RELATO
DE EXPERIÊNCIA / CASE REPORT / RELATO DE VIVENCIA |
MENDES, Dione Alves; ANDRAUS, Lourdes Maria Silva - O SIGNIFICADO DE VIVENCIAR A MORTE DE UMA CRIANÇA ENQUANTO ACADÊMICO DE ENFERMAGEM. Revista Eletrônica de Enfermagem, v. 07, n. 02, p. 227 - 230, 2005. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/fen |
O SIGNIFICADO DE VIVENCIAR A MORTE DE UMA CRIANÇA ENQUANTO ACADÊMICO DE ENFERMAGEM
THE MEANING OF TO EXPERIENCE THE DEATH OF A CHILD WHILE NURSING STUDENT
El significado de vivenciar la muerte de un niño mientras era académico de enfermería
Dione Alves Mendes¹, Lourdes Maria Silva Andraus²
Resumo: Trata-se do relato de uma experiência de aprendizagem enquanto acadêmico do quarto ano do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Goiás, nas aulas práticas da Disciplina Enfermagem Materno Infanto-Juvenil, no qual pretende-se compartilhar o significado de cuidar de uma criança de nove anos de idade, de sexo feminino, portadora de insuficiência renal crônica, que em oito dias evoluiu para óbito. Vivenciar esse processo não foi uma tarefa fácil, pois me proporcionou sentimentos intensos de alegria e terror. Essa experiência< contribuiu para nosso crescimento pessoal e profissional, por esse motivo compartilhamos.
Palavras chave: Criança; Cuidados de Enfermagem; Morte.
ABSTRACT: This report presents the learning experience while 4th year nursing student of Nursing Graduation of Universidade Federal de Goiás in the practical classes of the Nursing in Maternal Infant-Youthful subject, in what intend to share the meaning of to take care of a 9 years old female child, chronic renal failure bearer, that in 8 days evolve into death. Living this process wasn’t an easy task, as it provided me intense feelings of happiness and terror. This experience contributed to my personal and professional growth, by this reason I share it.
Keywords: Child; Nursing Care; Death.
Resumen: Se trata del relato de una experiencia de aprendizaje mientras era< académico del cuarto año del Curso< de Graduación de Enfermería de la Universidad Federal de Goiás, en las clases prácticas de la Disciplina de Enfermería Materno Infanto-Juvenil, lo cual se pretende compartir el significado de cuidar de un niño de nueve años de edad, sexo femenino, portadora de insuficiencia renal crónica, que en ocho días se desarrolló para la muerte.Vivenciar ese proceso no fue una< tarea fácil, pues me proporcionó sentimientos de alegría a terror. Esa experiencia para nostro crecimiento personal y profesional, por este motivo compartamos.
TERMINOS claveS: Niño; Atención en Enfermeria; Muerte.
INTRODUÇÃO
Nosso primeiro encontro acadêmico com criança doente acontece no quarto ano do Curso de Graduação em Enfermagem da UFG, na Disciplina Enfermagem Materno Infanto-Juvenil. No atual currículo, a Disciplina tem 400 horas, sendo 250 horas teóricas e 150 horas práticas. Destas, 50 horas são realizadas na Unidade de Internação Pediátrica (UIP) de um Hospital Escola no município de Goiânia.
A UIP fundada há quarenta anos ficava no segundo andar, tinha capacidade para atender 30 crianças\adolescentes para tratamento clínico e cirúrgico. Contava com uma equipe multidisciplinar composta por Enfermeiros, Médicos, Psicóloga, Assistente Social, Nutricionista, Pedagoga, Fonoaudióloga, Fisioterapeuta e ocasionalmente Musicistae Educador Físico. No momento das aulas práticas no ano de 2004, a planta física estava inadequada em função de reformas e estruturação de uma Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica.
Antes de iniciar as aulas práticas, os alunos recebem uma parte do conteúdo teórico em sala de aula com o objetivo de conhecer as peculiaridades da criança, suas necessidades básicas, fases do desenvolvimento, patologias mais comuns e formas de abordagens. Em seguida, iniciam-se as aulas práticas na UIP no período matutino e as aulas teóricas continuam duas vezes por semana no período vespertino.
QUANDO TUDO COMEÇOU
Logo no início< do ano< letivo, após algumas aulas teóricas, fomos ao hospital realizar as aulas práticas. No primeiro dia, conhecemos a UIP e fomos apresentados aos profissionais da equipe de saúde, às crianças e adolescentes hospitalizados e aos seus respectivos acompanhantes. Em seguida, escolhemos um< paciente para cuidarmos durante uma semana. A partir desse momento, iniciou-se todo o processo que passo a relatar com objetivo de compartilhar a experiência<.
Escolhi uma criança por empatia, a qual me chamou a atenção. Manuseando seu prontuário, logodescobri que elatinha diagnóstico de IRC (Insuficiência Renal Crônica), patologia que eu gostaria de conhecer um pouco mais. A partir de agora, chamaremos a criança de “G” e sua mãe de “M”.
Continuando a análise do prontuário, descobri que G havia sido internada várias vezes em decorrência de uma Síndrome Nefrótica. A doença evoluiu para IRC em< aproximadamente 2 anos, fazendo com que G. tivesse de submeter-se a tratamento dialítico três vezes por semana para sobreviver, enquanto aguardava na fila para o transplante renal.
Para AMIN (1989, p. 64) “IRC é definida como a perda irreversível do tecido renal funcional de tal magnitude que o parênquima renal remanescente não é mais capaz de manter a homeostase do organismo, resultando em alterações detectáveis do meio interno”.
Desta última vez, G estava internada com os seguintes diagnósticos médicos associados: pneumonia; derrame pleural; complicação em fístula artério-venosa em membro superior direito< (MSD) e sopro mitral.
Após anamnese e exame físico, chegamos aos seguintes Diagnósticos de Enfermagem, de acordo com NETTINA, (1999): excesso de volume de líquido relacionado à insuficiência renal; nutrição alterada relacionada à restrição alimentar e associada a não adaptação ao cardápio do hospital; peso e altura muito baixo para a idade, relacionados à nutrição alterada e ao stress por< sucessivas internações, associados à baixa produção dos hormônios renais; risco para o desenvolvimento de hipertensão relacionado ao acúmulo de líquido no organismo; risco para perfusão tissular alterada relacionado à sobrecarga da bomba cardíaca pelo excesso de líquido sistêmico; padrão respiratório ineficaz relacionado à pneumonia e ao acúmulo de secreções no trato respiratório; integridade da pele prejudicada; potencial para infecção; déficit de lazer; eliminação urinária alterada e processo familiar alterado.
APROXIMAÇÃO COM A CRIANÇA E SUA MÃE
G, tinha nove anos de idade, era do sexo feminino e proveniente do Estado do Pará. Meu primeiro contato com ela, não foi nada animador. Apresentei-me e a cumprimentei, ela fez “cara feia”, nada respondeu, sequer olhou-me. Neste momento, sua mãe (M) aproximou-se e me disse que G era muito séria e que estava quase sempre irritada, pois detestava estar internada, estava com saudades dos irmãos e da sua casa e não simpatizava com os profissionais da equipe de saúde porque eles só apareciam para lhe dar injeções e comprimidos grandes de gosto ruim.
No entanto M mostrou-se muito receptiva e comunicativa. Confessou-me que estava um pouco cansada pois era o décimo dia de internação longe da família, com pouco dinheiro, e que, só ela entendia G. e por isso, não a abandonaria na companhia do pai. Ela demonstrou ter ficado contente quando eu disse que as acompanharia no período da manhã durante aquela semana.
Tentei novamente estabelecer um diálogo com G, indagando sobre suas bonecas, como elas eram bonitas, perguntei se elas tinham nome, mas novamente, não obtive resposta. Expliquei a ela que eu gostaria muito de ser seu amigo e que estaríamos juntos na manhã do dia seguinte. Despedimo-nos e fui estudar o seu prontuário.
G era paraense, já tinha sido hospitalizada inúmeras vezes e há dois anos sua< família estava morando em Goiânia para facilitar o tratamento. Desta vez, estava internada para tratar de pneumonia com derrame pleural, complicação na fístula venosa (FAV), um sopro cardíaco etc. Observei que G, apesar de ter nove anos, tinha aparência de cinco, em função da doença.
No segundo dia, G continuava irritadiça e introspectiva, porém, respondeu-me algumas perguntas, falou dos irmãos, da religião e que gostava de orar. Perguntei novamente sobre as bonecas, ela informou que uma se chamava Luciana e que a outra não tinha nome ainda. Propus ajudá-la na escolha do nome para sua boneca e no dia seguinte a batizaríamos.
No terceiro dia, nossa comunicação fluiu melhor, falamos sobre sua dieta preferida, ela me disse que “sua doença era grave que seu rim não funcionava mais, não podia mais ir a escola nem brincar com seus irmãos, pois se sentia fraca o tempo todo”. Batizamos a boneca com o nome de Joana.
No quarto dia, já éramos bons amigos, G, M e eu. Levei-a para pesar em meus braços, auxiliei a mãe nos cuidados gerais e assistimos desenho animado. Seu estado geral era regular. Em uma semana de contato, tínhamos estabelecido um vínculo muito forte. Ela gostava de desenhar e me presenteou com uma de suas pinturas com dedicatória e tudo, fiquei muito feliz, mostrei aos colegas e aos meus familiares. Eu havia sem dúvida, sido cativado pela beleza, magia e sinceridade da minha pequena paciente G.
O MOMENTO CRÍTICO
Na semana seguinte, segunda feira, cheguei à UIP e percebi que seu quadro clínico havia piorado, estava com tosse, dispnéia e nos disse chorando que não tinha mais forças para continuar internada e que não queria mais tomar nenhum medicamento. Sua mãe estava preocupada, pois G nunca estivera tão mal. Na passagem do plantão noturno, fomos informados que G tinha passado mal durante toda à noite, tinha sido avaliada pelo médico plantonista e recebido oxigênio por cateter nasal. No momento, estava apática, pálida e distante. Logo foi encaminhada ao andar superior para realização de hemodiálise, como de costume. Porém, quando eu já me preparava para ir embora, fui surpreendido com G e sua mãe que adentravam a sala de reanimação, pois G havia feito uma parada cárdio-respiratória quando chegava de volta a UIP.
Sua mãe, desesperada correu para a enfermaria chorando, me aproximei, segurei-lhe às mãos e ouvi seus gritos: “Deus... Deus... não leve minha filhinha”, nesse momento de desespero, chega à psicóloga da UIP, tentando acalmá-la, sem êxito, ela desmaia, eu a protejo e logo ela se recupera dizendo que a filha não resistiria.
Na sala de reanimação ao lado, médicos, enfermeiros e técnico em enfermagem fizeram todas as manobras de reanimação durante um bom tempo, sem sucesso.
Esses< minutos me pareceram uma eternidade, a culpa tomava minha mente, o sentimento de impotência reinava em meu peito: será que fiz tudo pela minha pequena paciente? Será que esqueci algo? O sentimento de perda foi enorme, vários questionamentos me invadiram, exigindo respostas que eu não dispunha. Uma criança linda, inteligente, doce, que não pediu para nascer nem para sofrer tanto, era minha amiga...
O medo tomou conta de mim por semanas a fio, medo de não ser um bom profissional, de não saber aceitar a morte, de não ser mais feliz em minha profissão, dentre outros.
No final das aulas práticas, quando a professora indagou-me sobre meus sentimentos com relação ao ocorrido, eu falei parte do que estava sentindo, ela falou-nos sobre o sentimento de perda, culpa, impotência, medo e raiva que podem tomar conta do profissional em casos de morte do paciente, e citou HORTA (1968), que diz “Enfermagem é gente que cuida de gente”, e que portanto, seria impossível não nos envolvermos e sofrermos também.
Desse modo, compreendi que estes são sentimentos humanos e que eu levaria um bom tempo para assimilar aquela situação e me preparar para novos embates com a vida e com a morte. Após compartilhar com os colegas e professora, pude compreender melhor meu sentimento.
Na saúde, dependendo da área escolhida, a morte pode ser uma constante, e por ser um fato culturalmente difícil de ser aceito, é pouco estudado nos cursos da área da saúde, especialmente na Enfermagem. Acreditamos que os professores deveriam trabalhar mais esse conteúdo ao longo do curso, pois é um tema complexo que exige vários conhecimentos, além da prática, para que possamos auxiliar o paciente e sua família em todos os momentos e fases da vida, sem tantos sofrimentos para nós profissionais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta foi uma experiência única, curta e que deixou marcas profundas, pois logo de início fomos tomados pelo carinho, alegria, afeição e amor recebidos da criança e sua mãe. A seguir, veio o enfrentamento do sofrimento, da dor e da morte de minha pequena paciente que mal acabara de conhecer. Esta situação, além de ter-nos permitido realizar cuidados técnicos, forçou-nos a fazer uma reflexão acerca de problemas éticos, psicológicos, emocionais, sociais, econômicos e religiosos, de forma clara e conturbadora, inesperada e marcante que emergiram durante e após o ocorrido.
Percebemos que mesmo estando no penúltimo ano do curso, temos muitas dificuldades em avaliar, compreender e lidar com o sofrimento do paciente e de sua família e também de elaborar nosso próprio sentimento: o que falar, o que fazer e como apoiar os pais. Desejamos que este relato possa contribuir para que outros acadêmicos e professores em situação similar possam enfrentar momentos semelhantes de forma mais amena. E que os docentes repensem uma maneira de preparar melhor o futuro profissional para assistir o paciente em situação de terminalidade e morte e seus familiares, sem se consumirem no próprio sofrimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMIN, A. B. Cadernos de terapêutica em pediatria – Nefrologia. Rio de Janeiro: Cultura Médica Ltda, 1989.
HORTA, W. A. A. Conceito de Enfermagem. Rev. Esc. Enferm USP., v. 2, n. 2, p. 1-5, set 1968.
NETTINA, S. M. Prática de enfermagem<. 6 ed. Trad. André L. de S. Melgaço et.al. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1999.
Texto
original recebido em 01/09/2005
Publicação aprovada em
30/08/2005
1 Acadêmico do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Goiás.
2 Professora doutora da Faculdade de Enfermagem< da UFG. Endereço: Rua 14 N. 551, Residencial Goiânia Tower Ap. 702. Jardim Goiás. Goiânia – GO. CEP. 74810180. e-mail lourdes@fen.ufg.br