A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL: DESAFIOS PARA A UNIVERSIDADE

RUBIA-MAR NUNES PINTO*

RESUMO

O texto busca uma reflexão sobre a problemática da educação infantil, tomando como foco de análise o processo de formação de professores para a intervenção pedagógica na infância brasileira. Nesse sentido, são levantados aspectos das políticas públicas educacionais e da produção teórica de pesquisadores brasileiros sobre a infância e sobre a educação infantil, na tentativa de contribuir para o necessário (re)dimensionamento do papel dos professores em uma perspectiva que leve em conta a especificidade da produção cultural da criança.

ALGUNS ELEMENTOS PARA PENSAR A EDUCAÇÃO INFANTIL NO PÓS-LDB

Escrever só faz sentido se alguma coisa pergunta, dizia Clarice Lispector em A hora da estrela. A escrita deste vem, pois, ao encontro da necessidade/vontade de dar voz a uma série de indagações acerca da escola, da criança, dos professores e, em especial, da formação de professores para a educação de crianças pequenas. Algumas destas perguntas ecoam com mais intensidade. A principal delas diz respeito aos processos da formação inicial de professores diante da especificidade da educação infantil que, hoje, assume novas direções e orientações. Em torno dessa questão articulam-se outras, não menos importantes e até mesmo necessárias para a compreensão daquela, como: qual é a especificidade desta educação infantil? Qual ou quais concepções de infância encontram-se atreladas às orientações oficiais e também aos indicativos originários da produção teórica brasileira na área? Como tais concepções concretizam-se nas pedagogias que fundamentam a prática dos professores na creche e na pré-escola?

São questões inquietantes também as que se referem à área de conhecimento “Educação Física” e à função que a mesma pode/deve desempenhar no processo educacional das crianças de zero a seis anos. É preciso indagar, entretanto: qual é mesmo a natureza da intervenção da Educação Física na pré-escola enquanto área do conhecimento/atividade/disciplina? Qual é o lugar a ser ocupado, no espaço/ tempo de creches e pré-escolas, pelos professores de Educação Física? Pensamos que a Educação Física deve estar presente nas instituições de educação infantil, tematizando o rico acervo de práticas culturais expressas pela corporeidade e pela motricidade humanas. E que o papel da Educação Física e o espaço pedagógico de seus professores na educação infantil precisam ser (re)pensados a partir da contemplação das diferentes linguagens que, na criança, externam-se pela oralidade, leitura, escrita, musicalidade, corporeidade, gestualidade e pelo brincar. Nesse sentido, os jogos, as danças, as ginásticas, os esportes, as lutas, entre outras expressões e linguagens, devem ser pensados e tratados na perspectiva interdisciplinar, mesclando-se ao acervo de práticas culturais lúdicas e significativas, como a contação de histórias, o teatro, a música, o circo, o varal de poesias, e ampliando o conhecimento corporal de crianças e professores em direção à compreensão de si mesmo, dos outros e do mundo.

Tais questionamentos colocam-se, definitivamente, no interior do nosso leque de preocupações se considerarmos as recentes intervenções e propostas do governo brasileiro para a educação infantil. Diante do reordenamento legal posto em andamento pelo governo neoliberal de FHC, cremos ser urgente que compreendamos o significado das reformas propostas e como elas podem estar articuladas à perspectiva da manutenção e aprofundamento da exclusão social pela via exclusiva da formação para a inserção no mercado. Ou seja, é necessário que nos lancemos ao desafio de pensar a prática educativa no atual momento histórico e suas contradições, inclusive, o aporte legal que a define e legitima. Nesse sentido, estas linhas propõem-se a contribuir para a reflexão sobre a formação inicial de professores para a educação infantil, sob a ótica de uma educação contra a barbárie e o caos. Esperamos, des-sa forma, também proporcionar condições, ainda que iniciais, de uma elaboração crítica sobre a educação da criança de zero a seis anos que permita alargarmos nossos referenciais sobre tal temática.

A Constituição Brasileira de 1988 estabelece legalmente – artigo 208, inciso IV – a educação em creches e pré-escolas como dever do Estado e direito da criança. Também o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) contempla o direito da criança a esse atendimento. Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96) reconhece a educação infantil como a primeira etapa da educação básica (título V, capítulo II, seçãoII, artigo 29), tendo “como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade”. A criança de zero a seis anos também está contemplada no Plano Nacional de Educação, no Referencial Pedagógico-Curricular para a formação de professores para a educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental e, em especial, no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI). A existência de tal aporte legal não deixa dúvidas ao propor a configuração da creche e da pré-escola como um (primeiro) nível oficial da escolarização da criança.

Podemos contar também com uma crescente produção teórica brasileira na área, expressão mesmo das preocupações de aguerridos grupos de pesquisa e docência que, no interior das universidades, têm feito avançar os questionamentos, reflexões e intervenções no contexto da educação infantil. Tal produção aponta para uma concepção de infância como tempo/espaço de criação de uma cultura própria deste momento da vida, e conseqüentemente, para uma concepção de criança como um ser histórico, produtor e (re)criador cultural. Essa concepção busca superar a consideração da infância, muito comum nas práticas pedagógicas, como “um tempo à parte na vida do homem, época da vida em que ele (o infante) guarda sua inocência original” (Muniz, 1999, p. 245).

Rosseau é o divisor de águas de uma construção social sobre a infância que se torna central nos processos pedagógico-educacionais. Em Rosseau, a infância surge como tempo à parte, um tempo de felicidade em que a natureza humana ainda não corrompida pela sociedade guarda toda a sua pureza e inocência. A criança, nessa ótica, torna-se um vir-a-ser, alguém que só é pensado a partir de suas possibilidades futuras e não a partir de sua concreticidade presente. A educação escolar deve, então, dispor de meios organizados para, respeitando as características do desenvolvimento infantil, acessar à criança

o mundo da racionalidade que ela ainda não possui, na perspectiva de torná-la um bom adulto. A escola, vista nesse prisma, deve proporcionar à criança habilidades e competências que a tornem apta à realização de julgamento moral. Como a capacidade racional significa maturidade do pensamento, é vista como o único meio que capacita ao julgamento e, portanto, à vida em sociedade (Muniz, 1999, p. 246).

Sem dúvida, a partir de Rosseau, a infância é valorizada e reconhecida como um momento peculiar da vida, que requer atenção, tratamento e cuidados também peculiares. Porém, paralelamente, a criança é vista como um “recipiente” vazio a ser preenchido e não como possuidora de uma existência concreta, histórica. Diferentes perspectivas educacionais incorporam o conceito de infância como tempo à parte e acabam concebendo a criança como um ser em desenvolvimento, um vir-a-ser, simplesmente uma categoria etária. Camuflada nessa teorização, a idéia que toma corpo é a de uma natureza infantil abstrata e supostamente universal. Perroti (1990, p. 12) diz, porém, que a criança “é também alguém profundamente enraizado em um tempo e um espaço, alguém que interage com essas categorias (outras categorias etárias), que influencia o meio em que vive e é influenciado por ele”.

Contrariamente, assumir a criança como ser dotado de características sociais, imerso no contexto social, econômico, político e cultural, tem sido a opção teórica dos educadores e pesquisadores brasileiros na luta pela consolidação de uma educação de qualidade, socialmente referendada, para as crianças de zero a seis anos. O ordenamento legal, ora em andamento, significa, à primeira vista, o reconhecimento e a aceitação dessa concepção por parte das políticas educacionais no Brasil, refletindo as lutas históricas de professores e pais trabalhadores pelo direito à cidadania da criança brasileira desde o nascimento ( e não somente a partir dos sete anos). O grande avanço dessa acolhida refere-se também à possibilidade de quebra da segregação da creche (e da educação infantil) em relação à educação como campo de estudo e de atuação. Campos (1999), no prefácio do livro Educação infantil pós-LDB: desafios e rumos, ressalta que essa inserção coloca a educação infantil no bojo das principais discussões que, hoje, se travam na área da pesquisa e das políticas públicas, o que representa um ganho real para a melhoria na qualidade desse nível educacional.

O PROFESSOR COMO MEDIADOR CULTURAL E A FORMAÇÃO INICIAL: PARADOXOS

Embora seja benéfica a recente preocupação educacional com esta faixa etária, ao aprofundar-nos no “espírito da lei”, vemos ser possível uma análise que explicita as outras conseqüências (agora nefastas) para a educação das crianças de zero a seis anos, advindas da organização da educação infantil conforme as novas orientações jurídico-legais. O objeto de nosso interesse recai, principal-mente, sobre o RCNEI, em virtude de nosso olhar direcionar-se ao adulto responsabilizado pela educação e cuidados para com a infância – o professor – e o Referencial revelar-se, além de proposta curricular para creches e pré-escolas, um guia prescritivo das ações desse profissional.

O RCNEI ainda está em fase de distribuição aos professores brasileiros, porém o processo de sua elaboração já aponta para uma ruptura com a produção de universidades, institutos, associações de docentes e de pais, secretarias estaduais e municipais e até mesmo a produção promovida pela Coedi/MEC no período 1994-1996. O documento, composto por três volumes, foi elaborado por uma equipe de especialistas convidados pelo MEC (por sinal, estratégia utilizada para a elaboração de todas as propostas curriculares oficiais), e, segundo Kuhlmann Júnior (1999), subordina-se à estrutura funcional do ensino fundamental, recorrendo, ecleticamente, às referências da psicologia do desenvolvimento e ao modelo de disciplinas curriculares.

O construtivismo piagetiano é a principal base teórica reafirmadora da tendência já exposta nas demais propostas curriculares do governo FHC para a educação brasileira. O uso do construtivismo na educação significa, para vários autores (Silva, 1989; Miranda, 1994), a afirmação da hegemonia da psicologia como ciência-base da pedagogia, tendo em sua justificação motivações coerentes com o atual avanço neoliberal. A abordagem educacional baseada no modelo de disciplinas curriculares, por outro lado, vai privilegiar a criança-aluno em detrimento da criança-criança, representando riscos concretos de redução ou mesmo destruição do tempo da infância. Ou seja, nega-se aqui o conceito de educação infantil enquanto espaço/tempo de amplas e significativas vivências culturais onde/quando a sistematização de conhecimento não é exigência, onde e quando se vive o conhecimento de forma não fragmentada, porque o saber não é dividido em pequenas fatias, cada uma correspondente a uma área científica e/ou cultural.

O RCNEI, ao propor tal modelo, vai na contramão dos indicativos oriundos dos estudos e pesquisas brasileiros, nos quais a educação infantil deve aproximar-se do ponto de vista da infância, buscando (re)conhecer a especificidade do infantil. Segundo esses estudos a criança precisa ter garantidas formas didático-pedagógicas que possibilitem a conquista da criatividade e da autonomia, conceitos necessários e fundamentais para a formação de crianças cidadãs. A especificidade do infantil deve ser compreendida no contexto da cultura da infância como formas específicas de ser, estar, agir e sentir. Ou seja, a criança constrói/gera cultura nas for-mas específicas com que explora o meio ambiente; estabelece relações afetivas com outras crianças e com os adultos; comunica e compreende sentimentos, valores, atitudes; ressignifica objetos, entre outros. Para tanto, utiliza diferentes linguagens, expressando tal cultura em palavras, gestos, olhares, choro, riso, silêncio, imitação...

Diante da ameaça à infância enquanto tempo dessa produção, Kramer (1999, p. 277) destaca a urgência de resistirmos ao rumos impostos pelo capital, objetivando a construção de uma sociedade mais humana. Segundo a autora, “para lutar por essa sociedade é preciso educar contra a barbárie, o que implica uma ética e exige uma perspectiva de formação cultural que assegure sua dimensão de experiência crítica”. A formação cultural contra a barbárie pressupõe o aprofundamento na dimensão cidadã da ação educativa, buscando humanizar as relações e resgatar a experiência e a capacidade de leitura do mundo, (re)criando, expressando, escrevendo e participando da história coletiva ao apropriar-se das diversas formas históricas da produção cultural. Se a cultura dos nossos tempos fortalece-se como monumento da barbárie (Benjamim, 1984), sob os despojos da fome, da exploração do homem pelo homem e da morte, cabe agora, mais que nunca, tentar o resgate do diálogo, o olhar sensível e solidário, o repensar dos restos da cultura hostil na qual nossas crianças estão se formando.

A partir dessa ótica é que pensamos ser fundamental discutir a formação inicial do professor de educação infantil, sujeito da educação diretamente responsável pela mediação dos saberes culturais e pela leitura da produção cultural da criança. As competências necessárias a essa função tornam-se um tanto mais complexas se levarmos em conta que Vygotsky (1984) e Benjamim (1984) apontam para o jogo, a brincadeira e o movimento como suportes da cultura infantil. Ocorre que, na realidade dos cursos de formação de professores, percebe-se haver pouca ou nenhuma discussão sobre o papel social daquilo que caracteriza a cultura da criança. Essa discussão, quando existente, enfatiza os aspectos funcionais do jogo, da brincadeira e do movimento, privilegiando a abordagem instrumental desses conteúdos. A problemática agrava-se pela inexistência de vivências e experiências significativas de brincadeira, jogo e movimento no processo de formação docente, evidenciando, também nesse nível, a abordagem dos aspectos cognitivos do futuro professor, de forma isolada de outras dimensões expressivas do ser humano.

Expressão e conseqüência da experiência formativa, várias pesquisas1demonstram que a prática pedagógica dos professores de educação infantil e séries iniciais pautam-se pelo desprezo às questões relativas à experiência motora e lúdica e pelo uso instrumental do brinquedo e da brincadeira. Impossibilitados de apreender o valor do jogo, da brincadeira e do movimento como suportes da cultura da infância (e, por que não dizer, como elementos expulsos da cultura dos adultos?), os futuros professores têm suas competências parcializadas enquanto mediadores culturais. A esse respeito Sayão (1999, p. 499) questiona: “... qual o papel do movimento no currículo da educação infantil [...]? O movimento corporal, tradicionalmente expresso como jogo, brincadeira [...] constitui-se como atividades com fins em si mesmas ou são elementos que fazem parte da cultura infantil?” Como os professores poderão responder a tais questões se os cursos de formação docente não privilegiam a abordagem desses conteúdos enquanto expressões da cultura infantil?

Cremos que o problema coloca-se como relevante até mesmo diante do RCNEI, uma vez que o documento destina ao professor uma considerável responsabilidade pela implantação/ implementação da proposta curricular, apontando para o perfil de um profissional “altamente qualificado, capaz não só de analisar tipos de brincadeiras e efetivá-las, considerando o potencial da atividade e da criança, como também prosseguir com a estimulação após cada resposta individual” (Palhares & Martinez, 1999, p. 9). No volume 1 (documento introdutório) do RCNEI explicita-se a concepção de um professor de competência múltipla com capacidade para articular o diálogo com a família e com a comunidade e para realizar o processo de planejamento, incorporando à sua prática pedagógica os conteúdos que emergem desse diálogo (p. 41).

São pontuadas em todo o documento as atitudes e posturas desejáveis do professor, devendo ele “cuidar de sua expressão e posturas corporais ao se relacionar com as crianças”. Afirma-se também que o professor “é modelo para as crianças, fornecendo-lhes repertório de gestos e posturas...” (v. 3, p. 3l). Ainda no volume 3 (p. 37), sugere-se a necessidade de “um trabalho pessoal consigo mesmo” que leve o professor a sensibilizar-se musicalmente, a reconhecer a música como linguagem e a entender e respeitar modos de expressão musical das crianças. O professor é também definido como “um provocador da apreciação da imagem” (p. 103). Inicialmente, podemos concluir que tais competências pressupõem uma formação recheada de vivências e experiências significativas no campo das linguagens artísticas e expressivas além do necessário aprofundamento nas teorias educacionais, filosóficas, lingüísticas etc.

Historicamente, a educação do povo brasileiro é caótica quanto à oferta de oportunidades que abarquem essa multiplicidade de competências e saberes. As condições de vida colocadas pela organização econômico-política capitalista se pautam pela negação e/ ou pelo acesso parcial às dimensões da cultura e da arte (consideradas supérfluas para a classe trabalhadora), incluindo aí, infelizmente, também a escola. Quais seriam, portanto, as possibilidades reais para o professor da educação infantil, enquanto parte deste todo social, possuir, em seu acervo de ações e atitudes, a riqueza de saberes que o tornam um provocador da aprendizagem infantil, como é descrito no RCNEI. Além disso (principalmente), como esperamos que atue esse professor na perspectiva de uma educação contra a barbárie, assumindo o papel de mediador entre o mundo adulto e o infantil e de leitor da produção cultural da criança?

Não vemos soluções a curto prazo; ainda mais se considerarmos que a cultura infantil assenta-se sobre o tripé jogo/ brincadeira/movimento e a sociedade neoliberal globalizada cada vez mais elege a racionalidade como parâmetro de vida, sendo o processo educativo, muitas vezes, um longo processo de domesticação da pessoa pela via de sua corporeidade e ludicidade. Pensamos, porém, que a formação inicial de professores de educação infantil pode constituir-se em um tempo de desalienação do movimento e de suas expressões lúdicas, um espaço onde possa ser possível vivenciar, conhecer e refletir (sobre) o jogo, a brincadeira e o movimento de modo significativo tendo em vista a futura ação do pro-fissional que se forma.

Essa necessidade, longe de configurar-se no privilégio da prática pela prática, não deve abrir mão da dimensão reflexivotransformadora da ação educativa. O professor não pode especializar-se em uma cultura infantil de forma abstrata e aistórica, sem compreender os determinantes socioeconômicos e políticos nos quais essa infância e essa cultura acontecem. É preciso também garantir que as vivências e experiências oportunizadas aos futuros professores se dêem sob a ótica da formação cultural crítica, isto é, da reflexão e crítica da cultura e da própria ação educativa. Cremos que a formação docente deve proporcionar situações que possibilitem a reflexão e a conscientização das limitações sociais, culturais e ideológicas da própria profissão docente (Rodrigues, 1998, p. 54). Em outras palavras, os cursos de formação de professores devem privilegiar a concepção do professor como intelectual transformador, imerso na dimensão cidadã – portanto, política – de sua prática pedagógica, porém, sem desvincular o ser político do sensível, sem a primazia e hegemonia da aprendizagem intelectual sobre a aprendizagem corporal e motora.

A perspectiva de uma formação inicial crítica exige que rompamos com a dicotomia teoria–prática, oportunizando a nossos alunos/futuros professores condições de uma apropriação ampla e crítica da cultura e do conhecimento. Que eles possam conhecer as teorias e concepções de infância, escola, sociedade; que compreendam as teorias sobre o desenvolvimento e a aprendizagem infantis, sobre o jogo e o movimento, entre tantas outras. E no intuito de buscar a superação já citada, que possamos considerar a cultura como elemento central de nossos currículos, assegurando o acesso a livros, via-gens, teatro, música, cinema, grupos de estudo, projetos de extensão, artes plásticas, dinâmicas de grupo, enfim, linguagens diversificadas que possibilitem a interação do aluno/professor consigo mesmo, com seus colegas, com os autores das teorias e com o mundo.

Assim, talvez, possamos criar condições para o confronto de idéias, teorias, ideologias, culturas, proporcionando uma formação ampliada pela prática cultural enriquecida pelo olhar histórico, sociológico, filosófico e pedagógico. Sob essa ótica, os desafios que urge enfrentarmos no processo de formação docente para a educação infantil não devem ser pensados desvinculados do contexto mais abrangente da sociedade onde nascem e crescem as crianças que queremos educar; nem tampouco desvinculados dos alunos/ futuros professores, de suas expectativas e histórias de vida; ou do espectro de políticas públicas que orientam a vida cotidiana, em especial as que se referem ao sistema educacional brasileiro.

EDUCAÇÃO INFANTIL E EDUCAÇÃO FÍSICA: POSSIBILIDADES

Como concluir? Tantas perguntas! Algumas possíveis respostas podem ser construídas (não dadas!). À título de conclusão deste texto, considero pertinente deixar outras inquietações, agora dirigidas especialmente aos professores e estudantes de Educação Física. Para sua formulação faz-se necessário o levantamento de dois pontos. O primeiro diz respeito à especificidade da infância enquanto momento/espaço de vida plena, não-fragmentada, interdisciplinar. A educação dirigida a crianças de zero a seis anos pressupõe, portanto, uma abordagem educacional não-fragmentada em áreas de conhecimento (educação física, artes, alfabetização etc.), na qual não tem sentido a existência de especialistas nesta ou naquela área nem tampouco a sistematização de conhecimentos pela criança.

Neste sentido, a Educação Física precisa, com urgência, pensar as articulações possíveis entre o seu núcleo de conhecimentos/ conteúdos, reconhecidamente válidos, e núcleos de conhecimentos oriundos das diversas práticas culturais e áreas científicas. Coerente com a proposta deste texto, qual seja a de levantar questões para a reflexão e o debate, pensamos que buscar as intercessões entre a educação física e a arte, ou ainda, entre a cultura corporal e as várias formas do fazer artístico apresenta, hoje, um desafio já lançado. Também no campo da psicologia, da nutrição, da saúde, da ecologia e da alfabetização, outros tantos desafios interdisciplinares fazem-se presentes.

O segundo ponto refere-se à realidade dos cursos de formação de professores no contexto da licenciatura em educação física. Historicamente, esses cursos assumiram a responsabilidade social de formar professores para a atuação nos níveis posteriores à educação infantil, especialmente a partir da segunda fase do ensino fundamental. Também a consolidação da unidocência na LDB (Lei

n.o 9.394/96) não legitima a presença de professores de Educação Física e/ou outros especialistas na educação infantil, reforçando a ênfase na formação para a atuação junto a pré-adolescentes, adolescentes e adultos. No entanto, é cada vez mais freqüente a inserção do professor de Educação Física em escolinhas infantis da rede privada,2 ministrando aulas de natação, dança, artes marciais etc. Também a rede pública municipal tem incorporado esse profissional,3 colocando de forma definitiva a necessidade de legitimação pedagógica da Educação Física na educação infantil.

Diante dessa questão, é imperioso que, no campo da formação de professores de Educação Física, possamos redimensionar nossas práticas, enquanto agência formadora, abrangendo as temáticas necessárias à busca de tal legitimação. O conhecimento, a reflexão e a vivência das dimensões do movimento, do jogo e da brincadeira, no contexto da formação em Educação Física, também apresentam-se fragmentários e de cunho utilitarista. Permeada pelo paradigma da aptidão física, a formação ora mencionada precisa buscar as formas/ meios de contemplar a possibilidade da experiência cultural crítica desses aspectos, ampliando sua compreensão a partir da concreticidade dos sujeitos históricos com que lida. Sendo a educação física uma área de conhecimento que, na escola, tematiza os conteúdos da cultura corporal enquanto linguagem, acreditamos que possa contribuir, decisivamente, para a consolidação de processos de formação de professores (nas diversas áreas) mais condizentes com as necessidades, interesses e desejos da crianças brasileiras, especial-mente daquelas que vivem em situação de exclusão e pobreza social.

Diante dessa realidade e da especificidade da infância, questionamos: Se não podemos abrir mão das contribuições que, cremos, essa área tem a oferecer à educação infantil, como podemos colaborar, enquanto professores de Educação Física, para o reforço (não o aniquilamento) da formação de professores de educação infantil? Se é possível pensar em contribuições dessa área de conhecimento à formação de tais professores, quais seriam elas?

ABSTRACT

The objective of this paper is to discuss the issue of Children Education, focusing on the process of teachers’ formation for the pedagogical intervention in the childhood of Brazilians. Therefore, aspects of educational public policies and theoretical productions of Brazilian investigators about infancy and children education were surveyed, in an attermpt to contribute with the necessity to (re)evaluate the role of teachers in a perspective that takes into account the specificity of the child’s cultural production.

NOTAS

* Professora da Faculdade de Educação Física/UFG, mestranda em Educação Brasileira pela FE/UFG

1 Ver KISHIMOTO, T. M. Salas de aulas nas escolas infantis e o uso de brinquedos e materiais pedagógicos. In: 28a REUNIÃO ANPED/2000; MATOS, L.O. A professora primária e as atividades ludo-corporais: relação conturbada ou falta de conhecimento? RCCE,

v. 21, n. 1, p. 1440-1441, set. 1999. 2 Tal inserção diz respeito, a nosso ver, às possibilidades de aumento na cobrança de mensalidades e matrículas, concretizando a perspectiva de mercadoria que as diferentes práticas da cultura corporal assumem. 3 Sayão (1996) aponta em sua dissertação de mestrado que tal incorporação, por si só, não legitima a atuação desse profissional, apontando as causas (externas e estranhas à melhoria da qualidade educacional) da contratação de professores de Educação Física na rede municipal de Florianópolis–SC.

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