RELATO
DE EXPERIÊNCIA/CASE REPORT/RELATO DE VIVENCIA |
REINALDO, Amanda Márcia dos Santos – O pacote de emoções geradas pelo ensino da técnica de preparo do corpo pós-morte: relato de experiência. Revista Eletrônica de Enfermagem, v. 07, n. 01, p. 95 – 98, 2005. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/fen |
O ‘PACOTE’ DE EMOÇÕES GERADAS PELO ENSINO DA TÉCNICA DE PREPARO DO CORPO PÓS-MORTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA
THE ‘PACKAGE' OF EMOTIONS GENERATED FOR THE EDUCATION OF THE TECHNIQUE OF PREPARATION OF THE POSTMORTEM BODY: EXPERIENCE STORY
DEL ‘PAQUETE’ DE LAS EMOCIONES GENERADAS PARA LA EDUCACIÓN DE LA TÉCNICA DE LA PREPARACIÓN DEL CUERPO POST MORTEM: EL
Amanda Márcia dos Santos Reinaldo1
RESUMO: Trata-se de um relato de experiência de uma estratégia de ensino do conteúdo referente aos cuidados de enfermagem com o corpo pós-morte, ministrado na Disciplina Bases Técnico-científicas da Assistência de Enfermagem, para o 4° período de Enfermagem do Curso de Enfermagem de uma Faculdade do interior mineiro. A estratégia de ensino foi elaborada partindo do pressuposto de que o ensino das técnicas de enfermagem pode ser realizado por meio de estratégias mais sensíveis e que tenham algum significado para o aluno o que possibilita maior envolvimento por parte do mesmo. Apresentamos as etapas da estratégia empregada, as reações dos alunos que participaram da aula e algumas considerações sobre tema.
PALAVRAS-CHAVE: Cuidados de Enfermagem; Ensino; Morte.
SUMMARY: This is a case related of an education strategy about nursing care assistance in the postmortem, which content is set on Technical-scientific Nursing Care Assistance Basis lectures, for the fourth Graduation class at a Nursing College in Minas Gerais state. The education strategy was elaborated from a theoretical presuppose that nursing techniques education must be developed through more sensible strategies which have any means for students that makes possible to them more involvement. The strategy stages is presented and the students` reactions that had participated in the class and considerations about this subject.
WORDS-KEY: Nursing Care; Education; Death.
RESUMEN: Esto es un relato de caso relacionado a una estrategia de educación del cuidado de enfermería en el post mortem, aplicada en las conferencias de Bases Técnicas y científicas de la Atención en Enfermería para los alumnos del 4º período de la graduación en una Facultad de Enfermería del estado de Minas Gerais. La estrategia de educación fue elaborada partiendo del presupuesto que la educación de las técnicas se debe desarrollar por medio de estrategias más sensibles y que tengan algún significado para los estudiantes o que se hacen posibles a ellos más envolvimiento. Se presentan las etapas de la estrategia, y las reacciones de los alumnos que participaron de las actividades en la clase y algunas consideraciones sobre este tema.
INTRODUÇÃO
A sensibilização para o cuidado em saúde é uma das inúmeras preocupações que o professor / educador tem tido com o graduando dos cursos de enfermagem. Cabe a nós, como educadores, instrumentalizar tecnicamente o aluno para o desenvolvimento de sua habilidade manual, isso não quer dizer, que a técnica em si torna o cuidado sensível (ESPIRIDIÃO & MUNARI, 2004).
A utilização da saúde mental como tema transversal no currículo de Enfermagem já é realidade em algumas escolas no Brasil, pois, apesar da saúde mental constantemente estar associada a práticas que só se desenvolvem em ambientes considerados da psiquiatria, ela pode auxiliar o enfermeiro a desenvolver durante sua prática assistencial uma atitude de responsabilização, preocupação e envolvimento afetivo com o outro.O ser humano é um ser singular em um mundo plural que merece atenção e o enfermeiro merece estar alerta para não cair na ilusão de que o cuidado está atrelado apenas ao corpo, esquecendo que esse sujeito doente é possuidor de vontade, sentimentos e expectativas que não podem ser esquecidas (MONTEIRO, 2003).
Logicamente observamos alunos que desempenham suas atividades com um desvelo digno de apreciação, outros são extremamente hábeis nas tarefas que lhe foram designadas, mas extrapolam para o meio externo dos laboratórios de enfermagem atitudes de distanciamento do sujeito de sua ação, como se estivessem cuidando do boneco no qual aprenderam as técnicas de enfermagem, como, por exemplo, no caso da administração de medicamentos. Um braço mecânico não sente dor, não tem uma história de vida, não tem pai, nem mãe. É apenas um artefato de ensino, recurso tecnológico imprescindível para o desenvolvimento da habilidade manual.
Para nós a idéia de que o bom enfermeiro é aquele que com os anos de profissão passa a ser ‘frio’em suas ações, como se nossa profissão para ser reconhecida deva perder sua humanidade, esquecendo o sofrimento do outro é perversa. Essa atitude se dá segundo ROCHA et al (2003) quando esses agentes do cuidar não se permitem fazer contato com suas sensações, seus sentimentos e emoções.
Deixando de lado as dores humanas, o aluno reproduz esse ciclo vicioso e histórico da frieza e distância do enfermeiro, esquece da necessidade de acolher e escutar, da necessidade de aprender a lidar com emoções que são suas, mas, que também são do outro. Quando nos deparamos com essa afirmação, nos perguntamos. Que cuidado é esse? Que ignora o sofrimento de estar doente, a dúvida de não saber o que se tem, a espera pela consulta médica ou pela visita que não chega; o odor da ferida, que mostra à pessoa doente o quanto o nosso corpo é vulnerável. Onde está o cuidado em instalar uma punção venosa sem ao menos dizer o próprio nome, identificando-se como profissional.
Todas esses equívocos afetam, ao nosso ver a credibilidade do nosso fazer cotidiano, não desmerecendo a necessidade da competência técnica, mas apenas fazendo um alerta para a competência do olhar amoroso em direção ao outro.
A incursão por uma disciplina extremamente técnica como a intitulada em nosso curso de Enfermagem – Bases técnicas da assistência de Enfermagem e, em outras escolas de enfermagem, como Cuidados de acesso ao homem, fundamentos de enfermagem, entre outros; nos fez lançar um olhar amoroso em relação ao tema. Nossa formação em saúde mental nos ensina, diariamente que não devemos ignorar a dor do outro, nem suas dificuldades, ou diferenças no agir e no pensar. Em contrapartida, observamos e vivenciamos o quanto essas atitudes tão caras à saúde mental em alguns momentos são deixadas de lado por outras áreas consideradas ‘mais técnicas’. O contato com uma disciplina em que, geralmente, a habilidade manual é valorizada em detrimento da necessidade de acolher o outro, (sujeito de nosso cuidado), nos fez desenvolver algumas estratégias de ensino de técnicas de enfermagem utilizando ferramentas teóricas e metodológicas da saúde mental.
Nesse momento estaremos apresentando um relato de experiência de uma aula que se propunha a ensinar a técnica do preparo do corpo pós-morte ou inadvertidamente denominado por alguns incautos de preparo de pacote (NASCIMENTO et al, 2003).
PLANO DE TRABALHO PARA O ENSINO DO PREPARO DO CORPO POST-MORTEN
Optamos por descrever sistematicamente a estratégia para aqueles que porventura se interessarem em utilizá-la, e possam elaborar seu plano de aula com as informações aqui descritas.
Tema da aula: preparo do corpo pós-morte.
Objetivo: instrumentalizar tecnicamente, cientificamente e afetivamente o aluno de enfermagem para desenvolver a técnica de preparo do corpo pós-morte por meio de uma estratégia que lança mão da percepção e vivência do aluno em relação a nascer e morrer.
Público alvo: alunos do 2° ano do Curso de Enfermagem da Disciplina Bases técnico-científicas da enfermagem, Fundamentos de enfermagem, cuidados de acesso ao homem, entre outras denominações.
Tempo disponível para aula: 4 horas
Material (cuja quantidade deverá ser dimensionada de acordo com o número de alunos):
1° Momento - papel pardo, cartolinas de várias cores, canetas hidrocor de várias cores, lápis de cor, cola, tesoura, fita adesiva, revistas, papel sulfite, pincel atômico de várias cores.
2° Momento – sonda vesical de alívio, seringas, scalp, esparadrapo, gazes, compressas, ataduras, sonda nasogástrica, cateter e máscara de oxigênio, luvas, cânula de traqueostomia, coletor urinário.
3° Momento – material para o preparo do corpo pós-morte de acordo com a rotina do serviço onde o aluno está inserido em atividade de estágio da disciplina e/ou de acordo com a bibliografia utilizada.
Etapas da estratégia proposta
1° Momento
2° Momento
3° Momento
4° Momento
Abaixo descreveremos um quadro ilustrativo da utilização dessa estratégia de ensino com uma turma de 24 alunos do 2º ano do curso de enfermagem.
Nome do personagem |
Características criadas pelos alunos para os personagens |
Motivo da internação |
Reação dos alunos após o óbito |
João |
16anos, mora com os pais, sonha em ter uma banda de rock, adora andar de skate, é muito rebelde e quer largar a escola para fugir e conhecer o mundo. Não usa drogas. |
Ao contrário do que o grupo informou, João usava drogas e foi vítima de overdose. Foi encontrado pelos pais no banheiro de sua casa e levado ao hospital. Seu quadro é grave. |
Uma das alunas chorou, as outras ficaram extremamente tristes e ao serem informadas do óbito em coro disseram “Ah não, isso não é justo, nós criamos o João com tanto carinho”. |
Kate |
25 anos, é professora de dança, fala vários idiomas é ‘super-descolada’, mora sozinha e tem um namorado que luta capoeira. Dá aula de inglês para os demais personagens. Adora andar na moda e detesta preconceito racial. |
Durante uma viagem com o namorado kate sofreu um acidente de carro e ficou gravemente ferida e foi levada ao centro cirúrgico imediatamente ao checar ao hospital. |
O grupo ficou ‘chateado’ porque segundo eles kate era tranqüila e isso não poderia ter acontecido, duas alunas sentaram-se imediatamente após a notícia do óbito como se não estivessem acreditando no que o professor estava dizendo. |
Patrícia |
12 anos, é filha de agricultores, tem ‘uma saúde muito fraca’ e vive doente, gosta de brincar e ir a escola. Também gosta de fazer bonecas reciclando lixo, ajuda a mãe nas tarefas da casa e é muito amadurecida para sua idade. Sua mãe lava roupa para a mãe de Maria. |
Patrícia foi encontrada inconsciente no banheiro da escola, sendo internada para exames, foi diagnosticado leucemia. |
Uma aluna retrucou que não estava certo o grupo ter criado patrícia e agora saber que ela morreu, os demais concordaram com acenos de cabeça, mas não se pronunciaram. Uma aluna assim que soube do tema da aula começou a fazer perguntas sobre a técnica e foi criticada pelas demais. |
Maria |
É uma adolescente de 15 anos, muito vaidosa e que tem como única preocupação o seu peso, vive fazendo dieta, não sai da academia e mesmo assim não perde peso. Maria está namorando com João há dois meses. |
Maria tomou por engano os calmantes da mãe pensando que eram medicamentos para emagrecer. |
O grupo ficou visivelmente abatido, uma aluna chorou e as outras consolaram a colega, outra pediu para sair da sala retornando após com água para a primeira. |
Joana |
17 anos, estudante, sonha em ser veterinária, trabalha com os pais por meio período em uma papelaria da família, engravidou do namorado, mas só contou para a melhor amiga (Kate), está morrendo de medo da reação da família. |
Joana optou pelo aborto em uma clínica clandestina e foi internada com hemorragia uterina grave. |
Duas alunas ficaram extremamente irritadas, não acharam certo seu personagem ter tido esse fim. Fizeram várias queixas e disseram que tudo bem já que era de ‘mentirinha’, durante o ensino da técnica uma pediu para sair um pouco da sala e outra chorou. |
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DESSA EXPERIÊNCIA
Podemos realizar algumas considerações a respeito da utilização da estratégia e de seus desdobramentos. A primeira que nos chama a atenção é que todos os personagens criados eram jovens e viviam situações rotineiras da juventude. O que não poderia ser diferente dado que nossos alunos, em sua grande maioria, são adolescentes.
A caracterização da vestimenta desses personagens foi extremamente criativa e alguns alunos lançaram mão de objetos pessoais para dar ‘vida’ a seus personagens, por exemplo, brincos, bolsa, pulseiras, batom. Podemos afirmar que o objetivo proposto do primeiro momento foi alcançado: os alunos criaram vínculo com o personagem.
Apenas um grupo optou por um personagem masculino. Nessa turma, em particular e, em geral é o que observamos na maioria dos cursos de enfermagem os alunos são do sexo feminino. O grupo que optou por um personagem masculino foi o mesmo em que estava inserido o aluno do sexo masculino.
Todos sem exceção durante a administração dos cuidados de enfermagem manipularam o personagem delicadamente, alguns objetos pessoais foram retirados. De acordo com o motivo da internação, foram sendo instalados os equipamentos e materiais hospitalares. Cada equipamento e material utilizado era seguido de uma justificativa de seu uso, associando-o com o grau de gravidade atribuído ao paciente. Quando perguntados como estava o paciente, todos afirmavam que ele estava bem, que logo estaria recuperado demonstrando um certo grau de dificuldade em cuidar de ‘alguém próximo’.
A notícia do óbito não foi bem aceita pelos grupos. Durante o preparo do corpo os alunos demoraram em média 5 a 10 minutos para iniciá-lo. Cada membro do grupo se auto-responsabilizou pela retirada de um material hospitalar. Apenas uma aluna perguntou se poderia levar o boneco para casa. Alguns alunos expressaram não achar ‘certo’ eles terem criado os seus personagens para vê-los morrer, demonstrando a dificuldade em aceitar a perda de um sujeito / objeto que despertou afeto durante todo o seu processo de criação. Dos 24 alunos, 10 procuraram o professor posteriormente para relatar que a aula foi boa, apesar de ter sido triste. Durante a apresentação dos personagens os alunos foram criando elos de parentesco e amizade entre os mesmos. Ao final das apresentações alguns faziam referência aos personagens como se este fizesse parte de sua família. Quatorze alunas durante o preparo e o desenvolvimento da técnica de enfermagem afirmaram que provavelmente nunca esqueceriam a experiência pela qual estavam passando. Uma aluna procurou o professor dizendo que havia gostado da técnica, mas deveria ser mais fácil quando aplicada em desconhecidos trazendo a questão da necessidade de distanciamento do sujeito doente para efetivação do cuidado.
Durante a discussão da estratégia destacamos algumas questões que foram levantadas pelos alunos, entre elas;
São questões que apontam para um caminho que os docentes da área devem considerar quando construírem seus planos de ensino. Outras estratégias foram criadas por nós para essa disciplina, considerando sempre que o aluno é fundamental nessa construção e que o aprendizado técnico científico também deve ser sensível. Sensível aos sentidos, ao outro, a profissão, à aprendizagem e principalmente a si mesmo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ESPERIDIÃO, E.;MUNARI, D.B. Holismo só na teoria: a trama de sentimentos do acadêmico de enfermagem sobre sua formação. Revista da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, v.38, n.3, p. 332-40, 2004.
MONTEIRO, A.R.M. Saúde mental como tema transversal no currículo de enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 56, n. 4, p. 420-423, 2003.
NASCIMENTO, M. A. de L. et al. Preparo do corpo pela equipe de enfermagem (reflexões a partir de objetos pessoais que identificam um ser humano). Enfermagem Brasil, v.2, n.3, p.167-170, 2003.
ROCHA, R.M. et al. Construindo um conhecimento sensível em saúde mental. Revista Brasileira de Enfermagem, v.56, n.4, p. 378-380, 2003.
1Enfermeira. Doutoranda em Enfermagem Psiquiátrica EERP/USP. Docente do Departamento de Enfermagem das Faculdades Federais Integradas de Diamantina. E-mail.mailto:amsreinaldo@hotmail.com. Endereço: Avenida Barão de Paraúna, 50 D, Bairro Presidente, CEP 39100-000, Diamantina, Minas Gerais.
Texto
original recebido em 31/01/2005
Publicação aceita em 29/04/2005