Revista Eletrônica de Enfermagem - Vol. 05, Num. 02, 2004 - ISSN 1518-1944
Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Goiás - Goiânia (GO - Brasil).
 
MOSTAZO, R.R.; KIRSCHBAUM, D.I.R. - O cuidado e o descuido no tratamento psiquiátrico nas representações sociais de usuários de um centro de atenção psicossocial. Revista Eletrônica de Enfermagem, v. 5 n. 2 p. 04 – 13, 2003. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/fen

 O CUIDADO E O DESCUIDO NO TRATAMENTO PSIQUIÁTRICO NAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE USUÁRIOS DE UM CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

THE CARED FOR/OR NOT PSYCHIATRIC TREATMENT SOCIAL REPRESENTATION THE INDIVIDUAL REPRESENTATION AT A PSYCHOSOCIAL CARE CENTER REGARDING PSYCHIATRIC TRETMENT
EL CUIDADO Y LO DESCUIDO EN EL TRATAMIENTO PSIQUIATRICO EN LAS REPRESENTACIONES SOCIALES DE USUARIOS DE UN CENTRO DE ATENCIÓN PSICOSSOCIAL

Rubiane Rodrigues MOSTAZO1, Débora Isane Ratner KIRSCHBAUM2

RESUMO: O objetivo do presente estudo é identificar e analisar as representações que usuários de um centro de atenção psicossocial constróem acerca do fenômeno tratamento psiquiátrico. Foram entrevistados 11 usuários do Centro de Atenção Psicossocial-CAPS/Estação. Os dados foram submetidos à análise referencial teórico-metodológico a teoria moscoviciana de representação social. Os temas, definidos a partir da análise dos dados, possibilitaram a estruturação de uma categoria. A categoria, tratar é ser cuidado/(des)cuidado, foi delineada a partir das ações de cuidado e de descuidos atribuídos ao tratamento psiquiátrico, com os seguintes temas: o cuidado no tratamento psiquiátrico, violência e instituição fechada.
PALAVRAS-CHAVES: Cuidado, Saúde Mental, Psicologia Social, Enfermagem

SUMMARY: The purpose of this study is to identify and analyze individual representations at a psychosocial care center regarding psychiatric treatment. Interviews were held with 11 individuals at the Psychosocial Care Center. The data was analyzed according to Bardin using the moscoviscian social representation theory as a methodological-theoretical reference. The data analysis helped define one categorie. The categorie, to be treated is to be cared for/or not – was outlined on the care attributed to psychiatric treatment such as care in psychiatric treatment violence and closed institutions.
KEYWORDS: Care, Mental Health, Social Psychology, Nursing

RESUMEN: La finalidad de este estudio és la indentificación y análisis de las representaciones que los usuarios del centro de atención psicossocial elaboran acerca del fenomeno tratamiento psiquiatrico. Fueram entrevistados 11 usuarios del Centro de Atenção – CAPS/Estação. Los datos fueran sometidos a la análisis de contenido,  teniendo como soporte referencial teorico-metodologico la teoria moscoviciana de representación social. Los temas, definidos a partir de análisis los dados, posibilitaran la estruturación de una categoría. La categoría, tratar és ser cuidado/ descuidado, se delineó a partir de las acciones de cuidados y descuidos atribuidos al tratamiento psiquiatrico, com los siguientes temas: cuidado em el tratamento psiquiatrico, violencia y instituición cerrada.
PALABRAS CLAVES: cuidado, salud mental, psicologia social, enfermería

INTRODUÇÃO

O presente estudo visou identificar e analisar as representações sociais que usuários de um centro de atenção psicossocial atribuem ao cuidado e ao descuido no tratamento psiquiátrico.

Acredita-se que o melhor entendimento da forma como estas pessoas compreendem o cuidado no tratamento psiquiátrico, possibilitará identificar elementos que possam orientar a busca de intervenções que objetive a maior adesão ao cuidado em saúde mental.

Entende-se porém que o sujeito constrói significados para o tratamento psiquiátrico de acordo com os sentidos ou símbolos atribuídos pela história social (MOSCOVICI, 1978). Desta forma, opto-se por iniciar este artigo com uma breve retrospectiva histórica e social das formas de tratamento do adoecimento psíquico, que vem se consolidando na decorrer dos séculos como conhecimento e prática na assistência ao portador de transtorno mental.

Segundo FOUCAULT (1987), até a Idade Média, a loucura era praticamente despercebida como doença e, quando notada, era vista como um fato cotidiano ou como uma dádiva divina, por meio de significações religiosas e mágicas. A loucura tinha na sociedade uma certa razão, um ingrediente natural que habitava as casas, os povoados e os castelos.

Os insanos, assim como os portadores de deficiência mental e os miseráveis, eram considerados parte da sociedade e o principal alvo da caridade dos mais abastados, que assim procuravam se redimir dos seus pecados. Apenas os casos mais extremados ou perigosos sofriam segregação social, e as recomendações terapêuticas eram: o contato com a natureza, viagens, repouso, passeio, retiro e o teatro, no qual se apresentava ao louco a comédia de sua própria loucura (FOUCAULT, 1979).

Ainda que houvesse o clamor por um tratamento mais digno aos alienados, e  conseqüentemente se fizesse uma seleção mais nítida das anomalias mentais, a idéia de que os loucos eram perigosos e inúteis permaneceu na sociedade até o fim do século XVIII. Tal concepção fazia com que essas pessoas fossem mantidas em casas de internamento,  levando uma vida de prisioneiros (PESSOTTI, 1996).

Em meados do século XIX, o hospital psiquiátrico se estabeleceu como um lugar de diagnóstico e de classificação, no qual as espécies de doenças eram divididas. O médico do hospital era ao mesmo tempo aquele que podia produzir a doença em sua verdade e submetê-la pelo poder que sua vontade exercia sobre o próprio doente, usando  procedimentos como isolamento, punições, pregações morais, disciplina rigorosa, trabalho obrigatório. Tal espaço tinha como função fazer do médico o mestre da loucura (AMARANTE, 1995).

Jean Esquirol e Philippe Pinel, médicos vanguardistas da produção francesa, classificaram as doenças mentais e estabeleceram um novo tratamento para os internos de hospitais mentais chamado “tratamento moral da insanidade” (KAPLAN et al., 1997).

No tratamento moral, como terapêutica, usava-se o afastamento do indivíduo das causas da enfermidade e das outras possíveis forças de oposição à cura.

Este tratamento perdeu sua força no final do século XIX. A psiquiatria assumiria uma posição positivista, centrada na medicina biológica.

Com o progresso no campo da medicina, a psiquiatria se restabelece por meio do modelo biomédico no tratamento das doenças mentais. Segundo CAPRA (1982), o modelo biomédico é resultado da influência do paradigma cartesiano no qual o corpo é identificado como uma máquina que pode ser analisada pelo estudo de suas partes.

No início do século XX, a psicanálise, representada por Sigmund Freud, contribuiu com uma nova forma de tratamento da doença mental. Acreditando que ela seria causada essencialmente por fatores psíquicos, Freud passou a dar um tratamento psicoterápico, no qual a palavra do paciente é a expressão dos conflitos conscientes e inconscientes. A psicanálise se consolidou como um método de investigação, uma técnica terapêutica e um conhecimento científico (HERRMANN, 1988).

Na segunda metade do século XX, a quimioterapia tornou-se uma importante área de pesquisa e prática do tratamento para a doença mental. Em 1949, foi descrito o tratamento da excitação maníaca com o lítio, considerado um momento importante na história da psicofarmacologia, que passa a ser o início de um processo farmacológico no tratamento da doença mental (KAPLAN et al., 1997).

O uso dos psicofármacos introduziu uma mudança no tratamento dos indivíduos portadores de transtornos mentais. “Foram os pacientes esquizofrênicos os primeiros a se beneficiarem dos efeitos das drogas antipsicóticas, também chamadas drogas antiesquizofrênicas ou neurolépticos” (ROLIM et al., 1997; p.93).

Após a Segunda Guerra, em diversos países da Europa e da América do Norte, um cenário de movimentos e reformas começaram a ser articulados nos asilos e nas instituições psiquiátricas. Surgiram experiências com a pretensão de reformular estes espaços, estendendo-se o serviço para a comunidade. Foram criados fundamentos de sustentação teórica e institucional para o tratamento da doença mental e, assim, as psiquiatrias reformuladas se organizaram por meio da seguinte ordenação: a psicoterapia institucional e as comunidades terapêuticas, a psiquiatria do setor e preventiva, e a antipsiquiatria e as experiências que surgiram a partir de Franco Basaglia (CAMPOS, 2000).

Toda trajetória dos movimentos teve como importância o fato de ser o ponto-de-partida para se chegar às reformas de desinstitucionalização, instituindo-se um processo de desmontagem e desconstrução do espaço manicomial e propondo a constituição de formas diferenciadas para o tratamento psiquiátrico ao portador de doença mental.

No Brasil, até a segunda metade do século XIX, não houve assistência médica específica aos doentes mentais. Quando não eram colocados nas prisões por perturbação da ordem pública, eram encarcerados nas celas especiais dos hospitais gerais. A inauguração do primeiro hospital psiquiátrico no Brasil ocorreu em 1852, no Rio de Janeiro. Ele recebeu o nome Hospício “D. Pedro II”, e foi dirigido exclusivamente pelos religiosos da Santa Casa de Misericórdia. Em 1886, um médico psiquiatra, pela primeira vez, ocupou a direção do Hospício (COSTA, 1980). 

Segundo MACHADO (1978), o tratamento atribuído aos seus internos tinha como objetivo dizimar a loucura. Para isso, alguns princípios iriam organizar o espaço e a vida asilar. O isolamento e a vigilância tornaram-se princípios primordiais no tratamento e na segurança dos alienados. A cura era possível por meio do isolamento, restringindo o tratamento ao espaço asilar. A condição de excluir o alienado da sociedade implicava a possibilidade de uma reinserção futura, depois de sua reabilitação através do tratamento oferecido pelo hospício

Partindo de uma política ideológica, outras propostas na assistência psiquiátrica se estabeleceram, entre as quais a implantação de colônias agrícolas para doentes mentais, que foram vistas como a solução para o tratamento psiquiátrico, recuperando-os pelo trabalho agrícola e devolvendo-os à comunidade como cidadãos úteis. Este retorno era feito diretamente ou, por via intermediária, pela adoção do ex-interno por famílias das redondezas (RESENDE, 1990). Para estas famílias, era oferecida uma remuneração do Estado e o paciente constituiria mão-de-obra gratuita para o trabalho. Este tipo de assistência foi chamado heterofamiliar e não se consolidou, na época, como estratégia de assistência.

Entre 1965 e 1970 houve um aumento significativo do número de doentes mentais nos hospitais da rede privada, resultando num elevado número de internações e no afluxo maciço dos indivíduos portadores de transtornos mentais para os hospitais privados (COSTA, 1980).

 Em meados da década de 70, começaram a surgir algumas experiências isoladas, contrapondo-se ao modelo asilar, inspiradas na comunidade terapêutica, na psicoterapia institucional e na psicoterapia preventiva, permitindo novas propostas na assistência psiquiátrica. Nessa época, foram observados discretos investimentos em comunidades terapêuticas, hospitais-dias e centros de saúde mental. Os investimentos, no entanto, foram esporádicos, pouco significativos e, alguns, pouco duradouros (AMARANTE, 1995).

Na segunda metade da década de 80, ocorreu no Brasil a implantação do processo de Reforma Psiquiátrica, que se consolidou norteada por acontecimentos marcantes, como o II Encontro Nacional dos Trabalhadores de Saúde Mental, em Bauru, SP, e que fez ressurgirem novos rumos para a saúde mental, “na busca de redescrever, reconstruir as relações entre a sociedade e seus loucos”. Assim, a preocupação deixou de estar centralizada apenas na instituição psiquiátrica e passou a abranger a condição humana, social, política e cultural do doente mental, abrindo espaço para um questionamento viável e crítico (BEZERRA, 1994; p.181).

Acredita-se que as explicações que o usuário do Centro de Atenção Psicossocial-CAPS/Estação dá sobre o cuidado e o descuidado atribuído ao tratamento psiquiátrico estão de acordo com o que ele percebe em sua vida cotidiana. O pensamento cotidiano torna-se a base de suas representações.

O intuito desta investigação limita-se a compreender como o cuidado e descuido no tratamento psiquiátrico é elaborado por indivíduos com histórico psiquiátrico vinculado ao Centro de Atenção Psicossocial-CAPS/Estação, partindo do pressuposto de que as ações dos indivíduos são orientadas pelas representações estabelecidas no seu cotidiano.

Considera-se que o melhor entendimento da forma como estas pessoas compreendem o cuidado e o descuido no tratamento psiquiátrico, possibilitará identificar elementos que possam orientar  a busca de intervenções que objetive a maior adesão ao cuidado em saúde mental.

OBJETIVO

Identificar e analisar as representações de cuidado e descuido no tratamento psiquiátrico, elaboradas por usuários de um Centro de Atenção Psicossocial.

ABORDAGEM METODOLOGIA

Reflexões acerca do referencial teórico-metodológico

O referencial teórico proposto para este estudo fundamentou-se na perspectiva teórica do conceito de representação social, tendo como principais autores Serge Moscovici e Denise Jodelet.

MOSCOVICI (1978) traduz a representação social como “uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre os indivíduos” (p.26).

Para JODELET (1988), a noção de representação social se constitui na maneira de interpretar e de pensar a realidade cotidiana, ou seja, uma forma de conhecimento social.

CAMPO DE PESQUISA

Local: O estudo foi realizado no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)-Estação, unidade pertencente ao Serviço de Saúde “Dr. Cândido Ferreira.”

Sujeitos: Participaram da presente pesquisa um grupo composto por 11 usuários do CAPS-Estação, de ambos os sexos, e que atendiam aos seguintes critérios: 1. Estar inserido no programa de atendimento do CAPS-Estação; 2. Estar em condições físicas e psíquicas[1] de participar das entrevistas; e 3. Haver consentimento tanto do paciente quanto de seu responsável.

Coleta de Dados: As entrevistas foram realizadas individualmente pela pesquisadora, seguindo o modelo de entrevista semi-estruturada. Organizou-se um roteiro com as principais questões abordadas na entrevista. 

Análise dos Dados: Optou-se por trabalhar com o material obtido através da análise do conteúdo segundo BARDIN (1977). A técnica de análise de dados utilizada na análise do conteúdo foi a da análise temática. Segundo MINAYO (1999), esta é uma das formas que melhor se adequa à investigação qualitativa das pesquisas em saúde.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS:

As representações que envolvem o “tratar é ser cuidado/(des)cuidado” possibilitaram a estruturação da categoria composta pelos temas: o cuidado no tratamento psiquiátrico e violência e instituição fechada, uma vez que esses temas indicam as ações de cuidado e descuido atribuídas ao tratamento psiquiátrico pelos sujeitos entrevistados.

a. O cuidado no tratamento psiquiátrico

O cuidado no tratamento psiquiátrico é percebido pelos usuários como a obtenção da medicação e também como suporte nas atividades da vida prática. Estas atividades incluem alimentação, higiene, repouso e organização do espaço doméstico. Tal qual a medicação, as atividades da vida prática também são mencionadas como cuidados decorrentes do tratamento psiquiátrico.

ELINEU: “Aqui no CAPS é muito bom o tratamento. Várias pessoas  cuidam da gente. É muito bom, pois essas pessoas cuidam muito bem. A gente toma banho todo dia aqui, se alimenta bem aqui, toma medicação nas horas certas, No fim de semana, leva medicação para casa, para tomar em casa, né?”

Segundo RODRIGUES et al. (2001), depois do início da existência do ser humano, o termo cuidar passou a fazer parte da vida cotidiana. O cuidar, o autocuidado e o cuidado permanecem como conceitos fundamentais para a sobrevivência do ser humano.

Desta forma, o cuidar é estabelecido como um ato indispensável, não só para uma vida humana, mas também para todo grupo social. O cuidar é uma função primordial na sobrevivência de todo ser vivo, conforme COLLIÉRE apud RODRIGUES (2001).

Portanto, a partir do momento em que a psiquiatria teve início e a loucura passou a ser considerada uma enfermidade, a concepção de que a loucura deveria ser cuidada por outras pessoas tornou-se predominante na história psiquiátrica (SZASZ, 1986).

Os depoimentos dos entrevistados mostram que a qualidade do tratamento psiquiátrico se estende a um cuidado diversificado, que envolve a medicação, o acolhimento, a alimentação e a participação do profissional na organização da vida pessoal. Para os entrevistados, o cuidado implica ser acompanhado no planejamento e na execução de ações do cotidiano.

Entretanto, o que se pode constatar nos depoimentos dos entrevistados é uma concepção de cuidado vinculada a uma ação prática e a um serviço social, pois ao tratamento psiquiátrico é destinada a função de prover as carências sociais básicas do dia-a-dia, ou seja, a sobrevivência diária.

OLINDA: “Porque aqui é tudo bom. Eu tomo o remédio, eu almoço aqui, eu tomo café e vou embora para minha casa.”
ALMIR: “Olha, a gente vem para o CAPS pensando em tomar café, comer um pouco, almoçar, tomar remédio, fumar.”

Para BASAGLIA (1979), quando o modelo manicomial é rejeitado, passa-se a mudar a vida básica do sujeito portador de transtorno mental, dando a ele uma situação de vida semelhante a dos demais cidadãos, isto é: comer, dormir, beber, de maneira e em momentos escolhidos pela própria pessoa, e não em função de regras institucionais, que não levam em conta os interesses do usuário, mas sim o interesse da rotina burocrática, o lucro dos hospitais, dentre outros. Com isso, possibilitam-lhe, por meio de uma mudança de vida, uma consciência de homem e, principalmente, uma consciência de vida sobre um novo modo de se relacionar com outras pessoas.

O rompimento com os manicômios determina a necessidade de respostas que possam se organizar a partir da reconstrução da cidadania plena, para assim, responder à melhora da qualidade do atendimento aos indivíduos portadores de transtornos mentais, por meio de uma assistência digna e eficiente (SARACENO, 1999).

Ao contrário disso, o que se pode identificar é que as representações de tratamento psiquiátrico para os entrevistados se constituem na manutenção para sua sobrevivência em condições básicas, onde o comer, beber e fumar tornam-se os elementos mais importantes e indicadores da qualidade da assistência psiquiátrica, reiterando, portanto, a representação correspondente ao que se esperava que ocorresse no tratamento realizado no modelo manicomial, onde predominavam regras institucionais para as condições básicas.  

O cuidado também está associado às qualidades pessoais dos profissionais que emergem das relações com os pacientes. Esse dado pode ser observado nas falas trazidas pelos entrevistados:

ANA: “Aqui no CAPS tem comida, tem apoio das pessoas, dos profissionais que recebem a gente bem. Eu tenho a certeza que o tratamento do CAPS é bom, sim.”

Das pessoas que trabalhavam diretamente com os alienados nos hospícios do  século XIX, eram exigidas condutas e características próprias para a execução do serviço — caracterização que casava a severidade com a doçura, a coragem com a prudência, discrição e caridade e uma esfera intelectual para entender os doentes (MACHADO, 1978).

Esta concepção sofreu poucas mudanças na representação que os usuários apresentam. Como os usuários têm uma representação de tratamento psiquiátrico como sinônimo de ser cuidado por outrem, no sentido de ser tutelado e ter sua sobrevivência diária assistida ou até garantida por outras pessoas, no caso, os profissionais responsáveis por seu tratamento, é de se esperar que eles construam também uma representação de quem sejam e como agem estes profissionais. De fato, pelo que se depreende dos depoimentos fica claro que a representação que têm dos profissionais que tratam deles é de pessoas capazes de prover todas as suas necessidades, tratá-los com respeito e consideração, e também como profissionais que os consideram cidadãos, que possuem direitos e que devem ser respeitados como tais.   

Segundo BRUM et al. (1983), a equipe profissional é fator de grande influência na recuperação e reabilitação do indivíduo portador de transtorno mental. O modo de seu funcionamento e sua integração são fatores importantes para o tratamento.

Outra forma assumida pela representação de cuidado no tratamento psiquiátrico pelos entrevistados estende-se ao modelo assistencial. Os profissionais aparecem como substitutos nas funções de cuidados anteriormente atribuídas aos familiares. Esta questão aparece claramente no seguinte depoimento:

ORLANDO: “Eu gosto daqui, pois minha mãe morreu, meu pai é doente, e minha irmã é quem toma conta de meu pai. Minhas irmãs trabalham, não tendo tempo para cuidar de mim. Eu espero me integrar aqui dentro.”

A subsistência aparece como uma preocupação dos entrevistados que têm no CAPS um suporte para a solução dessa questão. Dessa maneira, o “assistencialismo” mantém-se novamente presente nos relatos que se seguem:

ALMIR: “Minha referência que vai arrumar um lugar para eu ficar (...) são minhas colegas. Elas me dão remedinho, sabem que eu sou pobrezinho (...) Quando eu estava em outra vida, em outro tratamento, eu não sabia o que era remédio, comer, dormir, beber, que se tem aqui no tratamento do CAPS.”

A imagem de um tratamento psiquiátrico que desempenhe a função de auxílio,  proteção e cuidado efetivo é apontada pelos entrevistados. Para eles, a representação de tratamento psiquiátrico se mantém ancorada na assistência psiquiátrica manicomial, na qual o “assistencialismo” se estabeleceu como característica predominante no funcionamento deste modelo de assistência psiquiátrica.

Segundo BEZERRA (1992), as primeiras instituições para alienados no Brasil surgiram diante de uma reivindicação social na qual se clamava pela ordem e pela paz no meio social. Desde então, foi enfatizada a necessidade de lhes dar assistência adequada por meio de práticas e teorias exercidas na Europa. Para a execução deste tipo de assistência, foram propostos requisitos como: remover, excluir, abrigar, alimentar, vestir e tratar — uma inserção totalitária do alienado nos hospícios.     

O cuidado concedido pelo tratamento psiquiátrico no CAPS está representado pela liberdade e pela possibilidade de ser tratado com liberdade e poder contar com o tratamento, quando necessário. Isso implica uma satisfação pessoal para com o tratamento psiquiátrico.

ANA: “O CAPS é uma corrente do bem. A gente tem a liberdade de ir e vir. Hoje em dia aqui no CAPS a gente se trata com liberdade.”

O direito em receber tratamento psiquiátrico com liberdade e com a confiança de ser atendido quando necessário mostram que, para os usuários, o cuidado está representado pela condição de cidadão, a qual lhe permite receber tratamento apenas mediante a necessidade e sem exclusão social.

Para AMARANTE (1996), um novo contexto de cidadania ao portador de transtorno mental se concretiza no momento em que se pode dar-lhes o real direito ao cuidado. Não de ser excluído, violentado, discriminado, mas de receber ajuda em seu sofrimento e permitir que sejam sujeitos de desejos e projetos. 

O cuidado no tratamento psiquiátrico se constitui para os entrevistados por meio da obtenção de medicação, pelo cuidado da vida prática, pelo cuidado assistencial e pelo direito de ser cuidado com liberdade. O autocuidado também é mencionado pelas usuárias do CAPS. Uma das usuárias comenta que no CAPS aprendeu a observar e a cuidar de suas alterações de humor através de uma atividade terapêutica oferecida pelo tratamento psiquiátrico.

NANCIRA: “A ginástica harmônica traz condições para você lidar com sua depressão, reconhecer quando você está caindo, né?”

Por sua vez, outra entrevistada diz que procura administrar sozinha sua medicação, admitindo estar apta para este cuidado. Para ela, a autonomia no uso da medicação lhe permite o autocuidado.

MARILDA: “Eu tomo meu remédio sozinha porque já acostumei, tem vez quando eu tô mal, quando eu quero aprender, eu presto a  atenção e vou contando para ver como está o remédio para eu tomar”.

OREM (1991) define o autocuidado como a prática de atividades que os indivíduos iniciam e executam em seu próprio benefício, para a manutenção da vida, da saúde e do bem-estar.

Sobre essa questão, PEIXOTO (1996) alega ser fundamental que o indivíduo tenha o direito de exercer responsabilidades sobre seu tratamento, numa relação cooperativa com os profissionais de saúde, através da integração e participação em seu cuidado. 

O que se pode perceber nas falas dos entrevistados acima é que a representação do autocuidado no tratamento psiquiátrico encontra-se presente, destinando-se aos cuidados pessoais que resultam em uma maior interação com o tratamento.  Conclui-se que as representações atribuídas ao cuidado se estabelecem em ações de cuidados diversificados, voltados para a vida cotidiana.

b. Violência e instituição fechada

O poder destruidor e institucionalizante em todos os níveis da organização manicomial aplica-se unicamente àqueles que não têm outra alternativa que não o hospital psiquiátrico (BASAGLIA, 1985).

Portanto, o isolamento, a falta de liberdade e a falta de higiene se mantêm ainda como um marco no cuidado psiquiátrico institucional, compatível com o modelo manicomial, como se depreende do que é dito pelos entrevistados. Nos conjuntos dos relatos que compõem este tema, foi observada a semelhança nas narrativas sobre o tratamento psiquiátrico hospitalar vivenciado por eles. Como pode-se identificar nos depoimentos abaixo descritos:

ANA: “Eu cheguei a agredir a enfermeira em um dos hospitais que eu estive, e daí eu usei camisa de força ... Todas as portas eram fechadas, chaveadas, num espaço aberto ao relento, com chuva e com sol, no tempo que fosse. As pessoas tiravam as roupas, um ambiente horrível, pois as pessoas faziam cocô. Chegaram a comer o cocô na minha frente.

A reclusão de pessoas portadoras de transtornos mentais teve, no curso da história, várias modalidades. A mais antiga era de recolhê-los junto com outras minorias sociais, desempenhando, assim, a função de abrigo ou recolhimento. Posteriormente, apareceram as instituições hospitalares que destinavam espaços ou edifícios inteiros exclusivamente ao recolhimento de alienados. Nas primeiras décadas do século XIX, o acolhimento aos doentes mentais se caracterizou pelo tratamento médico sistemático e especializado. As condições de vida dos alienados nos hospícios eram de reclusão e condições sanitárias extremamente precárias e sob uma disciplina brutal (PESSOTTI, 1996).

Como remete FOUCAULT (1987), ao final do século XVIII, os insanos eram tratados como prisioneiros. Normalmente, eram acorrentados às camas pelos tornozelos e também amarrados em celas.

Verifica-se que a utilização de métodos agressivos punitivos e impositivos no tratamento psiquiátrico se mostram presentes nos depoimentos dos entrevistados. Para eles, o tratamento nos hospitais psiquiátricos revelam a impossibilidade de um questionamento e de uma intervenção na forma de assistência, e na predominância do uso da força e do poder.

ALMIR: “Naqueles hospitais onde eu tinha aquela crise, onde eu passava 30 dias num quarto só tomando injeção. Chorava e pensava que nunca mais eu ia sair daquele hospital.”

Segundo BASAGLIA (1985), um hábito dos hospitais psiquiátricos era  concentrar os pacientes em grandes salas de onde ninguém poderia sair, nem mesmo para ir aos sanitários. Muitos dos doentes acabavam fazendo suas necessidades fisiológicas onde eram mantidos. Devido à falta de espaço, um mesmo leito era dividido entre dois pacientes, aproveitando-se das condições físicas e psíquicas dos mesmos. 

Verifica-se, porém, que as representações de violência e de exclusão no tratamento psiquiátrico hospitalar se mantêm fortemente presentes no universo cotidiano dos  entrevistados, pelo conhecimento de uma realidade vinculada a um contexto social e histórico.

Mesmo sem nunca ter passado pela experiência da internação, a representação manifestada na fala de uma das entrevistadas está próxima das representações dos demais entrevistados. Tal relato mostra que a subordinação do interno, os métodos agressivos e indevidos estão em consonância com as demais descrições.

NANCIRA: “Eu não cheguei a ser internada, mas já tive contato com pessoas que já foram internadas em hospitais psiquiátricos. Visitei um hospital psiquiátrico várias vezes e realmente não é dos melhores. A gente sabe que tem que restringir o paciente, mas, antigamente, eu sei que a coisa era muito pior. Havia choque. Naquelas salinhas, a pessoa tinha que ficar o tempo todo escondida. Eu tenho colegas que tem marcas no pulso pela restrição indevida, né?”

Deve-se atentar que as representações de tratamento psiquiátrico em instituições fechadas são descritas de forma unânime nas falas dos entrevistados, não trazendo benefícios, sendo apenas precursora dos maus-tratos e da indiferença. Este tipo de assistência não possibilitou para os sujeitos entrevistados nem a cura, nem a melhora, restando as representações negativas mencionadas por eles.

ORLANDO: “A gente tinha que ficar no meio das fezes. Eu fiquei dois dias nesse quarto e duas vezes por volta de 1980. Eu acho que essas internações não me ajudaram.”

O que se pode sintetizar desta categoria é que a violência e a exclusão mantiveram-se presentes no universo cotidiano como manifestações constituintes das representações que os entrevistados têm de tratamento psiquiátrico em hospital psiquiátrico. Observou-se, ainda,  que o cuidado no tratamento se consolida por meio de vertentes diversificadas, da representação clássica do cuidado à autonomia e ao autocuidado, para assim constituir-se em ações reabilitadoras nas representações dos usuários.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho tinha como objetivo identificar e analisar as representações de cuidado e descuido no tratamento psiquiátrica elaboradas por usuários de um centro de atenção psicossocial. Para alcançá-lo foi feito uma pesquisa qualitativa. Com base nos dados coletados conclui-se que as representações de tratamento psiquiátrico estão fortemente ao médico como precursor do tratamento. A este profissional é dada a responsabilidade de medicar.

A equipe de enfermagem é representada pela função de cuidador, e ao psicólogo é destinado o papel de ouvir e conversar. Instituições fechadas e violência no tratamento são apontados nos depoimentos como fatores presentes na representação de tratamento psiquiátrico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARANTE, P. (org ). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica  no Brasil. Rio de Janeiro: SDE / ENSP, 1995.

_______________ O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996.

BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.

BASAGLIA, F. (Org) A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de janeiro: Graal, 1985.

______________ A psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática. São Paulo: Brasil Debates, 1979.

BEZERRA Jr., B.  De médico, de louco e de todo mundo um pouco: o campo psiquiátrico no Brasil dos anos 80.  In:___. Saúde e sociedade no Brasil dos anos 80. Rio de Janeiro: Relume - Dumará, 1994.

____________Considerações sobre terapêuticas ambulatoriais em saúde mental. In:___ . Cidadania e loucura: políticas de saúde mental no  Brasil. Petrópolis: Vozes-Abrasco, 1992. cap.IV. p. 133-170.

BRUM, M. F. A. et al. A equipe de reabilitação. In:___. Psiquiatria e Saúde Mental, São Paulo: Autores Associados, 1983. cap. 6, p.397- 403.

CAMPOS, B. C. F. O modelo as reforma psiquiátrica brasileira e as modelagens de São Paulo, Campinas e Santos. Campinas, 2000. 177f. Tese (Doutorado em Saúde Publica) – Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas.

CAPRA, F. O ponto de mutação. 6ª ed., São Paulo: Cutrix, 1982.

COSTA, J. F. História da Psiquiatria no Brasil. 3ª ed., Rio de Janeiro: Campos, 1980.

FOUCAULT,  M. História da loucura na Idade Clássica. 2ª ed., São Paulo: Perspectiva, 1987.

____________ Microfísica do Poder. 10ª ed., Rio de janeiro: Graal, 1979.  

JODELET, D. Representação Social : Fenômenos, Conceitos e Teoria. Rio de Janeiro: 1988. (mimeografado).

HERRMANN, F. O que é psicanálise. 8. ed., São Paulo: Brasiliense, 1988.

KAPLAN, H. et al. Compêndio de Psiquiatria: ciências do comportamento e psiquiatria clínica. 7ª ed., Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

MACHADO, R. et al. Da (n)ação da norma. Medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 6ª ed., São Paulo: Hucitec, 1999.

MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

OREM, D. E. Nursing: concepts of practice. St. Louis: Mosby-Year Book, 1991, p.117-144.

PEIXOTO, M. R. B., Divergências e convergências entre um modelo de assistência de enfermagem a pacientes diabéticos e a teoria do déficit de autocuidado em Orem. Revista da Escola de Enfermagem da USP. V.30, n.1, p.1-13, abril 1996.

PESSOTTI, I. O século dos manicômios. São Paulo: Ed. 34, 1996.

PITTA, A. O que é Reabilitação Psicossocial no Brasil, hoje? In:___. Reabilitação Psicossocial no Brasil. São Paulo, Hucitec, p. 19-26,1996.

RESENDE, H.  Política de saúde mental no Brasil: uma visão histórica. In:___.  Cidadania e loucura: políticas de saúde mental no  Brasil. Petrópolis: Vozes-Abrasco, 1992. cap. I, p. 16-69.

RODRIGUES, et al. Representaciones sociales del cuidado del anciano en trabajadores de salud en un ancianato. Revista Latino-americana de enfermagem, Ribeirão Preto, v.9, n.1, p.7-12,  janeiro 2001.

ROLIM, M. A. et al. Os cuidados de enfermagem no tratamento farmacológico dos transtornos mentais no Brasil. In:____. O uso racional de medicamentos psiquiátricos. Rio de Janeiro: Divisão de saúde mental e prevenção de toxicomanias. Organização Mundial da Saúde, 1997, cap. 11, p. 93-110.

SARACENO, B. Libertando identidades. Da reabilitação psicossociais à cidadania possível. Rio de Janeiro: Te Corá, 1999.

SZASZ, S. T. O mito da doença mental. São Paulo: Círculo do livro, 1974.

AUTORAS

1Psicóloga. Mestre pelo Departamento de Enfermagem da Faculdade de Ciências Médicas – UNICAMP. Dentro da linha de pesquisa “Processo de Cuidar em Saúde e Enfermagem”. E-mail: mostazo@ bol.com.br .
2 Enfermeira. Professora Assistente Doutor do Departamento de Enfermagem da FCM/UNICAMP. Doutora em Saúde Mental. E-mail: isane@uol.com.br; isane@fcm.unicamp.br


[1] Foram excluídos os usuários em crise, como critério para a entrevista.  

Topo