KANTORSKI, L. P.; PITIÁ, A. C. A.; MIRON, V. L. A reforma psiquiátrica nas publicações da revista “Saúde em Debate” entre 1985 e 1995. Revista Eletrônica de Enfermagem, v.4, n.2, p. 03 – 09, 2002. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/fen
A Reforma Psiquiátrica nas Publicações da Revista “Saúde em Debate” entre 1985 e 1995
THE pSYCHIATRIC rEFORM IN THE “SAÚDE EM DEBATE” MAGAZINE REPORTS through 1985 - 1995
Luciane Prado Kantorski, Ana Celeste de Araújo Pitiá, Vera Lúcia Miron *
RESUMO:
O trabalho tem por objetivo analisar os artigos relacionados
ao tema da reforma psiquiátrica publicados na Revista Saúde em Debate de 1985
a 1995. Compilaram-se 17 textos, examinados em dois blocos: 1989-1991 e 1992-1994,
conforme seu eixo principal: modelo assistencial, cidadania e legislação. Observou-se
que a temática é relativamente recente na referida Revista em consonância com
a trajetória do processo de reforma psiquiátrica. A heterogeneidade das propostas
de reforma, compreensível pela diversidade regional brasileira e pela multiplicidade
de interesses em jogo, se expressa nas publicações. Os textos analisados realizam
reflexões teóricas a partir de experiências concretas direcionadas ao processo
de reforma.
PALAVRAS
CHAVE: Enfermagem; Psiquiatria; Saúde Mental; Políticas de Saúde.
ABSTRACT: In
this paper we make a study of related articles about the Brazilian psychiatric
reform published in the Saúde em Debate Magazine from february/1985 to june/1995.
17 texts were examined in two blocks: 1989-1991 and 1992-1994, according to
their main axis: assistance model, citizenship and paw. It was observed that
this theme is relatively recent in the magazine, in consonance with the history
of the psychiatric reform process. The heterogeneity of the reform proposes,
that is comprehensible due the Brazilian regional diversity and several interests
at take, express it in the publications. The analyzed texts make theoretical
reflections from concrete experiences guided to the reform process.
KEY WORDS: Nursing;
Psychiatry; Mental Health, Health Policy.
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por objetivo analisar os artigos relacionados ao tema da reforma psiquiátrica, publicados na Revista Saúde em Debate no período de fevereiro de 1985 a junho de 1995.
O interesse pelo tema originou-se de nossa vivência como enfermeiras psiquiátricas e docentes de Enfermagem, pela necessidade de refletir sobre a assistência à loucura no Brasil e compreender os caminhos que trilhados, especialmente nos últimos anos, em que há, novamente, tentativas de transformação do modelo assistencial.
Optamos pelo exame da referida revista por ser ela uma das mais importantes publicações do campo da saúde no Brasil, tendo se constituído a partir do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES), espaço importante de reflexão acadêmica, de militância política e de vanguarda de propostas de transformação do modelo assistencial de saúde. Como seu órgão oficial de divulgação, a revista Saúde em Debate representa um dos fóruns que expressa os pensamentos mais avançados do campo da saúde coletiva, do qual faz parte a saúde mental.
Compartilhamos da preocupação de PERBALT (1990) sobre o significado concreto da utopia de se construir uma sociedade em que os loucos não estariam mais nos asilos, discriminados e segregados. O autor questiona se faremos com os loucos o que é feito com os índios e homossexuais em que, ao definir direitos e identidades, os tornamos inofensivos e esvaziados da capacidade de subverter as regras e os códigos, como se o reconhecimento da diferença significasse homogeneização social. Desta forma, o autor reafirma que não basta destruir os manicômios, acolher os loucos, ou até “relativizar a noção de loucura compreendendo seus determinantes psicossociais”. Entendemos que é necessário recusar este império da razão, ou seja, criar no exercício do pensar e das práticas sociais novas formas de se relacionar com o acaso, com o desconhecido. Compreendemos que a construção da reforma psiquiátrica pode proporcionar o exercício teórico-prático de lidar com o desconhecido.
BARROS (1994), ao abordar a desinstitucionalização, afirma que esta noção delimita-se no interior dos processos de reestruturação sócio-institucionais das sociedades européias e americanas. A autora diferencia a experiência dos EUA, França e Inglaterra - onde se deslocou a ênfase do hospital visando a enfraquecê-lo - e a da Itália, onde se optou por desmontar a estrutura manicomial a partir do seu interior. Remarca que as transformações são necessárias no sentido de estabelecer a relação com a pessoa que sofre, gerar serviços sem critérios generalizadores, perceber que a doença não totaliza a pessoa e que todo gesto pode ser compreendido, tem significado comunicativo e faz parte da vida do indivíduo.
Assinalamos que o modelo clínico na realidade brasileira expandiu-se e contou com importante impulso durante o processo de industrialização nos anos 70, quando ocorreu uma grande expansão da indústria farmacêutica e de equipamentos médico-hospitalares. BRAGA (1978) evidencia que de 1961 a 1971 a indústria de equipamentos médicos apresentou um percentual de crescimento de 599,9% na importação de produtos. Chamamos a atenção para o fato de que, enquanto o mundo voltava-se para a desospitalização, o Brasil, sob o cenário do golpe militar, investia na extensão dos cuidados psiquiátricos através do aumento de leitos e da multiplicação da rede privada contratada.
CESARINO (1989), ao tratar o fenômeno que ocorreu na década de 60-70, de privilegiamento do setor privado, com predominância da lógica do mercado para o desenvolvimento, salienta que no Brasil, em 1965, eram 110 os hospitais psiquiátricos; em 1970 eram 178 e, em 1978, havia 351 hospitais psiquiátricos conveniados, sendo que cerca de 90% dos recursos do INAMPS eram gastos na compra de leitos privados.
Consideramos que a reforma psiquiátrica trata de repensar o modelo assistencial, o fazer dos trabalhadores de saúde mental, as instituições jurídicas, a relação da sociedade como um todo com o indivíduo em sofrimento psíquico e suas demandas. Neste sentido, esperamos que nosso estudo possa contribuir para a presente discussão.
O presente estudo consiste numa pesquisa bibliográfica, exploratória, realizada em um periódico específico – Revista Saúde em Debate, e em um recorte temporal de 10 anos – período de 1985 a 1995. Os artigos foram selecionados tendo como referência a temática reforma psiquiátrica e agrupados conforme seu conteúdo. Os dados discutidos neste texto foram obtidos a partir de 17 artigos publicados na referida Revista.
Compilamos 17 textos publicados no período, conforme exposto no Quadro 1.
Quadro 1 - Demonstrativo dos trabalhos analisados no período fevereiro de 1985 a junho de 1995 sobre o tema reforma psiquiátrica - Revista Saúde em Debate.
ANO DE PUBLICAÇÃO |
Nº REVISTA |
Nº E TIPO DE TEXTOS PUBLICADOS |
1989 |
26 |
1 – apresentação de proposta de governo |
1990 |
29 |
1 – resenha |
1991 |
Divulgação 4 |
4 - artigos |
1992 |
35 36 37 |
2 - artigos 1 - artigos 4 - artigos |
1993 |
40 |
2 - artigos |
1994 |
43 45 |
1 - apresentação de proposta de governo 1 - artigo |
Uma leitura atenta desse material demonstrou que somente a partir de 1992 o tema da reforma psiquiátrica aparece como objeto de artigos de reflexão teórica nos números regulares, pois anteriormente o que existe são textos que, ou pertencem a um número especial, ou não constituem artigos daquela natureza.
Optamos por analisar os textos publicados dividindo-os em dois blocos: o primeiro, referente aos anos de 1989-1991 e o segundo, aos anos de 1992-1994. Para o primeiro bloco, optamos pela análise individual de cada texto. Já os artigos do segundo bloco foram agrupados conforme sua temática principal, qual seja: modelo assistencial, cidadania e legislação.
ANÁLISE DOS DADOS
A primeira referência à reforma psiquiátrica aparece em julho de 1989, como um item especial que trata das eleições presidenciais, intitulado “Plataforma de Saúde: Confira seus Candidatos”. O tema da reforma está incluído somente nos programas dos candidatos Luís Inácio Lula da Silva, da Frente Brasil Popular e Roberto Freire, do Partido Comunista Brasileiro. O programa de Lula trata basicamente do modelo assistencial, propondo a superação do modelo asilar, investimentos em serviços alternativos, com o objetivo de conservar o doente mental em seu meio. A cidadania é abordada sob o prisma da segregação/discriminação do indivíduo após o diagnóstico psiquiátrico. O programa de Roberto Freire traz, além destes aspectos, a questão da legislação - da normalização, da internação compulsória e da extinção dos manicômios judiciais (PLATAFORMA DE SAÚDE, 1986).
A adesão de candidatos presidenciais à reforma psiquiátrica, explicitada em suas plataformas de governo, nos demonstra em que medida esse processo articula-se aos movimentos gerais da sociedade. Mostra-nos ainda a existência de um intenso movimento social na saúde, que viabilizou a inclusão destas propostas nas plataformas, o que denota capacidade de organização da sociedade civil.
Chamamos a atenção para o fato de que 1989 foi um período de muita discussão frente à possibilidade de eleger diretamente, depois de 30 anos, um Presidente da República. No campo específico da Saúde Mental temos dois marcos importantes nesta época, a saber: a intervenção realizada pela Prefeitura de Santos na Casa de Saúde Anchieta - único hospital psiquiátrico privado da região e que representava o universo manicomial - e a apresentação no Congresso Nacional do projeto de Lei no. 3657/89, de autoria do deputado Paulo Delgado (PT - MG), que prevê a reestruturação da assistência psiquiátrica brasileira, com a substituição progressiva dos manicômios por “novos dispositivos de tratamento e acolhimento” (BEZERRA JR, 1994).
Em junho de 1990 é publicada uma resenha, escrita por AMARANTE (1990), do livro Desinstitucionalização, de Franco Rotelli et al, em que são abordadas as raízes da Psiquiatria Democrática Italiana, o MANIFESTO DE BOLOGNA (1973) e a Lei 180 de 1978. A partir deste movimento emerge a necessidade de negar a instituição, o que significa romper com o paradigma clínico, com a relação linear de causa-efeito na análise da constituição da loucura e com a concepção da doença enquanto objeto de periculosidade. Observamos que esta negação se traduz na necessidade de inventar uma nova instituição, em que a loucura é considerada um objeto complexo, a liberdade é terapêutica e se busca a validação das subjetividades, o resgate da cidadania e a reconstrução do valor social do louco.
O fato da segunda publicação ser uma resenha de um livro que reflete sobre a reforma psiquiátrica italiana, nos demonstra como este referencial tem influenciado o processo no Brasil. A ausência de publicações sobre as experiências brasileiras (podemos citar as experiências desenvolvidas na Nossa Casa, em São Lourenço do Sul (RS); a intervenção na Casa de Saúde Anchieta em Santos (SP); a criação e implantação do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), em São Paulo (SP), entre outros), que já vinham sendo desenvolvidas, justificamos nesse momento pela necessidade de instrumentalizar-se, trabalhar conflitos e consolidar esse processo de mudanças. Estamos falando do tempo necessário dentro de um processo histórico para que a reflexão teórica sistematizada das práticas sociais seja elaborada.
Temos então, em julho de 1991, a publicação, em edição especial, na Divulgação 4 - em Saúde para Debate, de uma coletânea de quatro artigos, precedidas de uma breve apresentação dos mesmos, por conta do I Encontro Ítalo-Brasileiro de Saúde, realizado em 1989. Em meio à discussão da reforma sanitária, um capítulo é especialmente dedicado à Saúde Mental: a Reforma Psiquiátrica em Questão. Dos quatro artigos, um discute o processo italiano - especialmente no que se refere à Lei 180 - e os problemas na sua aplicação; outro, o processo de desinstitucionalização no Brasil, e os outros dois a sua trajetória no Rio Grande do Sul e na Bahia.
ROTELLI (1991), ao tratar da Lei 180 da reforma psiquiátrica italiana, resgata a crítica realizada nos anos 60 ao saber, ao poder e à operacionalidade da psiquiatria, que legitimou a exclusão de milhões de cidadãos, geralmente oriundos de classes menos favorecidas. Expõe o conteúdo da Lei 180, que revolucionou a legislação psiquiátrica, até então inspirada na Lei francesa de 1838, que uniformizava a custódia e a privação dos direitos de cidadania do doente mental. Afirma que, na prática, nos últimos vinte anos, todos os países ocidentais tentaram reformar seus sistemas psiquiátricos, criando serviços externos ao manicômio, sem que melhorassem a assistência psiquiátrica ou reduzissem a população internada. O autor afirma que a Lei 180, apesar de aprovada em 1978, somente onze anos depois mereceu investimentos governamentais.
As reflexões sobre a experiência italiana nos demonstram que somente a lei não é capaz de modificar a estrutura psiquiátrica existente, e nos remete para questões de poder implicadas nesta luta e nas divergências de interesses econômicos e políticos envolvidas. Refletimos então sobre a importância das mobilizações populares, da construção de serviços alternativos e de um trabalho cultural necessário junto à população, no sentido de desmistificar a loucura.
Em seu artigo, FERRAZ (1991) nos traz esta discussão para a realidade brasileira, evidenciando que, enquanto o mundo voltava-se para a desospitalização, o Brasil vivia o golpe militar, a política de unificação dos institutos e conseqüente criação do Instituto Nacional de Previdência Social. Nesta época, ocorreram investimentos na extensão dos cuidados psiquiátricos, através do aumento de leitos e da multiplicação da rede privada contratada. O autor enfatiza que, apesar disto, o movimento de resistência organizou-se em torno da modificação da legislação psiquiátrica, promoveu discussões e realizou experiências, como a de Santos. Alguns movimentos governamentais, como Prev-Saúde, CONASP e SUDS promoveram mudanças tímidas, sem dar conta de especificidades da saúde mental, tais como: a população permanece divorciada da opinião dos técnicos; o setor lucrativo tem grande acesso ao governo; várias residências médicas estão centradas somente em hospitais; dificuldades econômicas gerais e produção de desassistidos sociais, que encontram no hospital um albergue.
A discussão que FERRAZ (1991) traz do contexto brasileiro é extremamente importante, visto que, desde os anos 60 e, especialmente 70, o modelo de desenvolvimento econômico associado ao capital estrangeiro encaminha o Estado brasileiro a fomentar a industrialização e a importação de tecnologias. A indústria de equipamentos médicos, de 1961 a 1971, apresentou um percentual de crescimento de 599,9% na importação de produtos (BRAGA, 1978). Ao lado disso, os gastos da União com saúde sofreram uma queda de 3,42% do PIB em 1963 para 1,07% em 1973 (SANTOS, 1979).
O Estado, além de reduzir seus gastos com saúde, os canalizou para o complexo médico-hospitalar, o que impulsionou também um grande comércio em torno da loucura. Esse recuo do Estado no investimento em serviços próprios impulsionou a expansão da rede privada, subsidiada por recursos públicos.
No que se refere aos paradigmas orientadores das práticas de saúde, as décadas de 60 e 70 apresentaram uma adesão aos pressupostos do preventivismo. Ainda que possamos considerar que esse paradigma apontasse caminhos para mudanças no setor saúde, no campo da saúde mental não investia na substituição definitiva do manicômio enquanto espaço de tratamento, apostando em serviços externos, complementares ao hospital psiquiátrico, que seria um lugar de referência transitória ao doente mental.
FAGUNDES (1991) trabalha em seu artigo a transformação das práticas psiquiátricas no Rio Grande do Sul, resgatando que o início do cuidado psiquiátrico sistemático, nesse estado, ocorreu com a criação do Hospício São Pedro, inaugurado em 1884. Nas décadas de 60 e 70 surgiram as influências das concepções comunitárias e, depois, da atenção primária à saúde, para orientação de novas práticas. A autora fala da política do Programa de Atenção Integral à Saúde Mental, da Secretaria Estadual de Saúde e Meio-Ambiente, pautada nos preceitos do Sistema Único de Saúde, na Constituição Federal, na I Conferência Nacional de Saúde Mental (1987) e no referencial do planejamento estratégico, fazendo uma reflexão acerca da reforma psiquiátrica enquanto revolucionária, por tratar da “produção da cultura”. A autora define o trabalho até então realizado como “um processo de mobilização”, cabendo agora o desafio da consolidação e continuidade deste processo.
Entendemos que é indispensável compreender os avanços e retrocessos do movimento de reforma psiquiátrica enquanto processo permeado por conflitos e relações de poder, pois o paradigma que trata da produção da cultura, ao qual a autora se refere e do qual compartilhamos, diz respeito à criação de novos espaços, novos sujeitos, novas formas de compreender e conviver com os diferentes.
COUTINHO (1991), encerra esta coletânea abordando a situação do cuidado psiquiátrico na Bahia, relatando sua experiência a partir de 1987, com a criação do Grupo Especial de Saúde Mental (GESAM) e falando sobre o processo de democratização e suas dificuldades. O autor expressa as forças articuladoras e as contradições internas que levaram a uma divisão entre a ampliação da rede ambulatorial e a interiorização do cuidado psiquiátrico ou a opção feita em “apagar incêndios” sem, no entanto, desacreditar da necessidade de criação de novas experiências.
Apontamos como característica importante, nos quatro trabalhos, a preocupação em trazer a especificidade local em contraste com uma experiência de repercussão mundial. Consideramos que a reflexão teórica presente na produção é ainda preliminar e, no decorrer da análise das publicações, podemos observar um maior aprofundamento do conteúdo da desinstitucionalização.
A partir de 1992 observamos uma maior regularidade na publicação acerca da temática, que aparece, neste momento, nos números regulares da revista. Os próximos artigos foram analisados em bloco, excetuando-se o documento publicado em junho de 1994.
Este documento trata do Programa de Saúde dos quatro candidatos à presidência da república em que a questão da reforma psiquiátrica aparece somente no programa da Frente Brasil Popular que tem como candidato Luís Inácio Lula da Silva. Nesta ocasião, diferentemente das eleições de 1989, em que essa questão já vinha contemplada em seu programa, a questão aparece de forma mais explícita e madura, colocando a função de exclusão e o caráter não terapêutico das instituições psiquiátricas. A proposta sugere a extinção progressiva dos manicômios, com desativação de, no mínimo 20% dos leitos psiquiátricos ao ano; a proibição de construção de novos hospitais psiquiátricos e a reorientação dos recursos para os serviços alternativos, criados conforme as realidades epidemiológicas (DOCUMENTO, 1994).
Observamos que os pontos abordados no programa referem-se basicamente ao modelo assistencial, contemplando a questão da cidadania de forma mais efetiva ao defender a fiscalização e punição de locais geradores de sofrimento psíquico (inclusive muitos ambientes de trabalho), ao prever ações educativas e comunicativas para produzir uma nova cultura anti-manicomial e ao mencionar a redemocratização de instâncias de participação e viabilização da reforma.
Destacamos em seu conteúdo a preocupação em estimular ações locais integradas, via SUS, para a atenção à dependência ao álcool e drogas, inclusive com a proibição de internação destes dependentes nos hospitais psiquiátricos. Isto, ao nosso ver, representa um avanço na discussão do modelo assistencial e no conceito de saúde mental, pois permite abarcar de modo mais apropriado a complexidade destes fenômenos.
Os dez artigos seguintes tratam dos temas: modelo assistencial - CAMPOS (1992) e SOUSA CAMPOS (1992), legislação - DELGADO (1992), QUINTO NETO (1992), PADRÃO (1992) e SANT’ANNA (1993) e cidadania - PITTA & DALLARI (1992), AMARANTE (1992), BARROS (1993) e AMARANTE (1994).
CAMPOS (1992) faz algumas considerações sobre o movimento da reforma dos serviços de saúde mental, tentando entendê-lo na experiência de Campinas, onde, sob os princípios da co-gestão e do planejamento democrático, busca-se um modelo terapêutico próprio, incluindo-se a diversidade de instrumentos (como as oficinas, o referencial da psicanálise, entre outros) e a tentativa de romper a lógica conservadora do saber dominante. Tal experiência, articulada ao “Sanatório Dr. Cândido Ferreira”, visa recuperar o caráter público desta instituição. A autora sublinha que nesta realidade não se tem a identidade cultural e ideológica italiana e nem a clara determinação dos governantes locais de Santos, o que implica em várias dificuldades, de outra complexidade, a serem superadas.
Para SOUSA CAMPOS (1992), o modelo assistencial requer intermediações entre o técnico e o político e configura-se em uma “síntese cambiante” que envolve diretrizes políticas, princípios éticos, jurídicos, organizativos, clínicos, sócio-culturais, epidemiológicos e o desejo de viver saudável. Critica o projeto de reforma psiquiátrica considerando-o mais anti do que pró, carecendo dirigir-se da negação para a superação.
Os limites financeiros, o enfoque abusivamente normalizador das disciplinas em saúde mental e a transposição mecânica de diretrizes ordenadoras dos sistemas públicos de saúde, como é o caso da hierarquização e da regionalização, podem determinar a fragmentação da doença, impor rigidez de papéis e uma lógica definida por interesses corporativos ou burocráticos. O autor comenta que, para assegurar a qualidade do cuidado e a legitimação dos serviços públicos pelos usuários, deve-se ter presente as “... noções de vínculo, da acolhida e de responsabilizar-se pelo cuidado integral da saúde coletiva e individual, que deveriam sobredeterminar todo o desenho de modelo em saúde - assegurar os contornos e o ritmo de movimento do redemoinho” (SOUSA CAMPOS, 1992:18).
Consideramos que abordar o tema dos modelos assistenciais é uma tarefa complexa da qual, governantes, políticos, legisladores, profissionais da saúde, entre outros têm se ocupado. Essa complexidade tem origem nas operações concretas do cotidiano, em que duelam o saber dominante, hegemônico e os novos saberes que vão se construindo; um modo cristalizado de operar os serviços e as tentativas de inventar maneiras diferentes de executá-los; uma política central que homogeneíza e as especificidades de cada local.
Percebemos que é reconhecido pela sociedade em geral a necessidade de modificações das leis brasileiras. A legislação que rege a assistência psiquiátrica e os direitos civis, sociais e políticos dos doentes mentais, datam de 1916 - o Código Civil e de 1934 - Lei 24559/34, que estabelecem o dever do Estado e proteção à pessoa e bens dos psicopatas, incluindo toxicômanos e alcoólatras.
PADRÃO (1992) discute a questão da reforma a partir da legislação. Retoma o Código Civil de 1916 e a Lei 24.559/34, centrados no isolamento, na segregação e que operacionaliza legalmente o seqüestro dos indivíduos, a cassação dos direitos civis e a sua tutela pelo Estado. Afirma que o projeto de lei no 3657/89, de Paulo Delgado, constitui-se em um novo estatuto do doente mental.
DELGADO (1992) reflete sobre o projeto de lei 3657/89, que intervém no modelo assistencial e, indiretamente, na cidadania (quando se refere ao direito essencial de liberdade e ao tratamento obrigatório). Para o autor, o modelo assistencial implica no rearranjo dos serviços, em novos métodos de atendimento, na democratização e na ruptura do paradigma manicomial. Com relação à cidadania, o autor retoma a relação entre incapacidade civil do louco e direito penal, que implica em duas conseqüências: “prisão perpétua nos manicômios judiciários aos loucos pobres - como regra, ou a impunidade para maridos homicidas como exemplo de regularidade” (DELGADO, 1992: 81). A Lei poderá deter a expansão dos leitos manicomiais, implementar um novo tipo de cuidado e uma nova rede de assistência. A radicalidade do projeto de lei está em propor uma reforma lenta e gradual, que deve se dar a nível federal em nome da preservação do princípio federativo. Porém, nesta conjuntura apresentam-se interesses diversificados, como os da Fundação Brasileira dos Hospitais, academia, imprensa, familiares e setores técnicos.
Estes artigos deixam claro que a legislação vigente no país sustentou o modelo manicomial, assegurando à psiquiatria e ao judiciário o poder de seqüestro da pessoa e bens do doente mental. O projeto de lei de Delgado é apresentado como um modo diferente de olhar o doente mental, dando suporte aos projetos de mudança no setor.
Consideramos que a legislação geralmente se concretiza “a posteriori”, muito mais reconhecendo legalmente processos já implantados do que determinando novidades na dinâmica da sociedade. E isso é evidente na trajetória da Lei Paulo Delgado e das leis estaduais (Rio Grande do Sul, Ceará, entre outros) de proteção aos que padecem de sofrimento psíquico, que são resultado de lutas e movimentos travados socialmente e que expressam a correlação de forças entre os diversos grupos de interesses na sociedade.
Os dois textos seguintes reportam-se a essas especificidades regionais. QUINTO NETO (1992) resgata a transformação da legislação em saúde mental no mundo e discute a especificidade da Lei estadual 9716/92. O autor evidencia a força articuladora do Fórum Gaúcho de Saúde Mental na aprovação desse projeto de lei, referindo que a lei pode limitar riscos à saúde, mobilizar simpatizantes em torno da cidadania do doente mental e gerar uma nova ética, em que o usuário possa decidir o que é melhor para si.
SANT’ANNA (1993) discute o projeto de lei 336, de 1992, do deputado estadual Roberto Gouveia/SP, de reforma psiquiátrica daquele estado. O projeto se refere ao alcoolismo, destacando que estes pacientes não devem ser internados em hospitais psiquiátricos, somente em leitos de clínicas médicas e pronto-socorros gerais. O autor remarca a importância da legislação psiquiátrica comportar este aspecto, destacando ser esta a primeira lei que faz referência ao alcoolismo.
Os artigos apresentados na temática legislação nos sugerem que a legislação nacional encontra maiores dificuldades de aprovação, haja vista a correlação de forças que se estabelece no âmbito do Congresso Nacional, que difere do cenário encontrado no espaço estadual. As legislações estaduais parecem avançar mais rapidamente, contemplando aspectos mais específicos relacionados à assistência psiquiátrica. No entanto, a operacionalização dessa legislação nem sempre corre na velocidade por nós desejada e, por vezes, permanece estática, dependente de uma série de questões, tais como: quem detém o poder nas instituições, a possibilidade de expressão política no país e a força dos movimentos reivindicatórios, entre outras.
Todas essas questões nos remetem à cidadania, que é o tema central dos artigos que seguem.
AMARANTE (1992) entende a realização da II Conferência Nacional de Saúde Mental como um espaço de expressão de cidadania, resultante de uma seqüência de conferências municipais e estaduais. Este evento, ao deliberar sobre o modelo assistencial, enfatizou a importância da construção de novas práticas, de novas formas de lidar com a loucura, de desterritorializar a loucura, de gerar novos atores sociais, de possibilitar que as instituições psiquiátricas, os técnicos e a administração deixem de ter a loucura como objeto privado e passem a concebê-la como questão de vida.
PITTA & DALLARI (1992) tomam como eixo de discussão do sistema de saúde no Brasil a questão da cidadania dos doentes mentais, dando atenção à legislação e ao modelo assistencial. Vão buscar nos princípios da Revolução Burguesa (de liberdade, igualdade e fraternidade) e na ordem liberal - que visa compatibilizar direitos individuais e sociais, a compreensão da comunidade como um local por excelência de exercício de cidadania. Assim, as autoras remetem à discussão da cidadania e para a importância de fortalecer a autonomia dos municípios.
Entendemos que esses artigos realçam a importância do espaço local e dos fóruns de discussão no processo de reforma. O âmbito local tem se constituído em espaço privilegiado de discussão das reformas no setor saúde, pois nos propicia uma maior aproximação entre todos os atores envolvidos. Sabemos que é no município que as políticas se concretizam, tornam-se reais e se transformam ou se cristalizam. A realização de conferências nacionais permite o intercâmbio das experiências locais, a realimentação teórica e prática dos atores e a explicitação da diversidade existente no território nacional.
BARROS (1993) aborda a desinstitu-cionalização tendo como eixo a cidadania e a violência institucional, evidenciando que a periculosidade não se constitui numa categoria abstrata, pois as instituições podem ser perigosas aos cidadãos, se não permitirem acesso a instrumentos de cuidado, ou não responderem às suas solicitações.
AMARANTE (1994) aprofunda a discussão da desinstitucionalização, refletindo sobre seus aspectos éticos. Afirma que este processo gera novos atores sociais e uma gama de espaços para pensar e intervir nas questões de vida e saúde; resgata a complexidade do fenômeno, a ruptura do paradigma clínico e, sobretudo, uma manifestação ética que reconhece novos sujeitos de direitos, novas formas de subjetivação e luta contra a exclusão e intercede pela solidariedade e diversidade.
O artigo de BARROS (1993) traz uma inovação ao propor entender a periculosidade do ponto de vista dos sujeitos institucionalizados, passíveis de sofrerem agravos a partir da ação institucional. A periculosidade, na psiquiatria, costuma ser tratada sob o prisma do potencial de ameaça que o louco representa para si e, principalmente, para a sociedade. Essa questão vem ao encontro do artigo de AMARANTE (1994), pois nos faz pensar nas questões éticas envolvidas na assistência ao doente mental. Foram constituídos vários mecanismos e instrumentos de intervenção sobre o comportamento humano que precisam ser repensados sob o filtro da bioética, que traz os critérios de autonomia e justiça para dentro do debate, diminuindo o peso do critério de beneficência que tem guiado as decisões profissionais e, mais ainda, substituindo-o pelo critério de não maleficência. De certa forma, essas questões estão sendo introduzidas no debate da reforma e passam a estimular indagações em nosso fazer cotidiano como trabalhadores de saúde mental.
CONCLUSÕES
A temática da reforma psiquiátrica é relativamente recente na Revista Saúde em Debate. Isso decorre da própria emergência dessa proposta de transformação nesse setor a partir da década de 80, momento histórico em que a sociedade brasileira vivencia um processo de redemocratização. Entendemos que não podemos negar a existência de outros movimentos de transformação na área, mas sim marcar o início do discurso da desinstitucionalização que recebe forte influência da experiência da psiquiatria democrática italiana.
Por caracterizar-se como um processo em construção, a reforma não constitui um bloco homogêneo. Ao contrário, apresenta múltiplas faces, espelhando as diversidades regionais e locais de um país-continente como o Brasil, bem como o leque de interesses em jogo.
Os textos que analisamos nos trazem reflexões teóricas originadas de experiências concretas das tentativas de implementar transformações em direção à reforma psiquiátrica. Consideramos que esta produção ainda é inicial, tendo em vista o próprio estado recente dessas experiências de transformação no setor da saúde mental.
Como trabalhadores de saúde mental, entendemos que os enfermeiros não podem se colocar à margem desse processo de mudança. Isso implica, inclusive, na coragem em sistematizar e refletir teoricamente sobre nossa prática e os instrumentos que estamos construindo para lidar com a loucura no cotidiano.
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Texto
original recebido em: 10/02/2002;
Aprovação final: 07/11/2002.
Luciane Prado Kantorski
Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente da Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia
da Universidade Federal de Pelotas. Apoio CNPq. E-mail: kantorski@uol.com.br
Ana Celeste
de Araújo Pitiá Enfermeira. Mestre
em Enfermagem Psiquiátrica. Docente da Universidade Estadual de Feira de Santana
– UEFS.
Vera Lúcia Miron Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente do Departamento de Ciências da Saúde da Unversidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. In Memoriam.