O AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE NO PROCESSO DE MUNICIPALIZAÇÃO DA SAÚDE Maria Josefina da SILVA, Rui Martinho RODRIGUES * |
SILVA, M.J.; RODRIGUES, R.M. - O agente comunitário de saúde no processo de municipalização da saúde. Revista Eletrônica de Enfermagem (online), Goiânia, v.2, n.1, jan/jun. 2000. Disponível: http://www.revistas.ufg.br/index.php/fen |
RESUMO: O presente
ensaio discute o papel do agente comunitário de saúde no contexto da municipalização.
Tem como ponto de partida a reforma sanitária brasileira, as tendências atuais
das políticas públicas e do Estado frente ao processo de globalização. Discorre
sobre o surgimento do agente de saúde no Brasil, iniciando com considerações
sobre o Programa de Agente de Saúde (PAS) no Ceará, e o Programa Agente Comunitário
de Saúde (PACS) do Ministério da Saúde, a atenção primária de saúde e a municipalização.
Esta última como possibilidade de proximidade entre a população e o poder, através
de várias instâncias, a mais importante das quais é o Conselho Municipal de
Saúde, que tem como mediador o agente de saúde, ressaltado pelas características
de suas ações. A conclusão é a de que o agente de saúde, como componente de
uma equipe de saúde, tem um papel importante no processo de democratização da
saúde e construção da cidadania.
UNITERMOS: agente comunitário de saúde; municipalização; globalização;
participação popular; cidadania.
SUMMARY: The
community health agent in the health services municipalization process. This
study is about the role of the health community agent in the context of municipalization,
considering the Brazilian sanitary reform and the present tendencies of public
and Government politics concerning the globalization process. It narrates the
appearance of the health agent in Brazil, initially considering the Health Agent
Program (PAS) in State of Ceará, Brazil and the Health Community Agent Program
(PACS) of the National Health Ministry, the primary attention of health and
the municipalization as a possibility of getting closer to the population and
power through many instances. One of them, the most important, is the Municipal
Health Council, having as mediator the health agent, due to the characteristics
of his actions. We conclude that the health agent, as a component of one health
team, has important participation in the health democratization process and
citizenship construction.
Key words: health community agent, municipalization, globalization, popular
participation, citizenship.
1. Importância da temática
O agente comunitário de saúde assume, no cenário do sistema de saúde do país, um papel privilegiado. Seja porque as autoridades sanitárias fazem dele uma espécie de "coringa" ou "salvador da pátria", seja porque o cotidiano demonstra que ele é o trabalhador em saúde que mais convive com os problemas sociais afetos à saúde. Os primeiros tentam demonstrar sua importância para a saúde, numa perspectiva de lucratividade política; o cotidiano o capacita a reivindicar seu lugar no sistema de saúde.
Falar sobre o agente comunitário de saúde é despertar paixões. Ele foi colocado no discurso das autoridades sanitárias do país num patamar onde se é contra ou a favor, nunca indiferente. Exemplo disso é que os agentes de saúde do Ceará se viram colocados como responsáveis diretos pela queda vertiginosa da mortalidade infantil durante o período 1991-1995 no Ceará, lhes valendo um prêmio do Fundo das Nações Unidas para a Infância UNICEF, no ano de 1993.
Não é demais dizer que este prêmio rendeu frutos políticos ao governo e nenhum benefício palpável ao seu protagonista o agente de saúde. Por outro lado, gerou uma peleja com os demais profissionais da área, que também reivindicaram participação na ação premiada.
O Agente de saúde é colocado como o elemento-chave do sistema na atenção primária de saúde; como o elo de ligação entre a comunidade e os serviços. Em síntese, como um deles disse: pau pra toda obra; o Papai Noel; o saco de pancadas. Por tudo isso se faz necessário analisar com maior profundidade o papel deste personagem.
Este ensaio tem por objetivos:
Analisar o avanço das propostas da Reforma Sanitária no contexto da globalização.
Descrever os aspectos conceituais do processo de municipalização e sua implantação no Sistema Único de Saúde.
Avaliar o papel do agente de saúde no processo de municipalização a partir do lugar que ocupa no contexto da prestação de ações de saúde.
2. Reforma Sanitária brasileira
2.1 Histórico
A reforma sanitária brasileira nasce no interior de um processo de redemocratização do país, tendo como mentores intelectuais e profissionais vinculados a projetos ideológicos e políticos, com pretensões de implantar mudanças radicais na sociedade brasileira, tendo como carro-chefe a saúde.
A VIII Conferência Nacional de Saúde (1986) serve de palco para a apresentação de um modelo de sistema de saúde que diríamos revolucionário, em face da amplitude e profundidade das mudanças apresentadas no documento resultante e do referencial teórico que lhe serve de sustentação (GALLO e NASCIMENTO in Teixeira, 1989). A Constituição de 1988 o traduz em texto legal, embora com cortes que mudaram visceralmente seu conteúdo inicial.
Mas é interessante destacar que a reforma sanitária, expressa nos princípios de universalidade, equidade, participação e controle social, é ( ) a afirmação da caracterização do Brasil como Estado Democrático de direito, fundado na dignidade da pessoa humana (DALLARI, 1995, p. 31). O conceito de saúde adotado, portanto, visa a garantir a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem-estar social e individual.
Saúde é, então, concebida como a conjugação e o resultado de uma gama de direitos que vão desde a posse da terra até o acesso a serviços de saúde. É importante destacar este conceito, uma vez que dele emanarão todas as ações que deverão ser desencadeadas para a consecução do preceito constitucional: saúde direito de todos e dever do Estado.
A descentralização, outro princípio da reforma sanitária, passa a ser prioridade na implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), uma vez que garantiria a participação e controle social de forma mais efetiva, e romperia com a centralização das políticas governamentais, característica do período de exceção (1964/85). Neste momento, o federalismo e a conseqüente autonomia em relação ao governo central, são aspectos que merecem a atenção de todos quantos participam deste processo de implantação do SUS.
Mas todo este processo não tem como tônica a ação do agente comunitário de saúde. Este personagem será recuperado para atender à necessidade de amenizar os efeitos deletérios à saúde, gerados pelo modelo hegemônico, centrado na figura do médico, tendo como locus central o hospital de grande porte, com alto consumo de tecnologia e equipamentos médico-hospitalares e medicamentos e, conseqüentemente, altíssimo custo para sua manutenção.
Falemos um pouco sobre a institucionalização do agente de saúde.
2.2 Atenção Primária de Saúde
A atenção primária de saúde, como estratégia mundial para o alcance da meta de saúde para todos no ano 2000, é assumida como proposta da Organização Mundial de Saúde - OMS, durante a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde realizada em Alma-Ata em 1978.
Esta proposta visa à utilização de todos os recursos disponíveis pelos países para amenizar os graves problemas de saúde no mundo, em especial nos países pobres. Cônscios da escassez de recursos para atender às necessidades globais de saúde, aceitando que saúde é um direito fundamental e que a obtenção do mais alto nível de saúde possível deveria ser a meta social mais importante no mundo, a OMS e os países participantes da Conferência, assumem a responsabilidade de implantar a atenção primária de saúde como motor das transformações sociais em busca de uma sociedade mais justa e igualitária.
Para tal propósito, surge um personagem o agente comunitário de saúde - que deverá ser o primeiro elemento do sistema, no qual a atenção primária de saúde é o elo mais forte.
O fundamento para sua atuação privilegiada no sistema está na aceitação de que os problemas de saúde, em sua maioria, podem ser solucionados por pessoas treinadas em curto prazo para o desempenho de tarefas específicas. Para tanto, vão buscar a experiência da África colonizada, da China, e seus médicos de pés descalços, dos feldschers da Rússia czarista e outras experiências semelhantes.
Mas é importante explicitar que a APS deverá estar respaldada por um sistema de saúde que sirva de apoio para os sucessivos níveis de encaminhamento. O que não pudesse ser resolvido no âmbito de atuação da atenção primária teria assegurada sua resolutividade em níveis mais completos. Não é preciso dizer que tal não aconteceu na experiência brasileira.
2.3 O Programa Agente de Saúde do Ceará pioneirismo
No Ceará, em 1987, é implantado o Programa de Agentes de Saúde (PAS), com recursos próprios e vinculado à Secretaria de Saúde do Estado, com sua coordenação, portanto, centralizada. A experiência do Ceará é analisada em vários trabalhos, como o de FREEDHEIM (1993); MINAYO (1990); SILVA (1997) e vários trabalhos monográficos, realizados em sua grande maioria, por pessoas vinculadas ao programa, ou com apoio de instituições governamentais, como foi o caso de Freedheim, que teve o apoio logístico do Instituto de Planejamento do Estado do Ceará (IPLANCE), e Minayo que teve o patrocínio do UNICEF.
A especificidade do financiamento do PAS, com recursos do próprio Estado, possibilitou, na prática, poder de barganha do governo estadual junto aos municípios e comunidades onde o agente de saúde atuava, embora este não tenha ido para a linha de frente da política partidária.
2.4 O Programa de Agentes Comunitários de Saúde do Ministério da Saúde
O MINISTÉRIO DA SAÚDE, em 1991, institui o Programa de Agentes Comunitários de Saúde - PACS, em vários estados do país, com repasse de recursos e normatização comum para todos eles, tomando como modelo a experiência do Ceará, com o PAS, e de outros estados, com atenção primária de saúde.
Segundo críticos da APS, a implantação, no país, do agente de saúde assume a posição de amortecedor de tensões da clientela por atender às suas demandas de saúde. Simplificar o papel do agente de saúde neste patamar é, no mínimo, desconhecer o avanço qualitativo que sua atuação proporcionou, especialmente nas pequenas localidades que até então não tiveram acesso a nenhum tipo de atenção à saúde (SILVA, 1997).
Colocá-lo como o responsável principal por estas mudanças, por outro lado, é negar a participação de um leque considerável de profissionais que criaram as condições técnicas, políticas e sociais para que tais mudanças ocorressem.
A reforma sanitária trouxe a saúde para a arena de decisões políticas, e não somente técnicas. O setor saúde passa a ser o palco de embates entre os partidários da capitalização e mercantilização do setor, e dos que viam as questões de saúde, agora no interior de cada aspecto da vida humana, como propulsoras das reformas sociais propostas pelo movimento sanitário. Trava-se, portanto, uma luta, no interior do Estado, entre o sistema de atenção médica supletiva, que, segundo MENDES (1993), é hegemônico, e o sistema único de saúde, que, embora contemplado no texto constitucional, ainda é considerado um movimento contra-hegemônico.
Mas onde situar o agente de saúde neste cenário? No nível de atenção primária de saúde, onde o SUS conseguiu obter, até hoje, seus melhores resultados quantitativos e qualitativos. E esta atenção primária, de acordo com a Lei 8080, de 19/09/90, que regulamenta as ações do SUS, cabe aos municípios. Daí a importância que assume a descentralização administrativa, operacional e financeira. A descentralização assume variadas formas, como a municipalização e regionalização, assim como diferentes marcos: o neoliberal e o social-democrata, ambos fundamentais para o processo de democratização.
Analisaremos a descentralização numa perspectiva atual, no interior da maré globalizante, que muda os discursos, afeta as políticas sociais e o mundo do trabalho, incidindo seus efeitos diretamente na saúde da população.
3. Municipalização e a globalização
3.1. O Processo de globalização no mundo e no país
Globalização pode ser entendida como a livre manifestação das forças sociais e econômicas no mercado encarnação comercial da sociedade, o que exige liberação dos controles políticos dos Estados. Esta liberação se traduz na diminuição ou supressão de barreiras alfandegárias, herdadas do mercantilismo industrial, ou outros mecanismos protecionistas, conforme a tradição do livre comércio, constituindo a globalização econômica, que se soma à cultural, pari passu à desregulamentação interna, dentro de uma lógica que transfere os controles do Estado para a sociedade, ao modo consumerista, e para a competição ou concorrência, segundo o modelo do liberismo. O racionalismo econômico é o seu eixo.
Neste contexto, o paradigma é o mercado como idealizador da vida contemporânea, e o autofinanciamento passa a ser o preço da realização dos sonhos. As políticas sociais passam a sofrer nova configuração com o desmonte dos sistemas de garantias e de proteção pagos pelo Estado.
As políticas de saúde subordinam-se também à racionalidade econômica, na medida em que cada proposta deve dizer quanto custa e quem a paga.
Os riscos daí resultantes podem ser facilmente detectados em um país como o nosso, cuja população, em sua maioria, é incapaz de assegurar, por seus próprios recursos, sua assistência à saúde, e onde o autofinanciamento tropeça com as exigências de equidade, justiça social, ética e moral, que escapam à racionalidade econômica. A falta de recursos só pode levar ao agravamento de condições de vida já precárias.
Diante disso, a municipalização da saúde passa a ter importância fundamental tanto para os adeptos da privatização da saúde, defendida em nome da (in)eficácia e falta de fundos na gestão pública, como pelos que vêem nela a possibilidade de aproximar o controle social da gestão e operacionalização das ações de saúde, tornando-a mais próxima das necessidades reais da população, e permitindo a acessibilidade, equidade, eficácia e satisfação do usuário.
3.2. A municipalização no processo implantação do Sistema Único de Saúde
3.2.1. A municipalização como processo político
Como dissemos anteriormente, a reforma sanitária teve seu cunho político quando idealizou um sistema único, presidido pelo Estado, universal, com participação popular, segundo o modelo da democracia direta. Os conselhos de saúde, instrumento fundamental para o almejado controle social, é uma demonstração inequívoca da busca desta meta.
Quando MENDES (1993) usa a palavra "apropriar", na descrição do processo de territorialização, não é somente figurativo. Há aí a idéia de conhecer com profundidade para influir e atuar em todos os aspectos relativos aos determinantes do processo saúde-doença, que são múltiplos e se espraiam por vários setores da ação governamental. E isso é uma ação política dos que militam na saúde, da população representada nos conselhos e dos usuários, no cotidiano dos serviços.
Aqui o agente de saúde tem um papel fundamental. É ele quem está no cotidiano dos lares, quem vivencia os problemas específicos de saúde e os sociais. É ele quem presencia a miséria humana em sua face mais cruel: a do abandono na doença, da falta de acesso aos serviços, da fome que mata ou debilita. Mas também é ele quem tem o privilégio de chegar primeiro aos dados, de ver as mudanças que ocorrem pela intervenção das ações voltadas à obtenção da saúde, diretas ou não.
Decorrente disso cabe ao agente de saúde ser o primeiro sensibilizador, se podemos adotar este termo, da comunidade no seu despertar para uma ação cidadã.
3.3. A municipalização na saúde
A descentralização, na reforma sanitária brasileira, recebe a configuração da municipalização, em obediência à constituição federal que atribui a competência de prestar serviços de saúde à população ao município, com a cooperação técnica e financeira da União e dos estados (Artigo 30, inciso VII).
MENDES (1993, p. 115/6) justifica a municipalização também pelas seguintes razões: é o espaço de vivência maior dos cidadãos; é o espaço onde a autoridade sanitária tem visibilidade; pelo êxito de alguns sistemas municipais de saúde em meio ao "caos da saúde"; pelo fato incontestável de que alguns municípios, anteriormente à norma constitucional, assumiram serviços de outras instâncias para viabilizar seu funcionamento.
A municipalização da saúde, segundo o autor, deve inscrever-se como micro-espaço social do exercício cotidiano da construção da democracia e, portanto, da criação da cidadania (MENDES, 1993, p. 116).
Mas há, também, críticas ao processo. O mesmo autor, em trabalho mais recente (1998), levanta alguns pontos de fragilidade do modelo adotado: o isolamento do município, criando um modelo de assistência sem nenhuma articulação com o espaço microrregional. Neste modelo ocorre uma fragmentação de recursos e equipamentos sanitários, levando a ineficiência e baixa qualidade. Observamos também, empiricamente, que os municípios estão se saindo relativamente bem na montagem do sistema de atenção primária, com o PACS e o Programa de Saúde da Família (PSF). A contratação de técnicos para formar equipes multiprofissionais também é outro dado positivo no processo de municipalização.
A partir daí as críticas podem ser colocadas da seguinte forma: não existe um sistema de referência para garantir o trânsito de clientes para os níveis mais complexos do sistema, isso porque, na sua maioria, as prefeituras esgotam sua capacidade de gastos na contratação de pessoal para o PACS e o PSF, e ambos não são competentes para dar conta desta demanda. Por sua vez, o Estado se sente "desobrigado" desta tarefa após a municipalização. A nossa experiência, no Ceará, é de que, rotineiramente, o melhor hospital da cidade é a ambulância.
A luz no fim do túnel está no processo em andamento em algumas regiões, na figura do consórcio de municípios, viabilizando a formação de uma rede de serviços de complexidade maior, otimizando custos e recursos.
Outro aspecto que merece ser destacado na análise da municipalização da saúde é o que se chama de prefeituralização, isto é, o poder concentrado na figura do executivo municipal. A tradição da prática clientelista, que dominou a política brasileira desde sua formação como país, retarda uma atuação mais independente dos conselhos municipais de saúde. No Ceará, estes ainda se sentem vinculados aos interesses municipais, mesmo que tenham sido eleitos por seus pares dentro de cada categoria ali representada. Existe o medo de perder o emprego já que os técnicos lotados no município são, em sua maioria, contratados pela prefeitura por laços afetivos, políticos ou de compadrio. Por outro lado, estes empregos, se assim podemos chamá-los dada sua fragilidade contratual, são de alta rotatividade, não permitindo consolidar posições no âmbito municipal.
Neste aspecto o agente de saúde tem um papel importante, uma vez que, mesmo não tendo assento nos conselhos, está cotidianamente com a população, esta o conhece como seu vizinho, compadre, amigo. Cabe a ele, principalmente, o trabalho de atualizar a população sobre o que ocorre nas instâncias deliberativas da saúde municipal e, assim, formar uma massa crítica junto aos usuários do sistema. Dizemos principalmente porque esta deve ser uma tarefa incorporada ao cotidiano de cada técnico que milita no setor.
Não esqueçamos que saúde, pelo conceito adotado pela reforma sanitária, se relaciona com todos os aspectos da vida do cidadão, perdendo, portanto, a característica de ser atribuída sua obtenção a um responsável, seja quem for este responsável. Esta requer a interdisciplinaridade e intersetorialidade.
Saúde é entendida pela OMS como ( ) resultante de um conjunto de fatores sociais, econômicos, políticos, culturais, ambientais, comportamentais e também biológicos (BUSS e Ignara, 1996, p. 5), cujo paradigma é a promoção da saúde, expresso em cinco campos de ações: elaboração e implementação de políticas públicas saudáveis; criação de ambientes saudáveis favoráveis à saúde; reforço da ação comunitária; desenvolvimento de habilidades pessoais; reorientação dos sistemas e serviço de saúde (BUSS e IGNARA, 1996, p 7).
Portanto, é uma ação coletiva, cuja responsabilidade transcende os limites profissionais, setoriais e até territorial, e vai além de um estilo de vida saudável, na direção de um bem estar global. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1996, p 12).
4. O papel do Agente Comunitário de Saúde no sistema de saúde
Isso posto, cabe situar o agente de saúde no sistema de saúde brasileiro. O agente de saúde, segundo documento do MS (1991) tem as seguintes atribuições: cadastrar as famílias por ele atendidas; diagnosticar suas condições de saúde e moradia; atualizar estes dados permanentemente, para o Sistema de Informação de Atenção Básica (SIAB); mapear, o mais detalhadamente possível, a comunidade na qual atua; identificar as micro-áreas de risco, inclusive buscando soluções para os problemas identificados junto às autoridades locais; realizar visitas domiciliares, em função da situação de saúde da família; atuar como animador no desenvolvimento coletivo da comunidade; atuar nas áreas de educação, identificando crianças fora da escola; atuar em ações humanitárias e solidárias, na busca de alternativas para geração de empregos, em situações de seca, enchentes, no combate à violência etc.
Para ser capaz de dar conta destas atribuições, a recomendação é que o agente de saúde deve ser treinado, orientado e acompanhado permanentemente por um profissional de enfermagem, responsável pelo PACS em uma dada área. O que lhe é exigido para o ingresso no PACS é saber ler e escrever, ter idade mínima de 18 anos e ter disponibilidade para exercer tais atividades.
Parece desnecessário falar sobre isso. Afinal, agentes de saúde e enfermeiros instrutores/supervisores sabem de cor o que foi exposto aqui sobre o PACS. A tentativa de recuperar estas informações é para confrontar com a proposta do SUS e seus fundamentos teóricos e legais.
Se saúde é o que colocamos acima, se para alcança-la é necessário uma ação intersetorial, como entender o papel do agente de saúde no sistema de saúde municipalizado?
Ao agente de saúde se atribui o que transcende à sua formação profissional. A complexidade do que foi colocado acima exige uma variedade de profissionais cuja formação vai além de um treinamento sumário, mesmo que com atualização permanente.
O discurso oficial coloca em segundo plano a atuação dos outros profissionais, atribuindo ao agente de saúde a responsabilidade, embora que não explicitamente, pela saúde da população.
A estruturação do sistema de saúde municipal ainda é orientada pelo modelo curativo, atribuindo à figura do médico um papel preponderante, mas, por outro lado, a necessidade de racionalizar custos leva à ideologia da responsabilidade individual pela saúde de uma forma perversa: culpa-se o doente porque fuma, porque bebe, porque não se exercita, porque não fez pré-natal, porque não fez exames periódicos, porque se estressa no trabalho, e por tantas outras causas. Ao agente de saúde cabe orientar; ao médico promover a cura. O processo saúde-doença se fecha aí.
Os determinantes do processo que estão fora deste âmbito de intervenção são negligenciados pela falta de ação sobre eles. Exemplificamos esta situação como um estilo de vida considerado deletério à saúde: é importante para o Estado a arrecadação de impostos pagos pelas empresas de tabaco, por isso a timidez governamental em investir com vigor em medidas restritivas, e em permitir propaganda sugestiva da satisfação e realização pessoal e social que o fumo e o álcool trazem, embora se sabia, por uma infinidade de pesquisas, que o hábito de fumar é extremamente danoso.
Não fazem parte da pauta de discussões e de intervenção os demais aspectos relacionados à saúde, como os decorrentes do estresse gerado pelo descompasso entre necessidades e ganhos ou pelo deslocamento, às vezes penoso de casa até o local de trabalho; a violência urbana produzindo a paranóia do medo coletivo; a falta de espaços para o lazer; os espaços domésticos cada vez mais restritos; a dificuldade de se conseguir emprego ou trabalho que garanta uma renda que satisfaça o mínimo necessário para viver; o desajuste familiar provocado pela anomia social; a falta de valores; a degradação do ambiente; a educação ainda distanciada de uma preparação adequada para a vida; o acesso a serviços de saúde em níveis de complexidade maior.
Tudo isso faz com que coloquemos em dúvida o modelo de saúde que está sendo implementado no país.
O Banco Mundial, nas suas recomendações para os países pobres, sugere que a saúde seja um benefício que o Estado deve promover apenas em certas condições e que a prioridade deve ser no financiamento de pacote restrito de medidas em saúde pública e de intervenções clínicas essenciais (LIMA, 1996, p. 34). Para tanto, sugere medidas como: criar um ambiente propício para que as famílias melhorem suas condições de saúde, tornar mais criterioso o investimento público em saúde e facilitar a participação do setor privado (LIMA, 1996, p. 35).
Embora indo de encontro aos preceitos da reforma sanitária, tal restrição tem ampla aceitação nos âmbitos do governo, uma vez que o financiamento externo está diretamente relacionado à obediência às recomendações do Banco Mundial.
A ênfase dada ao Programa de Saúde da Família e ao Programa de Agentes Comunitários de Saúde pode esconder propósitos que visem a criar uma cortina de fumaça sobre o que está sendo feito com a saúde do país na prática. Os investimentos na saúde pública são ínfimos, limitado aos grupos mais vulneráveis, como crianças, gestantes e puérperas, tratamento das DSTs/AIDS, controle de tuberculose e hanseníase, hipertensos e diabéticos; algumas doenças psiquiátricas. Segundo MISOCZKY (1995), os serviços cujo custo/benefício são baixos devem, a partir da recomendação do Banco Mundial, ser excluídos do pacote mínimo sugerido.
4.1. A importância do agente de saúde na municipalização
Se, por um lado, temos este quadro nada promissor para a saúde, por outro, o espaço democrático criado após a reforma sanitária e presente na municipalização da saúde abre caminho para um movimento contrário ao que está posto, e o agente de saúde tem uma importante parcela de responsabilidade neste processo.
O agente de saúde tem recomendações expressas de não se envolver nas questões políticas de sua localidade. Isto é um dado teórico. A especificidade da sua atuação, no interior de cada lar, convivendo com seu cotidiano, fazendo favores como levar o menino ao médico, trazer o remédio do Centro de Saúde, levar o idoso à consulta, conseguir benefícios comunitários, tudo isso faz dele, senão um líder, o que era uma exigência ou recomendação para sua seleção, ao menos uma pessoa muito importante para a vida comunitária. Ele influencia sua clientela, tanto na adoção de medidas de saúde como na escolha do candidato político. Isso é tão verdadeiro que há a recomendação expressa de abster-se da política.
A capacidade de influir pode também ser dirigida para o exercício da participação política, não só durante as eleições, mas no acompanhamento dos eventos de seu município, através de seus representantes no conselho municipal, das suas lideranças comunitárias, através da atuação efetiva nos serviços de saúde, participando do planejamento das ações de saúde, do processo de identificação das necessidades detectadas na territorialização, através da fiscalização do uso dos recursos públicos, da educação, da vida comunitária como um todo.
Este trabalho não é tarefa exclusiva do agente de saúde, mas de equipes de caráter multidisciplinar e multiprofissional, nas quais ele está presente e atua no front.
5. Considerações finais
Finalizando, podemos concluir que o processo de municipalização, apesar de suas debilidades, trouxe consideráveis avanços, especialmente na atenção primária de saúde, pela capacidade que tem de atuar de forma precisa nos problemas de saúde. A territorialização, essencial para o planejamento local, viabiliza a otimização de recursos e racionalização de custos.
Os conselhos de saúde, embora muitos deles ainda submissos ao gestor municipal, se mostram como um espaço de negociação dos interesses dos diferentes grupos ali representados, inclusive da população. Isso é novo na história republicana. O controle dos recursos públicos através dos dispositivos legais que a constituição garantiu e a municipalização materializou, faz com que seja cada vez mais complexo o mau uso destes recursos pelo poder executivo, não obstante o perigo de que estes conselhos se transformem numa expressão do poder local, como as câmaras municipais na Primeira República.
O agente comunitário de saúde tem lugar privilegiado em todos os momentos deste processo. Essa participação, que poderíamos chamar cidadã, pode provocar mudanças qualitativas. Uma nova modalidade de construção social, baseada na solidariedade, participação ativa, criativa, consciente e deliberada de todos e de cada um pode surgir daí, se não houver a reedição da expressão do poder local.
Ele pode fazer parte da construção de uma sociedade para todos, isto é, uma sociedade que ajusta suas estruturas, funcionamento e suas políticas e planos às necessidades e capacidades coletivas, com o que se aproveitam as possibilidades de todos, em benefícios do bem comum. E isso é sociedade solidária (NAÇÕES UNIDAS, 1999).
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SILVA, M. J.. Agente de saúde: agente de mudança? A Experiência do Ceará. Fortaleza : Pós-graduação/DENF/UFC/Fundação de Pesquisa e Cultura, 1997. 120 p.
7. Autores:
Maria Josefina da Silva
- Professora do Departamento de Enfermagem da Faculdade de Farmácia, Odontologia
e Enfermagem da Universidade Federal do Ceará. Mestre em Sociologia . Doutoranda
em Enfermagem pela UFC.
Rua General Silva Júnior 855 apto 206. Bairro Fátima. Fortaleza Ceará.
CEP 60411-200 e mail: alynemr@uol.com.br
Rui Martinho Rodrigues - Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará. Mestre em Sociologia. Doutorando em História pela UFPe.