papel em ocasião posterior, todavia próxima, à das cópias datadas do Grupo I. E a já mencionada correção para 1908, em vez de 1918, é indício que de a capa foi escrita após a segunda data. Posteriormente, o material passou a Genciano Barbosa, que contou as folhas, lançando ao alto “14...” e assinando no rodapé.

É perceptível que cinco folhas grandes de papel pautado foram cortadas ao meio, provavelmente com o auxílio de uma régua, para a confecção de dez das partituras da coleção. Dentre as páginas mais antigas (Grupo I), ao se comparar seis delas entre si, é possível identificar as metades provenientes do corte das respectivas folhas maiores de papel pautado, designadas “A”, “B” etc., no quadro sinóptico mostrado mais adiante. Portanto, apesar de só algumas das partes conterem a data de 21/07/1908, o cruzamento destes e de outros dados demonstra que foram preparadas na mesma ocasião. No Grupo II, as quatro páginas restantes da coleção também são metades de duas folhas maiores. Em todas as páginas examinadas,

o processo de divisão resultou no fato de que a marca d’água ficou em apenas uma de cada duas páginas.

O material distribuído pelas quatorze páginas está escrito em claves modernas (Sol e Fá). A Missa de Requiem a 4 recobre oito folhas e o Memento alternado com cantochão, quatro folhas. Há ainda duas páginas avulsas, no Grupo I, com as partes de soprano e tenor de um Veni creator spiritus, e contendo, na parte posterior de cada uma, o início de um Te Deum alternado (apenas os quatro primeiros versos). Esse Veni creator lança um dado intrigante à coleção. Ao que tudo indica, foi copiado em data próxima ao Requiem, ou seja, por volta de 1908. Entretanto, Fernando Cupertino já o identificara como o canto número 38 da Harpa de Sião, sem indicação de autor e dado como “popularizado”. (LEHMANN, 1928, p. 38) Ora, a primeira edição da Harpa só veio a público em 1922, contendo tanto peças originalmente compostas quanto diversas outras do repertório católico já tradicional. Estudos posteriores deverão revelar se a cópia goiana foi extraída da Harpa e acrescentada à coleção de manuscritos, talvez por Genciano Barbosa, ou se representa a versão popular antiga do Veni creator que, mais tarde, seria publicada na antologia sacra.

As partituras do Grupo I, as mais antigas, demonstram terem sido confeccionadas por quatro copistas distintos. O primeiro, identificado por uma rubrica que termina em “Marques”, datou as cópias de suprano, altus e tenor da Missa em 21/07/1908. Com base em análise preliminar da caligrafia, pode-se especular que Marques também tenha copiado, mas não assinado e datado, a única partitura vocal do Memento que integra o Grupo I. Detalhe interessante é que a parte de altus da missa foi escrita na clave de sol uma oitava acima, indicando que, além de vozes femininas, alguns homens poderiam cantá-la em falsete na região tenoril. O segundo copista do Requiem, J. Antunes, não datou as cópias de violinos I e II “em Sib” (assim denominados por serem cambiáveis com as clarinetas), mas o papel utilizado e a semelhança entre as partes não deixam dúvidas de que são contemporâneas às partes vocais datadas por Marques. O terceiro copista, que chamaremos Anônimo I, preparou as partes de baixo em Sib do Requiem e do Memento, lançando a mesma data de 21/07/1908. O quarto copista, Anônimo II, escreveu as duas partes avulsas que integram a coleção (Veni cre-ator e Te Deum) em data ignorada. O Grupo II, com as quatro páginas mais recentes, foi preparado por um copista que denominaremos Anônimo III. Talvez por trabalharem simultaneamente, mas separados, Marques optou pelo nome Missa de Requiem para as partes vocais, enquanto J. Antunes e Anônimo I usaram Missa Fúnebre nas partes instrumentais. Este detalhe vem corroborar a idéia de que o Grupo II, o mais recente, tenha sido copiado de originais que teriam pertencido ao primeiro grupo, pois o copista do segundo grupo respeitou as escolhas de título ao passar a limpo a parte do “Baixo de Voz” e do trombone colla parte com o tenor, nomeando-as de acordo com os originais.

Pouco ou nada foi possível levantar sobre os dois copistas identificados. Em A música em Goiás (1981. p. 28-31; 56; 83-84), Belkiss Carneiro de Mendonça inventaria grande número de músicos de bandas e conjuntos atuantes na Cidade de Goiás à época mesma em que foram produzidos os manuscritos. Quatro eram membros da família Marques. Um Olegário Antunes poderia ser relacionado ao copista J. Antunes. São Eles:

Joaquim Santana Marques. Regente e compositor. Dirigiu as

bandas do Batalhão 20 e da Polícia Militar (esta fundada em 1893). É autor de uma Missa de São Sebastião, datada de 19 de outubro de 1888. Uma possível autoria sua das obras enfocadas neste artigo deve ser descartada: não existe qualquer semelhança estilística entre elas e a missa de Joaquim Marques.

Pedro Valentim Marques. Filho de Joaquim Santana Marques,

tocava diversos instrumentos de sopro e era exímio trombonista. Mendonça cita, de sua autoria, noventa e seis quadrilhas, cento e dezesseis valsas e cinqüenta e sete tangos, todos apenas com a parte da melodia.

Valentim Marques. Irmão de Joaquim Marques e tio de Pedro

Marques, a quem iniciou nos rudimentos da Artinha. Esta artinha mencionada por Mendonça pode ter sido a Artinha Musical, publicada em 1884 por Amélia Arraias da Silva Costa e bastante difundida em Goiás. (RODRIGUES, 1982, p. 61)

Minervino Marques. Irmão de Joaquim Marques e de Valentim

Marques. Foi também regente e compositor. De sua autoria, existe um Hino Republicano. Foi mestre da Banda do Batalhão 20. Dizia-se que seu sopro era tão potente que era ouvido na Cidade de Goiás quando tocava seu oficleide no alto da Serra Dourada, a nove quilômetros de distância!

Olegário Antunes. Trompetista e compositor, autor da Missa em louvor de Santa Luzia. Tocou sob regência de Joaquim Marques.

O quadro a seguir permite uma visualização completa do material, sua divisão em grupos, a instrumentação, a datação, a autoria das cópias e a distribuição e confecção das partituras no papel pautado.

Grp. Pg. Título Naipe Data Copista Marca Papel
I 01 Missa de Requiem a 4v. Suprano 21/07/[1]908 ...Marques sim
I 02 Missa de Requiem a 4v. Altus 21/07/[1]908 ...Marques A1
I 03 Missa de Requiem a 4v. Tenor 21/07/[1]908 ...Marques sim A2
I 04 Missa Fúnebre a 4v. 1º Vln em Sib s.d. J. Antunes B1
I 05 Missa Fúnebre a 4v. 2º Vln em Sib s.d. J. Antunes sim B2
I 06 Missa Fúnebre a 4v. Baixo em Sib 21/07/[1]908 Anônimo I C1
I 07 Memento a 4 vozes Baixo em Sib 21 de Julho de 1908 Anônimo I sim C2
I 08 Memento a 4v. Tenor s.d. ...Marques? sim
I 09a Veni creator Tenor s.d. Anônimo II
I 09b Te Deum alternado (até o 4º verso) Tenor s.d. Anônimo II
I 10a Veni creator Suprano s.d. Anônimo II _
I 10b Te Deum alternado (até o 4º verso) Suprano s.d. Anônimo II
II 11 Missa de Requiem a 4 v. Baixo de voz s.d. Anônimo III sim D1
II 12 Memento a 4v. Suprano s.d. Anônimo III D2
II 13 Missa Fúnebre a 4v. Tbn. (dobra o tenor) s.d. Anônimo III sim E1
II 14 Memento a 4v. Tbn. (dobra o tenor) s.d. Anônimo III E2

Figura 1: Coleção de manuscritos da Cidade de Goiás. Quadro sinóptico-comparativo.

É provável que a Missa e o Memento alternado tenham sido utilizados juntos na mesma ocasião. Para a missa, foram copiadas apenas as partes litúrgicas do Intróito (Requiem aeternam), o Kyrie, o Sanctus, o Agnus Dei e a Comunhão (Lux eterna). Não é possível determinar se a fonte original conteria também os outros trechos comumente musicados da missa de exéquias, como a Seqüencia (Dies irae), o Ofertório (Domine Jesu Christe) e a Absolvição (Libera me Domine). Estes, provavelmente, foram executados em cantochão, completando o Próprio da liturgia de encomendação. O Memento, apesar de ser o quarto responsório das Matinas de Finados, terá sido ouvido nesta celebração durante o cânon da missa, inserido pouco antes do Agnus Dei.

A autoria das peças contidas nos manuscritos ainda é desconhecida, mas tudo leva a crer que foram compostas em data anterior à da confecção das cópias. Características de estilo e de linguagem, detalhadas mais adiante neste trabalho, apontam para compositores de meados do século XIX ou de período mais recuado. Procedimentos estilísticos distintos indicam que as duas obras não brotaram da mesma pena. De fato, o Memento alternado já tem sido investigado com base em outras cópias recolhidas em território goiano. Marshal Gaioso Pinto identificou a obra como a mesma encontrada nos arquivos de Balthazar de Freitas, de Jaraguá, e do Frei Simão Dorvi, da Cidade de Goiás. Segundo este pesquisador, a cópia mais antiga do Memento é de 1876. Em 1892, a peça foi executada nas exéquias do vigário Manoel Ribeiro de Freitas, em Jaraguá. Com base nas cópias pertencentes ao acervo de Frei Simão, confeccionadas em 1893 por Joaquim Marques, um possível autor seria um João Loureiro d’Abadia, cujo nome aparece ao final das partituras. (PINTO, 2004, p. 24)

Existem certas semelhanças entre a feitura do Requiem a 4 e do Memento e a de duas obras usadas nas celebrações que antecedem a Semana Santa na Cidade de Goiás: os oito Motetos dos Passos e os seis Motetos das Dores, para coro, dois violinos e baixo, atribuídos ao vilaboense Basílio Martins Braga Serradourada (1804-1874). As cópias mais antigas existentes dos motetos foram elaboradas por Joaquim Santana Marques, em 1881. Entretanto, o cronista J. Costa e Oliveira (1865-1956) afirma que os Motetos dos Passos foram escritos em 1855 e estreados na Matriz de Santana, em 07 de março de 1856. Já os Motetos das Dores, segundo ele, teriam sido cantados pela primeira vez na Igreja da Boa Morte, em 10 de abril de 1856. (RODRIGUES, 1982, p. 47) Muitas dúvidas têm sido levantadas com relação à autoria dos motetos e, por conseguinte, no que tange a real posição ocupada por Serradourada no panorama musical de Goiás.2 Apesar da existência de pontos em comum entre as peças, a escrita do Memento está mais próximo daquela dos motetos, enquanto a do Requiem aparenta ser mais moderna, aproximando-se de um estilo católico posterior, mais funcional, que será discutido mais adiante.

Uma possibilidade de autoria goiana da missa fúnebre recairia sobre o vilaboense Monsenhor Pedro Ribeiro da Silva (1867-1920), que desenvolveu intensa atividade musical na Cidade de Goiás até 1896, quando foi transferido para Uberaba e, mais tarde, para São Paulo e Rio de Janeiro. (MENDONÇA, 1981, p. 24) Em 1919, já morando no Rio de Janeiro, o religioso copiou diversas obras para todos os dias de celebrações da Semana Santa em um primoroso livro cerimonial, já na ordem em que deveriam ser executadas, nele fornecendo, inclusive, instruções sobre os passos das cerimônias. O livro contém o acompanhamento (a maioria, apenas redução do coro em duas pautas) das peças cantadas, tendo sido dedicado a Adelaide Sócrates (1888-1935), então regente do coro da Igreja da Boa Morte.3 No volume, várias das peças copiadas contêm datas que remontam ao final do século XIX, demonstrando que muitas já eram usadas mesmo antes que Mons. Pedro Ribeiro fosse transferido da diocese de Goiás. Nele constam músicas de Palestrina (1525-1594), Henry Dumont [Du Mont] (16101684), Luigi Sabbatini (1732-1809), Giulio Bas (1874-1929), Giovanni Tebaldini (1864-1952), Oreste Ravanello (1871-1938), Lorenzo Perosi (1872-1856), Givanni Concina (18??-19??) e Carlo Carturan (?-?). Como o restante das peças copiadas não tem indicação de compositor, supõe-se possam ser atribuídas ao próprio Ribeiro. Várias delas guardam notável semelhança com as características estilísticas da Missa de Requiem a 4.4

Ao tratar-se de música anônima do Brasil colonial ou do século XIX, não se pode deixar de lado a questão de uma possível procedência européia. Era comum que os regentes locais adaptassem as obras maiores às suas necessidades imediatas, muitas vezes sem a preocupação de identificar-lhes a autoria nas cópias. A Província de Goyaz não seria exceção a essa regra. Em 1879, o jornal Tribuna Livre noticia a música ouvida na Procissão das Dores, executada pelo coro da Igreja da Boa Morte, acompanhado pela Orquestra Phil’harmônica, sob a direção do notável regente e compositor goiano José do Patrocínio Marques Tocantins (1844-1889).5 O programa continha, além de “Motetes e Miserere”, uma missa de um Lysias de Momigny (?-?) e trechos do Stabat Mater de Rossini (o artigo menciona apenas

o Cujus animam, mas cantado por um soprano). O periódico O Goyaz, de 1899, elogia a música do Dia das Dores, da Semana Santa: o Inflamatus e o Fac ut portem, do Stabat Mater de Rossini e uma missa não especificada do Pe. José Maurício Nunes Garcia. (RODRIGUES, 1982, p. 48-49

Apesar da presença de grandes nomes da música ocidental como Palestrina, Dumont e Rossini nas cerimônias especiais, o quotidiano da música sacra estaria focado nas obras mais acessíveis da música católica funcional do final do século XIX e início do XX, com os já mencionados Sabbatini, Bas, Tebaldini, Ravanello, Perosi, Concina e Carturan, dentre outros. Essa música teria como características uma harmonia mais simples e convencional, a escrita quase sempre homofônica, ou com contraponto discreto, uma preferência por períodos curtos, expositivos e sem desenvolvimento, a textura vocal confortável, sem atingir os extremos da tessitura, e um acompanhamento que pudesse ser executado ao harmônio. Portanto, uma possibilidade seria a de que ao menos o Requiem a 4 fizesse parte desse repertório, tendo sido extraído pelos copistas de alguma coletânea ou coleção sacra da época.6

Estilisticamente, a linguagem da Missa de Requiem a 4 é bem trabalhada quanto ao encadeamento harmônico e a condução das vozes. A análise do material revela uma escrita singela, austera, que tende ao stilo antico. A harmonia é funcional e a textura é predominantemente homofônica, com passagens esparsas em estilo imitativo. Os gestos melódico-harmônicos e as dissonâncias cadenciais revelam uma condução algo linear nas vozes. Não há “erros” de encadeamento harmônico, como quintas e oitavas paralelas, o que ocorre amiúde no repertório sacro colonial brasileiro, ou aquele imediatamente posterior. Este cuidado na escrita dos presentes manuscritos salta aos olhos, uma vez que é notório o fato de que a técnica de muitos compositores nacionais do século XVIII, e parte do XIX, pouco se detém neste tipo de cuidado, não por desatenção, mas por opção estilística. Já a escrita do Memento, como se lê nas partes vocais encontradas (soprano, alto e baixo), apresenta um trecho em que ocorrem alguns movimentos paralelos simultâneos. Esses aspectos da escrita parecem reforçar o fato de que a Missa e o Memento não seriam obras do mesmo autor.

Quanto às partes instrumentais da coleção, tanto os baixos em Sib, quanto os trombones, são claramente dobramentos de partes vocais – do baixo de voz e do tenor, respectivamente –, podendo ser utilizados para completar as partes de coro hoje desaparecidas. Já as cópias de violinos I e II “em Sib” são dobramentos irregulares das partes vocais de soprano, alto e tenor (ocasionalmente, até do baixo), sem um padrão técnico-estilístico definido e com diversas discrepâncias de notas em relação às vozes, indicando serem essas partes acréscimos funcionais posteriores sobre um original que poderia, perfeitamente, ter sido escrito apenas para um grupo a cappella (sem acompanhamento) ou acompanhado de órgão e baixo instrumental. Como no restante do país, o emprego de um par de instrumentos agudos concertantes é bastante idiomático em boa parcela do repertório goiano mais antigo. Eventualmente, já para o final do século XIX, o saxofone, o flügelhorn, o oficleide, o bombardino e outros instrumentos de banda passam a dobrar colla parte também as vozes intermediárias do coro, de certa forma eclipsando as antigas “costuras melódicas” feitas pelos instrumentos agudos. Trompetes assumem as linhas superiores, às vezes sozinhos, outras vezes dobrando os clarinetes. Conseqüentemente, a textura das obras se tornam bem mais espessas, perdendo muito da transparência característica da orquestração mais simples, demandando, para sua execução, grupos vocais de maior sonoridade que possam se sobressair em face do acompanhamento instrumental.

O objetivo deste trabalho foi contextualizar duas obras maiores encontradas numa coleção de manuscritos copiados em Vila Boa de Goyaz: uma Missa de Requiem a 4 e um Memento alternado. Apesar da data de 1908, lançada à capa do volume, apenas algumas das folhas corroboram essa indicação, enquanto o restante demonstra ter sido escrito em período próximo. Apenas dois dos cinco copistas assinaram as páginas, não oferecendo nenhum dado conclusivo quanto à possível autoria da música. Fato é que, ainda que integrem o mesmo grupo de cópias, a missa e o Memento são claramente de compositores distintos, ambos ainda não identificados. Obra bastante difundida em território goiano e de escrita mais arcaica, o Memento aparece em três acervos locais, sendo que, em um deles, a partitura mais antiga traz a data de 1876. Portanto, dentre as duas peças, o Memento parece ter a data de composição mais recuada. Já o Requiem a 4 foi encontrado até agora apenas na coleção em foco neste trabalho. De feitura algo mais moderna, está em consonância com um estilo católico mais funcional, de reflexos cecilianos, disseminado a partir de meados do século XIX e oficializado pelo Motu proprio, em 1903. Sua autoria poderia ser tanto de compositor brasileiro como europeu do século XIX, e a linguagem evidencia o intuito de que a música fosse acessível a praticamente qualquer grupo de executantes. A escrita vocal é austera, com tessituras confortáveis, sem virtuosismos, em estilo predominantemente homofônico – com episódios imitativos esparsos –, e com uma concepção harmônica simples, mas bem elaborada em relação à condução das vozes. Apesar da presença de partes instrumentais no material analisado, o fato de serem dobramentos das partes vocais sugere que, originalmente, a escrita do Requiem seria a cappella ou com acompanhamento de órgão ou harmônio. As partituras dessa coleção evidenciam a presença inconteste da música nas cerimônias fúnebres da antiga capital goiana, fosse o cantochão entoado pelo próprio celebrante ou música de maior fôlego, envolvendo grupos vocais e instrumentais. Ainda que o levantamento histórico contextualizado do passado musical de Goiás se encontre em seus estágios iniciais, se comparado ao avanço da pesquisa musicológica em outras partes do país, as perspectivas se ampliam a cada nova descoberta, trazendo à luz o que é, inegavelmente, uma rica tradição musical.

Notas

1 Segundo carta do Capitão-Mor em Vila Boa, Dr. Antônio de Souza Telles de Menezes, escrita em 1789, os religiosos cobravam 2.600 réis para cantar uma missa e 9.600 réis por vésperas ou matinas, quantia considerada por ele bastante alta (PINTO, 2004, p. 18).

2 Para um exame profundo dessa problemática, vide o artigo Moteto dos Passos da Cidade de Goiás: questões de autoria, da pesquisadora Ana Guiomar Rêgo Souza (Anais do V SINCAM. UFG, 2009).

3 Com a morte de Adélia Sócrates, a regência passou a Darcília Amorim, que herdou o arquivo de sua antecessora. Hoje, o importante acervo de Dona Darcília, incluindo o “Livrão”, encontra-se sob a guarda de Fernando Cupertino.

4 Sua obra mais importante, uma Via Sacra – com quatorze estações para canto e órgão –, chegou a ser executada pelo Frei Pedro Sinzig, no Rio de Janeiro, merecendo a partitura palavras bastante elogiosas do Correio da Manhã, em crítica assinada por J. I. C. (João Itiberê Cunha?) (MENDONÇA, 1981. p. 24-25;191). Ainda não foi possível precisar a data desse artigo, mas é provável que se aproxime daquela de um comentário laudatório que o mesmo Pedro Sinzig escreveu sobre a obra na revista Música Sacra, edição de agosto de 1942 (RODRIGUES, 1998).

5 Além de sua atuação na performance, Tocantins muito contribuiu com o ensino formal de música no Lyceu de Goyaz. É de sua autoria o Compêndio de Música, divido em doze lições, contendo “rudimentos de harmonia e formação dos principais acordes”. Em 1882, já estava em sua terceira edição, corrigida e ampliada (RODRIGUES, 1982. p. 61-62).

6 Antes mesmo da promulgação do Motu Proprio pelo Papa Pio X, em 1903, que levaria ainda mais longe essa tendência, muitos compositores já produziam um repertório mais contido que fizesse frente aos excessos românticos do século XIX, e que estivesse, tecnicamente, ao alcance da maioria dos coros das igrejas espalhados pela cristandade. O compositor Giovanni Tebaldini – copiado por Monsenhor Pedro –, foi um dos baluartes dessa reforma.

Por sua identificação com os ideais cecilianos de pureza e recolhimento na música sacra, já há muito presentes em sua obra, foi nomeado pelo Papa Pio X para implantar as novas regras na Itália. Giulio Bas e Giovanni Concina foram discípulos de Tebaldini (No sítio: http://www.tebaldini.it/biografia_eng.htm).

Referências:

LEHMANN, João Baptista. Harpa de Sião. Coleção de cânticos sagrados. 2. ed. Juiz de Fora: Administração do “Lar Catholico”, 1928.

MENDONÇA, Belkiss Spencière Carneiro de. A música em Goiás. Coleção Documentos Goianos nº 11. Goiânia: UFG, 1969-1981.

PINTO, Marshal Gaioso. Da Missa ao Divino Espírito Santo ao Credo de São José do Tocantins: um episódio da música colonial em Goiás. Goiânia: AGEPEL, 2004.

RODRIGUES, Maria Augusta Calado de Saloma. A modinha em Vila Boa de Goiás. Coleção Documentos Goianos, n. 12. Goiânia: UFG, 1982.

SOUZA, Ana Guiomar Rêgo. Paisagem Sonora da Paixão Vilaboense (Século XIX). Música Hodie, Goiânia (UFG), v. 8, n. 2, p. 35-52, 2008.

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Ângelo Dias -Doutor em Canto e Regência pela University of Oregon (USA), Mestre em Música (Canto) pela University of Wyoming (USA) e Bacharel em Canto pela Universidade Federal de Goiás. É professor na Escola de Música e Artes Cênicas da UFG, onde é membro do colegiado de pós-graduação, do Núcleo de Música Antiga e do Grupo de Pesquisas Musicológicas.