JOGOS INDÍGENAS: O FUTEBOL COMO ESPORTE TRADICIONAL KAINGANG

José Roberto Andrade do Nascimento Júnior*

Rosângela Célia Faustino**

RESUMO

As pesquisas sobre jogos indígenas, embora recentes, têm ganhado notoriedade na comunidade científica, uma vez que são atividades lúdicas, demonstrando mitos e valores culturais étnicos. Em relação aos jogos praticados pelos índios Kaingang, são poucos os relatos científicos existentes, sendo que a maioria das pesquisas está relacionada ao futebol como esporte tradicional desse grupo. Algumas pesquisas apontam que, simbolicamente, representam a guerra e os jogos de guerra Kaingang. O presente trabalho faz parte de estudos realizados em um projeto de extensão apoiado pelo programa Universidade Sem Fronteiras e tem como objetivo investigar, por meio de uma pesquisa bibliográfica e etnográfica, os principais jogos Kaingang, com enfoque ao futebol como esporte tradicional.

PALAVRAS-CHAVE: Jogos Indígenas - Índios Kaingang - Futebol.

1 INTRODUÇÃO

A questão discutida neste trabalho faz parte de estudos realizados pelos pesquisadores no projeto de extensão universitária Diagnóstico socioeducativo da não alfabetização indígena e formação de agentes culturais alfabetizadores nas Terras Indígenas Ivaí, Faxinal, Mococa e Queimadas no Paraná, apoiado pelo programa estadual de extensão universitária Universidade Sem Fronteiras. Com os trabalhos de campo realizados no âmbito do projeto, pode-se observar que, atualmente, existem poucos jogos tradicionais praticados por este grupo e que o futebol é um esporte muito praticado entre os indígenas desta etnia, fato que despertou o interesse dos pesquisadores em estudar esse assunto, uma vez que os levantamentos realizados demonstraram que são poucos os estudos relacionados aos jogos tradicionais indígenas e, em particular, sobre os jogos tradicionais Kaingang e o futebol na organização sociocultural do grupo.

Embora pertencendo a um grupo étnico, os Kaingang fazem parte da história e da cultura brasileira, pois já viviam aqui no momento da colonização europeia. O processo de trabalho e produção organizado pelos colonizadores influenciou o modo de viver dos índios nestes territórios, e com os Kaingang não foi diferente. Ainda que o contato com os colonizadores tenha sido mais tardio do que o ocorrido com outros grupos indígenas, na medida em que perderam seus territórios tradicionais, foram aldeados em pequenas áreas, tutelados pelo Estado e tiveram que ressignificar suas tradições.

Esses fatores influenciaram sobremaneira na transformação de elementos da cultura antiga, como os jogos tradicionais indígenas, que foram impedidos de serem realizados por serem considerados demasiado violentos (BORBA, 1908) e, consequentemente, esquecidos e ou ressignificados com o passar do tempo. Uma prova disso é a existência de registros de apenas dois jogos tradicionais pertencentes aos Kaingang, o Kanjire e Pinjire.

As mudanças ocorridas em decorrência da colonização e do avanço da sociedade sobre as terras demarcadas fizeram com que este grupo tivesse contato com um esporte que, nos dias atuais, é um dos principais entre os brasileiros, o futebol. O futebol é muito praticado por estes índios, faz parte do cotidiano de todos os grupos Kaingang, tendo influenciado o modo de viver dos indivíduos e do grupo, e servindo como um dos principais agentes socializadores da etnia.

Entretanto, são poucas as pesquisas que abordam a importância e o significado do futebol entre os Kaingang. Alguns trabalhos conhecidos são: Rocha Ferreira et al. (2005), Fassheber (2006), Rubio, Futada e Silva (2006), Rocha Ferreira (2007a; 2007b), Belz (2008) e Fassheber e Rocha Ferreira (2009). Na área da educação, não foram encontrados estudos sobre essa prática, o que mostra a necessidade de mais pesquisas relacionadas ao tema, para que surjam maiores esclarecimentos sobre os jogos tradicionais indígenas e, em particular, da etnia Kaingang, e sobre o significado e a importância do futebol na socialização deste grupo.

Dessa forma, o objetivo deste estudo foi investigar e discutir, por meio de observações de campo e pesquisa bibliográfica, os principais jogos na comunidade Kaingang, com enfoque ao futebol como esporte tradicional deste grupo.

2 HISTÓRIA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL DO POVO KAINGANG

Os Kaingang pertencem ao grupo linguístico Jê, sendo chamados também de Jê do Sul do Brasil. Conforme Mota (2004), os Kaingang são atualmente o mais populoso grupo indígena do Sul do Brasil. A nomenclatura do grupo, apesar de atribuída a Telêmaco Borba (SWETSCH, 1994), já estava presente nos relatos de viajantes que passaram pelos territórios por eles habitados no século XIX (MOTA, 2004).

Os Kaingang somam cerca de trinta mil pessoas e suas terras atuais se localizam nos estados de Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo, sendo que a maior concentração dessas populações habita terras no estado do Paraná. Embora esta etnia habite regiões desde São Paulo até o Rio Grande do Sul, foi ao Paraná que eles chegaram primeiro. O quadro abaixo mostra a presença Kaingang no Paraná.

Terras Indígenas

Etnias

Município(s)

Área (Ha) (FUNAI)

População (FUNASA)

Apucarana

Kaingang

Tamarana

5.575

1.358

Barão de Antonina

Kaingang

São Jerônimo da Serra

3.750

383

São Jerônimo

Kaingang Guarani Xetá

São Jerônimo da Serra

1.339

573

Mococa

Kaingang

Ortigueira

859

114

Queimadas

Kaingang

Ortigueira

3.077

433

Faxinal

Kaingang

Cândido de Abreu

2.043

587

Ivaí

Kaingang

Manoel Ribas e Pitanga

7.306

1.212

Marrecas

Kaingang e Guarani

Turvo e Guarapuava

16.838

653

Koho Mu Boa Vista

Kaingang

Laranjeiras do Sul

7.344

45

Mangueirinha

Kaingang e Guarani

Mangueirinha, Chopinzinho e Coronel Vivida

16.375

2.159

Rio das Cobras

Kaingang Guarani M’bya

Nova Laranjeiras e Espigão Alto do Iguaçu

18.681

2.316

Palmas

Kaingang

Palmas (PR) e Abelardo Luz (SC)

3.800

737

Kakané Porá

Guarani Kaingang e Xeta

Curitiba

44

35 Famílias

Quadro1: Terras Indígenas Kaingang no Paraná. Fonte: Mota (2002).

Mota (2002) afirma que, para o melhor entendimento da sociedade Kaingang, é fundamental destacar o dualismo simbólico que norteia as práticas sociais desse grupo. O autor demonstra que tanto a sociedade como a natureza aparecem divididas, de forma simbólica, entre as metades Kamé e Kairu. De acordo com Borba (1908), na mitologia Kaingang, Kamé e Kairu foram heróis que teriam sobrevivido ao dilúvio do início dos tempos e que deram origem aos Kaingang atuais. Para Fernandes (2003), o dualismo Kamé e Kairu proporciona uma maneira de classificação abrangente, na qual os seres da natureza, incluindo os seres humanos, possuem valores associados às metades, como: forte e fraco, alto e baixo, valente e temeroso.

O sistema social Kaingang se baseia na descendência patrilinear: os filhos do pai Kamé serão Kamé e os de Kairu serão Kairu, com a residência matrilocal, ou seja, o homem vai morar na casa do sogro e a ele se subordina, sendo a unidade doméstica formada pelo pai, esposa, filhos solteiros, filhas casadas e solteiras e genros (MOTA, 2002).

Tommasino e Fernandes (2003) ressaltam que os Kaingang viviam basicamente da caça e da agricultura, mas, atualmente, tendo em vista a delimitação do espaço habitado, a agricultura é o elemento principal de sua economia. Há também a confecção e a venda do artesanato, que, além de prover boa parte da renda daqueles que não têm empregos fixos na aldeia (agente de saúde, professor, motorista, tratorista, auxiliar operacional), é também um importante elemento de socialização entre as mulheres.

Nas Terras Indígenas Kaingang, há o centro da aldeia composto, principalmente, pelas instituições não indígenas como a unidade de saúde, a escola, o posto da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), a cadeia, a casa do cacique e o campo de futebol, ladeados pelas moradias, em sua maioria casas de alvenaria construídas por meio de projetos governamentais.

Na época da colonização do Brasil, na organização tradicional, os grupos Kaingang viviam em grupos familiares extensos compostos por até 200 pessoas em locais chamados de ỹmã. Atualmente, como demonstra o quadro das Terras Kaingang no Paraná, citado acima, os grupamentos são bem maiores, o que exige uma reorganização política, econômica e social do grupo, que é sempre administrado por um cacique. Mota (2002) enfatiza que o cacique é escolhido pela comunidade e este escolhe seu vice-cacique e sua liderança, que o representam quando não pode participar de alguma reunião fora da aldeia, ajudando-o também em todos os trabalhos que realiza na aldeia. Há a “polícia” composta por cerca de oito homens, geralmente provenientes dos grupos familiares que têm mais poder e prestígio dentro da área. A “polícia”, como é chamada pelos próprios índios, ajuda no controle e combate às infrações como alcoolismo, brigas, adultério e fofocas que podem prejudicar outrem.

Os Kaingang fazem absolutamente tudo coletivamente. Nas roças, trabalham em família ou contratam ajudantes de outras famílias; na elaboração do artesanato, fazem em mutirão/puxirão, convidando mulheres de seu grupo familiar ou por afinidade; na escola, conversam, trocam informações e conhecimentos o tempo todo, tendo muita dificuldade nas avaliações que geralmente são individuais.

3 JOGOS E SOCIEDADES INDÍGENAS

Os jogos indígenas existem entre os índios desde antes da chegada dos colonizadores, mas o tema é recente na comunidade científica, e apenas após a metade do século XX que pesquisas começaram a ser realizadas sobre esse assunto. Segundo Fassheber (2006), até o fim da década de 1960, a sociologia dos esportes era pobre em termos de estudos com análises do fenômeno do esporte na sociedade. O autor ainda diz que, nos Estados Unidos e em países da Europa, os estudos relacionados a esse tema são mais numerosos nas áreas das Ciências Sociais e da Educação Física, ao contrário do que acontece no Brasil.

Os jogos fazem parte do patrimônio da humanidade, sendo importantes elementos bio-sócio-culturais e metafísicos no processo de humanização. Indícios mostram que os primeiros hominídeos jogavam e brincavam entre si, uma vez que já eram capazes de usar a imaginação para criar atividades no auxílio ao desenvolvimento das habilidades de planejar, construir estratégias e fazer julgamentos (ROCHA FERREIRA, 2005), ou seja, é no jogo e pelo jogo que uma civilização surge e se desenvolve (HUIZINGA, 1993).

Rocha Ferreira (2007a) afirma que os jogos foram sendo criados pelos diferentes povos, disseminados por meio do contato e assumindo novos significados com as transformações das civilizações e sociedades, exercendo um papel vital para os homens de todas as idades e contribuindo para o desenvolvimento motor, social, afetivo e cognitivo de cada população.

A autora ressalta que, apesar do extermínio da população indígena após a colonização, o número de índios no Brasil ainda é muito grande, chegando a 350 mil indivíduos, e que essa diversidade e riqueza cultural têm muito a ser estudada para que se conheçam os significados dos jogos nas sociedades indígenas. Um dos principais estudos sobre jogos tradicionais indígenas na América do Norte foi o de Stewart Cullin (1975), no qual o autor enfatiza que os jogos nas sociedades indígenas são realizados em cerimônias para agradar aos deuses, com o objetivo de obter fertilidade, trazer chuvas, expulsar demônios ou curar doenças. Fassheber (2006) afirma que, nos dias atuais, os jogos tradicionais indígenas são o que cada povo inventa e cria de forma bastante diversificada, a fim de manter a identidade de sua vida lúdica e ritual.

Dessa forma, pode-se dizer que:

Os jogos tradicionais indígenas são atividades corporais, com características lúdicas, por onde permeiam os mitos, os valores culturais e, portanto, congregam em si o mundo material e imaterial, de cada etnia. Eles requerem um aprendizado específico de habilidades motoras, estratégias e/ou chances [sorte]. Geralmente, são jogados cerimonialmente, em rituais, para agradar a um ser sobrenatural e/ou para obter fertilidade, chuva, alimentos, saúde, condicionamento físico, sucesso na guerra, entre outros. Visam, também, a preparação do jovem para a vida adulta, a socialização, a cooperação e/ou a formação de guerreiros. Os jogos ocorrem em períodos e locais determinados, as regras são dinamicamente estabelecidas, não há geralmente limite de idade para os jogadores, não existem necessariamente ganhadores/perdedores e nem requerem premiação, exceto prestígio; a participação em si está carregada de significados e promove experiências que são incorporadas pelo grupo e pelo indivíduo. (ROCHA FERREIRA et al., 2005, p. 33).

Os autores ressaltam que a utilização do termo “tradicional” está relacionada à maneira como o jogo é adquirido e usado, mas é imprescindível saber que os jogos nas sociedades indígenas são dinâmicos e que cada grupo tem sua própria noção cosmológica e ritualística.

3.1 JOGOS INDÍGENAS E SOCIEDADE ATUAL

Sabe-se que os processos de exclusão social, discriminação e desvalorização do índio fizeram com que muitos dos jogos indígenas fossem extintos com o passar do tempo, desaparecendo com a riqueza cultural desses povos. Atualmente, com a política de valorização da diversidade cultural, os indígenas, estimulados por organizações, missões, indigenistas e outras instituições, começaram a realizar eventos para dar visibilidade e buscar maior valorização de suas culturas, bem como o reconhecimento de suas identidades.

Essa seria a origem dos chamados Jogos dos Povos Indígenas, iniciados em 1996, que tinham como objetivo a aproximação das nações indígenas brasileiras de diferentes regiões do país e que contaram com a participação de 470 índios, de 29 etnias (RUBIO; FUTADA; SILVA, 2006). Os mesmos autores dizem que esse grande evento surgiu na década de 1970, a partir da ideia e da necessidade de os índios que habitavam o território brasileiro se reunirem e trocarem informações sobre suas questões culturais e sociais.

De acordo com Rocha Ferreira et al. (2008), os Jogos dos Povos Indígenas representam momentos nos quais os índios podem celebrar e transmitir a cultura, estabelecer trocas, conhecer os parentes e novas formas de jogar. Rubio, Futada e Silva (2006) acrescentam que a principal preocupação durante esse evento é fortalecer a autoestima dos grupos envolvidos, promover as diferentes manifestações culturais e o intercâmbio cultural entre os índios e não índios, utilizando o esporte como forma de integração e interação de valores dos diversos grupos étnicos do Brasil.

Em uma pesquisa realizada durante os VIII Jogos dos Povos Indígenas, em Fortaleza, percebeu-se a importância que esse evento tem para os indígenas por meio de perguntas feitas aos participantes. As principais respostas dadas pelos indígenas sobre a importância dos jogos foram: mostrar e manter a cultura, tradições e valores; trocar experiências com outras etnias; confraternização; vender artesanato; interesse em aprender “coisas dos brancos”; aprender outros idiomas; aprender o futebol; e importante para mostrar que não são dependentes dos brancos (ROCHA FERREIRA, 2007b).

Para Rubio, Futada e Silva (2006), mesmo que a denominação Jogos dos Povos Indígenas seja uma analogia aos Jogos Olímpicos, o evento indígena possui atividades próprias das diferentes etnias participantes, não reproduzindo, assim, atividades de outras culturas de movimento. Assim, as provas dos Jogos são compostas por atividades adequadas às culturas indígenas, tais como: corridas, cabo de guerra, travessia por um rio caudaloso, lutas corporais (Huka Huka e variações), arco e flecha, corrida de toras (uma das principais modalidades dos jogos) e o futebol. Além dessas provas, são realizadas outras apresentações culturais, como danças, pinturas corporais e plumagens (ROCHA FERREIRA, 2007a; RUBIO; FUTADA; SILVA, 2006). Desde a primeira edição dos Jogos, as etnias que já participaram de pelo menos uma vez do evento são: Aikewara, Bakairi, Bororo, Cariri, Cinta Larga, Erikbatsa, Gavião, Guarani, Guató, Iawalapiti, Kadiwéu, Kaiapó, Kaiwá, Kanela, Karajá, Krahô, Marubo, Matis, Ofaié, Pankararú, Pareci, Pataxó, Tapirapé, Tembé, Terena, Xavante e Yanomami (RUBIO; FUTADA; SILVA, 2006).

Os Kaingang nunca participaram de uma edição do evento, mas, de acordo com Fassheber (2006), já foram convidados pela organização a observarem algumas modalidades dos Jogos dos Povos Indígenas, para assim treinarem visando uma participação em edição futura. Nota-se, segundo os estudos mencionados, que os Jogos dos Povos Indígenas são uma forma encontrada pelos índios e seus aliados para revitalizar a cultura e a identidade indígena e também para um maior contato entre as diferentes etnias.

4 JOGOS TRADICIONAIS E O FUTEBOL ENTRE OS KAINGANG

É importante destacar que os Kaingang possuem jogos tradicionais em sua cultura, mas que muitas vezes não são conhecidos pela falta de pesquisas e estudos sobre este assunto. Além desses jogos, os Kaingang incorporaram a prática de outras atividades, como o futebol que hoje faz parte da cultura deste grupo.

O relato abaixo, de Telêmaco Borba (1908), descreve um importante jogo tradicional Kaingang:

[...] costumam fazer um exercício e divertimento que chamam caingire, que parece, e realmente é, um verdadeiro combate, comquanto não resulte das offensas nessas occasiões recebidas nenhuma inimisade. Para fazer este divertimento, preparam um largo terreiro, cortam grande quantidade de cacetes curtos, que vão depozitando nas duas extremidades deste; convidam os de outros arranchamentos para se divertirem; acceito o convite, preparam também seos cacetes, e, carregados com elles, vem se approximando cautelosamente do logar do divertimento; ali chegados, sahem-lhes os outros a combater; arremessam-se mutuaente os cacetes com grandes vozerias, simulando um verdadeiro combate, até que um dos grupos abandona o terreiro soffrendo, por essa causa, grande vaias e apupos. As mulheres, cobertas com uma espécie de escudo feito de cascas de arvores, vão ajuntando os cacetes que são arremessados e depositando-os junto aos combatentes; quando algum destes cae mal ferido, ellas o retiram do terreiro e tratam. Nestas luctas sempre há grande ferimentos, contusões, olhos furados e dedos quebrados; mas dahi não procede nenhuma inimizade. Os que sahen mais mal tratados, em piores circunstancias, são considerados os mais valentes (turumanin), e com taes gabados. [...] Também uzam este divertimento de noite e chamam-lhe pingirê porque os cacetes são accesos em uma das extremidades; dá o mesmo resultado que o cángire, apenas com o accrescimento das queimaduras. Exercitam-se desde pequenos na lucta corporal; o que derriba um, tem que supportar a prova de todos os outros que o queiram experimentar, até que, exhausto de forças, succumba a seo turno. Todos os outros seos brinquedos e divertimentos, são sempre mais ou menos grosseiros e brutaes. (BORBA, 1908, p. 17-18, grifo e grafia do autor).

Fassheber (2006) afirma que o Kanjire simula um campo de batalhas, onde dois grupos frente a frente arremessam tocos estocados pelas mulheres, que têm a função de recolher os feridos. Já o Pinjire, conforme se percebe pelo relato de Borba (1908), é semelhante ao Kanjire, mas difere por ser realizado à noite com os tocos acesos. Em sua etnografia sobre os Kaingang, Borba (1908) conversou sobre esses jogos com uma idosa a qual lhe relatou que os resultados dos jogos eram sempre ferimentos graves, contusões, olhos furados e dedos quebrados, mas que isso nunca causava inimizade entre os participantes.

Além deste documento de Telêmaco Borba (1908), não foram encontradas descrições de outros jogos tradicionais na literatura consultada acerca dos Kaingang. O processo de conquista dos territórios indígenas e o aldeamento em pequenas áreas, a reorganização dos grupos familiares, a instituição de caciques apoiados e fortalecidos pelos órgãos de tutela, a perda das matas e imposição de diferentes rotinas de trabalho, religião e lazer, certamente influenciaram as práticas dos jogos tradicionais.

Fassheber (2006) relata uma brincadeira Kaingang, a escalada do pinheiro, realizada com muita rapidez e eficiência. Como o pinhão representava uma das principais fontes de alimentação do grupo, é possível que esse jogo dos meninos fosse uma forma de preparação para a vida adulta por meio de brincadeiras.

Em nossas observações pudemos perceber que muitas das brincadeiras das crianças Kaingang são realizadas por meio de jogos. Abaixo a descrição, feita por um professor da T.I. Faxinal, de um jogo infantil:

Existe uma brincadeira que as crianças faziam e ainda fazem. Primeiro as crianças apostam uma corrida. Quem chegar primeiro nos pés de árvore é macaco. Quem chegar por último é onça e tem que pegar os macacos correndo atrás, subindo nas árvores. A criança que é pega desce da árvore e fica olhando a brincadeira. A brincadeira só acaba quando a onça pegar o último macaco. Na próxima brincadeira o primeiro macaco vira onça e começa tudo de novo1 .

Além dessas brincadeiras, nas quais se estabelecem e modificam as regras de acordo com a situação, as crianças Kaingang também jogam futebol diariamente quando não estão na escola ou acompanhando suas famílias em atividades cotidianas como produção e venda de artesanato e trabalho nas roças familiares.

Fotografia 1

Fotografia 1: Crianças jogando futebol na T.I Faxinal Fonte: LAEE/UEM (2009).

Após o contato e o aldeamento, o futebol passou a fazer parte da cultura Kaingang, sendo hoje considerado como esporte tradicional nestas comunidades.

Assim, como tantos outros elementos trazidos do contato, mas de uma forma menos rude que outras invasões – como o mundo do trabalho, as religiões, etc. -, o Futebol tornou-se prática incorporada à vida Kaingang há mais de oitenta anos atrás. Segundo alguns informantes mais antigos, eles já praticavam o Futebol em suas infâncias, de onde podemos levantar a hipótese de que o Futebol é quase tão antigo para os Kaingáng como o é para os demais brasileiros. (FASSHEBER, 2006, p. 109-110).

Nas Terras Indígenas Kaingang, existem vários times de futebol uniformizados e estruturados, que participam de jogos escolares, campeonatos locais e regionais.

Fotografia 2

Fotografia 2: Partida de Futebol entre times na Terra Indígena Ivai-PR Fonte: LAEE/UEM (2008).

Geralmente, os campos de futebol das Terras Indígenas se localizam no centro da aldeia, o que é uma demonstração de sua inserção e importância nas comunidades. Fassheber (2006) afirma que a centralidade dos campos de futebol demonstra, além do forte significado desse esporte para o grupo, uma forma de reunir moradores das vizinhanças e de famílias mais isoladas. O esporte é praticado por todos: crianças, jovens, adultos e mulheres. No depoimento abaixo, de uma estudante universitária indígena, pode-se perceber aspectos de seu significado pessoal e comunitário.

Comecei jogar futebol com 15 anos, fazia qualquer coisa para não perder um jogo de partida. O time feminino jogava contra o time masculino, para adquirir mais experiência das manhas do futebol, pois falavam que nós meninas éramos perna de pau, onde a bola ia todo mundo corria atrás. Com o tempo adquiri mais habilidade, as pessoas diziam que eu jogava bem, até que um certo dia o time da cidade me convidou para jogar com elas, entramos no Campeonato de Futsal, eu ia de carona com o ônibus escolar nos jogos, conquistamos o primeiro lugar. Fazia de tudo para jogar bola, até matar aula eu fazia. Jogava no time da aldeia e da cidade, só que quando tinha jogo no final de semana na cidade era mais complicado pois não tinha ônibus, eu pegava carona até chegar no local do jogo. Na volta era mais complicado pois já era tarde, minha aldeia ficava há 21 km do asfalto tinha que ir andando esse percurso até achar carona. Fazia cada loucura, ah, como eu jogava, tempos bons2.

Embora existam poucos estudos que abordem a importância e o significado do futebol entre os grupos Kaingang, certamente ele tem ramificações na organização sociocultural do grupo, como afirma Rocha Ferreira (2007b), podendo articular-se com a própria organização social, na qual se destacam aspectos como: mitologia, centralidade, parentesco e religião. Na reorganização das culturas indígenas a partir do contato e do aldeamento, o futebol nas aldeias incorporou elementos da tradição Kaingang, uma vez que as equipes podem ser formadas na tradição da patrilinearidade, descendência paterna, e da uxorilocalidade, norma tradicional de residência na qual o genro ia morar na casa ou próximo ao sogro após o casamento.

Na escalação das equipes de futebol na Terra Indígena Faxinal, feita pelo alto-falante pelo cacique, observou-se a repetição dos sobrenomes, denotando que as equipes podem ser formadas por um grupo de filhos e de genros geralmente ligados às lideranças das terras indígenas (FASSHEBER; ROCHA FERREIRA, 2006).

Os jogos marcados entre diferentes Terras Indígenas estimulam os contatos entre parentes de muitas aldeias, a troca de informações, favorecendo as trocas simbólicas e a reciprocidade dos grupos. Com isso, os contextos urbanos e rurais transformam-se em locais de encontro e relações sociais entre índios e não índios (Fóg), onde eles delimitam suas diferenças e singularidades (FASSHEBER; ROCHA FERREIRA, 2006). Em síntese, segundo este estudo, o futebol tem mostrado ser um esporte que já faz parte da cultura Kaingang, uma vez que recorda seus jogos de guerra e também serve como um fator integrador entre os próprios índios e os Fóg (não índios).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo da história da ocupação de seus territórios, os povos Kaingang sofreram drásticas transformações em seu modo de viver e em sua cultura, tendo sofrido privações e sido forçados a mudanças em seus hábitos e tradições. Muitos aspectos de sua cultura acabaram sendo esquecidos, e um deles são os jogos tradicionais, que sempre fizeram parte da cultura e da história desses índios, mas que não sobreviveram à conquista e à ocupação de seus territórios. Nesse processo, porém, os Kaingang reorganizaram sua cultura, incorporando ou descartando muitos dos elementos provenientes da sociedade envolvente.

No âmbito da socialização grupal, o futebol foi incorporado e passou a fazer parte da cultura Kaingang atual sendo um de seus mais importantes elementos de socialização.

A pesquisa que deu origem a este texto demonstrou que os estudos relacionados aos índios Kaingang deveriam ser mais frequentes e profundos, abordando os diversos aspectos da vida nas aldeias, já que há todo um discurso de valorização e reconhecimento da diversidade cultural dos diferentes grupos étnicos, na atualidade.

Entretanto, são poucas as pesquisas que buscam compreender a complexidade da cultura Kaingang antiga e atual e dos demais grupos indígenas, de forma geral. Estas pesquisas são importantes, pois, além de contribuir com o registro escrito e maior disseminação das práticas societárias indígenas, auxiliam na compreensão do processo de ressignificação ou reorganização sociocultural vivenciado por diferentes grupos indígenas nas relações que estabelecem com a sociedade envolvente.

NOTAS

*Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Paraná, Brasil

**Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Paraná, Brasil

1 Depoimento do Professor Kaingang Alexandre Aparecido Krenkág Farias, à Rosangela Célia Faustino, T. I. Faxinal, março de 2009

2 Cristina Bandeira. Estudante universitária Kaingang do Curso de Enfermagem na UEM – Universidade Estadual de Maringá. Depoimento dado à Rosangela Célia Faustino em fevereiro de 2009.

ABORIGINAL GAMES: THE SOCCER AS A TRADITIONAL KAINGANG SPORT

ABSTRACT

The aboriginal research on games, been recently, have gained notoriety in the scientific community, although, they are playful activities, demonstrates myths and ethnic cultural values. In relation to the games practised by the Kaingang indians, the existing scientific stories are few, being that, the majority of the research is related to soccer being a traditional sport of this group. Some research points that, symbolically, soccer represents the war and the Kaingang´s war games. The present work is part of studies carried through, in a project of extension supported by the program University Without Borders and has as objective to investigate, by means of a bibliographical and ethnographical researches, the main Kaingang games, pointing at soccer as a traditional sport.

KEYWORDS: aboriginal games; Kaingang indians; soccer.

JUEGOS INDÍGENAS: EL FÚTBOL COMO DEPORTE TRADICIONAL KAINGANG

RESUMEN

Las investigaciones respecto a los juegos indígenas son recientes pero han ganado notoriedad en la comunidad científica, puesto que son actividades lúdicas y demuestran los mitos y valores culturales etnicos. Respecto a los juegos que practican los indígenas Kaingang, hay pocos relatos científicos, y la mayoría de las investigaciones están relacionadas al fútbol como deporte tradicional. Algunas investigaciones señalan que, simbólicamente, representan la guerra y los juegos de guerras Kaingang. Este trabajo forma parte de los estudios realizados en un proyecto de extensión apoyado por el programa Universidade Sem Fronteiras y tiene el objetivo de investigar, por medio de una investigación bibliográfica y etnográfica, los principales juegos Kaingang, con enfoque al fútbol como deporte tradicional.

PALABRAS-CLAVE: juegos indigenas; indigenas Kaingang; fútbol.

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Recebido em: 27-08-2009

Revisado em: 02-09-2009

Aprovado em: 06-10-2009


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