Tricotomia
DOI:
https://doi.org/10.5216/rpt.v37i4.5669Resumo
Tricotomia
é um exemplo típico da chamada forma convergente de uma palavra, ou seja, uma palavra formada com base em mais de um étimo, o que lhe confere significados distintos. Em português, a palavra tricotomia é formada dos radicais oriundos da língua grega trico + tome + sufixo -ia. Em grego há duas palavras muito semelhantes: o advérbio trikha, “em três partes”, e o substantivo thriks, trikhós, “cabelo, pêlos” (1, 2). Ambas dão origem ao radical trico, em português. Tomo, por sua vez, deriva de tomé, do verbo témno, cortar. Deduz-se, portanto, que tricotomia pode significar tanto “separar, dividir em três partes” como “cortar o cabelo ou os pêlos”. Na formação das línguas modernas, prevaleceu a primeira acepção, cuja datação histórica, em inglês, é de 1610 (3). Em português, o vocábulo foi introduzido em 1877, segundo Houaiss (4), e em 1881, segundo Cunha, vindo do francês (5). Encontrou aplicação em diferentes áreas do saber, como em botânica, matemática, lingüística, teologia, sociologia e outras. Em botânica designa, especificamente, o caule de uma planta que se divide em três galhos e cada galho, por sua vez, em três ramos e, assim, sucessivamente. Em outros campos do conhecimento, define qualquer situação em que um tema, ou um objeto, apresenta três componentes, ou é dividido em três partes para melhor compreensão ou análise. Tricotomia, como termo próprio da linguagem médica, na acepção de corte de cabelo e de pêlos, não se encontra averbado em dicionários médicos em inglês ou francês. Também não o encontramos em português nos léxicos do século XIX e em muitos outros mais modernos, nem mesmo no mais completo deles, que é o de Houaiss-Villar. Encontra-se o seu registro na terceira edição do Novo Aurélio (6), no Michaelis (7), no Dicionário de usos do português do Brasil, de Francisco Borba (8), e no Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, de Silveira Bueno, editado pelo Ministério da Educação (9). Nos dois primeiros dicionários citados, o termo tricotomia, na acepção de corte de cabelo ou de pêlos, é referido como brasileirismo. Em que pese à sua ausência na maioria dos léxicos, tricotomia é, já há algum tempo, termo corrente do vocabulário de enfermagem nos hospitais, com o significado de raspagem da pele na região a ser operada, como medida de antissepsia no preparo pré-operatório dos doentes. Pedro A. Pinto, na oitava edição do seu Dicionário de Termos Médicos, de 1962, adverte que o verdadeiro sentido de tricotomia é o de corte do cabelo ou dos pêlos, e não o de raspagem da pele. Para esta prática propôs o neologismo tricoxisma, do grego xysma, ato de raspar, que não prosperou (10). O fato de o termo tricotomia, na acepção de corte de cabelo ou de pêlos, ser considerado de uso restrito ao nosso país não o desmerece, a nosso ver, visto que se trata de um termo etimologicamente correto e que encontra suas raízes no grego clássico, no qual já havia o verbo trikhotoméo com duplo sentido: a) cortar o cabelo;b) separar em três partes (2). Na literatura médica brasileira, há 35 artigos indexados pela BIREME no período de 1982 a 2008, nos quais foi usada a palavra tricotomia na acepção de corte de cabelo ou pêlos. Em sete artigos redigidos ou resumidos em inglês, a palavra tricotomia foi adaptada a esse idioma nas formas tricotomy (dois artigos) e trichotomy (cinco artigos). O termo foi utilizado em diferentes situações, referindo-se ao corte do cabelo nos traumatismos cranianos, aos pêlos de animais em experimentos de laboratório (rato, gato, cão) e à raspagem da pele como medida antisséptica pré-operatória (11). A tendência atual é a de abandonar a prática da tricotomia na prevenção das infecções cirúrgicas por falta de comprovação científica de seu benefício. Os termos técnicos formados com base em radicais gregos e latinos são patrimônio da atual civilização e não pertencem a nenhum idioma em particular, são de uso universal, com as adaptações morfológicas das palavras às normas próprias de cada língua. Estamos habituados a empregar apenas termos importados do primeiro mundo, onde a ciência e a tecnologia são mais avançadas, e relutamos em admitir que possamos também enriquecer o léxico sem cometer deslizes. adendo: Recordo-me que, durante o meu curso médico, trabalhava nas dependências da Faculdade Nacional de Medicina, no Rio de Janeiro, um barbeiro a quem os estudantes chamavam carinhosamente de “Fígaro”. Havia um cartaz afixado na parede com o preço da tricotomia, em lugar de corte de cabelo.
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